Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7/21.4GAVRM.G1
Relator: JÚLIO PINTO
Descritores: CRIME DE AMEAÇA
TIPO OBJECTIVO
MAL FUTURO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. Em situação ocorrida no âmbito de um litígio pendente, e alvo de processo entre as partes, quando no decorrer de dois encontros em que o arguido se dirige verbalmente ao assistente dizendo-lhe que o agride fisicamente, e tendo como móbil a desavença respeitante a um caminho, tendo aquele dirigido a este a expressão ““dou-te uma bofetada e um tiro”, desacompanhada de qualquer comportamento adicional e preparatório da concretização dessa intenção, só pode ser interpretada como um anúncio ao ofendido de que no futuro, qualquer dia, concretizará as ações ofensiva que anunciou.
2. Esse comportamento, repetido nove meses depois, só pode ser entendido como anunciador da prática de um crime contra o corpo do assistente, inclusive dar-lhe um tiro do qual pode resultar a sua morte, afigurando-se, tendo em conta o teor das expressões, e as circunstâncias em que se verificaram, ser inequívoco para qualquer destinatário normal estarmos na presença de uma ameaça de morte velada.
3. A situação não está resolvida, também não está esquecida e a advertência agressora mantém-se e renova-se.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. RELATÓRIO

1. No processo comum, com intervenção de juiz singular, com o NUIPC 7/21...., que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de ... - Juízo Local de Competência Genérica de ..., em que é arguido AA, realizado o julgamento, foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:

« VII - DISPOSITIVO:
Pelo exposto, julgo a acusação pública procedente, por provada, e, em consequência, decido:
1. Condenar o arguido AA, como autor material e na forma consumada, da prática de dois crimes de ameaça agravada previsto e punido pelos artigos 153.º e 155.º, n.º1, al.a) do Código Penal, na pena de 100 (cem) dias de multa, à taxa diária de € 5,00 (cinco euros), por cada um dos crimes;
2. Condenar o arguido AA, como autor material e na forma consumada, da prática de um crime de detenção de arma proibida previsto e punido pelos artigo 86.º, n.º1, alínea e) da Lei 5/2006, de 23.02 na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de € 5,00 (cinco euros);
3. Operando o cúmulo jurídico das penas parcelares elencadas em 1) e 2) condenar o arguido AA na pena única de 170 (cento e setenta) dias de multa, à taxa diária de 5,00€ (cinco) euros, perfazendo o montante global de 850,00€ (oitocentos e cinquenta) euros;
Pedido Cível:
4. Julgar parcialmente procedente, por parcialmente provado, o pedido de indemnização civil deduzido pelo demandante/assistente, BB, contra o demandado/arguido, AA e, em consequência condenar o arguido/demandado, a pagar ao demandante a quantia de 500,00€ (quinhentos) euros, absolvendo-o do restante peticionado;
5. Condenar ainda o arguido nas custas do processo, na parte criminal, que compreendem, designadamente, taxa de justiça, que fixo em duas UC’s, e nas demais custas do processo nos termos do artigo 513.º, do Código de Processo Penal.
6. Sem custas cíveis, face à isenção prevista no artigo 4.º, n.º1, alínea n) do RCP – art.º 527.º do CPC ex vi art.º 4.º do CPP.
7. Valor do pedido de indemnização civil: 2.000,00€ (dois mil euros) – art.s 296.º, 297.º e 306.º do CPC ex vi art.º 4.º do CPP.
8. Declarar perdidas a favor do Estado as 49 (quarenta e nove) munições de arma de fogo de calibre 6,35 mm Browning, da marca ...” e as 20 (vinte) munições de arma de fogo (cartuchos) de calibre 12 Ga, da marca ...”, apreendidas à ordem destes autos.
Após trânsito em julgado da sentença:
- remeta boletim ao registo criminal – artigo 374º, n.º3, alínea d), do Código de Processo Penal.
- Cumpra o disposto no art.º 78.º, n.º 1, do Regime Jurídico das Armas e Munições»
 
*
2. Não se conformando com essa condenação, o arguido recorreu da sentença, extraindo da motivação as conclusões que a seguir se transcrevem:
“(…)
« CONCLUSÕES:
1. Incorre na prática do tipo legal de crime previsto no art.º 153º, n.º 1 do CPen. “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade de autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação”.
2. O bem jurídico protegido pelo art.º 153.º é a liberdade de decisão e de acção.
3. De acordo com o disposto no nº 1, al. a) do art. 155º do CPen., a pena prevista naquele artigo sofrerá uma agravação se se consubstanciar com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos, assumindo dessa forma a natureza de crime público.
4. O actual regime da ameaça exige apenas que aquela seja susceptível de afectar, de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação, não sendo necessário que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha afectada a liberdade de determinação do ameaçado.
5. Essa exigência da “adequação” é inferida de acordo com as regras da experiência comum, ou seja, quando tendo em conta as circunstâncias em que a ameaça é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”).
6. Em relação aos elementos objectivos, evidencia-se desde logo como característica essencial ao conceito de ameaça o mal futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente, realçando-se a necessidade de que o mal integrador da ameaça, não pode ter um carácter iminente e contemporâneo desta, mas antes constituir o anúncio intimador de uma acção futura.
7. E como elemento subjectivo exige-se o conhecimento de todos os elementos objectivos deste ilícito e a vontade de os realizar, consistindo esta vontade no dolo (dolo genérico) em qualquer uma das modalidades (directo, necessário ou eventual), nos termos do disposto no art.º 14.º, do Código Penal.
8. O ilícito em análise preenche-se, pois, com um comportamento activo do agente susceptível de afetar ou de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação, não sendo necessário que, em concreto, tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afetada a liberdade de determinação do ameaçado, bastando que a ameaça seja adequada a tal.
9. “Mas, para que haja ameaça, é também necessário que esta se traduza na prática de um crime contra a liberdade pessoal, devendo a conduta típica do agente gerar insegurança, intranquilidade ou medo no visado, de modo a condicionar as suas decisões e movimentos dali em diante, o que não acontecerá se a ameaça for de um mal a consumar-se no momento, porque entra já no campo da tentativa do crime integrado pelo mal objecto da ameaça”. (cfr. ac. TRP de 17/11/2004, in www.dgsi.pt).
10. Assim, pressuposto típico nos termos já supra referidos, é o anúncio de um mal futuro.
11. “Há o anúncio de um mal futuro sempre que as palavras suscetíveis de provocar medo ou intranquilidade não tiverem sido proferidas na iminência da «execução» do crime anunciado, no sentido em que esta expressão é tomada para os efeitos de tentativa.” (cfr. ac. TRG de 18/11/2013, in http://www.dgsi.pt)
12. A sentença em apreço apenas relata que o arguido, no dia ../../2020, cerca das 11h30, disse ao assistente e seu irmão, em tom sério “dou-te uma bofetada na cara e dou-te um tiro”, e que no dia ../../2021, cerca das 09h30, disse novamente ao seu irmão, em tom sério e grave “dou-te uma bofetada na cara e um tiro”. 13. Daqui decorre, de forma evidente, que tais expressões deixam antever que não houve o anúncio de um mal futuro, mas antes de um mal imediato, ou iminente, ou no decurso de tentativa de execução do crime da ofensa à integridade física.
14. Com tal expressão há o anúncio de um mal presente, que começa e acaba ali: ou porque é executado de imediato, ou porque o arguido desiste de o executar, sem que o mal anunciado se projete na liberdade de decisão e de acção futura do assistente.
15. Pelo que não é correcto concluir que tais frases foram adequadas a provocar no assistente medo e inquietação e capazes de lesar a sua paz e liberdade de autodeterminação.
16. De resto, no contexto fáctico dado como provado, ao proferir tais expressões o arguido não queria advertir o assistente para a ocorrência de um mal futuro; quando muito, tais expressões traduzem um aviso hipotético que, a acontecer, seria logo executado.
17. Além de se tratar de duas expressões crédulas, que denotam uma certa ingenuidade e brandura, estranha e curiosamente iguais, apesar de separadas por quase um ano de intervalo, corroboradas apenas pela enteada e pela esposa do assistente, é também certo que o arguido e assistente são irmãos, desavindos há vários anos.
18. É, pois, forçada e descontextualizada, e por isso não se pode aceitar, a conclusão do Tribunal a quo quando afirma que “não teve quaisquer dúvidas de que nas circunstâncias de tempo, lugar e modo descritas nos factos provados, o arguido dirigiu ao assistente as ameaças constantes dos factos provados, com a intenção de causar medo e inquietação àquele constrangendo-o na sua liberdade de determinação, bem sabendo que o seu comportamento era adequado a causar temor, o que representou e ainda assim actuou da forma descrita”.
19. É certo que no caso sub judice a ponderação da prova foi realizada ao abrigo do princípio da sua livre apreciação, ínsito no art.º 127.º do CPPen., onde se estipula que “Salvo quando a lei dispuser diferentemente, a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente.”
20. Contudo, sendo esta uma apreciação discricionária, não é a mesma arbitrária, tendo a referida apreciação os seus limites. 21. Ou seja, a livre apreciação da prova tem sempre de se traduzir numa valoração “racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência (…), que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão” de modo a que seja possível, por qualquer pessoa, entender porque é que o tribunal se convenceu de determinado facto. 22. Ora, nessa avaliação probatória e na aferição global de toda a prova produzida, designadamente, como a da situação presente, o juiz deve fazer essa exegese segundo as regras da experiência comum, com bom senso e de acordo a normalidade da vida e o sentido das coisas. 23. Sucede que o cenário factual dos autos não se mostra suficientemente objectivado e motivado, isto é, de harmonia com as regras comuns da lógica, da razão e da experiência acumulada.
24. É que o conceito de ameaça, como já antes se referiu, preenche-se apenas com um mal futuro que constitua crime, de natureza pessoal ou patrimonial, cuja ocorrência dependa da vontade do agente. 25. “Quando da prova não resulte inequivocamente se o mal anunciado é ou não futuro ou, sequer, que qualquer homem médio, com as caraterísticas do ofendido, o entendesse como exprimindo uma ideia de futuro, levantando-se dúvida séria sobre a verificação de tal elemento de facto, deverá ela ser solucionada a favor do arguido, em obediência ao princípio in dubio pro reo.” (cfr. ac. TRG de 11/01/2021, in http://www.dgsi.pt)
26. Assim, em face da jurisprudência supra transcrita, entendemos que a sentença ora sindicada violou, entre outras, as normas jurídicas constantes dos artigos 22º, 71º e 153º, todos do CPen. .
27. Pelo que, deverá o Recorrente ser absolvido da prática dos dois crimes de ameaça agravada, e consequentemente, a Sentença recorrida ser revogada e proferido Acórdão tendo em conta o supra exposto.
Termos em que, com o douto suprimento de V. Exas. no que o patrocínio se revelar insuficiente, deve ser dado provimento ao recurso e, em consequência, ser o Recorrente absolvido dos crimes pelo qual foi condenado, só assim se fazendo, JUSTIÇA.»
 (…)”
*
3. Em primeira instância o Ministério Público não respondeu ao recurso.
*
4. Neste Tribunal da Relação, o Exmo. Procurador Geral Adjunto emitiu parecer, nos seguintes termos: (Transcrição)
“(…)
Em causa estão as expressões “dou-te uma bofetada na cara e dou-te um tiro” e “dou-te uma bofetada na cara e um tiro” proferidas, em ocasiões distintas, enquanto o seu autor se encontrava, em locais públicos, junto do assistente seu irmão, com o qual mantinha um diferendo relacionado com a utilização de um caminho.
Analisando o contexto em que as frases foram proferidas, o facto do arguido se ter dirigido para a vitima, a ausência de definição da postura corporal do arguido ao mesmo tempo em que, em tom sério, proferia as expressões em referência tenho que na verdade não é possível aceitar que as frases ditas possam ser qualificadas como de ameaça de um mal futuro.
Partindo do princípio que tais expressões terão sido proferidas pelo arguido tendo como destinatário o Assistente seu irmão importa considerar o seguinte:
- As mesmas aconteceram num contexto de conflito pré existente ao momento em que os factos aconteceram.
- As expressões “dou-te uma bofetada na cara e dou-te um tiro” e “dou-te uma bofetada na cara e um tiro” apresentam-se como situadas e referentes a condutas que se desenvolviam no momento em que foram proferidas.
- Aquelas têm de ser vistas integradas num todo e como expressando um estado de espirito, uma intenção de quem as proferiu no momento. Nesse sentido as referidas expressões transportam uma carga de intenção de acção presente a qual arrasta e determina a interpretação de que as mesmas se fundam e ilustram um sentimento de acção presente, sem projecção para o futuro.
- Em tese as afirmações em causa podem situar-se num nível que se esgotaria no presente, após o termo do encontro entre arguido e Assistente, reforçando tal conclusão o facto do arguido ter abandonado o local depois de uma terceira pessoa se ter aproximado.
Importa ainda salientar que as duas frases foram ditas pelo arguido com um intervalo de quase 10 meses o que inculca a ideia que as mesmas sinalizam um sentimento de revolta, de desacordo, de revolta do arguido e não a vontade de, no futuro, causar um mal ao seu destinatário.
Constituindo elemento típico do crime de ameaça o anúncio de um “mal futuro” o decisivo para considerar que existe o anúncio de um mal futuro não é o tempo verbal utilizado, mas o desígnio manifestado pelo autor da ameaça e as circunstâncias em que o mesmo é feito.
Neste sentido tenho sérias dúvidas que o sentido, a intenção do arguido fosse o de projectar um mal futuro sobre o ofendido admitindo que as expressões reportam-se a uma situação – diferendo/discórdia – que estaria em curso e foi abruptamente interrompida pela intervenção de terceira pessoa.
Ou seja, o contexto de diferendo onde se inseriram as expressões, permite extrair que a intenção de quem as proferiu se restringe ao momento da sua verificação não existindo a certeza de que tenham sido efectuadas com o propósito de causar um mal futuro.
Em reforço da necessidade de se considerar o contexto em que se produziram as expressões anote-se o que se disse nos Acórdãos, cujos sumários aqui se transcrevem parcialmente:
“Para se saber se estamos perante o anúncio de um mal futuro que se projecta na liberdade de acção e de decisão futura ou antes diante de um mal iminente que pode considerar-se já um acto de execução de um dos crimes do catálogo legal é fundamental a contextualização da situação”. cfr. Ac. do TR Porto de 28-6-2017 in proc. 105/03.6GEGDM.P1.
e
Cfr. Ac. do TR de Guimarães e 8-10-2018 no proc. 890/17.8T9GMR-A.G1:
“…
II) Para se concluir pela prática de um crime de ameaça, mais do que o tempo verbal (presente, futuro, ou outro…) usado nas expressões proferidas, importa analisar o contexto em que são ditas, para se aferir se são adequadas a prolongar no tempo a sensação de insegurança, medo ou intranquilidade, ou se, pelo contrário, se esgotam na iminência da adoção de conduta ilícita…”.
As expressões em causa, no contexto em que foram proferidas terão esgotado no momento da sua afirmação o potencial intimidatório que transportavam, não se mostrando como susceptíveis de causar no seu destinatário qualquer sensação de medo ou intranquilidade quanto à possibilidade de ocorrerem futuramente.
No caso dos autos inclino-me que estejamos perante a expressão de um mal iminente, fundado num diferendo existente, com o facto do agente se deparar com a vítima e a abordar, em duas situações diferentes e espaçadas, e que anunciava uma acção ( “dou-te uma bofetada na cara e dou-te um tiro” e “dou-te uma bofetada na cara e um tiro”) que a acontecer seria no presente e não no futuro, esgotando-se no imediato e após a sua afirmação o seu potencial ameaçador.
Fazendo apelo a nova transcrição de um sumário de Acórdão procuro enquadrar o pensamento do parágrafo anterior:
“…
I– Com a exigência de que o mal tem de ser futuro, quer-se significar que o mal objeto da ameaça não pode ser iminente, pois que, nessa situação, estar-se-á perante uma tentativa de execução do respetivo ato violento, ou seja, do respetivo mal; esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coação, entre ameaça (de violência) e violência; assim, por exemplo, haverá ameaça, quando alguém afirma “hei de te matar”, já se tratará de violência quando alguém afirmar “vou-te matar já”.
II - No caso em apreço, a expressão usada pelo arguido (“era só quem te espetasse esta chave de fendas; matava-te agora aí; ia para a prisão mas ao menos ia contente”) não configura uma ameaça de morte concretizável, porquanto não se posiciona para o futuro, deixando a ideia de que naquele momento o recorrente “desejava” a morte da ofendida, mas nunca que se propunha concretizar tal mal num período temporal mais adiante; não se mostra, assim, preenchido o elemento objetivo do crime de ameaça, nos termos em que o nosso Código Penal o prevê. Cfr. Ac. do TR do Porto de 22-9-2021 in proc. 237/20.6GDVFR.P1.”.
Por ultimo, caso existam dúvidas quanto à natureza do mal – presente ou futuro - contido nas expressões acima indicadas, por não resultar inequívoco que as mesmas ocorreram num contexto presente e ali se esgotaram, importa lançar mão do principio in dúbio pro reo e, em consequência, determinar a absolvição da arguida tal como se considerou no acórdão que aqui se menciona;
“…
III. Quando da prova não resulte inequivocamente se o mal anunciado é ou não futuro ou, sequer, que qualquer homem médio, com as caraterísticas do ofendido, o entendesse como exprimindo uma ideia de futuro, levantando-se dúvida séria sobre a verificação de tal elemento de facto, deverá ela ser solucionada a favor do arguido, em obediência ao princípio in dubio pro reo.
…”
Cfr. Ac. do TR Guimarães de 11-1-2021 no proc. 207/18.4GACBT.G1.
Assim, considerando o exposto entendemos que, por falta de um elemento objectivo do tipo do crime de ameaça previsto no art. 153º do C. Penal, deverá ser anulada a condenação do recorrente pela prática de dois crimes de ameaça agravada previsto e punido pelos artigos 153.º e 155.º, n.º1, al. a) do Código Penal, e substituída por outra que consagre a absolvição daquele, quanto a estes ilícitos, nos termos ora sustentados.
Em conclusão, considerando o exposto entendemos que o recurso merece provimento.»
(…)”
5. No âmbito do disposto no artigo 417º, n.º 2, do Código de Processo Penal, o arguido não respondeu a esse parecer.
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6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência, por o recurso dever ser aí julgado, de harmonia com o preceituado no art. 419º, n.º 3, al. c), do mesmo código.
*
*
II. FUNDAMENTAÇÃO

1. Questões a decidir

Dispondo o art. 412º, n.º 1, do Código de Processo Penal que "a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido", são, pois, as conclusões que constituem o limite do objeto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso. (Arts. 119º, n.º 1, 123º, n.º 2, e 410º, n.º 2, al.s a), b) e c), do Código de Processo Penal e do acórdão de fixação de jurisprudência n.º 7/95 do STJ, de 19-10-1995, in Diário da República – I Série, de 28-12-1995).

Assim, balizadas pelas conclusões formuladas pelo recorrente, as questões a apreciar são as seguintes:
a) - Qualificação jurídica dos factos imputados, que não consubstanciarão a prática de crime, concretamente de ameaça.
b) - Violação do princípio in dubio pro reo.

2. Sentença recorrida

É do seguinte teor a motivação de facto e de direito constante da sentença recorrida (transcrição):
“(…)
«II – Fundamentação:
II. 1 - Enumeração dos Factos Provados e Não Provados:
II. 1.1. - Factos Provados:
1. No dia ../../2020, cerca das 11h30, estando o assistente BB no seu tractor, num terreno sito no Lugar ..., em ..., ..., ali se dirigiu o arguido, seu irmão, vindo apeado por um caminho de servidão que ali dá acesso, e disse-lhe em tom sério: “dou-te uma bofetada na cara e dou-te um tiro”.
2. Nesse momento, ali surgiu a enteada do assistente, CC, pelo que o arguido logo abandonou o local.
3. Além do mais, no dia ../../2021, cerca das 09h30, junto ao supra descrito terreno, estando o assistente encostado ao seu veículo automóvel, aparcado na estrada ali existente, do mesmo se abeirou o arguido e disse-lhe: “tens que me repor o caminho”, ao que o assistente respondeu que o Tribunal já decidira essa questão.
4. Posto isto, logo o arguido disse, em tom sério e grave: “dou-te uma bofetada na cara e um tiro”, momento em que a esposa do assistente, DD, se abeirou dos mesmos, vindo o arguido a abandonar o local.
5. Acresce que, desde dia não concretamente apurado, mas seguramente até ao dia ../../2021, o arguido deteve no interior da sua habitação, sita na Rua ..., ..., em ..., ...:
- 49 (quarenta e nove) munições de arma de fogo de calibre 6,35 mm Browning, da marca ...”; e
- 20 (vinte) munições de arma de fogo (cartuchos) de calibre 12 Ga, da marca ...”.
6. O arguido não é detentor de qualquer licença de uso, detenção e porte de arma, nem de quaisquer autorizações especiais para o efeito.
7. O arguido actuou, pois, em ambas as ocasiões, bem sabendo que as expressões por si proferidas, atentatórias contra a vida do assistente BB, seriam adequadas, como foram, a provocar-lhe medo pela sua vida e inquietação e a prejudicar a sua liberdade de determinação.
8. Agiu, além do mais, com o propósito concretizado de deter as munições descritas, bem conhecendo as suas características e a sua perigosidade, bem como que não possuía licença nem autorização para o efeito, o que representou.
9. Agiu o arguido livre, voluntária e conscientemente, tendo perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
Das condições pessoais e de vida do arguido:
10. O arguido encontra-se reformado, auferindo a título de pensão de reforma a quantia de 600,00€;
11. Vive em casa própria, com a esposa;
12. A esposa trabalha no Porto, como educadora de infância, mas actualmente encontra-se em casa.
Dos Antecedentes Criminais do Arguido
13. O arguido não regista antecedentes criminais;
Do Pedido de Indemnização Civil deduzido pelo Assistente:
Para além dos factos provados vertidos nos pontos 1) a 9) provou-se ainda que:
14. Na sequência do referido em 1) a 9) o demandante sentiu medo e inquietação;
15. Na sequência do referido em 1) a 9) o demandante sente-se ansioso, atemorizado e receoso;
16. Na sequência do referido em 1) a 9), o demandante vive em sobressalto
17. Na sequência do referido em 1) a 9), o demandante evita deslocar-se sozinho ao seu terreno por recear pela sua integridade física, fazendo-o sempre na companhia de familiar;
II. 1.2. - Factos Não Provados:
Da acusação pública:
Inexistem
Do Pedido de Indemnização Civil:
O demandante que era uma pessoa alegre, bem disposta, extrovertida e sociável, passou a ser mais desconfiada, mais assustada, fechada, acanhada e receosa.
*
II. 2. - Fundamentação da Decisão de Facto:
A apreciação da prova, ao nível do julgamento de facto, faz-se segundo as regras da experiência e a livre convicção do Juiz, nos termos do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal. No entanto, não se confunde esta, de modo algum, com apreciação arbitrária de prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova.
É, pois, dentro dos pressupostos valorativos da obediência a critérios da experiência comum e da lógica do homem médio, suposto pela ordem jurídica, que o julgador se deve colocar ao apreciar livremente a prova, reflectindo sobre os factos, utilizando a sua capacidade de raciocínio, a sua compreensão das coisas, o seu saber de experiência feito.
É a partir desses factores que se estabelece, realmente, uma tarefa (ainda que árdua) que se desempenha de acordo com o dever de prosseguir a verdade material.
Assim, em conformidade com o disposto no n.º 2 do artigo 374.º do Código de Processo Penal, é nosso dever, para além da enumeração dos factos provados e não provados e a indicação das provas que serviram para formar a nossa convicção, fazer uma exposição, tanto quanto possível completa, ainda que concisa, dos motivos de facto que fundamentaram a decisão sobre esta matéria, impondo-se ao tribunal, sob pena de incorrer em nulidade (cfr. alínea a) do artigo 379.º do Código de Processo Penal), o dever de explicar porque decidiu de um modo e não de outro.
Os elementos que em razão das regras da experiência ou de critérios lógicos que constituem o substrato racional que conduzem à formação da convicção do tribunal em determinado sentido e não noutro, devem ser revelados aos destinatários da decisão que são, não apenas os sujeitos processuais mas também a própria sociedade, o conjunto dos cidadãos.
O Tribunal tem de esclarecer porque é que valorou de determinada forma e não de outra os diversos meios de prova carreados para a audiência de julgamento.
Uma vez que só assim se permite aos sujeitos processuais e ao Tribunal Superior o exame do processo lógico ou racional que lhe subjaz, pela via de recurso, conforme impõe, inequivocamente, o artigo 410.º do Código de Processo Penal.
Deve, assim, a decisão sobre a matéria de facto assegurar pelo conteúdo um respeito efectivo pelo Princípio da Legalidade, pela independência e imparcialidade dos juízes.
Será à luz deste exacto sentido e alcance da Lei, que o Tribunal procedeu à apreciação das provas constantes dos autos e examinadas em audiência, afinal, as únicas que podem valer para a formação da convicção do tribunal, nos precisos termos do n.º 1 do artigo 355.º do Código de Processo Penal.
Para prova dos factos considerados provados nos pontos 1) a 4) o Tribunal valorou as declarações do assistente, BB em conjugação com os depoimentos das testemunhas, CC e DD, inquiridas em sede de audiência de julgamento.
Com efeito o ofendido de forma objectiva, circunstanciada e isenta relatou ao Tribunal que no dia no dia ../../2020, cerca das 11h30 ia no seu tractor para terreno seu sito no Lugar ..., em ..., ..., quando lhe surge o arguido, seu irmão, apeado por um caminho de servidão que ali dá acesso, e disse-lhe em tom sério: “dou-te uma bofetada na cara e dou-te um tiro”. Após a sua enteada CC surgiu e o arguido abandonou o local.
Mais referiu que posteriormente em ../../2021, cerca das 09h30, o assistente tinha levado a sua esposa para dar de comer aos porcos numa exploração pecuária que tem no seu terreno sito nas ... e quando se encontrava encostado ao seu veículo automóvel, aparcado na estrada ali existente, o arguido surgiu e disse-lhe: “tens que me repor o caminho”, ao que o assistente respondeu que essa questão já tinha sido decidida pelo Tribunal.
Mais referiu que o arguido disse-lhe, em tom sério e grave: “dou-te uma bofetada na cara e um tiro”, momento em que a esposa do assistente, DD, se abeirou dos mesmos, vindo o arguido a abandonar o local.
Tais declarações foram corroboradas no essencial pelas testemunhas CC e DD, as quais depuseram com rigor, clareza e objectividade tendo merecido a total credibilidade do Tribunal.
O arguido prestou declarações, negando a prática dos factos vertidos em 1) a 4), assumindo uma postura de vitimização, referindo que é o assistente que o persegue e que no dia 15 de Janeiro de 2021 sofreu um acidente doméstico tendo estado em casa nos dias que se seguiram até que no dia 19 de Janeiro foi ao Hospital para ver se tinha uma limalha no olho.
Relativamente às munições que lhe foram apreendidas referiu que as trouxe da casa onde nasceu e cresceu, convencido que nas partilhas iria ficar com alguma das armas que pertenciam ao seu falecido pai. Todavia quando confrontado com as declarações prestadas em sede de inquérito perante Magistrado do Ministério Público, nas quais referiu que umas munições foram adquiridas a um indivíduo e outras que pertenciam a uma arma que foi deixada na sua residência por um amigo para guardar, e instado a esclarecer a contradição, assumiu uma postura evasiva, confuso, pretendendo confundir o Tribunal, afirmando não se recordar que tinha prestado tais declarações, mas o que disse em sede de inquérito era verdade, referindo logo de seguida que havia trazido as munições da casa onde nasceu e cresceu. Quando perguntado se as partilhas já tinham sido efectuadas, referiu que sim.
De referir que a testemunha de defesa, EE, esposa do arguido, em nada contribuiu para a descoberta da verdade, na medida em que se limitou a dizer que o seu marido não praticou os factos de que vem acusado, que é o assistente que persegue o seu marido, que quando este vê o irmão (assistente) volta para trás, evitando cruzar-se para evitar problemas.
Referiu que o seu marido no dia 15 de Janeiro teve um acidente doméstico, que esteve em casa nos dias que se seguiram e que no dia 19 de Janeiro foi ao Hospital para ser observado e para ver se tinha uma limalha no olho, pelo que é impossível que o marido tenha cometido os crimes, pois no dia em causa – ../../2021 – estava em casa.
Ora, o facto do arguido ter alegadamente sofrido um acidente doméstico no dia 15.01, não seria por si impeditivo da prática dos crimes, tanto mais que o mesmo referiu que só foi ao hospital no dia 19, sendo certo que nenhuma prova documental foi junta nesse sentido.
Para prova dos factos vertidos nos pontos 5) e 6) o Tribunal valorou o auto de busca e apreensão de fls. 126 a 130, a informação da PSP de fls. 66 e 153.
Foram igualmente considerados o relatório fotográfico de fls. 132 a 143 e a certidão de fls. 167 a 168.
Conjugadas as declarações do assistente e das testemunhas supra referidas, não teve o Tribunal quaisquer dúvidas de que nas circunstâncias de tempo, lugar e modo descritas nos factos provados, o arguido dirigiu ao assistente as ameaças constantes dos factos provados, com a intenção de causar medo e inquietação àquele constrangendo-o na sua liberdade de determinação, bem sabendo, que o seu comportamento era adequado  a causar temor, o que representou e ainda assim actuou da forma descrita.
Quanto aos factos vertidos nos pontos 7) a 9) relativos ao dolo, porquanto insusceptíveis de prova directa, decorrem dos factos objectivos provados, o que, considerando as regras da experiência comum e através de presunções naturais, permite de forma segura inferir tais conclusões.
Quanto às condições pessoais e de vida do arguido- factos provados vertidos nos pontos 10) a 12) – baseou-se o Tribunal nas declarações prestadas pelo próprio em audiência, as quais se mostraram credíveis e não foram contraditadas por qualquer outro meio de prova.
Quanto à demonstração da ausência de antecedentes criminais do arguido, evidenciado em 13) tomou-se em atenção o seu Certificado de Registo Criminal junto aos autos.
No que concerne aos factos vertidos em 14) a 17) relativos ao pedido de indemnização cível o Tribunal baseou a sua convicção nas declarações do assistente e nos depoimentos das testemunhas, CC e DD, as quais confirmaram o estado de espírito e os sentimentos vivenciados pelo assistente após os factos vertidos em 1) a 4)
No que concerne aos factos não provados – factos vertidos sob a alínea a) - resultaram os mesmos da total ausência de produção de prova quanto a tal factualidade, na medida em que nem o ofendido nem nenhuma das testemunhas inquiridas os confirmaram.
* * *
II. 3. - Fundamentação Jurídica:
II. 3.1. - Responsabilidade Criminal:
II. 3.1.1. – Enquadramento Jurídico-Penal:

O arguido vem acusado da prática, em autoria material, na forma consumada, de dois crimes de ameaça agravada, p. e p. pelos artigos 153º e 155º, n.º 1, al. a) do CP e um crime de detenção de arma proibida, pº e pº pelo artº 86º, nº 1, al. e), por referência aos arts. 2º, nº 3, als. e), e p), e 3º, nº 1, da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro.

Questão Prévia:
Em sede de alegações foi invocado pelo arguido que relativamente aos factos ocorridos no dia ../../2020, os mesmos já estariam prescritos, porquanto aquando da queixa apresentada em Janeiro de 2021, já estariam ultrapassados os seis meses previstos na lei para o exercício do direito de queixa.
Cremos não assistir nenhuma razão ao arguido porquanto o crime de ameaça agravada previsto e punido pelo art.º 153.º, n.º1 e 155.º, n.º1, alínea a) do CP reveste natureza pública, pelo que o prazo de denúncia é o prazo de prescrição. Por sua vez, o assistente participou os factos ocorridos no dia 25.03.2020, à GNR, por e-mail, seguindo instruções da própria GNR, tendo em conta o período pandémico que atravessávamos e o Estado de Emergência em vigor naquela data.
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- Crime de Ameaça Agravada
Dispõe o art.º 153.º, n.º 1, do Código Penal, na indicada redacção, que “Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias.”.
A agravação, contida no artigo 155.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código, estipula que “quando os factos previstos nos artigos 153.º (…) forem realizados por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a 3 anos (…) o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, no caso do artigo 153.º (...).”.
O bem jurídico tutelado pelo tipo penal em causa consubstancia-se na liberdade pessoal, enquanto faculdade que assiste a cada ser humano de conduzir espontaneamente a formação da sua vontade e consonante actuação no meio em que se insere. Conforme menciona Américo Taipa de Carvalho (“Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, pág. 342), o “Bem jurídico protegido pelo art. 153º é a liberdade de decisão e de acção. As ameaças, ao provocarem um sentimento de insegurança, intranquilidade ou medo na pessoa do ameaçado, afectam, naturalmente, a paz individual que é condição de uma verdadeira liberdade.”.
A liberdade, em qualquer uma das suas vertentes, merece tutela constitucional no art.º 27.º, n.º 1, da Lei Fundamental, e insere-se no leque de direitos fundamentais de que são titulares todos os cidadãos (art.ºs 12.º, n.º 1, 17.º e 18.º, n.º 1, da C.R.P.).
A propósito do crime em questão, escreveu-se no Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12-12-2001 (acessível in www.dgsi.pt – processo n.º 2880/2001) que “O Código Penal acolhe a liberdade individual como um “bem jurídico intrassocial”, sendo que, a tutela penal da liberdade é, por excelência, uma tutela negativa, na medida em que visa impedir as acções de terceiros que afectem a liberdade de acção e de decisão individual e uma tutela pluridimensional, uma vez que assume as diversas manifestações da liberdade pessoal (liberdades de autodeterminação, de movimento, de acção sexual). O bem protegido pelo art.º 153.º é a liberdade de decisão e de acção.”.
Escreve-se ainda no referido aresto que “Neste tipo objectivo de ilícito, o conceito “Ameaça” apresenta 3 características essenciais.
1 - Mal: O mal tanto pode ser de natureza pessoal (ex. lesão à saúde) como patrimonial (ex. destruição de automóvel ou danificação de um imóvel);
2 - Futuro: O mal ameaçado tem que ser futuro, isto é, o mal, objecto da ameaça, não pode ser iminente, pois, neste caso, estar-se-á diante de uma tentativa de execução do respectivo acto violento (art. 22º/2 c), do respectivo mal (esta característica temporal da ameaça é um dos critérios para distinguir, no campo dos crimes de coacção, entre a ameaça e a violência – ex. haverá ameaça, quando alguém afirma “hei-de te matar”; já se tratará de violência quando alguém afirma “vou-te matar já”), sendo irrelevante que o agente refira ou não o prazo dentro do qual concretizará o mal, e que, referindo-o, este seja curto ou longo.
3 - Que dependa da vontade do agente: é indispensável que a ocorrência do mal futuro apareça como dependente da vontade do agente, sendo, esta característica permite a distinção entre a ameaça e o simples aviso ou advertência; é indiferente a forma que revista a acção de ameaçar: tanto pode ser oral (directa ou por via telefone) escrita (assinada ou anónima), gestual, ou se sirva de interposta pessoa.” (negrito e sublinhado nosso).
Acresce que os crimes objecto da intimidação se encontram eles próprios taxativamente enumerados no art.º 153.º, n.º 1, do Código Penal, não podendo ser outros além dos que tutelam a vida humana, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual e os bens patrimoniais de valor elevado (previstos, respectivamente, nos art.ºs 131.º e seg.s, 143.º e seg.s, 153.º e segs., 163.º e seg.s e 202.º, alínea a), do Código Penal).
Além dos aludidos pressupostos objectivos de punibilidade do crime em apreço, há que atender ainda ao critério da adequação da ameaça para provocar medo ou inquietação ao ofendido, ou para prejudicar a sua liberdade de determinação (neste sentido vide o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 14-07-2004, disponível in www.dgsi.pt – processo n.º 0346292).
Este “… critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação, ou de modo a prejudicar a liberdade de determinação é objectivo-individual: objectivo, no sentido de que deve considerar-se adequada a ameaça que, tendo em conta as circunstâncias em que é proferida e a personalidade do agente, é susceptível de intimidar ou intranquilizar qualquer pessoa (critério do “homem comum”); individual, no sentido de que devem relevar as características psíquico-mentais da pessoa ameaçada (relevância das “sub-capacidades” do ameaçado).” (Américo Taipa de Carvalho, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, Parte Especial, Tomo I, dirigido por Jorge de Figueiredo Dias, Coimbra Editora, pág. 348).
Enquanto que no “… n.º 1 do art. 155.º do texto de 1982 se exigia que o agente tivesse provocado no sujeito passivo receio, medo, inquietação ou lhe tivesse prejudicado a sua liberdade de determinação, agora basta que o agente se tenha servido de expediente adequado a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar-lhe a sua liberdade de determinação.
Assim, desde que a ameaça seja adequada a provocar o medo, mesmo que em concreto o não tenha provocado, verifica-se o crime.
Medo é o temor ou receio de que o mal ameaçado ou prometido venha efectivamente a acontecer.
Inquietação é a intranquilidade, o desassossego que a ameaça provoca no destinatário.
Há prejuízo na liberdade de determinação quando o ameaçado fica constrangido pela ameaça, e em vez de agir de acordo com a sua livre vontade actua antes por forma a não desagradar o ameaçador, ainda que isso lhe custe.” (Manuel de Oliveira Leal-Henriques e Manuel José Carrilho de Simas Santos, “Código Penal”, Volume II, 2.ª Edição, Rei dos Livros, pág. 185).
Conforme também acertadamente se decidiu no referido Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 12-12-2001, “A ameaça tem de ser adequada a provocar no ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação: o crime de ameaça é (actualmente) um crime de perigo concreto, isto é, exige-se apenas que a ameaça seja susceptível de afectar a liberdade de determinação e que na situação concreta, seja adequada a provocar medo ou inquietação, ou afectado a liberdade de determinação, sendo que o critério da adequação da ameaça a provocar medo ou inquietação ou a prejudicar a liberdade de determinação é um critério objectivo-individual, isto é, o critério do homem comum, médio (pessoa adulta e normal), tendo em conta as características individuais do ameaçado; assim, ameaça adequada é a ameaça que, de acordo com a experiência comum, é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente).” – no mesmo sentido, vide, entre tantos outros, os dois Acórdãos da Relação de Lisboa, ambos de 09-02-2000, CJ, tomo I, pág.s 147-149 e 149-150; o Acórdão da Relação de Coimbra, de 16-03-2000, CJ, tomo II, pág.s 45-48; o Acórdão da Relação de Évora de 24-04-2001, CJ, tomo V, pág.s 270-272 e o Acórdão da Relação do Porto de 13-03-2002, in www.dgsi.pt – processo n.º 0141319.
Quando a factualidade apurada evidencie que o agente intimidou a vítima com a prática de crime com pena superior a três anos de prisão (como sucede quando a atemoriza com a prática do crime previsto pelo art.º 131.º, do Código Penal), deve ter lugar a aplicação da agravação prevista no art.º 155.º, n.º 1, alínea a), do mesmo Código.
No que se refere ao elemento subjectivo do tipo de ameaça, este crime está previsto na forma dolosa (em qualquer uma das modalidades de dolo: directo, necessário ou eventual), de acordo com as disposições conjugadas dos art.ºs 153.º, n.º 1, 155.º, n.º 1, alínea a), 13.º e 14.º, do Código.
Assim, preenche o tipo subjectivo de crime em questão quem representa a adequação da sua conduta (a atitude intimidativa oral, escrita ou gestual, expressa ou tácita) para provocar medo ou inquietação em outrem e age com vontade que a intimidação chegue ao conhecimento dessa pessoa (sendo irrelevante que tenha ou não intenção de concretizar a ameaça).
No caso dos autos resultou provado que nas circunstâncias de tempo e lugar referidas em 1) e3) o arguido ameaçou o assistente com a prática de crime contra a vida. Não se tratou de ameaças de execução iminente, porque se assim fosse o arguido teria praticado um crime de homicídio. 
Ora, deste modo, cremos que o arguido anunciou ao assistente a prática de mal futuro, e tal ofensa, a concretizar-se, estaria apenas dependente da vontade do arguido. A vida é um dos elementos taxativamente previstos no artigo 153º do Código Penal, o mesmo sucedendo com a integridade física. E mostra-se ainda verificado o critério da adequação pois a expressão em causa é adequada a provocar receio e intranquilidade em qualquer pessoa.
Por outro lado, os bens jurídicos vida e integridade física são protegidos por via das incriminações contidas nos artigos 131º e 144º do Código Penal, ambos puníveis com pena de prisão superior a três anos.
Verificam-se todos os elementos objectivo e subjectivo do tipo de ilícito de ameaça agravada sendo que não se tendo apurado quaisquer causas que excluam ou diminuam a ilicitude ou a culpa, deve o arguido ser condenado pela prática de dois crimes de ameaça agravada, p. e p.pelo artigo 153.º e 155.º, n.º1 alínea a) do CP.
*
- Crime de Detenção de Arma Proibida:
No que se refere à previsão do crime de detenção de arma proibida, prevê o artigo 86.º, n.º 1 da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na redacção actualmente vigente, que:
1 - Quem, sem se encontrar autorizado, fora das condições legais ou em contrário das prescrições da autoridade competente, detiver, transportar, exportar, importar, transferir, guardar, reparar, desativar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou transferência, usar ou trouxer consigo:
(…)
c) Arma das classes B, B1, C e D, espingarda ou carabina facilmente desmontável em componentes de reduzida dimensão com vista à sua dissimulação, espingarda não modificada de cano de alma lisa inferior a 46 cm, arma de fogo dissimulada sob a forma de outro objeto, arma de fogo fabricada sem autorização ou arma de fogo transformada ou modificada, bem como as armas previstas nas alíneas ae) a ai) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão de 1 a 5 anos ou com pena de multa até 600 dias;
d) Arma branca dissimulada sob a forma de outro objeto, faca de abertura automática ou ponta e mola, estilete, faca de borboleta, faca de arremesso, cardsharp ou cartão com lâmina dissimulada, estrela de lançar ou equiparada, boxers, outras armas brancas ou engenhos ou instrumentos sem aplicação definida que possam ser usados como arma de agressão e o seu portador não justifique a sua posse, as armas brancas constantes na alínea ab) do n.º 2 do artigo 3.º, aerossóis de defesa não constantes da alínea a) do n.º 7 do artigo 3.º, armas lançadoras de gases, bastão, bastão extensível, bastão elétrico, armas elétricas não constantes da alínea b) do n.º 7 do artigo 3.º, quaisquer engenhos ou instrumentos construídos exclusivamente com o fim de serem utilizados como arma de agressão, artigos de pirotecnia, exceto os fogos-de-artifício das categorias F1, F2, F3, T1 ou P1 previstas nos artigos 6.º e 7.º do Decreto-Lei n.º 135/2015, de 28 de julho, e bem assim as munições de armas de fogo constantes nas alíneas q) e r) do n.º 2 do artigo 3.º, é punido com pena de prisão até 4 anos ou com pena de multa até 480 dias;
e) Silenciador, moderador de som não homologado ou com redução de som acima dos 50 dB, freio de boca ou muzzle brake, componentes essenciais da arma de fogo, carregador apto a ser acoplado a armas de fogo semiautomáticas ou armas de fogo de repetição, de percussão central, cuja capacidade seja superior a 20 munições no caso das armas curtas ou superior a 10 munições, no caso de armas de fogo longas, bem como munições de armas de fogo não constantes na alínea anterior, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias.
(…)
2 - A detenção de arma não registada ou manifestada, quando obrigatório, constitui, para efeitos do número anterior, detenção de arma fora das condições legais.
Nos termos do disposto no artigo 3.º, n.º 1, alínea p) da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, na sua redacção actual, “para efeitos do disposto na presente lei (..) entende-se por:
3 - Munições das armas de fogo e seus componentes:
(…)
p) «Munição de arma de fogo» o cartucho ou invólucro ou outro dispositivo contendo o conjunto de componentes que permitem o disparo do projéctil ou de múltiplos projécteis, quando introduzidos numa arma de fogo;
(…) ”
Por sua vez, o artigo 3.º do citado diploma legal, relativo à classificação das armas, munições e outros acessórios, dispõe o seguinte:
“1- As armas e as munições são classificadas nas classes A, B, B1, C, D, E, F e G, de acordo com o grau de perigosidade, o fim a que se destinam e a sua utilização.
Atento o preceito legal ora reproduzido, concluir-se que o tipo de ilícito em análise é um crime de perigo abstracto, pois que as condutas aí contidas não lesam de forma directa e imediata qualquer bem jurídico, apenas implicam a probabilidade de um dano contra um objecto indeterminado.
Com este tipo legal, o legislador pretendeu evitar toda a actividade idónea a perturbar a convivência social pacífica e garantir através da punição destes comportamentos potencialmente perigosos a defesa da ordem e segurança públicas contra o cometimento de crimes, em particular contra a vida e a integridade física.
O bem jurídico protegido por via da descrita incriminação é a segurança das pessoas (face aos riscos que a detenção de armas proibidas importa necessariamente para a vida e integridade física humanas), visando o legislador evitar toda a actividade que se revele idónea a perturbar a convivência social e pacífica, bem como pretende garantir, através da punição deste comportamento potencialmente perigoso, a defesa da ordem e da segurança públicas contra o cometimento de crimes, em particular contra a vida e integridade física.
O crime de detenção de arma proibida é um crime de perigo comum, uma vez que as “… condutas descritas por este tipo legal não lesam assim de forma directa e imediata qualquer bem jurídico, apenas implicam a probabilidade de um dano contra um objecto indeterminado, dano esse que a verificar-se será não raras vezes gravíssimo. Por isso mesmo se usa também para qualificar estes crimes a expressão de «crimes vagos» ou «crimes com objecto de agressão indeterminado» …” (Paula Ribeiro de Faria in “Comentário Conimbricense do Código Penal” – Parte Especial, Tomo II (artigos 202.º a 307.º), dirigido por Figueiredo Dias, Coimbra Editora, 1999, pág. 889).
A lei pune este ilícito devido à especial danosidade inerente às armas proibidas, porquanto a simples posse ou detenção destes instrumentos constitui, por si só e independentemente da destinação que o seu detentor lhes confira (designadamente como meio de cometimento de crime), um risco particularmente elevado para bens jurídicos essenciais (como a vida ou a integridade física), bem como grave factor de perturbação da paz social (cfr. Acórdão do S.T.J., de 12 de Março de 1997 (Processo n.º 1.165), BMJ n.º 465 (1997), pág.s 313 a 318).
Assim, é tão só a perigosidade subjacente ou imanente à própria arma que determina a sua natureza proibida, afigurando-se, consequentemente, imprescindível que a arma se encontre enunciada na lei como interdita para que se consubstancie o crime de detenção de arma proibida (cfr. o citado Acórdão do S.T.J., de 12 de Março de 1997 (Processo n.º 1.165), BMJ n.º 465 (1997), pág.s 313 a 318).
 Só este entendimento poderá traduzir a obediência devida ao Princípio da Legalidade, consagrado no art.º 29.º, da Constituição da República Portuguesa, e art.ºs 1.º e 2.º, n.º 1, do Código Penal.
O tipo objectivo do ilícito jurídico-penal sob apreço consubstancia-se nos seguintes elementos: a acção de deter, transportar, importar, guardar, comprar, adquirir a qualquer título ou por qualquer meio ou obtiver por fabrico, transformação, importação ou exportação, usar ou trazer consigo arma proibida, nas quais se incluem as munições, desde que o arguido não tivesse autorizado a possuí-los.
Quanto a tais condutas, necessário se mostra, pois, demonstrar a inexistência de autorização ou de condições legais para o efeito ou a contrariedade em relação às prescrições da autoridade competente. Para tanto, importa ter presentes as disposições legais vigentes nesta matéria, sendo de considerar crime toda a conduta que, integrando uma das formas de actuação descritas neste tipo legal, não obedeça a essas mesmas disposições normativas.
No que concerne aos elementos subjectivos do tipo de ilícito, refira-se que é necessário o dolo do agente em relação a todos os elementos do tipo objectivo de ilícito. Assim, haverá dolo quando se puder concluir pela consciência e vontade de deter ou usar a arma ilegalmente.
No caso dos autos provou-se que desde dia não concretamente apurado, mas seguramente até ao dia ../../2021, o arguido deteve no interior da sua habitação, sita na Rua ..., ..., em ..., ...:
- 49 (quarenta e nove) munições de arma de fogo de calibre 6,35 mm Browning, da marca ...”; e
- 20 (vinte) munições de arma de fogo (cartuchos) de calibre 12 Ga, da marca ...”.
Mais se provou que o arguido não é detentor de qualquer licença de uso, detenção e porte de arma, nem de quaisquer autorizações especiais para o efeito.
No que se refere ao elemento subjectivo do tipo, este crime está previsto apenas na forma dolosa (em qualquer uma das modalidades de dolo: directo, necessário ou eventual), de acordo com as disposições conjugadas do art.º 86.º, n.º 1, alínea c) e d), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, com os art.ºs 13.º e 14.º, do Código Penal.
No caso concreto, atenta a factualidade provada, verifica-se que o arguido agiu com o propósito concretizado de deter as munições descritas, bem conhecendo as suas características e a sua perigosidade, bem como que não possuía licença nem autorização para o efeito, o que representou, agindo livre, voluntária e conscientemente, tendo perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
Foi suscitado em sede de alegações finais que a conduta do arguido constitui contra-ordenação p. e p. pelo artigo 97.º da Lei  5/2006, de 23.02.
Entendemos que a conduta do arguido não constitui contra-ordenação, na medida em que a previsão do artigo 97.º pressupõe a existência de licença de uso e porte de arma, licença essa que o arguido actualmente não tem, pelo que a sua conduta subsume-se na previsão do artigo 86, n.º1, alínea e).
A conduta do arguido integra, pois, a previsão do art. 86.º, n.º 1, alínea e), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro.
Verificam-se, pois, todos os elementos objectivos e subjectivo do crime de Detenção de Arma Proibida, previsto e punível pelo art. 86.º, n.º 1, alínea e), da Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro, e, como tal, deverá ser o arguido condenado.»
(…)”
*
3. Apreciação do Recurso
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- Da Qualificação Jurídica
Do crime de ameaças, preenchimento dos elementos típicos:
Encontra-se o arguido acusado, e condenado em 1ª instância, da prática de dois crimes de ameaça agravado, p.p. pelos artigos 153.º, n.º 1 e 155.º, n.º 1, alínea a), ambos do Código Penal.
Entendeu o Tribunal recorrido, para concluir pelo preenchimento dos elementos do tipo de ilícito de ameaça que o arguido ao dirigir ao assistente, em dois momentos diferentes em que se encontraram junto de um prédio rústico, num ambiente de conflito latente entre ambos por causa de um caminho, a expressão “dou-te uma bofetada na cara e dou-te um tiro”, na primeira vez, e ““dou-te uma bofetada na cara e um tiro”, fez um anúncio ao ofendido que estava disposto a ofendê-lo fisicamente e a atentar contra sua vida.
Por seu lado, o recorrente entende que não se verifica a característica temporal do mal anunciado visando um momento futuro, não configurando a atuação do arguido um anúncio de um mal a praticar noutro momento posterior, antes se esgotando em cada um daqueles momentos com a execução da conduta tipificadora do crime de ofensas à integridade física, ou até de homicídio.
Para além disso, quando da prova não resulte inequivocamente se o mal anunciado é ou não futuro ou, sequer, que qualquer homem médio, com as caraterísticas do ofendido, o entendesse como exprimindo uma ideia de futuro, levantando-se dúvida séria sobre a verificação de tal elemento de facto, deverá ela ser solucionada a favor do arguido, em obediência ao princípio in dubio pro reo.
Pelo que, manifesta o entendimento de que terá de ser absolvido da prática dos dois crimes de ameaça agravada que estão imputados.
Vejamos.
As expressões dirigidas anunciam, em termos literais, que o arguido tem arma, que vai dar uma bofetada e um tiro ao assistente, mas não diz quando, nem assume qualquer comportamento de o fazer naquele momento. Não pratica quaisquer atos preparativos ou evidenciadores de que vai dar a bofetada e empunhar uma arma para efetuar o disparo, que também não exibe, não se vislumbrando da realidade factual apurada a assunção de comportamento, em cada uma das ocasiões, ou de qualquer gesto, de onde se retire a intenção de que vai iniciar a agressão e concretizar o disparo anunciados.
E do contexto em que a situação se desenrola, e repete, retira-se que o anúncio é para o futuro, ficando longe da execução imediata. Na verdade, se o arguido tivesse a intenção de praticar de imediato os atos agressores que anunciou tê-lo-ia feito, ou pelo menos assumido condutas das quais se retirasse que estava prestes a fazê-lo, e que de alguma forma tivesse sido impedido, designadamente pelas pessoas que presenciaram os factos, ou recuado na sua intenção. Nada disso resulta dos factos apurados, o arguido aborda o irmão nos dois episódios provados e toma a mesma atitude, sempre com o mesmo pretexto, a resolução da questão do caminho que os traz desavindos, repetindo as palavras que já lhe havia endereçado no ano anterior.
Ou seja, o teor das mensagens provadas, naquele cenário de desavença sobre o dito caminho, que inclusive já terá originado uma ação em tribunal que os envolveu, sem que seja exibida qualquer arma ou ação que permita levar a cabo a propalada intenção ofensiva, no contexto de um diferendo latente, dirigido a alguém transmite a ideia ao destinatário de que, quando menos esperar, sujeitar-se-á à ação direta do interlocutor. Podendo inclusive esse repetido comportamento do arguido ser entendido como uma coação exercida sobre o ofendido no sentido da resolução da questão do caminho a contento daquele, que não terá ficado agradado com o que ficou decidido no âmbito da dita ação.
Neste contexto, somos de considerar que as expressões proferidas e todo o contexto envolvente demonstra que o arguido fez anúncios ao BB de lhe fazer um mal no futuro, caso não resolvesse o problema do caminho, com cuja solução não concorda. A qualquer momento, qualquer dia, se não resolveres a situação “dou-te uma bofetada e um tiro”.

Vejamos, então, o crime de ameaça.

Dispõe o artigo 153.º, n.º1, do Código Penal:
«Quem ameaçar outra pessoa com a prática de crime contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido (…).»

Por sua vez, prevê o artigo 155.º, n.º1, alínea a):
«1 - Quando os factos previstos nos artigos 153.º a 154.º-C forem realizados:
a) Por meio de ameaça com a prática de crime punível com pena de prisão superior a três anos; ou
 (…)
o agente é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, nos casos dos artigos 153.º e 154.º-C, com pena de prisão de 1 a 5 anos, nos casos dos n.º 1 do artigo 154.º e do artigo 154.º-A, e com pena de prisão de 1 a 8 anos, no caso do artigo 154.º-B.
(…).»
O bem jurídico protegido pelo artigo 153º do Código Penal é a liberdade de decisão e de ação.
São três as características essenciais do conceito ameaça: mal, futuro, cuja ocorrência dependa da vontade do agente.
O crime de ameaça tem como elementos constitutivos:
- Que o agente ameace outra pessoa com a prática de crime do catálogo (crime contra a vida, a integridade física, a liberdade e autodeterminação sexual ou bens patrimoniais de considerável valor);
- Que a ameaça seja adequada a provocar ao ameaçado medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação;
- O dolo genérico, o conhecimento e vontade de praticar o facto;
O preenchimento do tipo basta-se com a mera suscetibilidade de a ameaça afetar a liberdade pessoal do ameaçado, não sendo necessário que o ameaçado sinta medo ou inquietação ou fique prejudicado na sua liberdade de determinação.
O mal ameaçado tem que ser futuro, não iminente, e dependente da vontade do agente.
«Importante será também realçar que o ilícito em análise integra-se na categoria dos crimes de mera acção e de perigo concreto uma vez que se exige “…apenas que a ameaça seja susceptível de afectar, de lesar a paz individual ou a liberdade de determinação, não sendo necessário que, em concreto, se tenha provocado medo ou inquietação, isto é, que tenha ficado afectada a liberdade de determinação do ameaçado…” – Américo Taipa de Carvalho, Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo I, pág. 348.
Nesta medida, ameaça adequada deverá ser toda aquela que, de acordo com critérios de normalidade e de experiência comum, “…é susceptível de ser tomada a sério pelo ameaçado (tendo em conta as características do ameaçado e conhecidas do agente, independentemente de o destinatário da ameaça ficar, ou não, intimidado) …” – Américo Taipa de Carvalho, ob. cit., pág. 348.»
Consideremos os factos dos autos e vejamos se o comportamento do arguido deve ser interpretado como o anúncio da prática de um crime.
Como é do conhecimento comum, há muitas maneiras de se fazer tal anúncio, umas mais explícitas, como por exemplo, em caso de declarações orais, dizer «um dia destes vou aí e bato-te (ou mato-te)», outras serão apenas implícitas, veladas, feitas subtilmente, como por exemplo, dizer a alguém que «ficaria muito bem com os dois olhos negros (ou num caixão)».
Não sendo a declaração explícita, a mesma tem de ser interpretada, atendendo-se às palavras proferidas, considerando-se a vontade presumível do declarante, manifestada nessas palavras, e atendendo-se ao sentido que qualquer destinatário retiraria daquelas palavras, colocado que estivesse na posição do real destinatário.
Ora, tendo em conta que na situação descrita nos autos, no âmbito de um litígio pendente, e alvo de processo entre as partes, e durante dois encontros em que o arguido se dirige verbalmente ao assistente, (como resulta dos depoimentos das testemunhas), dizendo-lhe que o agride fisicamente, e tendo como móbil a desavença respeitante ao caminho, tendo aquele dirigido a este a aludida expressão ““dou-te uma bofetada e um tiro”, desacompanhada de qualquer comportamento adicional e preparatório da concretização dessa intenção, só pode ser interpretada como um anúncio ao ofendido de que no futuro, qualquer dia, concretizará as ações ofensiva que anunciou.
Não vemos que se possa interpretar de outra maneira que não a de o arguido estar a anunciar a prática de um crime contra o corpo do assistente, inclusive dar-lhe um tiro do qual pode resultar a sua morte.
O sentido das palavras proferidas, repetidas cerca de um ano (9 meses) tendo em conta o teor das mesmas e as circunstâncias apuradas nos factos provados, afigura-se ser inequívoco para qualquer destinatário normal. A situação não está resolvida, também não está esquecida e a advertência agressora mantém-se, e renova-se.
Mas, além de serem a tradução de tal propósito, renovado, também são idóneas a causar receio e perturbação na pessoa visada.
Assim, mostra-se preenchido o tipo objetivo do ilícito de ameaça agravado.
Por outro lado, tendo resultado provado que o arguido atuou, em ambas as ocasiões, sabendo que as expressões por si proferidas, atentatórias contra a vida do assistente BB, seriam adequadas, como foram, a provocar-lhe medo pela sua vida e inquietação e a prejudicar a sua liberdade de determinação, livre, voluntária e conscientemente, tendo perfeito conhecimento que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal, mostra-se também preenchido o elemento subjetivo do tipo.
Concluindo, comete dois crimes de ameaça agravado p. e p. pelos artigos 153º, nº 1 e 155º, nº 1, alínea a), do Código Penal, aquele que, de forma livre, voluntária e consciente, com perfeita consciência de que o seu comportamento é adequado a provocar no destinatário medo e inquietação, e sabendo que a sua conduta é proibida e punida por lei, no contexto de um litígio latente, por duas vezes, separadas no tempo, se dirige a outra pessoa com quem mantém o conflito: ““dou-te uma bofetada na cara e dou-te um tiro.”
Pelo exposto, não merece censura o enquadramento jurídico efetuado pela primeira instância ao considerar que o arguido cometeu os dois crimes de ameaça agravado.
A pretensão do recorrente é, pois, improcedente.

A decisão encontrada acaba por retirar qualquer eficácia ao invocado funcionamento no caso concreto do princípio in dubio pro reo.
Também da fundamentação de facto apurada não se extrai qualquer violação do in dubio pro reo.
O recorrente sugere que na situação vertente, perante a factualidade apurada, o tribunal recorrido deveria ter feito uso do princípio do in dubio pro reo, postulado do princípio da presunção de inocência consagrado no artigo 32º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa.
Em defesa da sua posição invoca um acórdão deste Tribunal da Relação em que se diz: “Quando da prova não resulte inequivocamente se o mal anunciado é ou não futuro ou, sequer, que qualquer homem médio, com as caraterísticas do ofendido, o entendesse como exprimindo uma ideia de futuro, levantando-se dúvida séria sobre a verificação de tal elemento de facto, deverá ela ser solucionada a favor do arguido, em obediência ao princípio in dubio pro reo.” (cfr. ac. TRG de 11/01/2021, in http://www.dgsi.pt)
Ora, como consabido, “no processo penal não tem aplicação o ónus da prova formal, segundo o qual cada uma das partes terá de produzir as provas necessárias a sustentar os factos que alega, porquanto, vigorando o princípio da investigação, recai sobre o juiz o ónus de investigar e esclarecer oficiosamente o facto submetido a julgamento. Em consequência, se uma vez produzida toda a prova, persistir uma dúvida razoável sobre determinados factos no espírito do julgador, esse non liquet na questão da prova tem de ser resolvido a favor do arguido. Sendo o direito penal um direito de culpa, a qual representa um limite intransponível para a decisão, “os princípios da presunção de inocência e de in dubio pro reo constituem a dimensão jurídico-processual do princípio jurídico-material da culpa concreta, como suporte axiológico-normativo da pena”. (Vd. Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada, vol. I, pág. 519.)
Conforme ensina Figueiredo Dias (- In Direito Processual Penal, I, pág. 215.), “relativamente ao facto sujeito a julgamento, o princípio [in dubio pro reo] aplica-se sem qualquer limitação, e, portanto, não apenas aos elementos fundamentadores e agravantes da incriminação, mas também às causas de exclusão da ilicitude, de exclusão da culpa e de exclusão da pena bem como às circunstâncias atenuantes, sejam elas «modificativas» ou simplesmente «gerais». Em todos estes casos a persistência de dúvida razoável após a produção da prova tem de atuar em sentido favorável ao arguido e, por conseguinte, conduzir à consequência imposta no caso de se ter logrado a prova completa da circunstância favorável ao arguido”.
Tal princípio tem aplicação no domínio probatório, consequentemente no domínio da decisão de facto, e significa que, em caso de falta de prova sobre um facto, a dúvida se resolve a favor do arguido. Ou seja, será dado como não provado se lhe for desfavorável, mas por provado se justificar o facto ou for excludente da culpa. Contudo, para tanto não basta dar relevância às dúvidas que as partes encontram na decisão ou que derivem da sua interpretação da factualidade revelada nos autos. Da mesma forma que também não é suficiente a circunstância de terem sido apresentadas em audiência versões díspares e até contraditórias sobre factos relevantes.
Acresce que não é toda a dúvida que justifica a absolvição com base neste princípio, mas apenas aquela em que for inultrapassável, séria e razoável a reserva intelectual à afirmação de um facto que constitui elemento de um tipo de crime ou com ele relacionado, deduzido da prova globalmente considerada. A própria dúvida está sujeita a controlo, devendo revelar-se conforme à razão ou racionalmente sindicável, pelo que, não se mostrando racional, tal dúvida não legitima a aplicação do citado princípio. (Cfr. o acórdão do STJ de 04-11-1998, in BMJ n.º 481, pág. 265.)
A dúvida razoável, que determina a impossibilidade de convicção do tribunal sobre a realidade de um facto, distingue-se da dúvida ligeira, meramente possível, hipotética. Terá de ser uma dúvida séria, positiva, racional e que ilida a certeza contrária. Por outras palavras ainda, uma dúvida que impeça a íntima convicção do tribunal, que seja argumentada e coerente. Em suma, o princípio in dubio pro reo constitui uma imposição dirigida ao juiz, no sentido de se pronunciar de forma favorável ao arguido quando não houver certeza sobre os factos decisivos para a solução da causa.
No âmbito dos seus poderes de cognição sobre a matéria de facto, compete ao tribunal da relação sindicar a concreta utilização do princípio in dubio pro reo por parte da primeira instância. Com efeito, a violação desse princípio pode resultar da análise do texto da própria decisão recorrida e do processo decisório nela evidenciado, ocorrendo quando se concluir que o tribunal recorrido ficou em dúvida quanto a elementos que permitem estabelecer o grau de culpabilidade do arguido e, nesse estado de dúvida, decidiu contra ele.
Para além dessa situação, de verificação pouco frequente, a imputação da violação do princípio in dubio pro reo torna necessário demonstrar a existência de erro na apreciação dos meios probatórios produzidos, através do reexame dos mesmos, com vista a evidenciar que, em face da carência ou insuficiência da prova, o tribunal deveria ter ficado em estado de dúvida quanto a factos relevantes para a responsabilidade criminal do arguido.
No caso dos autos, como ressalta da motivação da decisão de facto, o tribunal a quo considerou provados os factos impugnados para além de qualquer dúvida razoável sobre eles, ou seja, sem ter dúvidas em fixar a sua ocorrência tal como se encontram descritos, não decorrendo da sentença a existência ou confronto do julgador com qualquer dúvida insanável, motivo pelo qual não houve que a valorar a favor do arguido.
Como efeito, o tribunal recorrido, como se disse supra, dando a conhecer o processo de formação da sua convicção, procedeu a uma explicitação suficientemente esclarecedora das declarações do assistente e do depoimento das testemunhas, que acolheu, bem como das razões porque lhes foi atribuída credibilidade, não havendo outros elementos probatórios a ponderar quanto aos factos ora impugnados, por não terem sido produzidos. De igual forma apreciou e ponderou as declarações do arguido, e da testemunha que apresentou, tendo apontado os motivos pelo quais não conferiu qualquer crédito à versão que pretenderam trazer como correspondente à verdade. Baseou-se, pois, o tribunal de 1ª instância num juízo de certeza e não em qualquer juízo dubitativo.
Por seu lado, pelas razões expostas supra, da análise dos depoimentos e das declarações apontadas, concluímos pela inexistência de razões que devessem ter levado o tribunal a ficar com qualquer réstia de dúvida sobre os factos impugnados. Em suma, a prova produzida em audiência permite claramente concluir pela verificação dos factos impugnados, sem qualquer afrontamento das regras da experiência comum ou apreciação manifestamente incorreta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, pelo que nenhuma censura pode merecer o juízo valorativo acolhido em primeira instância, subtraído a qualquer dúvida, nada havendo a alterar.
Mas a posição do recorrente, como se disse, estriba-se essencialmente na questão de as palavras dirigidas ao assistente serem equívocas quanto ao momento da sua ocorrência, se imediato ou futuro, e, perante essa equivocidade, essa dúvida, ou incerteza, teria de ser resolvida a seu favor, fazendo funcionar o dito princípio in dubio pro reo.
Ora, como acima afirmamos, essa dúvida não se colocou ao julgador em 1ª instância e, para além disso, também não logramos encontrar, nem se mostra demonstrado, qualquer erro na apreciação dos meios probatórios produzidos, que não foram impugnados, nem vislumbramos carência ou insuficiência da prova, que não sendo exuberante é suficiente para se concluir que não se verificam motivos para que o tribunal devesse ter ficado em estado de dúvida quanto a factos relevantes para a responsabilidade criminal do arguido, com reflexos na inserção legal das suas condutas.
Concluindo, improcede também nesta posição o recurso do arguido.
Saliente-se, por fim, que, não obstante nas suas conclusões o recorrente fazer alusão a uma hipotética violação do disposto nos artigos 22º (tentativa) e 71º (determinação da medida da pena), do CP, fá-lo de forma genérica, sem concretizar, nem na motivação nem nas conclusões, as razões pelas quais tais dispositivos legais não terão sido atendidos. O recorrido apenas se insurge contra o enquadramento legal da sua conduta na prática do crime de ameaça, pugnando pela sua absolvição, jamais fazendo qualquer referência à escolha e determinação, à medida, da pena que lhe foi aplicada.
Assim sendo, constituindo as conclusões o limite do objeto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir, não podendo o tribunal ad quem conhecer de matérias nelas não incluídas, estando circunscrito às que concretamente forem colocadas nas conclusões da motivação recursiva, nada cumpre dizer quanto às violações alvitradas, que, de qualquer forma, também não logramos alcançar.   
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III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os Juízes do Tribunal da Relação de Guimarães em:
- Julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido AA e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
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Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC´s [arts. 513.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa a este último diploma]. 
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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do C. P. P.)
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Guimarães, 18 de junho de 2024

Os Juízes Desembargadores
Relator - José Júlio Pinto
1ª Adjunta – Isilda Pinho
2ª Adjunta – Florbela Sebastião e Silva