Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
| ||
Relator: | CARLA SOUSA OLIVEIRA | ||
Descritores: | INVENTÁRIO PARA SEPARAÇÃO DE MEAÇÕES NULIDADE DE SENTENÇA IMPUGNAÇÃO DA MATÉRIA DE FACTO REMESSA DAS PARTES PARA OS MEIOS COMUNS | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 01/16/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO PARCIALMENTE PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I - A nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão aí contemplada pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la. II - A divergência entre os factos provados e a decisão não integra tal nulidade, reconduzindo-se a mero erro de julgamento. III - Cabia ao cabeça de casal alegar e demonstrar os factos atinentes aos direitos de crédito por si relacionados e em seu benefício – derivados da venda de bens próprios e da apropriação indevida pela outra interessada de dinheiros comuns. IV - Não permitindo os factos recolhidos, por insuficientes, decidir, com segurança, no inventário, a questão, requerendo mais aprofundada instrução, averiguação e análise, que não pode ser objecto de indagação incidental em tal processo, deve o juiz remeter os interessados para os meios comuns - ao abrigo do disposto art.ºs 1105º e 1093º, do NCPC - que oferecem garantias processuais acrescidas. | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 2ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães I. Relatório AA instaurou no Cartório Notarial de Dr.ª BB o processo de inventário para partilha de meação subsequente a divórcio, contra a requerida CC O requerente, por ser o ex-cônjuge mais velho, foi nomeado para exercer as funções de cabeça de casal, tendo sido ordenada a sua notificação com a advertência a que se reportava o nº 1, do art.º 24º, do Regime Jurídico do Processo de Inventário aprovado pela Lei nº 23/2023. O cabeça de casal prestou declarações e apresentou a relação de bens, indicando, para além do mais e para o que ora interessa, os seguintes direitos de crédito contra a ex-cônjuge: “Verba 9 - produto da venda do imóvel fracção ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...68, no valor de € 100.000,00 (adquirida antes do casamento – ../../2000 e vendida em 11/05/2007) cfr. Doc. 5 Verba 10 - produto da venda do imóvel descrito na ... C R Predial ... sob o n.º ...37 da Freguesia ..., G2 e ... no valor de € 210.000,00 (adquirida antes do casamento – ../../2001 e vendida em 10/03/2015) cfr. Docs. 6 e 7 Verba 11 - produto da venda do veículo ..-..-QA no valor de €12.000,00 Verba 12 - levantamentos abusivos e não autorizados da ex-cônjuge, após separação, no valor de € 52.482,48 das contas do Banco 1... ...35 e Banco 2... 1-5141644000001 (€ 27.482,48 e € 25.000,00) em agosto de 2015 e julho de 2016. O que importa na compensação própria do previsto nos artigos 1723º, al. b) C Civil e, já no que tange à verba 12, restituição ou compensação de bens comuns retirados ao Inventário, na meação, no total de € 374.000,48.”. Entretanto e na sequência do requerido pelo cabeça de casal, foi determinada a remessa do processo para tramitação judicial. Recebido o processo pelo tribunal competente, foi de imediato citada a interessada CC, tendo esta vindo reclamar da relação de bens apresentada pelo cabeça de casal, designadamente e para o que ora interessa, em relação aos direitos de crédito reclamados, tendo impugnado o valor das verbas 9 e 10 e a verba 11 e referido que o preço de aquisição do imóvel sito em ..., na ..., foi pago em partes iguais com recurso a crédito bancário contraído por ambos os ex-cônjuges e que foi o cabeça-de-casal que transferiu, em Agosto de 2015, para a conta da interessada, a quantia de € 25.000,00, como compensação pelo prejuízo que lhe causaria a saída da casa de morada de família. Requereu a produção de prova documental em poder de terceiro. Em resposta, o cabeça de casal manteve o requerido na relação de bens. Juntou apenas prova documental. Designada audiência prévia as partes acordaram quanto ao acervo a partilhar à excepção dos direitos de crédito relacionados pelo cabeça-de-casal e impugnados pela reclamante. Mais foi requerida pelos mandatários das partes a avaliação dos bens imóveis relacionados sob as verbas nºs 6, 7 e 8. Foi proferido despacho a determinar a realização da referida avaliação e ainda a determinar a notificação das partes para se pronunciarem quanto às questões controvertidas, nos termos do art.º 3º, nº 3 do NCPC, pois que o tribunal a quo pretendia delas conhecer sem que o julgamento tivesse lugar. O cabeça de casal veio pugnar pela declaração de tais créditos a seu favor, referindo que as verbas 9, 10 e 11 se tratam de bens próprios do cabeça de casal que integram o activo, devendo ter-se presente o teor do previsto no art.º 1722º, nº 1, al. a) e nº 2, al. c), do CC; e que a verba 12 corresponde a quantias levantadas pela interessada do activo nas verbas 1 e 2. Por sua vez, a interessada reiterou o alegado na reclamação deduzida, defendendo que as verbas 9, 10 e 11 não correspondem a bens próprios daquele. Entretanto, notificadas que foram as partes para proceder ao pagamento antecipado dos encargos relativos à avaliação dos bens imóveis, a interessada CC não procedeu ao pagamento da guia emitida pela secretaria para tal efeito. Ordenada a notificação do cabeça de casal nos termos e para efeitos do disposto no art.º 23º, nº 3, do RCP, veio o mesmo veio pedir a condenação daquela como litigante de má-fé, não tendo, porém, procedido ao pagamento do encargo com a deferida avaliação, em substituição da requerida, pelo que foi determinada a não realização da diligência e designada data para a conferência de interessados. Após ter sido realizada a conferência de interessados, foi proferida sentença quanto à reclamação da relação de bens, decidindo-se pela exclusão das verbas nºs 9, 10, 11 e 12 da relação de bens. E foi ainda julgado improcedente o pedido de condenação da requerida como litigante de má-fé. Notificado de tais decisões, veio o cabeça de casal interpor o presente recurso, concluindo a sua alegação nos seguintes termos: “I- Recorre-se da matéria recorrendo da matéria de facto e de direito, desde logo porque, entre outros, se apresentam violadas os normativos previstos nos artigos 47º e 465º, nº 2, 1093º, 1097º, 1723º alínea b), 1726º º todos do Código de Processo Civil, e artigo 358º, nº1 do Código Civil. Verificando-se a nulidade prevista no artigo 615º número 1 alínea c) do código de processo civil, a contradição entre os fundamentos de facto e de direito (e até entre os próprios fundamentos de fato entre eles), respetiva oposição com a decisão, contraditória e obscura, com evidentes erros de julgamento, não considerando, erradamente, como provados os pontos 6 a 9, da motivação de facto. II- Porque erradamente julgado a matéria de facto considerada não provada. III- Desde logo porque não foi impugnado pela interessada, em momento algum, e, portanto, confessado, não resultando da defesa na sua totalidade, que os produtos da venda das verbas insertas na reclamação de créditos fossem usados em proveito da economia comum do casal, razão pela qual o mesmo as reclama, deveria ter sido considerado provados os pontos 6a 9 de fatos não provados. IV- O que foi impugnado, outro sim, é que tais verbas correspondessem a bens próprios do cabeça de casal. fundando a sua oposição nesse argumento. Percebendo-se a violação do previsto nos artigos 47º e 465º, n.º 2, 1097º, todos do Código de Processo Civil, e artigo 358º, n.º 1, artigo 1723º, alínea b), 1726º, todos do Código Civil. V- Resulta da douta sentença, ora em crise, em sede de relatório que O cabeça de casal alega créditos decorrentes do produto da venda de dois imoveis, do imóvel fração ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...68, no valor de € 100.000,00 (cem mil euros); imóvel adquirido antes do casamento, a ../../2000 e vendido a 11.5.2007 e do produto da venda do imóvel descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...37 da Freguesia ..., G2 e ... no valor de € 210.000,00 (duzentos e dez mil euros); VI- Em momento posterior, de forma contraditória, é considerado não alegado tudo o antes referido, apesar do regime alegatório imposto pelo artigo 1092º do código de processo civil, o cabeça de casal reclama do ex-cônjuge o produto da venda, entre outros, das verbas imoveis/bens próprios, expressamente exigindo a compensação no total de € 374.000,00. VII- imóvel adquirido antes do casamento, a ../../2001 e vendido a 10.3.2015. Ainda créditos decorrentes/produto da venda do veículo ..-..-QA no valor de € 12.000,00 (doze mil euros). Ainda alega levantamentos abusivos e não autorizados da reclamante/interessada, após a separação no valor de € 52.482,48 das contas do Banco 1... ...35 e Banco 2... 1-5141644000001 (€ 27.482,48 e € 25.000,00) em agosto de 2015 e julho de 2016. VIII- Apesar disso, é dado como provado, em 4 e 5, em concreto que os dois imóveis em causa eram bens próprios do cabeça de casal e que foram vendidos na constância do matrimónio por € 210.000,00 e € 100.000,00. O cabeça de casal reclama do ex-cônjuge o produto da venda, entre outros, das verbas imoveis/bens próprios, expressamente exigindo a compensação no total de € 374.000,00. IX- Apesar do antes referido, da sentença, ora em crise resultam excluídas (entre outras) verbas 9, 10, 11 e 12, sem remessa para os meios comuns. X- Posteriormente, em sede de motivação, resulta da sentença, ora em crise, e cito “nenhuma prova se faz quanto ao destino do valor da venda de tais imóveis (…) para existir compensação (…) teria que ter sido alegado (…) que o valor da venda foi utilizado na aquisição de bens, na pendência do matrimónio”, evoluindo em considerações idênticas no que tange aos demais créditos reclamados pelo cabeça de casal. XI- Ora, o inventario conhece os bens do casal, os comuns e os próprios. XII- O cabeça de casal articula, expressamente, em sede de inventario, exigindo a compensação nos termos do previsto no artigo 1723º, alínea b) do código civil, reclama o preço dos bens próprios alienados. Tal reclamação incidirá sobre o património inventariado, a totalidade do património. XIII- Não se poderá, assim, afirmar que nenhuma prova se fez quanto ao destino do valor da venda de tais imóveis e assumir que essa prova deverá ser efetuada pelo cabeça de casal, pois que, reclamada a compensação deveria a interessada opor-se à mesma, o que não sucedeu. XIV- Se percorrermos o texto da impugnação e reclamação (que, nesta data – 16 de outubro- curiosamente, não se encontra “disponível” no processo/Citius!) verificamos que a interessada CC contesta (25º e seguintes) os direitos de crédito reclamados. A interessada contesta/ (impugnação á reclamação) porque não os considera bens próprios do cabeça de casal, sempre nesse sentido, nunca impugnando (portanto confessando) que fossem alienados em proveito da economia comum do casal. XV- Acresce que a reclamação dos direitos de crédito da interessada, nos termos em que foi efetuada, inverte o ónus da prova, sendo que, e conforme alegado em 13 de julho de 2021 pelo Cabeça de Casal [6º] “cumpre referir que o ónus de provar o fundamento do que alega em tais Reclamações (de 7º a 43º) é da Reclamante, para tal atendendo-se ao previsto no artigo 342º, n.ºs 1 e 3 do CC e em especial ao previsto no artigo 421º do CPC”. XVI- Não poderá, desta forma, o apelante conforma-se com a decidida falta de alegação sobre o destino do produto da venda das verbas 9 a 12 da relação de bens, tanto mais que, expressamente se peticiona a compensação do “preço dos bens próprios alienados”. Como é óbvio, alienados na constância do matrimónio. XVII- Acresce que, ao contrário das considerações plasmadas na sentença, ora em crise, importa referir o artigo 1097º impõe especificidades à aplicação do regime previsto artigo 552º, ambos do código de processo civil. O referido regime não permite a expansão alegatória que a decisão, ora em crise, pretende impor. XVIII- Resultando, no entanto, do texto do requerimento inicial, claramente, peticionados os direitos de crédito que reclama o cabeça de casal, corroborado pelo pedido do produto da venda dos imóveis e, ainda, peticionada a compensação pelo preço dos bens próprios alienados em favor da vida comum. XIX- Ou seja, verifica-se, desde logo, uma evidente obscuridade e contradição própria da nulidade prevista no artigo 615º, alínea c) do código de processo civil. XX- Note-se que, o confronto da afirmação da falta da alegação do destino do produto da venda dos bens próprios do cabeça de casal, com a necessidade de se fazer consignar em sentença que tal questão não foi alegada não será percetível, contraditada, oposição com os próprios fundamentos da decisão, desde logo porque o juiz a quo não a poderia percecionar se não fosse alegada, tanto mais que, não será conciliável a putativa falta de alegação, pretendendo-se aturada exposição peticional neste tipo de processo que não será compaginável com o previsto no artigo 1097º do código de processo civil. XXI- Mesmo que não se for considerado o antes referido, sempre se dirá que, resultam, também contraditórias as considerações de direito com a decisão de excluir as verbas 9, 10, 11 e 12, sem remessa para os meios comuns. XXII- Também neste segmento decisório se verifica contradição evidente, pois a decisão em causa, ora em crise, determina-se por conhecimento superficial dos direitos do cabeça de casal. Admitindo que o processo não conhece, de facto, questões essenciais para decidir, perante complexidade das questões de facto, não se percebendo porque tal remessa não é determinada. XXIII- Atente-se no expandido em motivação de direito, em completa contradição com a decisão e com a não remessa para os meios comuns; cita-se (motivação de direito) “Tudo isto sem prejuízo de, quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente a decisão incidental das reclamações, nos termos do artigo 1093° do C.P.C., o juiz abster-se de decidir e remeter os interessados para os meios comuns. Neste caso, não são incluídos no inventário os bens cuja falta se acusou. Sendo certo que só é admissível a resolução provisória ou a remessa dos interessados para os meios comuns, quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar redução das garantias das partes. Sobre esta questão, tem sido defendido pela jurisprudência que na formulação deste juízo deve ponderar-se tanto o interesse na resolução definitiva das questões suscitadas como em não verem as partes o seu problema resolvido de modo precipitado ou indevidamente fundamentado, em consequência da prova, sempre sumária, mas, porém, sempre se exigindo que seja possível formar em sede de inventário e mediante as provas apresentadas, um juízo com elevado grau de certeza – cfr. Ac. STJ, de 15.01.2001, CJSTJ, T. II, pp. 75. Pelo que, a decisão de qualquer questão em processo de inventário deve revestir-se com um grau de elevada certeza sobre a existência ou inexistência dos bens reclamados, com conclusão segura e consciente, não discricionária, que não se compadece, a maior parte das vezes, com uma averiguação sumária – cfr. Ac. da RP de 27.01.2003, disponível em www.dgsi.pt, processo 0253080. Para as questões a apreciar importa atentar no disposto no art.º 1724.º, al. a) do C. Civil o qual estabelece que faz parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges e bem assim, havendo dúvidas sobre a comunicabilidade dos bens móveis (como o é o dinheiro, cfr. art.º 205.º do C. Civil) estes consideram-se comuns. Estas são as duas normas basilares da apreciação dos factos. Para além do mais importa não olvidar o disposto no art.º 1789.º, n.º 1, segunda parte segundo o qual os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respetiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges, in casu, 22.9.2016. Como tal, conjugando o referido regime - tendo em conta que o regime de bens que vigorava era supletivo de comunhão de adquiridos, cfr. art.º 1717.º do C.Civil - verifica-se que à data de 22.9.2016 os bens imóveis em questão são, efectivamente, bens próprios do Cabeça-de-casal (…) No entanto, é nos meios comuns e em acção autónoma que tal questão tem de ser decidida”(negrito e sublinhado nosso)… XXIV- No entanto, em completa contradição, a sentença em crise, para alem de decidir não remete para os meios comuns, contradição evidente com o antes referido, em especial, “No entanto, é nos meios comuns e em acção autónoma que tal questão tem de ser decidida”. XXV- Saber que os produtos da venda dos bens próprios serviram à vida comum, saber se serviram para pagar, total ou parcialmente o preço dos imóveis e móveis, adquiridos na constância do matrimónio, se serviram, ou não, à vida comum, tratando-se de uma discussão entre interessados, os bens respeitantes às verbas cuja exclusão se reclama devem considerar-se como litigiosos, com o esclarecimento, na descrição, dessa sua natureza. XXVI- Não será arriscado referir que, estará em causa matéria de facto qualificável como complexa, percebendo-se a tramitação do processo de inventário como inadequada, por implicar uma efetiva diminuição das garantias deverão ser asseguradas às partes no processo declarativo comum, cumprindo-se o previsto no artigo 1092º do código de processo civil. XXVII- Verificando-se evidente contradição também no que tange à decisão da requerida litigância de má-fé. XXVIII- A contradição entre os fundamentos e a decisão são extensíveis à decisão sobre a litigância de má-fé. XXIX- Atente-se que na decisão, ora em crise, começa por se expor o regime previsto no artigo 542º n 2 do código de processo civil. XXX- Posteriormente refere-se que só se poderia sancionar a conduta se fosse apurado que a dilação tivesse provocado prejuízo. XXXI- Continua referindo que a conduta da reclamante redunda num prejuízo para o cabeça de casal. XXXII- Conclui-se pela não condenação da reclamante. Como tão pouco se entendem os anteriores segmentos impugnados. XXXIII- Em comum a todas os segmentos decisórios, salvo o devido respeito, que é muito, não se percebe esta decisão. XXXIV- A sentença é nula nos termos do previsto no artigo 615º número 1 alínea c), contraditória, obscura e em alguns segmentos ininteligível.”. Termina requerendo a nulidade da sentença em causa e pugnando por decisão que determine a prova dos pontos 6 a 9 ou pela remessa da apreciação dos mesmos para os meios comuns, bem como na requerida condenação da interessada CC, como litigante de má-fé. Não foram apresentadas contra-alegações. O tribunal recorrido proferiu despacho a considerar não verificadas as nulidades invocadas e a admitir o recurso interposto. Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir. * II. Delimitação do objecto do recurso e questões a decidir * O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do apelante, tal como decorre das disposições legais dos art.ºs 635º, nº 4 e 639º do NCPC, não podendo o tribunal conhecer de quaisquer outras questões, salvo se a lei lhe permitir ou impuser o seu conhecimento oficioso (art.º 608º nº2 do NCPC). Por outro lado, não está o tribunal obrigado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes e é livre na interpretação e aplicação do direito (art.º 5º, nº 3 do citado diploma legal). * No caso vertente, tendo em conta o teor das conclusões formuladas pelo recorrente, importa decidir:i. quanto ao recurso interposto da sentença proferida na reclamação da relação de bens: - se a sentença é nula, nos termos do art.º 615º, nº 1, al. c), do NCPC; - se o tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento quanto à decisão da matéria de facto dada como não provada; e - se o tribunal recorrido incorreu em erro de julgamento, devendo as partes ser remetidas para os meios comuns; ii. quanto ao recurso interposto da decisão relativa à litigância de má-fé: - se a decisão relativa à litigância de má-fé é igualmente nula, nos termos do art.º 615º, nº 1, al. c), do NCPC, devendo concluir-se pela condenação da requerida como litigante de má-fé. * III. Fundamentação* 3.1. Fundamentos de facto Com interesse para a decisão relevam as incidências fáctico-processuais que se evidenciam no relatório supra. Ter-se-á ainda em consideração o teor das decisões recorridas, se aqui se passam a transcrever, por facilidade de exposição: “I - RELATÓRIO. CC, interessada no presente inventário, em que é Cabeça-de-casal AA, reclamou da relação de bens apresentada por aquele. Em sede de audiência prévia as partes acordaram quanto ao acervo a partilhar à excepção dos direitos de crédito relacionados pelo Cabeça-de-casal e impugnados pela reclamante. Em síntese, alega o Cabeça-de-casal créditos decorrentes: 1. Produto da venda do imóvel fracção ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...68, no valor de € 100.000,00 (cem mil euros); imóvel adquirido antes do casamento, a ../../2000 e vendido a 11.5.2007. 2. Produto da venda do imóvel descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...37 da Freguesia ..., G2 e ... no valor de € 210.000,00 (duzentos e dez mil euros); imóvel adquirido antes do casamento, a ../../2001 e vendido a 10.3.2015. 3. Produto da venda do veículo ..-..-QA no valor de €12.000,00 (doze mil euros). 4. Levantamentos abusivos e não autorizados da reclamante/interessada, após a separação no valor de € 52.482,48 das contas do Banco 1... ...35 e Banco 2... 1-5141644000001 (€ 27.482,48 e € 25.000,00) em Agosto de 2015 e Julho de 2016. A reclamante impugnou motivadamente, mormente que em relação ao imóvel sito em ..., na ..., o preço de aquisição foi pago com recurso a crédito bancário contraído por ambos os ex-cônjuges. No que concerne aos valores devidos ao património comum, os levantamentos bancários, a reclamante alega que foi o Cabeça-de-casal que transferiu, em Agosto de 2015, para a conta da interessada, a quantia de € 25.000,00. * Proferido despacho no sentido das partes se pronunciarem quanto às questões controvertidas, pois que o Tribunal pretendia delas conhecer sem que julgamento tivesse lugar, a tal as partes não se opuseram - cfr. art.º 3.º, n.º 3 do C.P.Civil - mantendo as posições já firmadas nos autos. * São questões a decidir: i) Qual o destino do preço pago pela venda dos bens imóveis e móvel sujeito a registo; ii) Relevância dos levantamentos/movimentos bancários atenta a sua data. ** Os factos. * Factos assentes e provados. 1. AA e CC casaram, civilmente, entre si a ../../2001, sem que tivessem celebrado convenção antenupcial. 2. O casamento foi dissolvido, por divórcio, tendo a decisão judicial, datada de 14 de Maio de 2018, transitado em julgado a 13 de Junho de 2018. 3. A petição inicial do processo de divórcio deu entrada em juízo a 22 de Setembro de 2016. 4. O Cabeça-de-casal comprou o imóvel descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...37 da Freguesia ..., G2 e ..., a ../../2001 o qual foi vendido a 10.3.2015 pelo preço de € 210.000,00. 5. Em 26 de Setembro de 2000, por compra outorgada em escritura, o Cabeça-de-casal adquiriu a propriedade de um apartamento sito na Rua ..., ... em, ..., apartamento vendido a 11 de Maio de 2007 pelo preço declarado de € 100.000,00 a DD, casado com EE (pais da interessada/reclamante). Factos não provados. Não se provou: 6. O destino do produto da venda do imóvel fracção ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...68. 7. O destino do produto da venda do imóvel descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...37 da Freguesia ..., G2 e .... 8. A venda do veículo ..-..-QA e que tenha sido no valor de €12.000,00 (doze mil euros). 9. A reclamante/interessada tenha feito levantamentos abusivos e não autorizados, após a separação, no valor de € 52.482,48 das contas do Banco 1... ...35 e Banco 2... 1-5141644000001 (€ 27.482,48 e € 25.000,00) em Agosto de 2015 e Julho de 2016. * Motivação. O casamento entre as partes, sua data e ausência de convenção antenupcial decorre assente considerando o teor da certidão do respectivo assento de casamento junta com o requerimento inicial. A dissolução do casamento, por divórcio decorre assente considerando a certidão junta 16.1.2020 aos presentes autos. A entrada em juízo da petição inicial do referido processo de divórcio queda provada considerando o registo Citius da respectiva peça processual. A aquisição e venda do imóvel fracção ... decorre comprovada das escrituras juntas ao processo nº 4103/16.... (procedimento cautelar de arrolamento) a 3.10.2016. A aquisição do imóvel descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...37 da Freguesia ..., G2 e ... decorre comprovada das escrituras juntas ao processo nº 4103/16.... (procedimento cautelar de arrolamento) a 3.10.2016. * No que concerne à factualidade não provada compete dizer o seguinte quanto à convicção do Tribunal. Dos documentos juntos aos autos, mormente das escrituras de compra e venda dos imóveis não resulta qual o destino do dinheiro pago pela sua compra. Pura e simplesmente inexiste qualquer prova, ou seu indício, de qual o destino do valor em causa. Da mesma forma se refira quanto ao veículo automóvel matrícula ..-..-QA inexiste qualquer prova documental de onde resulte, nomeadamente, a existência de um valor de venda e o seu destino. No que é concernente aos valores dos depósitos bancários, o Tribunal atentou nos extractos juntos aos autos a 11.6.2021. Em relação ao Banco 1..., dos respectivos extractos resulta que, na conta bancária titulada pelo Cabeça-de-casal, a 30.7.2015 foi creditado o valor de € 25.000,00, proveniente de conta bancária no nome da interessada/reclamante. Nada mais se pode concluir da prova documental, mormente, o que o Cabeça-de-casal alega. Em relação ao Banco 2... a prova documental é totalmente omissa. * DO DIREITO. * O inventário é um processo com uma natureza peculiar, a um tempo gracioso e contencioso, que tende, em última análise, a uma partilha global do património hereditário ou ao património comum dos cônjuges (cfr. artigo 1082.° do C.P.C.). Quanto às questões nele decididas, o processo de inventário assume o aspecto contencioso, funciona como uma acção, é uma verdadeira causa – cfr. Ac. TRL, de 25.06.1992, CJ, Tomo III, p. 216. Ao cabeça de casal compete relacionar os bens comuns do casal que fazem parte do acervo a partilhar, indicando o seu valor e bem assim relacionar os créditos e as dívidas da herança (cfr. artigos 1097.º, n.º 3 e 1098.º, ambos do C.P.C.) Para o que ora releva deduzida oposição ao inventário, impugnação (da legitimidade dos interessados, a falta de interessados, a competência do Cabeça-de-casal e os créditos ou dívidas da herança) ou reclamação contra a relação de bens, são notificados o cabeça de casal, e os demais interessados para se pronunciarem sobre a questão suscitada - cfr. artigos 1105.º, n.º 1 do C.P.C. Não sendo confessado o alegado pelo reclamante, procede-se às diligências probatórias necessárias, as quais precedem a decisão - cfr. art.º 1105.º, n.º 3 do C.P.C. No que diz respeito às dívidas relacionadas impõe-se, agora, um ónus de impugnação pelo que devem os interessados se pronunciar sobre as mesmas sob cominação de se considerar as mesmas reconhecidas - cfr. art.º 1106.º, n.º 1 do C.P.C. Tudo isto sem prejuízo de, quando a complexidade da matéria de facto subjacente às questões suscitadas tornar inconveniente a decisão incidental das reclamações, nos termos do artigo 1093.° do C.P.C., o juiz abster-se de decidir e remeter os interessados para os meios comuns. Neste caso, não são incluídos no inventário os bens cuja falta se acusou. Sendo certo que só é admissível a resolução provisória ou a remessa dos interessados para os meios comuns, quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar redução das garantias das partes. Sobre esta questão, tem sido defendido pela jurisprudência que na formulação deste juízo deve ponderar-se tanto o interesse na resolução definitiva das questões suscitadas como em não verem as partes o seu problema resolvido de modo precipitado ou indevidamente fundamentado, em consequência da prova, sempre sumária, mas, porém, sempre se exigindo que seja possível formar em sede de inventário e mediante as provas apresentadas, um juízo com elevado grau de certeza – cfr. Ac. STJ, de 15.01.2001, CJSTJ, T. II, pp. 75. Pelo que, a decisão de qualquer questão em processo de inventário deve revestir-se com um grau de elevada certeza sobre a existência ou inexistência dos bens reclamados, com conclusão segura e consciente, não discricionária, que não se compadece, a maior parte das vezes, com uma averiguação sumária – cfr. Ac. da RP de 27.01.2003, disponível em www.dgsi.pt, processo 0253080. Para as questões a apreciar importa atentar no disposto no art.º 1724.º, al. a) do C.Civil o qual estabelece que faz parte da comunhão o produto do trabalho dos cônjuges e bem assim, havendo dúvidas sobre a comunicabilidade dos bens móveis (como o é o dinheiro, cfr. art.º 205.º do C.Civil) estes consideram-se comuns. Estas são as duas normas basilares da apreciação dos factos. Para além do mais importa não olvidar o disposto no art.º 1789.º, n.º 1, segunda parte segundo o qual os efeitos do divórcio produzem-se a partir do trânsito em julgado da respectiva sentença, mas retrotraem-se à data da proposição da acção quanto às relações patrimoniais entre os cônjuges, in casu, 22.9.2016. Como tal, conjugando o referido regime - tendo em conta que o regime de bens que vigorava era supletivo de comunhão de adquiridos, cfr. art.º 1717.º do C.Civil - verifica-se que à data de 22.9.2016 os bens imóveis em questão são, efectivamente, bens próprios do Cabeça-de-casal. No entanto, nenhuma prova se fez quanto ao destino do valor da venda de tais imóveis ao tempo do casamento e, como tal, não podendo operar nenhuma presunção de comunicabilidade não é lícito concluir-se que a interessada reclamante seja devedora do valor relacionado. Até porque, atente-se no seguinte: conservam a qualidade de bens próprios o preço dos bens próprios alienados - cfr. art.º 1723.º, al. b) do C.Civil. Sendo certo que para existir a compensação pela interessada, nos termos do artigo 1726.º do C.Civil teria que ter sido alegado, e não foi, que o valor da venda foi utilizado na aquisição de bens, na pendência do casamento. Quanto ao demais, não tendo sido sequer provado que a reclamante ficou com € 52.482,48 que teria levantado das contas bancárias do Banco 1..., e do Banco 2..., inexiste qualquer fundamento para que a mesma compense o património comum. Ademais, importa atentar que as datas que são alegadas como sendo dos movimentos bancários são anteriores à data de entrada da acção de divórcio em juízo. Daqui decorre que, na presente sede, é irrelevante a que título foram as contas bancárias movimentadas. Na verdade, se tiver existido utilização de bens comuns que não em proveito comum do casal - antes da data de entrada da acção de divórcio em juízo - tal importará a, eventual, responsabilidade do cônjuge administrador - cfr. art.º 1678.º do C.Civil em conjugação com o regime da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, nos termos do disposto no art.º 483.º do mesmo diploma legal; No entanto, é nos meios comuns e em acção autónoma que tal questão tem de ser decidida. De igual forma, não se tendo provado que a reclamante tenha ficado com o valor de venda do veículo ..-..-QA, nada há a repor ao património comum. * Das custas. Considerando o decaimento do Cabeça-de-casal decide-se fixar a responsabilidade deste nas custas, fixando-se o valor do incidente em € 384.482,48 - cfr. artigo 527.º do C.P.Civil e artigo 304.º, n.º 1, 2.ª parte do mesmo diploma legal. * III – Decisão Termos em que se decide pela exclusão das verbas n.º 9, n.º 10, n.º 11 e n.º 12 da relação de bens. Custas a cargo do Cabeça-de-casal. * Notifique e registe. * Após trânsito em julgado notifique as partes para apresentarem proposta de mapa de partilha - cfr. art.º 1120.º, n.º 1 do C.P.Civil. * Da litigância de má-fé. ** * O Cabeça-de-casal peticiona a condenação da reclamante/interessada em litigância de má-fé uma vez que, depois de ter requerido a avaliação dos bens a partilhar, não pagou os respectivos preparos. Não requereu prova. Cumpre apreciar. Nos termos do disposto no art.º 542.º, n.º 2 do C.P.Civil, diz-se litigante de má fé quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objectivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a acção da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. No art.º 8.º do C.P.Civil consagra-se o chamado dever de boa-fé ou de probidade processual. A mais grave violação desses deveres consubstancia-se na litigância de má-fé. O dever de litigar de boa-fé, isto é, com respeito pela verdade, mostra-se como um corolário do princípio do dever de probidade e de cooperação, fixados nos artigos 7.º e 8.º do C.P.Civil, para além dos deveres que lhe são inerentes, imposto sempre às respectivas partes. Se a parte, com propósito malicioso, ou seja, com má-fé material, pretender convencer o tribunal de um facto ou de uma pretensão que sabe ser ilegítima, distorcendo a realidade por si conhecida, ou se, voluntariamente, fizer do processo um uso reprovável ou deduzir oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar – má-fé instrumental - deve ser condenada como litigante de má-fé. Tal sanção tem cabimento nos casos em que se demonstre, pela conduta da parte, que ela quis, conscientemente, litigar de modo desconforme ao respeito devido não só ao tribunal, cujo fim último é a busca em descobrir a verdade e cumprir a justiça, como também ao seu antagonista no processo. Desta actuação da parte, exige-se – como não podia deixar de ser – que haja dolo ou negligência grave do agente – cfr. MANUEL DE ANDRADE, in Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra, pp. 343; ALBERTO DOS REIS, JOSÉ, in Código de Processo Civil, Anotado, II, Coimbra, pp. 259. Com a reforma de 95/96 o regime instituído traduz uma substancial ampliação do dever de boa-fé processual, alargando-se o tipo de comportamentos que podem integrar má-fé processual, quer substancial, quer instrumental, tanto na vertente subjectiva como na objectiva. A condenação por litigância de má-fé pode fundar-se, além de numa situação de dolo, em erro grosseiro ou culpa grave. Trata-se assim, no fundo de um regresso à concepção de má-fé originária, do Código de Processo Civil de 1939, o qual, na ideia de ALBERTO DOS REIS – ob. e loc. cit. - sancionava a pretensão ou oposição cuja falta de fundamento o agente não pudesse razoavelmente desconhecer – cfr. o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 26 de Fevereiro de 2008, com o n.º convencional JTRP00041137, relatado por Vieira e Cunha, disponível em www.dgsi.pt. Ora, face ao sucedido não resulta que tivesse existido má fé. A consequência do comportamento omisso da reclamante/interessada foi o decidido pelo Tribunal e previsto na lei: o quedar sem efeito o acto a que se destinavam os preparos. Só se poderia sancionar a conduta da reclamante/interessada se se tivesse apurado que a dilação temporal ou outra consequência do acto lhe tivessem granjeado um proveito ou tivessem provocado um prejuízo, nos termos elencados pela lei. É claro que o óbvio não pode ser escamoteado: a reclamante/interessada não apresentou justificação para a sua conduta e o processo viu a sua dimensão temporal ser dilatada; o que em última instância redunda num prejuízo para o Cabeça-de-casal pois que o processo poderia já ter findado. Em suma, e apesar disso, a factualidade, não obstante ter aptidão em abstracto para constituir actuação de má-fé, em concreto não se pode concluir que a mesma existe. Termos em que se indefere o peticionado.”. * 3.2. Fundamentos de direitoi. quanto ao recurso da sentença sobre a reclamação da relação de bens: - da nulidade da sentença: Conforme decorre do acima exposto, começou o recorrente por invocar indistintamente que a sentença proferida sobre a reclamação da relação de bens é nula e que padece de erro de julgamento quanto à decisão de facto e de direito (cfr. conclusão 1ª). Ora, a nulidade da sentença é uma situação excepcional (não obstante ser invocada quase como regra), que diz respeito às situações taxativamente aludidas no art.º 615º do NCPC: falta de assinatura do juiz, omissão total dos fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; ininteligibilidade da decisão por oposição entre esta e os fundamentos, ambiguidade ou obscuridade; omissão de pronúncia sobre pedidos, causas de pedir ou excepções que devessem ser apreciadas ou conhecimento de questões de que não se podia tomar conhecimento; condenação em quantidade superior ou em objecto diverso do pedido. Assim, não constituem nulidade da sentença os erros de julgamento, a deficiente selecção dos factos em que se baseia ou imperfeita valoração dos meios de prova, erros de raciocínio, falta de menção quanto a todos argumentos levados aos autos e até violação de caso julgado (cfr. ac. desta RG de 12.06.2024, processo nº 509/23.8T8GMR-A.G1, consultável in www.dgsi.pt). Na verdade, as causas de nulidade da sentença estão taxativamente previstas no art.º 615º, nº 1 do NCPC e são de carácter formal, dizendo respeito a desvios no procedimento ocorridos na sentença que impedem que se percepcione uma decisão de mérito do concreto litígio, não se confundem com todas as situações que podem inquinar uma sentença e conduzir à revogação da mesma. Não abarcam todas e quaisquer falhas de que uma sentença pode padecer. No caso, invoca o recorrente, como causa da nulidade da sentença, o disposto na al. c) do referido art.º 615º, segundo o qual é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. Ora, é pacífico na doutrina e jurisprudência o entendimento segundo o qual a nulidade por contradição entre os fundamentos e a decisão aí contemplada pressupõe um erro de raciocínio lógico consistente em a decisão emitida ser contrária à que seria imposta pelos fundamentos de facto ou de direito de que o juiz se serviu ao proferi-la: a contradição geradora de nulidade ocorre quando os fundamentos invocados pelo juiz conduziriam logicamente não ao resultado expresso na decisão, mas a resultado oposto ou, pelo menos, de sentido diferente (cfr. nesse sentido, na doutrina, Alberto dos Reis, in Código de Processo Civil Anotado, Vol. V, p. 141, Amâncio Ferreira, Manual de Recursos no Processo Civil, 9ª edição, p. 56 e Lebre de Freitas e Isabel Alexandra, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 2º, 3ª edição, p. 736-737, e na jurisprudência, entre outros, os acs. do STJ de 21.03.2018, processo nº 471/10.7TTCSC.L1.S2 e 9.02.2017, processo nº 2913/14.3TTLSB.L1-S1, ambos disponíveis in www.dgsi.pt). Realidade distinta desta é o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou erro na interpretação desta, ou seja, quando – embora mal – o juiz entenda que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação ou dela decorre, o que existe é erro de julgamento e não oposição nos termos aludidos – cfr. Lebre de Freitas, in A Ação Declarativa Comum, 2000, p. 298. As nulidades da sentença não são de conhecimento oficioso e não têm como escopo permitir que se conheça da bondade da decisão, pelo que aqui não está em causa a razão do decidido. Por outras palavras, se a decisão está certa, ou não, é questão de mérito e não de nulidade da mesma (vide, ac. do STJ de 8.03.2001, relatado por Ferreira Ramos e acessível em www.dgsi.jstj/pt). Na explicitação circunstanciada do ac. do STJ de 16.06.2016 (processo nº 1364/06, consultável in www.dgsi.pt) «(…) quanto à oposição entre a fundamentação e a decisão, importa ter presente o disposto no artigo 607.º, n.º 3, parte final, do CPC, segundo o qual o juiz deverá concluir pela decisão final, o que se reconduz, analiticamente, ao estabelecimento de uma equação discursiva entre: a base da facti species, simples ou complexa, plasmada no quadro normativo aplicável - a dita premissa maior; a factualidade dada como provada – a dita premissa menor; e uma conclusão sustentada na estatuição legal correspondente ao referido quadro normativo. Entre tais premissas e conclusão deve existir, portanto, um nexo lógico que permita, no limite, a formulação de um juízo de conformidade ou de desconformidade, o que não se verifica quando as premissas e a conclusão se mostrem formalmente incompatíveis, numa relação de recíproca exclusão lógica. Com efeito, sobre dois termos excludentes nem tão pouco é viável formular um juízo de mérito ou de demérito; já não assim quando se trate de uma relação de mera inconcludência, sobre a qual é possível formular um juízo de demérito. Assim, a oposição entre os fundamentos e a decisão da sentença só releva como vício formal, para os efeitos da nulidade cominada na alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC, quando se traduzir numa contradição nos seus próprios termos, num dizer e desdizer desprovido de qualquer nexo lógico positivo ou negativo, que não permita sequer ajuizar sobre o seu mérito. Se a relação entre a fundamentação e a decisão for apenas de mera inconcludência, estar-se-á já perante uma questão de mérito, reconduzida a erro de julgamento e, por isso, determinativa da improcedência da ação.» Por outro lado, é igualmente pacífico o entendimento de que a divergência entre os factos provados e a decisão não integra tal nulidade, reconduzindo-se a mero erro de julgamento. Neste sentido, vejam-se os acs. do STJ de 18.01.2018, processo nº 25106/15.8T8LSB.L1.S1 e de 14.04.2021, processo nº 3167/17.5T8LSB.L1.S1, também acessíveis in www.dgsi.pt). No caso vertente, é manifesto que não ocorre tal vício da sentença. O que ocorre é que o apelante discorda – infra veremos se com razão – da decisão que recaiu sobre a matéria de facto (mormente quanto aos factos dados como não provados). Ora, esta discordância integra, como vimos, um eventual erro de julgamento (que o recorrente também invoca, como vimos) e não uma nulidade. Por outro lado, não se vislumbra a apontada contradição na decisão de direito de excluir as verbas 9 a 12, sem remessa para os meios comuns. Com efeito, e ao contrário do que diz o recorrente, o tribunal recorrido não defendeu, na respectiva fundamentação, que as questões debatidas na reclamação devessem ser relegadas para os meios comuns, tendo apenas argumentado que a invocada utilização de bens comuns, que não em proveito comum do casal e antes da data de entrada da acção de divórcio em juízo, é questão estranha ao inventário, tendo de ser decidida em acção autónoma. Ou seja, entendeu excluir a verba 12 por se tratar de questão de responsabilidade civil do cônjuge administrador, a apurar em acção autónoma, nos termos previstos no art.º 1681º nº 1, do CC. De todo o modo, a discordância manifestada pelo recorrente relativamente à decisão de exclusão sem remessa das partes para os meios comuns sempre integraria eventual erro de julgamento e não o invocado vício da sentença. Temos, pois, que inexoravelmente concluir pela improcedência da invocada nulidade. - da impugnação da decisão da matéria de facto não provada: Conforme decorre do acima exposto, o recorrente veio ainda impugnar a sentença recorrida, quanto à decisão da matéria de facto não provada, invocando: - que não foi impugnado pela interessada que os produtos da venda das verbas insertas na reclamação de créditos fossem usados em proveito da economia comum do casal, razão pela qual tal matéria deve ser considerada confessada e considerados provados os pontos 6 a 9 dos factos não provados, violando a decisão recorrida o disposto nos art.ºs 47º e 465º, nº 2, 1097º, todos do Código de Processo Civil, e art.ºs 358º, nº 1, 1723º, alínea b) e 1726º, todos do CC; e - que a decisão proferida não observou o ónus da prova. Cumpre, pois, apreciar os erros de julgamento imputados à decisão de facto. E, nesta senda, se o recorrente observou os ónus de impugnação que sobre si recaem. Ora, para a apreciação desta pretensão importa ter presente os seguintes pressupostos: A modificação da decisão de facto é um dever para a Relação, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou a junção de documento superveniente impuser diversa decisão (art.º 662º, nº 1 do NCPC). Impugnando a decisão da matéria de facto, deve o recorrente especificar, obrigatoriamente e sob pena de rejeição (vide, art.º 640º nº 1 do NCPC): “a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.”. No caso de prova gravada, incumbe ainda ao recorrente [vide nº 2, al. a) deste art.º 640º] “sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exactidão as passagens da gravação em que se funda o seu recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”. Sendo ónus do mesmo apresentar a sua alegação e concluir de forma sintética pela indicação dos fundamentos por que pede a alteração ou anulação da decisão – art.º 639º nº 1 do NCPC - na certeza de que as conclusões têm a função de delimitar o objecto do recurso conforme se extrai do nº 3 do art.º 635º do NCPC. Pelo que é exigível no mínimo que das conclusões conste de forma clara quais os pontos de facto que o recorrente considera incorrectamente julgados; podendo os demais requisitos serem extraídos das motivações do recurso [vide, neste sentido o recentíssimo Acórdão de Uniformização de Jurisprudência do STJ nº 12/2023, publicado no DR nº 220/2023, Série I, de 14.11.2023]. Porém, e com interesse para o caso em apreciação, salienta-se que merece tratamento diverso o vício imputado à decisão de facto por violação de regras do direito probatório material. Com efeito, neste caso, a Relação limitando-se a aplicar regras vinculativas extraídas do direito probatório material, deve alterar a decisão de facto, mesmo oficiosamente, ao abrigo do disposto no art.º 662º, nº 1, do NCPC [vide, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 6ª ed. actualizada, em anotação ao aludido preceito, p. 333 e ainda o ac. da RG de 19.01.2017, relatado por Isabel Silva e acessível in www.dgsi.pt]. Este vício não está, como tal, sujeito aos requisitos impugnativos prescritos no art.º 640º nº 1 do NCPC. Requisitos impugnativos esses que “condicionam a admissibilidade da impugnação com fundamento em erro de julgamento dos juízos probatórios concretamente formulados” e que encontram o seu fundamento na garantia da “adequada inteligibilidade do objeto e alcance teleológico da pretensão recursória, de forma a proporcionar o contraditório esclarecido da contraparte e a circunscrever o perímetro do exercício do poder de cognição pelo tribunal de recurso” [cfr. ac. STJ de 22.03.2018, processo nº 290/12.6TCFUN.L1.S1, acessível in www.dgsi.pt]. Isto posto e revertendo ao caso concreto, é possível extrair das conclusões do recurso quais os pontos da decisão de facto sobre os quais recai a crítica do recorrente, imputando erro de julgamento, encontrando-se suficientemente cumpridos os necessários ónus de impugnação, importando passar a sindicar a decisão da matéria de facto e averiguar se os pontos de facto impugnados foram decididos de acordo com as regras e princípios do direito probatório material. Todavia, para tanto, afigura-se-nos pertinente começar por definir o quadro normativo substantivo e adjectivo que determina a solução a dar às questões objecto do recurso. Como é sabido, o inventário subsequente ao divórcio destina-se a pôr termo à comunhão de bens resultante do casamento, a relacionar os bens que integram o património conjugal e a servir de base à respectiva liquidação, tendo em vista a data em que cessaram as relações patrimoniais entre os cônjuges (cfr. art.ºs 1404º, nº 1 e 1326º, nº 1, do NCPC e art.ºs 1688º e 1789º do CC). Nessa partilha, em que se dividem os patrimónios de cada cônjuge e os bens comuns (em regra de acordo com o regime de bens que vigorou durante o casamento, com as excepções previstas nos art.ºs 1719º e 1790º do CC), tem-se como objectivo essencial obter um equilíbrio entre os diversos patrimónios, de modo a que não haja enriquecimento de um deles à custa do outro. Assim, considera-se que o processo especial de inventário em consequência de separação, divórcio, declaração de nulidade ou anulação de casamento destina-se não só a dividir os bens do casal, mas a liquidar as responsabilidades mútuas e as dívidas do casal. Com efeito, na constância do casamento e da comunhão de vida que o mesmo pressupõe, podem ocorrer transferências de valores entre patrimónios diferentes. Tais transferências darão origem, no final do matrimónio, a créditos e débitos recíprocos: os patrimónios próprios podem ser credores do comum, este daqueles, e os próprios de cada um, podem ser devedores dos próprios do outro. A lei prevê, então, mecanismos que se destinam a operar um justo equilíbrio patrimonial entre os cônjuges, evitando-se, por via deles, que ocorra o enriquecimento de um dos cônjuges à custa do empobrecimento do outro, procurando, assim, salvaguardar o equilíbrio patrimonial. O Código Civil refere as compensações devidas pelo património comum ao património próprio de um dos cônjuges ou por este àquele nos art.ºs 1682º, nº 4, 1697º, 1722º, nº 2, 1726º, nº 2, 1727º, 2ª parte e 1728º, nº 1, in fine, todos do CC. Assim: «4. Quando um dos cônjuges, sem consentimento do outro, alienar ou onerar, por negócio gratuito, móveis comuns de que tem a administração, será o valor dos bens alheados ou a diminuição de valor dos onerados levado em conta na sua meação, salvo tratando-se de doação remuneratória ou de donativo conforme aos usos sociais.» (art.º 1682º, do CC). No que se refere a «Compensações devidas pelo pagamento de dívidas do casal», refere o art.º 1697º, do CC: «1. Quando por dívidas da responsabilidade de ambos os cônjuges tenham respondido bens de um só deles, este torna-se credor do outro pelo que haja satisfeito além do que lhe competia satisfazer; mas este crédito só é exigível no momento da partilha dos bens do casal, a não ser que vigore o regime da separação. 2. Sempre que por dívidas da exclusiva responsabilidade de um só dos cônjuges tenham respondido bens comuns, é a respectiva importância levada a crédito do património comum no momento da partilha.» Dispõe, por sua vez, o art.º 1722º, do CC que: «Consideram-se, entre outros, adquiridos por virtude de direito próprio anterior, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum: a) Os bens adquiridos em consequência de direitos anteriores ao casamento sobre patrimónios ilíquidos partilhados depois dele; b) Os bens adquiridos por usucapião fundada em posse que tenha o seu início antes do casamento; c) Os bens comprados antes do casamento com reserva de propriedade; d) Os bens adquiridos no exercício de direito de preferência fundado em situação já existente à data do casamento.». Quando ocorra a aquisição de bens em parte com dinheiro ou bens próprios e noutra parte com dinheiro ou bens comuns, os mesmos «1. (…) revestem a natureza da mais valiosa das duas prestações. 2. Fica, porém, sempre salva a compensação devida pelo património comum aos patrimónios próprios dos cônjuges, ou por estes àquele, no momento da dissolução e partilha da comunhão.» (art.º 1726º, do CC). Por seu turno, e quanto à aquisição de bens indivisos já pertencentes em parte a um dos cônjuges «A parte adquirida em bens indivisos pelo cônjuge que deles for comproprietário fora da comunhão reverte igualmente para o seu património próprio, sem prejuízo da compensação devida ao património comum pelas somas prestadas para a respectiva aquisição.» (art.º 1727º, do CC). Refere, por fim, o art.º 1728º que: «1. Consideram-se próprios os bens adquiridos por virtude da titularidade de bens próprios, que não possam considerar-se como frutos destes, sem prejuízo da compensação eventualmente devida ao património comum.». Estamos perante compensações devidas pelo património comum ao património próprio de um dos cônjuges ou por este àquele. Coisa diferente destas compensações (compensação stricto sensu) são os créditos entre os cônjuges (compensação latu sensu) que se verificam quando, durante o regime matrimonial, a transferência de valores se verifica entre os patrimónios próprios dos cônjuges. As compensações stricto sensu, do património próprio de um dos cônjuges para o património comum, por exemplo, pelo pagamento de dívidas do casal, implicam o relacionamento de um património próprio com o património comum, o que apenas é susceptível de acontecer nos regimes de comunhão (geral ou adquiridos), e não no regime de separação, por ausência deste último. Podemos definir a compensação como o meio de prestação de contas do movimento de valores entre a comunhão e o património próprio de cada cônjuge que se verifica no decurso do regime de comunhão. Ocorre quando há um crédito da comunhão face ao património próprio de um dos cônjuges, ou uma dívida da comunhão face a tal património de um dos cônjuges. Por via desta compensação, obvia-se a que uma massa de bens enriqueça injustamente em detrimento e à custa da outra. Em suma, a compensação opera quando estamos no âmbito de movimento de valores entre o património comum e o património próprio de um dos cônjuges. Se existirem apenas transferências de valores entre patrimónios próprios dos cônjuges estamos perante créditos entre os cônjuges. Os créditos entre cônjuges e a compensação têm regimes jurídicos diversos, por exemplo no que se refere à sua exigibilidade. Os créditos entre cônjuges regem-se pelo regime geral do Direito das Obrigações, sendo de exigibilidade imediata, não necessitando a sua reclamação de aguardar pelo momento da partilha, podendo sê-lo mesmo na pendência do casamento. Conforme explica Cristina Araújo Dias (in, Do Regime da Responsabilidade dos Dívidas dos Cônjuges, 2009, p. 784-785): “A compensação é o meio de prestação de contas do movimento de valores entre a comunhão e o património próprio de cada cônjuge que se verifica no decurso do regime de comunhão. A compensação aparecerá, no momento da liquidação e partilha, ou como um crédito da comunhão face ao património próprio de um dos cônjuges ou como uma dívida da comunhão face a tal património, permitindo que, no fim, uma massa de bens não enriqueça em detrimento e à custa de outra. (…) Por definição, uma compensação presume um movimento de valores entre o património comum e o património próprio de um dos cônjuges. Se, durante o regime matrimonial, a transferência de valores se realizar entre os patrimónios próprios, haverá um crédito entre cônjuges, e não uma compensação. Tais créditos entre cônjuges obedecem a um regime jurídico distinto da compensação. Desde logo, salvo convenção em contrário, tais créditos são exigíveis desde o momento do seu surgimento, por estarem sujeitos ao regime geral do Direito das Obrigações, não se justificando o seu diferimento para o momento da partilha”. Diz ainda a mesma autora (in, obra citada, p. 786 – 787): “(…) esses créditos não integram a massa a partilhar nem constam de uma conta como as compensações. Daí a importância e necessidade da distinção entre compensações e créditos entre cônjuges. O regime jurídico é diferente, sobretudo ao nível do seu cálculo, avaliação e exigibilidade, estando as compensações sujeitas a um regime particular, ao passo que os créditos entre cônjuges submetem-se ao regime geral do Direito das Obrigações”. Quanto ao modo como opera a compensação, explica a mesma autora (obra citada, p. 780-781): “É efectivamente a meação do cônjuge não credor que compensará o cônjuge que respondeu com o seu património por dívidas comuns (cf. o art. 1689.º, nº3), verificando-se, desta forma, uma compensação do património comum ao próprio de um dos cônjuges. É que, note-se, dada a ausência de personalidade jurídica da comunhão, os titulares do património comum são, efectivamente, ambos os cônjuges. No final, a compensação devida a um dos cônjuges pela comunhão será paga por um acréscimo da meação do cônjuge credor nos bens comuns, de valor igual ao da compensação devida e, necessariamente, por uma diminuição, na mesma proporção, na meação do outro cônjuges. A tal não obsta que se trate de um património de afectação especial e com autonomia (ainda que não plena) face aos cônjuges e ao património próprio de cada um deles. A não ser assim, no final, tratar-se-ia sempre de relações entre patrimónios próprios e as compensações (stricto sensu) não tinham razão de existir”. Não é uniforme o entendimento de que os “créditos de compensação” devem ser relacionados no processo de inventário. Lopes Cardoso (in, Partilhas Judiciais, vol. III, 4ª ed., p. 408-409) ao pronunciar-se sobre a relacionação do passivo, a propósito das dívidas dos cônjuges entre si, defende que não devem ser objecto de relacionação no inventário, apesar de serem consideradas no momento da partilha para serem pagas, argumentando que: “estes créditos não respeitam ao património comum mas ao património individual do cônjuge credor, constituindo, em contrapartida, elemento negativo do cônjuge devedor. Assim, não deverão ser objecto de relacionação isto mau grado deverem ser considerados no momento da partilha para serem satisfeitos na conformidade do disposto no art. 1689º-3 do Código Civil”. Outra posição é no sentido de que os créditos devem ser discutidos em processo de inventário subsequente ao divórcio por ser o adequado para conhecer dos “créditos de compensação” (vide, ac. desta RG de 27.01.2022, relatado por Joaquim Boavida no processo nº 4218/21.4T8BRG-A.G1 e disponível in www.dgsi.pt). Por nossa parte aderimos também a este segundo entendimento, considerando que também os “créditos de compensação” devem ser relacionados pelo cabeça de casal, por o processo especial de inventário em consequência do divórcio ser o meio adequado para decidir deles. Com efeito, destinando-se o inventário também à liquidação efectiva das responsabilidades entre os cônjuges e destes para com terceiros, isso implica que devam ser relacionados todos os bens do casal, comuns ou próprios de qualquer dos cônjuges, sem discriminação entre eles, por se tratar de uma questão de partilha, embora com distinção da sua origem na respectiva relação de bens. E dada a natureza e a especificidade do inventário subsequente ao divórcio, e uma vez que os “créditos de compensação” devem ser considerados no momento da partilha, para nela serem pagos, impõe-se a sua relacionação, como decorre do art.º 1697º nº 1 do CC. Isto posto, vejamos agora com interesse a estrutura da reclamação da relação de bens e o regime legal aplicável. No caso dos autos, estamos perante um processo de inventário instaurado pelo cabeça de casal junto de Cartório Notarial em 19.12.2019, pelo que em data anterior à da entrada em vigor da Lei nº 117/2019, de 13.09, a qual ocorreu em 1.01.2020 (cfr. art.º 15º), sendo, pois, inicialmente aplicável o disposto na Lei nº 23/2013, de 5.03 que aprovou o Regime Jurídico do Processo de Inventário. Todavia, após a nomeação do cabeça de casal, da prestação das respectivas declarações e apresentação da relação de bens, foi requerida e determinada a remessa do processo para tramitação judicial. Assim sendo, é aplicável à tramitação subsequente do processo assim remetido a juízo o regime estabelecido para o inventário judicial no actual Código de Processo Civil (cfr. art.º 13º, nº 3, da referida Lei 117/2019, de 13.09). Ou seja, no que ao caso concreto importa, a partir da citação da requerida são aplicáveis à tramitação do presente processo de inventário as regras previstas nos art.ºs 1082º a 1135º do NCPC, ex vi art.º 1133º e 1084º, nº 2, do NCPC. E, atento o disposto no art.º 549º, nº 1, do NCPC, terão aplicação subsidiária as regras gerais do processo e as regras do processo declarativo comum, com destaque para os princípios gerais atinentes ao poder de gestão processual, cooperação, inquisitório e contraditório. De todo o modo, de acordo com o preceituado nos art.ºs 24º e 25º do RJPI, era ao cabeça-de-casal, ora recorrente, que incumbia apresentar relação de todos os bens que deviam figurar no inventário, o que se traduz na concretização de todos os bens comuns, direitos e obrigações que importem à partilha do património comum nos termos já acima prefigurados, bem como juntar a prova documental mais relevante. Acresce, que de harmonia com o disposto no art.º 25º, do RJPI, cabia ainda ao cabeça de casal especificar os bens que compõem o património comum, por meio de verbas, relacionando o passivo existente em separado, indicando os elementos necessários à sua identificação e ao apuramento da sua situação jurídica e, ainda, o valor de cada uma das verbas. Ou seja, cabia ao cabeça de casal o ónus de alegar e demonstrar os factos mais relevantes e necessários ao desenvolvimento do processo (cfr. art.º 24º, nº 2, al. d), do RJPI). Ademais, uma vez citada, a requerida podia, como fez, apresentar reclamação à relação de bens, mormente pedindo a exclusão de determinadas verbas relacionadas (cfr. art.º 1104º, nº 1, al. d), ex vi do nº 2 do art.º 1084º, do NCPC), como podia o cabeça de casal responder (cfr. nº 1 do art.º 1105º, ex vi do nº 2 do art.º 1084º, do NCPC) sendo as respectivas provas indicadas com os requerimentos e respostas (nº 2 do mesmo preceito). Pronunciando-se sobre o preceito contido no art.º 1104º, do NCPC, explicam Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e FF (in, Código de Processo Civil Anotado, vol. II, 2ª ed., p. 603) que “[t]al corresponde a um verdadeiro ónus e não a uma mera faculdade, já que o decurso do prazo de 30 dias determina, por regra, efeitos preclusivos quanto a tais iniciativas, sendo que a não impugnação dos elementos factuais e documentais vertidos nas alegações do requerente de inventário ou do cabeça de casal tem os efeitos previstos nos arts. 566º, 567º e 574º ex vi art. 549º, n°1. Mantêm-se as excepções ao efeito cominatório semipleno decorrentes dos arts. 568° e 574, nºs 2 a 4 (…). Este regime diverge do que estava consagrado no CPC de 1961 (art. 1348) e integra-se, agora, no modelo geral dos processos de natureza contenciosa, sendo o efeito preclusivo justificado, além do mais, por razões de celeridade e de eficácia da resposta a um conflito de interesses, que importa resolver, em torno da partilha…”. Mais realçam estes mesmos autores (obra citada, p. 607) que “Relativamente a cada uma das intervenções suscitadas ao abrigo do art.º 1104º, nº 1, devem ser alegados os factos e indicados os meios de prova, nos termos gerais, como prescreve o nº 2, do art. 1105º.”. Feito este enquadramento, afigura-se-nos – acompanhando nesta parte a decisão recorrida - que cabia ao cabeça de casal alegar e demonstrar os factos atinentes aos direitos de crédito por si relacionados e em seu benefício – derivados da venda de bens próprios e da apropriação indevida de dinheiros comuns -, cabendo à requerida/reclamante alegar e demonstrar os factos que conduzissem à conclusão de que os referidos bens não se tratavam de bens próprios do cabeça de casal. (Cfr., a propósito, o ac. da RE de 11.04.2024, processo nº 988/21.8T8TMR.E1, acessível in www.dgsi.pt). Com efeito, tal como decorre do disposto no n.º 1 do artigo 342.º do CC, “àquele que invocar um direito cabe fazer a prova dos factos constitutivos do direito alegado”. E, decorre do nº 2 do art.º 342º do CC que “A prova dos factos impeditivos, modificativos ou extintivos do direito invocado compete àquele contra quem a invocação é feita.”. Sendo que em caso de dúvida, os factos devem ser considerados como constitutivos do direito. Pelo que o ónus da prova incumbe à parte contra a qual, na dúvida, o juiz sentenciará. – cfr. ac. do STJ de 24.05.2018, processo nº 318/05.6TVPRT.P1.S1, acessível em www.dgsi.pt e Lopes Cardoso, Partilhas Judiciais, vol. I, p. 558. No caso, e conforme já supra referenciado, pretende o recorrente que os factos constantes dos pontos 6 a 9 dos factos dados como não provados sejam dados como provados, porquanto, tendo o cabeça de casal pedido a compensação do preço dos bens próprios vendidos na constância do matrimónio em favor da vida em comum, na reclamação a recorrida não colocou em causa a compensação invocada, tendo-se apenas colocado em causa a natureza dos ditos bens. Conclui, assim que a requerida confessou que os ditos bens foram alienados em proveito da economia comum do casal. Porém e salvo o devido respeito, muito embora o cabeça de casal tenha invocado a compensação quanto aos direitos de créditos identificados nas verbas 9 a 11 (sendo apenas estes os relativos ao produto da venda de bens próprios do cabeça de casal), a verdade é que nem na relação de bens, nem na resposta à reclamação da relação de bens concretizou em termos factuais o destino dado às quantias percebidas em consequência da alienação de tais bens, nem sequer afirmou de forma expressa que o preço dos bens alienados foi utilizado em proveito do casal. Mas, mesmo que se entendesse que o cabeça de casal, ao invocar a compensação, quis alegar que as ditas quantias foram utilizadas em proveito comum do casal, tal não bastaria para formular qualquer juízo no sentido pretendido. Com efeito, tal como vem constituindo entendimento claramente dominante, e nomeadamente do nosso mais alto tribunal, a expressão “proveito comum do casal” configura em si um conceito jurídico/conclusivo, a que deverá chegar-se a partir dos concretos factos materiais alegados e provados, ou seja, envolve em si um conceito de natureza jurídica ou de direito que há-de ser integrado e preenchido através ou a partir dos correspondentes factos materiais que permitam concluir, nos termos supra referidos, sobre o fim visado por um dos cônjuges com a aplicação do dinheiro obtido, isto é, se visou ou não o proveito comum do casal. No sentido acabado de defender, vide, entre muitos outros, o ac. do STJ de 14.01.2010, processo nº 849/04.5TBLSD.P1.S1 e o ac. desta RG de 13.09.2016, processo nº 1088/13.0TBBGC.G1; publicados in www.dgsi.pt. Por conseguinte, não tendo o cabeça de casal alegado quaisquer factos concretizadores do aludido proveito comum, temos por certo não poder concluir que recorrida confessou a invocada compensação de créditos, não tendo sido violadas na decisão recorrida quaisquer normas do direito material probatório, mormente, as indicadas pelo recorrente. Tanto assim é que os factos que constam dos pontos 6 a 8, mesmo que fossem considerados provados, nunca teriam a virtualidade de demonstrar o propalado “proveito comum”. Com efeito, nos referidos pontos de facto foi considerado não se ter provado: “6. O destino do produto da venda do imóvel fracção ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...68. 7. O destino do produto da venda do imóvel descrito na ... Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...37 da Freguesia ..., G2 e .... 8. A venda do veículo ..-..-QA e que tenha sido no valor de €12.000,00 (doze mil euros).”. Ou seja, para além da pretendida modificação da decisão da matéria de facto ser infundada, sempre seria inconsequente e, portanto, proibida por inútil (cfr. art.º 130º, do NCPC). Por outro lado, os fundamentos invocados pelo recorrente para a modificação da decisão de facto nunca teriam a virtualidade de obter provimento no que respeita ao ponto 9 dos factos não provados, referente à factualidade alegada quanto ao direito de crédito descrito na verba 12, a qual já não se reporta à utilização de bens próprios do cabeça de casal em proveito comum do casal, mas à utilização de bens comuns pela requerida em proveito próprio. Ademais, constata-se que o tribunal recorrido decidiu excluir da relação de bens o direito de crédito relacionados pelo cabeça de casal na verba 12, não só porque considerou não provado que a reclamante ficou com € 52.482,48 que teria levantado das contas bancárias do Banco 1... e do Banco 2..., mas porquanto “as datas que são alegadas como sendo dos movimentos bancários são anteriores à data de entrada da acção de divórcio em juízo. (…) se tiver existido utilização de bens comuns que não em proveito comum do casal - antes da data de entrada da acção de divórcio em juízo - tal importará a, eventual, responsabilidade do cônjuge administrador - cfr. art.º 1678.º do C.Civil em conjugação com o regime da responsabilidade civil extracontratual ou aquiliana, nos termos do disposto no art.º 483.º do mesmo diploma legal; No entanto, é nos meios comuns e em acção autónoma que tal questão tem de ser decidida.”. Neste contexto, o tribunal recorrido considerou não só não ter sido apresentada prova suficiente do referido direito de crédito, como entendeu, quanto à verba 12, que a mesma não devia sequer ser discutida no âmbito do processo de inventário, questão que não mereceu qualquer impugnação no âmbito do presente recurso, como se facilmente se pode constatar da breve leitura das conclusões apresentadas pelo recorrente. Embora tal questão não seja pacífica na jurisprudência, pois há quem entenda que o acervo que integra o património comum a partilhar deve incluir apenas os bens e direitos existentes à data da propositura da acção de divórcio, como fez o tribunal recorrido (cfr., neste sentido o ac STJ de 26.11.2014, revista nº 2009/06.1TBAMD-B.L1.S1, disponível em www dgsi), e quem pugne pela inclusão dos bens e direitos que ao património comum devem ser conferidos por um dos cônjuges (cfr. ac. do STJ de 20.09.2023, relatado por Jorge Arcanjo e acessível in www.dgsi.pt); a verdade é que, no caso, tal questão não foi incluída no objecto do recurso, nem é a mesma do conhecimento oficioso, pelo que transitou a decisão do tribunal recorrido nesse particular. E, assim sendo, estando definitivamente afastada a relacionação de tal direito de crédito no âmbito do processo de inventário com base no aludido fundamento não impugnado, a modificação pretendida do ponto 9 dos factos não provados sempre se revelaria espúria. Tendo a sentença julgado improcedente a pretensão do recorrente naquele ponto com mais do que um fundamento, o recurso só teria a virtualidade de se repercutir na decisão recorrida se atacasse todos esses fundamentos, não o tendo feito relativamente a um deles, sempre a decisão se manterá incólume com base neste (relativamente ao qual se verificou o trânsito em julgado) – cfr. ac. do STA de 14.01.2015, processo nº 0973/13, acessível in www.dgsi.pt. Nestes termos, improcede totalmente a impugnação da decisão da matéria de facto. - do erro da decisão por terem sido excluídas as verbas 9 a 12, sem remessa para os meios comuns Entende, porém e ainda, o recorrente que está em causa matéria de facto qualificável como complexa, sendo a tramitação do processo de inventário inadequada para dirimir a questão, por implicar uma efectiva diminuição das garantias deverão ser asseguradas às partes no processo declarativo comum, cumprindo-se o previsto no art.º 1092º do NCPC. Vejamos. O art.º 1093º do NCPC prevê no seu nº 1 que se a questão não respeitar à admissibilidade do processo ou à definição de direitos de interessados directos na partilha, mas a complexidade da matéria de facto subjacente à questão tornar inconveniente a apreciação da mesma, por implicar redução das garantias das partes, o juiz pode abster-se de a decidir e remeter os interessados para os meios comuns. Encontram-se nessa situação os casos em que para a apreciação das questões se revele inadequada a tramitação do processo de inventário para assegurar as garantias dos interessados, tendo em conta restrições probatórias e a menor solenidade associada a uma tramitação de cariz incidental, designadamente no que se reporta a meios de prova (vide, art.ºs 1091º e 1105º, nº3, do NCPC), a poder justificar que valores de segurança e justiça prevaleçam sobre os de celeridade. A necessidade da remessa para os meios comuns “é consequência, sob um ponto de vista formal, da estrutura do processo de inventário e da resolução de inúmeras questões controvertidas (…) Estas questões podem ser complexas em matéria de facto, mas o que realmente justifica a remessa para os meios comuns não é tanto esta complexidade , mas muito mais a garantia de um processo equitativo a estes interessados” (cfr. Miguel Teixeira de Sousa, Carlos Lopes do Rego, António Abrantes Geraldes e Pedro Pinheiro Torres, O Novo Regime do Processo de Inventário e Outras Alterações na legislação Processual Civil, Reimpressão, Almedina, 2020, p.11). Na decisão a tomar impõe-se a ponderação das razões apresentadas no sentido da resolução incidental da questão e as vantagens da remessa para os meios comuns, sendo que tal remessa não é um “poder discricionário do juiz (…), não pode ser orientada por meras razões de comodidade ou de facilitismo; apenas se justifica quando, estando unicamente em causa a complexidade da matéria de facto (situação diversa daquela em que a complexidade respeite a questões de direito que devem ser apreciadas pelo juiz no próprio processo de inventário, nos termos do art. 91º, nº1), a tramitação do inventário se revele inadequada por implicar, designadamente, uma efetiva redução das garantias dos interessados, por comparação com o que pode ser alcançado através dos meios comuns” (cfr. António Santos Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, O Código de Processo Civil Anotado, vol. II, Almedina, p. 547 e seguintes). Como se decidiu no ac. desta RG de 29.01.2015, processo nº 2271/14.6TBBRG.G1, acessível in dgsi.net, “o processo de inventário é o meio processualmente adequado para se dirimirem todas as questões que possam influenciar a partilha, designadamente no que toca aos bens que fazem parte da herança, e apenas se aí não puderem ser resolvidas é que as partes serão remetidas para os meios comuns", mas podem e devem sê-lo se o tribunal não dispõe dos elementos factuais que permitam definir, com segurança, a questão em apreço, entendendo não ser suficiente a prova produzida. Veja-se ainda no mesmo sentido o esclarecedor ac. desta Relação de Guimarães, proferido em 23.03.2023 no processo nº 62/20.4T8VRL.G1, disponível in www.dgsi (relatado pelo Exmº Juiz Desembargador Alcides Rodrigues, que aqui intervém como 1º adjunto). A decisão sobre a remessa dos interessados para os meios comuns tanto pode ter lugar antes como depois da produção da prova; existem certas questões relativamente às quais se pode, desde logo, e sem qualquer risco, concluir que a índole sumária da prova a produzir no processo de inventário não permitirá aí decidir e outras em que tal se revele, apenas, após a produção da prova oferecida (cfr. ac. RL de 28.04.2016, processo nº 359-09.4TBSRQ.L1-2, acessível in www.dgsi.pt). Como se decidiu no ac. desta RG de 15.11.2012, processo 204-A/2001.G1, in www.dgsi.pt “Se concluir que a prova produzida não lhe permite considerar como pertencendo ou não ao acervo a partilhar (no caso, ao património dos inventariados) os bens em crise, ou considerando que a questão da titularidade dos bens requer profunda análise e averiguação que, sumariamente, não possa ser indagada no processo de inventário, o juiz deve proferir decisão, relegando os interessados para os meios comuns, conforme decorre do disposto nos artºs 1350, nº1 e 1336, nº2, ambos do CPC. (…) A remessa dos interessados para os meios comuns, quando a complexidade da matéria de facto subjacente à questão a dirimir torne inconveniente a decisão incidental no inventário, por implicar redução das garantias das partes, observados os requisitos legais, é um expediente típico, perfeitamente lícito e legítimo, não configurando qualquer situação de, eventual, denegação de justiça”. E a “remessa para os meios comuns supõe naturalmente uma necessária amplitude de garantias processuais, traduzidas na livre possibilidade de apresentação dos meios probatórios e da sua efectiva contradição, bem como na realização, judiciosa e pormenorizada, de audiência julgamento, tudo nos moldes genericamente previstos para as acções declarativas comuns, que extravasa totalmente os termos processualmente confinados, simplificados e relativamente condicionados da resolução das referidas questões de facto e de direito em sede meramente incidental” (vide, ac. RL de 2.05.2017, processo 848/15.1T8VFX.L1-7, acessível in www.dgsi.pt). No caso, atenta a prova documental produzida nos autos (única oferecida pelas partes), entendeu o tribunal a quo, não serem os elementos documentais suficientes para a demonstração dos direitos de crédito relacionados pelo cabeça de casal, designadamente, para a demonstração do destino dado às quantias reclamadas, mais considerando, quanto às verbas 9 e 10, não dispor sequer de elementos factuais que lhe permitissem definir, com segurança, a questão em apreço. Estamos, pois, nesta sede, ao nível dos pressupostos fácticos que permitiriam a subsunção jurídica do caso e da respectiva prova. Neste conspecto, tem razão o recorrente quando afirma que a questão de saber se o produto da venda dos bens imóveis e móveis próprios do cabeça de casal serviram ou não à vida comum, nomeadamente, saber se serviram para pagar, total ou parcialmente o preço de imóveis e móveis, adquiridos na constância do matrimónio, revela especial complexidade da matéria de facto, não podendo ser decidida em função da prova apresentada, nomeadamente a documental junta nos autos, por carecer de outra prova. E revelando-se em concreto complexa a questão de facto subjacente à questão a decidir, por implicar redução das garantias das partes, não deverá ser apreciada definitivamente nesta sede, por se revelar inconveniente a decisão através do incidente, já que outra prova se impõe para o apuramento dessas questões. Sobre o juízo de inconveniência da decisão pela via incidental, por implicar redução de garantia das partes, importa ter presente os meios de prova apresentados e requeridos e ser de admitir que nos meios comuns os factos controversos podem ser mais largamente discutidos e investigados, o que é o caso. Na verdade, não permitindo os factos recolhidos, por insuficientes, decidir, com segurança, no inventário, a questão, requerendo mais aprofundada instrução, averiguação e análise, que não pode ser objecto de indagação incidental em tal processo, deve o juiz remeter os interessados para os meios comuns - ao abrigo do disposto art.ºs 1105º e 1093º, do NCPC - que oferecem garantias processuais acrescidas, permitindo-se às partes, de modo mais activo e eficaz influenciar a decisão - quer ao nível da alegação fáctica e contradição, quer ao nível das provas quer ao da influência jurídica - nos moldes consagrados para as acções declarativas comuns, não balizadas pelos termos processualmente simplificados do incidente, e, assim, ser alcançada uma solução mais justa, por fruto da comparticipação colaborante de todos os interessados. E embora para que uma decisão seja justa deva ser célere, nunca a celeridade pode ser conseguida, em termos absolutos, à custa da preterição da verdade material, sempre necessária a alcançar aquele fim. Consequentemente, a discussão da questão dos direitos de crédito relacionados nas verbas 9 a 11 da relação de bens colocada à apreciação do tribunal não se conforma com a apreciação sumária no âmbito do processo de inventário, implicando redução das garantias das partes, não devendo ser decidida com segurança e consciência no incidente da reclamação de bens, visto requerer aturada e complexa indagação e produção de prova, pelo que as partes deviam ter sido remetidas para os meios comuns, no que respeita aquelas verbas. No que respeita à verba 12, a questão, como vimos, deverá a mesma ser dirimida também nos meios comuns, mas em acção autónoma, sem reflexo no presente processo de inventário. Procede parcialmente, pois, nesta parte a apelação. ii. quanto ao recurso da decisão relativa à litigância de má-fé Sustenta ainda o recorrente que a aludida decisão é nula por contradição entre os fundamentos e a decisão, ao abrigo do disposto no art.º 615º, nº 1, al. c), do NCPC, dizendo que tal contradição ocorre pelo facto de na decisão, ora em crise, se referir que a conduta da reclamante redunda num prejuízo para o cabeça de casal, mas acaba por julgar improcedente o pedido de condenação da interessada como litigante de má-fé. Vejamos. Como já vimos, nesta nulidade está-se perante um vício lógico da sentença/decisão que a compromete, o que não é confundível com o chamado erro de julgamento, isto é, com a errada subsunção dos factos concretos à correspondente previsão normativa abstrata, nem, tão pouco, a uma errada interpretação desta, vícios estes só sindicáveis em sede de recurso jurisdicional. Dito isto, cremos ser evidente, também neste caso que, não se encontram preenchidos os pressupostos da apontada nulidade. O que se verifica é tão simplesmente que o tribunal recorrido considerou que, não obstante a conduta da requerida ser susceptível de provocar prejuízo ao cabeça de casal, considerou também que tal não basta para concluir que aquela litigou de má-fé; sendo que para que tal condenação pudesse ocorrer seria necessário que com ele concorresse a clara revelação de que a parte agiu com dolo ou negligência grave, o que não se verificou. Se essa sua opção/solução jurídica foi ou não a acertada, obviamente que tal nada tem a ver com a suscitada nulidade da decisão em causa, mas, sim (quando muito) com um erro de julgamento. A referida nulidade apenas se verificaria, portanto, se o raciocínio expresso na fundamentação apontasse para determinada consequência jurídica e na conclusão fosse tirada outra consequência, ainda que esta fosse juridicamente correcta, o que não ocorre. Termos em que, porque nada mais se nos afigura de útil dizer ou acrescentar, se conclui pela inexistência da nulidade da decisão sobre a litigância de má-fé, suscitada pelo recorrente. * Em conclusão, impõe-se julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, determinar a remessa das partes para os meios comuns quanto às verbas 9 a 11 nos termos supra expostos; confirmando-se, no mais, as decisões recorridas.As custas do presente recurso e do incidente de reclamação são, pois, da responsabilidade do recorrente e da recorrida, na proporção do respectivo decaimento que se fixa, na proporção de 2/3 para o recorrente e 1/3 para a recorrida (art.º 527º, nºs 1 e 2 do NCPC). * IV. Decisão* Pelo exposto, acorda-se em julgar parcialmente procedente a apelação e, em consequência, determinar a remessa das partes para os meios comuns quanto às verbas 9 a 11 nos termos supra expostos; confirmando-se, no mais, as decisões recorridas. Custas da reclamação da relação de bens e da apelação a cargo do apelante e da apelada, na proporção dos respectivos decaimentos, que se fixam em 2/3 para o apelante e 1/3 para a apelada. * * Guimarães, 16.01.2025 Texto elaborado em computador e integralmente revisto pela signatária Juíza Desembargadora Relatora: Dra. Carla Maria da Silva Sousa Oliveira 1º Adjunto: Juiz Desembargador: Dr. Alcides Rodrigues 2ª Adjunta: Juíza Desembargadora: Dra. Maria dos Anjos Melo Nogueira |