Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE | ||
Descritores: | EXECUÇÃO SENTENÇA TRANSITADA EM JULGADO IMPUGNAÇÃO DO TÍTULO EXECUTIVO PROCEDIMENTO CAUTELAR INDEFERIMENTO LIMINAR | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 06/27/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
Sumário: | I - A ordem jurídica não confere o direito de, através de acção judicial - entendida como acção declarativa constitutiva -, invalidar/impugnar procedentemente uma sentença transitada em julgado que constitui título executivo. II – Intentado um procedimento cautelar comum, em que o direito subjacente ao mesmo, é aquele direito, o mesmo deve ser liminarmente indeferido por manifestamente inviável. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães 1. Relatório [1] A 15/12/2011, por apenso à acção declarativa de condenação, sob a forma de processo ordinário que, sob o nº 4360/06...., correu termos pelo ... Juízo Cível do Tribunal Judicial de ..., EMP01..., Lda., instaurou execução para pagamento da quantia de € 390.903,33, contra AA e mulher, BB, invocando como título executivo a sentença proferida naqueles autos, datada de 03/09/2010, notificada às partes a 10/09/2010 e transitada em julgado a 11/10/2010, em que os executados foram condenados a pagar à exequente a quantia de € 310.612,21, acrescida de juros de mora à taxa legal, contados desde a data da citação para a acção até efectivo e integral pagamento. A 11/01/2012 foi penhorado o Prédio urbano, composto de casa de cave, ..., andar e logradouro, sito em ... - ..., da freguesia ... (...), inscrito na Repartição de Finanças sob o art. ...73 e descrito na Conservatória do Registo Predial sob o nº ...73; E a 20/02/2014 foi penhorado o quinhão hereditário da Executada, ora Requerente, na herança deixada por óbito de CC, a qual é integrada pelos 3 prédios descritos no auto de penhora. Em 2014 os autos de execução transitaram para o Juízo de Execução de ..., tendo sido distribuídos ao J 2 sob o n.º 3370/14...., que constitui a actual numeração. A 30/01/2015 os Executados deduziram Embargos de Executado (apenso B), que cumularam com oposição à penhora, alegando um conjunto de vicissitudes ocorridas na acção declarativa em que foi proferida a sentença exequenda (e que também alegam no procedimento cautelar em que foi interposto o presente recurso, como veremos adiante). A 29/05/2019 a Executada BB instaurou, por apenso à acção executiva, procedimento cautelar não especificado (apenso C) no âmbito do qual requereu a “suspensão da eficácia do ato do agente de execução que decretou a venda dos bens penhorados”, invocando a pendência dos embargos de executado e o ali invocado. A 02/11/2015 foi proferida sentença que julgou os embargos de executado improcedentes. E no final da sentença consignou-se (bold nosso): Atento o teor da presente decisão, entende o Tribunal existir motivo para ocorrer inutilidade superveniente da lide do apenso “C” pelo que, por ora, se dá sem efeito a diligência designada para o dia de amanhã. Os embargantes interpuseram recurso para a Relação de Guimarães da sentença que julgou improcedentes os embargos de executado. Esta RG, por Acórdão de 10/11/2016 confirmou a decisão recorrida e na sua fundamentação consignou: «os Recorrentes não podem suscitar neste momento a ilegalidade alegadamente decorrente da sua falta de notificação para a audiência de julgamento por que o respectivo direito se encontra duplamente precludido: por não ter sido tempestivamente suscitado no processo declarativo e, ainda que assim não fosse, por, tendo sido suscitado intempestivamente, se terem conformado com a decisão que não a apreciou, precisamente com fundamento em intempestividade.» Foi interposto recurso de revista excepcional, que o STJ não admitiu por Acórdão de 23/03/2017. Os embargantes reclamaram para a conferência, tendo a 22/06/2017 sido proferido Acórdão que julgou improcedente a reclamação. Nos autos de procedimento cautelar não especificado, a requerente BB também interpôs recurso para esta RG da decisão que julgou verificada inutilidade superveniente da lide do mesmo. Esta RG por Acórdão de 26/10/2017 julgou o recurso improcedente Foi interposto recurso de revista excepcional, não admitido por Acórdão de 18/01/2018. Entretanto, a 11/10/2016 a executada instaurou um novo procedimento cautelar não especificado (apenso D) no âmbito do qual requereu a suspensão da eficácia do acto de agente de execução que decretou a venda e modalidade da venda do quinhão hereditário, com fundamento na nulidade da sentença que constitui o título executivo. A 15/02/2017 foi proferida decisão que indeferiu o procedimento cautelar comum. A requerente interpôs recurso dessa decisão. Esta RG por Acórdão 19/10/2017, julgou o recurso improcedente, constando da respectiva fundamentação: «A aqui Requerente (Executada nos autos principais) já não é titular do direito de ver suspensa a acção executiva movida contra si pela aqui Requerida (ali Exequente ou sequer a venda do direito que ali lhe foi penhorado.» A requerente interpôs recurso de revista excepcional para o STJ, que não a admitiu por Acórdão de 30/01/2018. Entretanto e nos autos de execução, a 24/11/2022 a Sra. Agente de Execução juntou aos autos as notificações endereçadas aos executados, da certidão de encerramento do leilão electrónico para venda do prédio urbano supra referido, em que a proposta de maior valor foi apresentada pela “EMP02..., Ldª”. E a 25/01/2023 juntou aos autos o Título de transmissão em que figura como adquirente a “EMP02..., Ldª”. A requerente interpôs o procedimento cautelar destes autos (apenso G) contra a EMP01..., Lda. e EMP02..., Ldª pedindo que seja ordenada, sem audiência das requeridas, a suspensão do processo de execução (…), designadamente a entrega à requerida “EMP02..., Ldª”, do prédio urbano composto de cave, ..., andar e logradouro, sito em ..., Lote ..., da freguesia ... (...), concelho ..., inscrito na matriz predial urbana sob o art. ...73 e descrito na CRP sob o nº ...73, as diligências de penhora dos bens móveis que se encontram na referida residência e os atos tendentes à venda do quinhão hereditário que requerente detêm sobre os prédios descritos no auto de penhora junto como doc. 26. Alegou para tanto, e em síntese, que a sentença que constitui titulo executivo é inconstitucional e ilegal, derivando de um flagrante erro judiciário, sendo os (…) autos de execução, portanto, manifestamente ilegais, na medida em que se fundam num título executivo também ele ilegal e, consequentemente inexistente, descrevendo depois as vicissitudes ocorridas na acção declarativa, nomeadamente, a sua não notificação para a audiência de julgamento designada para os dias 10 e 13 de março de 2010, uma vez que a notificação foi efectuada na pessoa da Sra. Advogada que referem, à qual nunca outorgaram qualquer procuração, nem ratificaram os actos praticados pela mesma, nem para isso foram notificados e que deu entrada a requerimento em que declarou não ter condições para assumir o patrocínio por não deter a necessária procuração; apesar de não estarem notificados, apesar de o seu mandatário também não se encontrar notificado e ignorando-se o requerimento da Sra. Advogada que refere, a audiência de julgamento veio a realizar-se, à revelia da requerente e marido, aos quais foi vedado o exercício do direito de defesa e contraditório e viram excluída a possibilidade de produção de prova; a falta de notificação da requerente e marido da data designada para a audiência de julgamento, que determinou a não comparência daqueles em tribunal, constitui uma nulidade, que assume influência na decisão da causa, nos termos do art.º 195º, n.º 1. Mais alega que esta situação vem causando prejuízos à requerente e marido, que viram penhorado o prédio urbano que identificam, encontrando-se em vias de terem de proceder à sua entrega à requerida “EMP02..., Ldª”; a venda está ferida pelas irregularidades que assolam o processo de execução e o título executivo que lhe dá causa; a requerente e marido têm 66 anos e padecem de graves problemas de saúde; estão munidos de atestado médico que atesta o risco de vida que lhes comporta a entrega da referida habitação, não tendo sido assegurado o seu realojamento; os prejuízos serão ainda maiores com a penhora dos bens móveis que se encontram na residência. Finalmente alega que não pode aguardar pela propositura da competente acção judicial destinada a repor a legalidade, designadamente com a retoma da propriedade ao seu património e da consequente decisão final é impreterível que se suspenda o andamento do processo de execução, designadamente o acto de entrega da habitação, as diligências de penhora dos bens móveis que se encontram na residência e os actos tendentes à venda do quinhão hereditário da Requerente. Foi proferida decisão liminar cujo decisório tem o seguinte teor: Termos em que decido: A) Julgar manifestamente improcedentes as providências requeridas pela Executada/ Requerente quer por falta de fundamento, quer por não se adequarem à natureza e finalidade do procedimento cautelar. B) Condenar a Requerente nas custas. C) Condenar a Requerente/ Executada numa taxa sancionatória excepcional que se fixa em 3 UCs. A requerente interpôs recurso, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões: a) — A par das ações declarativas e executiva, o art. 2.º do Código de Processo civil, na sua parte final, refere-se ainda a "procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação " b) — A consagração e disciplina legal de tais procedimentos é uma imposição da própria Lei Fundamental, que no n.º 5 do seu art.º 20.º se refere aos "procedimentos céleres e prioritários " tendentes à "proteção em tempo útil dos direitos, liberdades e garantias c) — Os procedimentos aqui em causa são, no fundo, os procedimentos que a lei denomina de cautelares, que procuram precaver o requerente contra a ocorrência de danos presumivelmente advenientes da natural demora do processo principal; d) — Alega a Recorrente a ilegalidade dos presentes autos de execução, na medida em que se fundam num título executivo também ele ilegal e, consequentemente, inexistente; e) — Uma vez que não pode aguardar pela propositura da competente ação judicial destinada a repor legalidade, designadamente com a retoma da propriedade do imóvel penhorado ao seu património, e da consequente decisão final, a Recorrente lançou mão de uma providencia conservatória inominada que se consubstancia na suspensão do andamento do processo de execução, designadamente o ato de entrega da habitação e de quaisquer outras diligências de penhora; f) — As providencias requeridas pela Recorrente são perfeitamente adequadas à natureza e finalidade da tutela cautelar; g) — Em termos gerais, para que a tutela cautelar possa ter lugar, exige-se a verificação de dois requisitos; h) — O requerente, por um lado, deverá fazer prova sumária do direito a que se arroga, demonstrando a probabilidade séria da sua existência —fumus boni iuris; i) — Por outro, terá ainda de atestar a existência de um perigo de lesão irreparável do direito, devido à demora da decisão judicial em sede do processo principal — periculum in mora; j) — Foi suficientemente alegada matéria da qual é possível inferir claramente a verificação daqueles dois pressupostos; k) — A douta decisão do Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 2.º, n.º 2, 362.º, 365.º e 368.º do Código de Processo Civil e no artigo 20.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa. Não consta tenham sido apresentadas contra-alegações. 2. Questões a decidir O objecto do recurso, é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso cuja apreciação ainda não se mostre precludida. O Tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismo destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis” (cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139). Pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, pelo não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida. A única questão que cumpre apreciar é a de saber se foi alegada factualidade que permita considerar verificados os pressupostos do procedimento cautelar comum instaurado pela requerente. 3. Fundamentação de facto Consideram-se relevantes para a decisão do recurso as incidências fácticas narradas no antecedente relatório e que aqui se dão por reproduzidas; 4. Fundamentação de direito 4.1. Enquadramento jurídico O art.º 20°, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa dispõe que a “todos é assegurado o acesso ao direito e aos tribunais para defesa dos seus direitos e interesses legalmente protegidos (…)». E o art.º 2º, n.º 2 dispõe que a “todo o direito, exceto quando a lei determine o contrário, corresponde a acção adequada a fazê-lo reconhecer em juízo, a prevenir ou a reparação a violação dele e a realizá-lo coercivamente, bem como os procedimentos necessários para acautelar o efeito útil da ação.” Assim, qualquer pessoa que se considere titular de um direito pode solicitar a intervenção judicial para o ver reconhecido ou para alcançar a sua realização coerciva assim como, diga-se, qualquer pessoa demandada pode usar os meios processuais existentes para se defender. A ordem jurídica põe a tutela jurisdicional à disposição de todos os titulares de direitos, sendo indiferente que, no caso concreto, o litigante tenha ou não razão: num e noutro caso gozam dos mesmos poderes processuais. Mas uma realidade é o direito de acção em geral e abstracto, tal como consagrado nos preceitos citados e que se materializa no direito ao processo, ou seja, a possibilidade de submeter uma pretensão à apreciação do tribunal e a obrigação deste se pronunciar quanto à mesma. Outra realidade é o direito em concreto, tal como se encontra previsto na lei, cuja procedência pode estar sujeita a requisitos ou pressupostos, quer de ordem substantiva, quer de ordem processual (sendo certo que o “legislador ordinário tem competência para delimitar os pressupostos ou requisitos processuais de que depende a efetivação da garantia de acesso aos tribunais…” - Rui Medeiros, in CRP Anotada, I, UCP, pág. 319, ideia que repete adiante (pág. 321), afirmando que o ”princípio pro actione (…) não impede, naturalmente, a existência de requisitos ou de pressupostos processuais (...)”. É o que sucede, como veremos a seguir, com o direito de intentar um procedimento cautelar comum: para que possa ser julgado procedente, a lei exige a verificação de determinados requisitos, sendo o primeiro a probabilidade séria da existência do direito tido por ameaçado. E o facto de a lei exigir, para o decretamento de uma providência cautelar, a verificação de determinados requisitos ou pressupostos, não colide com o direito à tutela jurisdicional efectiva (art.º 20º da CRP) - tal tutela abstracta existirá sempre e a tutela concreta verificar-se-á desde que se verifiquem os pressupostos legais para o decretamento de uma providência cautelar não especificada. * Em termos gerais, a utilidade dos procedimentos cautelares radica na antecipação de determinados efeitos das decisões judiciais, na prevenção da violação grave ou dificilmente reparável de direitos, na prevenção de prejuízos ou na preservação do statu quo, enquanto demorar a decisão definitiva do conflito de interesses - Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, III, pág. 35. Representam uma antecipação ou garantia de eficácia relativamente ao resultado do processo principal e assentam numa análise sumária (sumaria cognitio) da situação de facto que permita afirmar a provável existência do direito (fumus boni iuris) e o receio justificado de que o mesmo seja seriamente afectado ou inutilizado se não for decretada uma determinada medida cautelar (periculum in mora) – Abrantes Geraldes, ob. e pág. citadas. Os procedimentos cautelares constituem medidas judiciais preventivas e urgentes com a finalidade de evitar o “periculum in mora”, ou seja, o perigo de que a morosidade própria de uma normal acção judicial acabe por inviabilizar, na prática, o direito de que o requerente da providência se arroga ou como refere Rita Lynce de Faria, in A tutela cautelar antecipatória no processo civil português, pág. 134, o periculum in mora traduzir-se-á no receio de que a sentença que venha ser proferida possa, na pendência da acção principal, perder a efectividade, dada a urgência da situação. Assim, dispõe o art.º 362º do CPC que: 1. Sempre que alguém mostre fundado receio de qutrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efectividade do direito ameaçado. (...) E prescreve o art.º 368º do CPC: 1. A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão. (…) Como resulta dos preceitos referidos, para ser decretada uma providência cautelar não especificada, torna-se necessária a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: 1º) que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado - objecto de acção declarativa -, ou que venha a emergir de decisão a proferir em acção constitutiva, já proposta ou a propor; 2º) que haja fundado receio de que outrem antes de proferida decisão de mérito, ou porque a acção não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito; 3º) que ao caso não caiba nenhuma das providências tipificadas; 4º) que a providência seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado; 5º) e que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar. Os dois requisitos fundamentais e cumulativos do procedimento cautelar comum são a probabilidade séria da existência do direito ou interesse juridicamente tutelado (“fumus boni juris”), e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão grave e dificilmente reparável (“periculum in mora”). Relativamente ao primeiro requisito, podem estar em causa os mais variados direitos, nomeadamente direitos potestativos, como decorre do disposto no n.º 2 do art.º 368º, que dispõe: O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor. Nesta situação e na falta de providência que tutele especificamente a situação de periculum in mora, será idónea a intimação do requerido para abster-se da prática de actos que afectem o direito potestativo na sua consistência prática ou jurídica (Abrantes Geraldes, ob. cit., pág. 92). A lei não exige que o direito que se pretende acautelar exista efectivamente; o que a lei exige é que, face à matéria de facto alegada e provada, se possa concluir pela probabilidade séria de que o requerente é titular do direito que se arroga. Relativamente ao segundo requisito, impõe-se ter em consideração, em primeiro lugar, que não é todo e qualquer dano, que possa ocorrer antes da decisão definitiva, que justifica o decretamento da providência – só as lesões graves e dificilmente reparáveis. Estas exigências radicam no facto de a tutela cautelar assumir cariz excepcional e no facto de estar em causa uma intervenção judicial na esfera jurídica do requerido fundada numa mera aparência do direito do requerente (Rita Lynce de Faria, in A tutela…, pág. 144). O carácter excepcional da tutela cautelar (face aos meios comuns) não colide com o direito à tutela juriscional efectiva (art.º 20º da CRP) - tal tutela existirá sempre, desde que se verifiquem os pressupostos legais para o decretamento de uma providência cautelar não especificada. Como refere Abrantes Geraldes, in Temas da Reforma do Processo Civil, III, 3ª edição, pág. 100, “ a gravidade da lesão previsível deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera jurídica do interessado com a intimação para se abster de determinada conduta ou com a necessidade de adoptar determinado comportamento ou de sofrer um prejuízo imediato e relativamente ao qual não existem garantias de efctiva compensação em caso de injustificado recurso à providência cautelar. E o mesmo aut. adverte, pág. 102, que “ na avaliação da gravidade da lesão deve o juiz verter para a decisão os valores que considere mais adequados em determinados momentos, tendo sempre em conta, no entanto, que a apreciação dos requisitos se deve pautar por um critério tão objectivo quanto possível “. Marco Gonçalves, in Providências Cautelares, 3ª edição, pág. 198-199 refere que “ a providência cautelar só pode ser decretada desde que [o dano] seja grave e irreparável ou de difícil reparação, isto é, quando não seja viável a reintegração do direito de forma específica ou por equivalente no decurso de um juízo de mérito”. E em segundo lugar, há que ter em consideração que o receio deve ser fundado, ou seja, apoiado em factos que permitam afirmar, com objectividade e distanciamento, a seriedade e actualidade da ameaça e a necessidade de serem adoptadas medidas tendentes a evitar o prejuízo (Abrantes Geraldes, ob. cit. pág. 103). A qualificação do receio de lesão grave como “fundado”, visa restringir as medidas cautelares, evitando que a concessão de protecção provisória, possa servir para alcançar efeitos inacessíveis ou dificilmente atingiveis num processo judicial pautado pelas garantias do contraditório e da maior ponderação e segurança que devem acompanhar as acções definitivas. E daí que o juízo de verosimilhança deve aplicar-se à probabilidade da existência do direito invocado, devendo usar-se um critério mais rigoroso na apreciação dos factos integradores do periculum in mora (Abrantes Geraldes, ob. cit. pág. 104). Por outro lado, as providências requeridas hão-de ser adequadas a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efectividade do direito ameaçado. Há, portanto, uma incindível ligação entre as providências requeridas e o direito tido por ameaçado. 4.2. Em concreto A primeira questão que se impõe responder é: qual é o direito que a requerente invoca no presente procedimento cautelar? O requerimento inicial não é explicito quanto a este aspecto. No art.º 58º do requerimento inicial a requerente refere que “não pode (…) aguardar pela propositura da competente ação judicial destinada a repor a legalidade” (sublinhado nosso). Por outro lado, a requerente alega um conjunto de vicissitudes ocorridas na acção declarativa de condenação em que foi proferida a sentença que constitui o título executivo para afirmar que a mesma é inconstitucional (ainda que não refira qual o preceito da CRP em que se baseia para o afirmar), é ilegal e deriva de um erro judiciário, concretizando tal alegação invocando que a sentença é nula, nos termos do art.º 195º, n.º 1 do CPC, por falta de notificação da requerente e do marido da data designada para audiência de julgamento. Neste quadro afigura-se que a requerente entende ter o direito de, através de acção judicial, obter a invalidação da sentença proferida na acção declarativa que a condenou e ao seu marido a pagar à exequente EMP01..., Lda a quantia exequenda e, assim, obter a sua remoção da ordem jurídica, tornando-se inexistente como título executivo e, deste modo, obter a invalidação da execução, com o objectivo final de obter, como também afirma no citado art.º 58º do requerimento inicial, a “retoma da propriedade do imóvel ao seu património”. Assim, não se pode entender que o direito cuja efectividade a mesma pretenda acautelar com o presente procedimento cautelar seja o de pedir a suspensão da execução, da entrega do imóvel, da diligência de penhora dos bens móveis e da venda do quinhão hereditário. Uma realidade é o direito ou situação subjectiva que se pretende ver tutelado, outra é a concreta forma de tutela jurisdicional que se pretende obter; esta apenas traduz o pedido. Aquelas providências representam apenas a tutela cautelar que se pretende obter, tendo em vista assegurar a efectividade dos efeitos da procedência da invalidação da sentença. Tanto assim é que aquelas providências mostram-se adequadas, do ponto de vista estritamente lógico e em abstracto, a assegurar os efeitos do exercício daquele direito. Acrescente-se que também não se pode considerar que o direito cuja efectividade se pretende acautelar seja o direito de propriedade do imóvel porque, como resulta do relatório supra e a requerente invoca, o imóvel foi penhorado e vendido na acção executiva e, portanto, aquele direito já não existe na sua esfera jurídica, além de que a mesma requer providências que vão para além da tutela desse direito de propriedade, abrangendo os bens móveis e o quinhão hereditário. A questão, tal como colocada pela requerente, situa-se num momento anterior à execução: na sentença que constitui titulo executivo. É nesse acto que a requerente faz centrar a ofensa aos seus direitos (por questões relacionadas com as vicissitudes da acção declarativa) e é esse acto que a requerente entende ter o direito de remover da ordem jurídica. Sendo assim coloca-se uma segunda questão: pode concluir-se, face ao alegado, pela probabilidade da existência na esfera jurídica da requerente de tal direito de invalidação da sentença exequenda? Em abstracto, a requerente tem o direito de intentar as acções que entender. Em concreto, podemos adiantar, desde já, com certeza e segurança, que a ordem jurídica não confere à requerente o direito de, através de acção judicial - aqui entendida como acção declarativa constitutiva, com o fito de operar uma modificação na ordem jurídica concretamente estabelecida -, invalidar/impugnar procedentemente a sentença que constitui título executivo. Diz expressamente o art.º 627º do CPC, as decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos, esclarecendo o n.º 2 que os recursos são ordinários ou extraordinários, sendo ordinários os recursos de apelação e revista e extraordinários o recurso para uniformização de jurisprudência e a revisão. A regra citada, aplica-se às decisões judiciais recorríveis, pois há decisões judiciais cuja impugnação é veiculada por outros meios: da decisão do incidente de incompetência relativa cabe reclamação para o presidente do tribunal imediatamente superior (art.º 105º, n.º 4 e 652º, nº 5, alínea a), ambos do CPC); da decisão e enunciação dos temas da prova, cabe reclamação dirigida ao próprio juiz (art.º 596º, n.º2 ); nos casos em que a decisão de 1ª instância não admita recurso, tendo em conta o valor do processo, da sucumbência ou em função de qualquer outra norma que vede tal meio de impugnação, as partes podem reagir através da invocação de nulidades (art.º 615º, n.º 4) ou requerendo a reforma (art.º 616º, n.ºs 1 e 2); da decisão do juiz, de 1ª instância, ou juiz da Relação, que não admita um recurso, cabe reclamação para o tribunal superior (art.º 643º, n.º 4). Destarte, a expressão “podem” utilizada no preceito quer apenas significar que a ordem jurídica confere às partes a possibilidade de impugnar as decisões judiciais recorríveis mediante a interposição dos competentes recursos de apelação ou revista, sob pena de, não o fazendo, as mesmas transitarem em julgado ou mediante a interposição do recurso de acórdão do STJ para uniformização de jurisprudência ou recurso de revisão de decisão transitada em julgado, tenha ela sido proferida pela 1ª instância, pela Relação ou pelo STJ. Se o meio de impugnar as decisões judiciais é o recurso, então está afastada qualquer possibilidade de tal impugnação através de uma acção declarativa constitutiva. Acresce, no caso, que, como referido no relatório supra, a execução foi intentada com base na sentença proferida em acção declarativa de condenação, com a alegação de que transitou em julgado, a qual nunca foi contestada. Sendo assim, nem sequer através de recurso ordinário é já possível impugnar aquela sentença. Poder-se-ia entender a expressão “acção judicial” utilizada pela requerente como abrangendo o recurso de revisão, em que, nos casos previstos mas alínea a) a f) e h) do art.º 696º, se o fundamento da revisão for julgado procedente, é revogada a decisão recorrida. Porém, ainda que assim fosse, o invocado no requerimento inicial não se ajusta a nenhum dos fundamentos de tal recurso (cfr. art.º 696º do CPC). Finalmente poder-se-ia ainda entender a expressão “acção judicial” utilizada pela requerente como abrangendo a dedução de embargos de executado, cujos fundamentos, sendo a execução fundada em sentença, são os que constam do art.º 729º do CPC. Mas como resulta do Relatório supra, a 30/01/2015 os Executados deduziram Embargos de Executado (apenso B), que cumularam com oposição à penhora, alegando um conjunto de vicissitudes ocorridas na acção declarativa em que foi proferida a sentença exequenda e que também alegam no presente procedimento cautelar comum. A 02/11/2015 foi proferida sentença que julgou os embargos de executado improcedentes. Os embargantes interpuseram recurso para a Relação de Guimarães da sentença que julgou improcedentes os embargos de executado. Esta RG, por Acórdão de 10/11/2016 confirmou a decisão recorrida e na sua fundamentação consignou: «os Recorrentes não podem suscitar neste momento a ilegalidade alegadamente decorrente da sua falta de notificação para a audiência de julgamento por que o respectivo direito se encontra duplamente precludido: por não ter sido tempestivamente suscitado no processo declarativo e, ainda que assim não fosse, por, tendo sido suscitado intempestivamente, se terem conformado com a decisão que não a apreciou, precisamente com fundamento em intempestividade.» Foi interposto recurso de revista excepcional, que o STJ não admitiu por Acórdão de 23/03/2017. Os embargantes reclamaram para a conferência, tendo a 22/06/2017 sido proferido Acórdão que julgou improcedente a reclamação. Destarte também por esta via não existe já o direito de “atacar” a sentença exequenda. Nos termos conjugados do disposto nos artigos 226º n.º 4 alínea b) e 590º n.º 1 do CPC, a petição é indeferida quando o pedido seja manifestamente improcedente. Este fundamento baseia-se em razões substanciais ligadas à antevisão manifesta da inviabilidade da pretensão. Estamos aqui perante um julgamento antecipado do mérito da providência que se justifica apenas nos casos de evidente inutilidade de qualquer instrução ou discussão posterior. É o caso dos autos, uma vez que em face de tudo o exposto, impõe-se concluir que a ordem jurídica não confere à requerente o direito de, através de acção judicial, impugnar a sentença que constitui título executivo e, assim, o presente procedimento cautelar é manifestamente improcedente. A decisão recorrida não violou nenhum dos preceitos citados pela recorrente, nomeadamente o art.º 20º da CRP pois a mesma exerceu o direito abstracto de agir, apenas não tendo obtido a procedência do seu pedido por inverificação do primeiro dos requisitos do procedimento cautelar comum, que é a probabilidade séria de existência do direito tido por ameaçado. Em face do exposto, a decisão recorrida não merece censura e o recurso deve ser julgado improcedente. 4.3. Custas Dispõe o art.º 527º n.º 1 do CPC que a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito. E o n.º 2 dispõe que entende-se que dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for. A recorrente ficou vencida, pelo que é responsável pelo pagamento das custas. 5. Decisão Termos em que acordam os juízes que compõem a 1ª Secção Cível da Relação de Guimarães em manter a decisão recorrida e, em consequência julgar o recurso improcedente. Custas pela recorrente Notifique-se * Guimarães, 27/06/2024 (O presente acórdão é assinado electronicamente) Relator: José Carlos Pereira Duarte 1º Adjunto: Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais 2º Adjunto: Alexandra Maria Viana Parente Lopes |