Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
4647/20.0T8GMR.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
INSOLVÊNCIA
LIQUIDAÇÃO SUPERVENIENTE DO ATIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I Os despachos judiciais estão sujeitos à regra interpretativa prevista no art.º 236º, n.º 1, do C.C..
II Quer a extinção do poder jurisdicional, quer o caso julgado formal, exigem que duas decisões incidam sobre a mesma questão processual e com base nos mesmos pressupostos; não se estará perante essas situações se a segunda decisão se baseia em diferente pressuposto(s) ou circunstância(s), ou diferente previsão legal que autorize a alteração da decisão.
III A liquidação superveniente do ativo prevista no art.º 241º-A, CIRE, surge como um “mecanismo excecional de liquidação ordenado à atribuição do fiduciário de competência liquidatária para os bens ou direitos com conteúdo patrimonial que o devedor adquira após o encerramento da fase de liquidação e do processo de insolvência, durante o período da cessão.”
IV Atento o objetivo da norma –o de evitar situações de enriquecimento sem causa e fraudes à lei- é de admitir a sua aplicação nos casos de apuramento posterior de bens ou direitos do devedor preexistentes, que o AI por qualquer razão, não logrou apurar enquanto estava em curso a normal fase de apreensão e liquidação.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I RELATÓRIO (consulta eletrónica dos autos e apensos).

AA foi declarado insolvente por sentença de 6/10/2020.
Foi fixado à ação o valor de € 5.000,01.
Na petição inicial o devedor pediu a exoneração do passivo restante.
Por despacho de 18/3/2021 foi deferido liminarmente esse pedido e fixado em um salário mínimo nacional que se considera ser o limite que assegura a subsistência com o mínimo de dignidade; e foi encerrado o processo de insolvência ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do art.º 230º do CIRE.
Mais foi decidido: “Do destino da Insolvência.
Na presente data admite-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante apresentado pelo devedor.
Não existem bens apreendidos ou a apreender aos insolventes.
Em face do estado dos autos, cumpre determinar o destino da insolvência.
Considerando que o pedido de exoneração do passivo restante foi concedido, não há, conforme decorre expressamente do artigo 232.º, n.º 6 do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (em paralelismo com o disposto no artigo 39.º, n.º 8), lugar ao encerramento do processo por insuficiência da massa insolvente quando o devedor beneficiar do diferimento do pagamento das custas nos termos do artigo 248.º, n.º 1 e durante a vigência do benefício, sendo que esse benefício assiste ao devedor que apresente um pedido de exoneração do passivo restante, mantendo-se até à decisão final desse pedido, que obviamente há-de ser aquela prevista no artigo 244.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.
E, assim sendo, verificando inexistência de activo, uma vez que o processo de insolvência ainda não foi declarado encerrado, determina-se o seu encerramento ao abrigo da alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas.”
*
No relatório relativo ao 2º ano de cessão o fiduciário disse: “… nos dois anos de cessão decorridos, o insolvente tinha que proceder a entregas no valor de 2.543,70 euros (valor referente à diferença no 2º ano: 11.113,70€ - 8.570,00€).
O signatário procedeu à comunicação dos valores a ceder ao insolvente, solicitando a sua entrega.”.
Em 30/6/2023 foi proferido o seguinte despacho: “Notifique o insolvente para no prazo máximo de 15 dias vir aos autos comprovar a entrega do valor em falta no âmbito do procedimento de EPR que se cifra em € 2543,70 (art. 239º, nº4, al. c) do CIRE.”.
O insolvente veio requerer: “No seguimento do processo 4647/20...., vossa referência ...09, venho por este meio solicitar o pagamento em 10 prestações mensais do valor em falta no âmbito do procedimento EPR que se cifra em € 2543,70.”
O requerido foi deferido.
Em 21/9/2023 o insolvente requereu: “Venho por este meio pedir o desbloqueio da penhora, do valor em crédito da minha conta Bancária do Banco 1... da ..., com o número ...20.
Necessito deste valor para pagar as prestações a este tribunal assim como, outras dívidas pessoais.”.
Foi determinado que o Administrador de insolvência (AI) se pronunciasse em 5 dias.
Nessa sequência veio dizer: “O signatário enviou comunicação ao insolvente solicitando que, informe a que "penhora" se refere e no âmbito de que processo foi a mesma realizada, pois se disser respeito a um processo de execução terá de se notificar esse processo para levantar a penhora (doc. 1).
Se o pedido se referir apenas ao desbloqueio da conta bancária, originado pela declaração da insolvência, o signatário solicitou ao insolvente o último extrato de conta e comprovativo do respectivo IBAN, para analisar se estão reunidas as condições de desbloqueio.”.
Foi proferido despacho a referir que nada mais havia a ordenar.
O insolvente em 15/12/2023 apresentou novo requerimento: “Venho por este meio, pela segunda vez não tendo obtido resposta, pedir o desbloqueio da penhora, do valor em crédito da minha conta Bancária do Banco 1... da ..., com o número ...20.
Fui contactado pelo Administrador Judicial, Senhor BB a 16 de outubro, dei-lhe os elementos pedidos, mas não obtive mais nenhuma informação, apesar de eu ter pedido.”.
Em 21/12/2023 foi proferido o seguinte despacho: “Ref. ...13: Notifique o Sr. A.I. para se pronunciar no prazo de 5 dias, sendo que, caso nada obste ao pedido do insolvente, deverá o mesmo providenciar pelo desbloqueio da respetiva conta bancária no referido prazo.”.
O AI disse: “O insolvente informou que “a penhora refere-se a um processo da autoridade tributária, com o número ...29 do ano de 2020.” (doc. 1), contudo, não identificou qualquer processo executivo associado à mesma.
Assim, o signatário requer a V.ª Ex.ª se digne mandar notificar a Autoridade Tributária, por forma a averiguar se foi instaurada ação executiva referente ao processo n.º ...29, para que, em caso afirmativo, se possa proceder ao seu levantamento.”.
Foi determinada a notificação nos termos e para os efeitos requeridos.
Tendo o serviço de Finanças respondido que não se trata de processo instaurado pela Autoridade Tributária, na sequência de pedido do AI, foi pedida informação à Segurança Social.
Esta entidade informou correr processo contra o insolvente, por reversão.
Esta informação foi notificada ao AI e ao insolvente a 31/1/2024 pela secção de processos.
O insolvente informou que os documentos juntos pela Segurança Social respeitam a eventuais dívidas perante a mesma –requerimento de 2/2 do qual não deu conhecimento ao AI; insistiu pelo desbloqueio da conta por requerimento de 5/2/2024 não notificado ao AI.
Quanto ao requerimento de 2/2 foi dito: “Ref. ...34: Dê conhecimento ao Fiduciário.”
Quanto àquele pedido de 5/2 foi proferido o seguinte despacho em 16/2/2024: “Ref. ...30: Deferido (em face do despacho de 21/12/2023).”.
Em 27/3/2024 o AI/fiduciário veio dizer: “Em 21-09-2023, veio o insolvente requerer: “o desbloqueio da penhora, do valor em crédito da minha conta Bancária do Banco 1... da ..., com o número ...20.”
Conforme decorre dos autos, foram realizadas várias diligências para se apurar a que dizia respeito a penhora.
Acontece que, após a disponibilização do extrato bancário (doc. 1), veio o insolvente informar que penhora foi realizada antes da declaração da insolvência (doc. 2).
Verifica-se que, a conta bancária titulada pelo insolvente encontra-se penhorada no valor de 5.896,01 euros.
O signatário somente agora teve conhecimento deste saldo bancário cativo a favor de um processo de execução, pelo que não teve até então oportunidade de proceder à sua apreensão.
Apesar do processo de insolvência se encontrar encerrado, o signatário entende que o saldo bancário penhorado deverá ser apreendido, nos termos do Artigo 241.º-A do CIRE, tanto mais que o insolvente não deu conhecimento da sua existência antes.
Face ao exposto, o signatário requer a V/ Exa. autorização para apreender o saldo bancário no valor de 5.896,01 euros, e proceder à sua liquidação nos termos do Artigo 241.º-A do CIRE.”
Em 8/4/2024 foi proferido o seguinte despacho: “Ref. ...35: Deferido (art. 241º-A, nº1 do CIRE).”.
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Do apenso A (Reclamação de créditos) consta como credor o Instituto de Segurança Social, IP (SS), referindo a responsabilidade subsidiária do devedor, e o montante em dívida de € 6.861,12 de capital e de € 2.186,16, por dívidas vencidas desde 6/2008.
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Em 12/4/2024 o AI/fiduciário juntou aos autos auto de apreensão (cfr. apenso C), constando como verba única o saldo bancário cativo igual a € 5.861,01 identificando a conta bancária aqui em causa.
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Inconformado, o insolvente, interpôs recurso apresentando as suas alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-(que se reproduzem)

A
O insolvente requereu o desbloqueio da penhora da sua conta Bancária do Banco 1... da ..., com o número ...20 que se encontrava penhorada pelo valor de €5.896,01.
B
O Tribunal ordenou o desbloqueio da referida conta bancária por Douto Despacho de 21/12/2023, constante na referência CITIUS 188304578 de 21/12/2023 e pelo Douto Despacho de 16/02/2024, constante da referência CITIUS 189138438 de 16/02/2024).
C
Assim, a matéria em causa transitou em julgado, face ao decurso do prazo que decorreu após os referidos Despachos de 21/12/2023 e de 17/02/2024 e o Douto requerimento do Senhor Administrador Judicial de 27/03/2024 ocorre assim após o trânsito em julgado da matéria sub judice.
D
Em consequência o Autor requereu que o Senhor Administrador Judicial comprovasse nos autos o desbloqueamento da referida conta bancária, conforme referência CITIUS ...30 de 05/02/2024.
E
Por outro lado, dado o encerramento do Processo de Insolvência, não ingressaram no património do insolvente nenhuns bens ou direitos suscetíveis de serem apreendidos e vendidos pelo Senhor Administrador Judicial.
F
Foram violadas as disposições do artigo 621º do CPC e artigo 241º - A, n.º 1 do Código da Insolvência.
G
Tais disposições deveriam ter sido interpretadas e aplicadas e com o sentido de que não se tendo o Administrador Judicial pronunciado no prazo de 5 dias após o Douto Despacho referência CITIUS 188304578 de 21/12/2023, transitou em julgado o Douto Despacho que ordenou o desbloqueamento da conta bancária do insolvente. E ainda com o sentido de que após encerrado o Processo de Insolvência não ingressaram no património do insolvente bens nem direitos suscetíveis de alienação.”
Pede que se revogue o despacho referência CITIUS 189917970 de 08/04/2024, e ordenando-se o desbloqueio da conta do insolvente, número ...20 do Banco 1... da ....
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Não foram apresentadas contra-alegações.
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O recurso foi admitido como apelação com subida imediata, nos autos e efeito devolutivo, o que não foi alterado por este Tribunal.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que resultem dos autos.
Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir:
-se o despacho recorrido violou o caso julgado formado por anterior(es) despacho(s);
-se assim não for, se o despacho se mostra correto.
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III MATÉRIA A CONSIDERAR.

A matéria a considerar é a que consta do relatório supra.
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IV- O MÉRITO DO RECURSO.

A primeira questão a analisar prende-se com a figura do caso julgado formal, matéria invocada em sede recursiva como fundamento da revogação do despacho recorrido.
Refere então o art.º 613º, n.º 1 que, proferida a sentença, fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
Este princípio - esgotamento do poder jurisdicional - justifica-se pela necessidade de evitar a insegurança e incerteza que adviriam da possibilidade de a decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, funcionando como um obstáculo ou travão à possibilidade de serem proferidas decisões discricionárias e arbitrárias.
Assim, uma vez prolatada uma decisão, “o tribunal não a pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais. (...) Graças a esta regra, antes mesmo do trânsito em julgado, uma decisão adquire com o seu proferimento um primeiro nível de estabilidade interna ou restrita, perante o próprio autor da decisão” (Rui Pinto “Código de Processo Civil Anotado”, Vol. II, pág. 174).
Também Alberto dos Reis (“Código de Processo Civil Anotado”, Vol. V, pág. 127) associa o princípio do esgotamento do poder jurisdicional a uma razão de ordem doutrinal e a uma razão de ordem pragmática, desde modo: “Razão doutrinal: o juiz, quando decide, cumpre um dever – o dever jurisdicional – que é a contrapartida do direito de acção e de defesa. Cumprido o dever, o magistrado fica em posição jurídica semelhante à do devedor que satisfaz a obrigação. Assim como o pagamento e as outras formas de cumprimento da obrigação exoneram o devedor, também o julgamento exonera o juiz; a obrigação que este tinha de resolver a questão proposta, extinguiu-se pela decisão. E como o poder jurisdicional só existe como instrumento destinado a habilitar o juiz a cumprir o dever que sobre ele impende, segue-se logicamente que, uma vez extinto o dever pelo respectivo cumprimento, o poder extingue-se e esgota-se.
A razão pragmática consiste na necessidade de assegurar a estabilidade da decisão jurisdicional. Que o tribunal superior possa, por via do recurso, alterar ou revogar a sentença ou despacho, é perfeitamente compreensível; que seja lícito ao próprio juiz reconsiderar e dar o dito por não dito, é de todo intolerável, sob pena de se criar a desordem, a incerteza, a confusão”.
Da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem dois efeitos: um positivo, que se traduz na vinculação do tribunal à decisão que proferiu; outro negativo, consistente na insusceptibilidade de o tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar -cfr. Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, 2.ª ed., Vol. I, pág. 762.
Da extinção do poder jurisdicional decorre que o juiz não pode, motu proprio, voltar a pronunciar-se sobre a matéria apreciada (cf. Acórdão da Relação de Coimbra, de 17/4/2012, relator Henrique Antunes, www.dgsi.pt).
Conforme se concluiu no Acórdão de 2/3/2023 desta Relação (em que a aqui relatora foi adjunta) “Prolatada a decisão, e ressalvados os casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades, por força do esgotamento do poder jurisdicional fica vedada a possibilidade de essa decisão ser alterada pelo próprio tribunal que a proferiu, apenas sendo possível obter a sua alteração através de recurso que dela venha a ser interposto.
(…)
A intangibilidade da decisão proferida é, naturalmente, limitada pelo respetivo objeto no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão.
Se o tribunal, em desrespeito do comando ínsito no art. 613º, nº 1 (e fora dos ressalvados casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades) proferir outra decisão que incida sobre a mesma matéria que já foi anteriormente apreciada, a nova decisão que padeça de tal vício é juridicamente inexistente e não vale como decisão jurisdicional por ter sido proferida em momento e circunstâncias em que o aludido poder jurisdicional já se tinha esgotado (cf. neste sentido, Acórdão do STJ, de 6.5.2010, Relator Álvaro Rodrigues, in www.dgsi.pt).”
Nesses considerandos assenta o caso julgado formal previsto no art.º 620º, n.º 1, do C.P.C.: “1 - As sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.”
Antunes Varela (“Manual de Processo Civil”, pags. 307 e 308 da 2ª edição) diz-nos que caso julgado é a alegação de que a mesma questão foi já deduzida num outro processo e nele julgada por decisão de mérito que não admite recurso ordinário. É material o que assenta sobre decisão de mérito proferida em processo anterior; nele a decisão recai sobre a relação material ou substantiva litigada; é formal quando há decisão anterior proferida sobre a relação processual. Ele pressupõe a repetição de qualquer questão sobre a relação processual dentro do mesmo processo. Ambos pressupõem o trânsito em julgado da decisão anterior.
João Castro Mendes (“Direito Processual Civil”, A.A.F.D.L, 1980, III vol., pag. 276) diz-nos que o caso julgado formal traduz a força obrigatória dentro do processo, contrariamente ao caso julgado material, cuja força obrigatória se estende para fora do processo em que a decisão foi proferida.
O caso julgado formal, tal como o caso julgado material, visa evitar a repetição de decisões judiciais sobre a mesma questão, e a contradição de decisões. Pressuposto do caso julgado formal é que uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e que não foi recorrida, seja objeto de repetida decisão (Ac. do STJ de 8/3/2018, Relator Fonseca Ramos, www.dgsi.pt).
Para o efeito o respetivo despacho ou sentença terá transitado em julgado, ou seja, terá de ser já insuscetível de recurso ordinário, ou no caso de não ser admissível de reclamação (arguição da sua nulidade ou pedido da sua reforma -art.ºs 615º n.º 4 e 616º nº 2 do CPC) –cfr. artº. 628º do C.P.C...
Formado o caso julgado, tal significa que não é mais possível que a decisão proferida seja substituída ou modificada por qualquer tribunal, incluindo aquele que a proferiu.
O artº. 625º do C.P.C. resolve os casos que podemos considerar anómalos, de haver casos julgados contraditórios, ou de haver decisões que, dentro do mesmo processo, versem sobre a mesma questão concreta da relação processual.
A doutrina e a jurisprudência pronunciam-se muitas e longas vezes sobre o alcance do caso julgado, com particular enfoque no caso julgado material nas suas duas vertentes, a positiva e a negativa. Remetemos a propósito para o que já dissemos por exemplo no Ac. (da mesma relatora) de 6/2/2020 proferido no processo nº. 26/18.8T8MDR.G1.
No entanto, quando somos colocamos perante a hipótese de caso julgado formal, temos igualmente de ponderar o seu alcance.
E diríamos então que, tal como se diz a propósito do caso julgado material, e diz Miguel Teixeira de Sousa (“Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil”, pag. 579): “…reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independentemente dos respectivos fundamentos. Não é a decisão, enquanto conclusão do silogismo judiciário, que adquire o valor de caso julgado, mas o próprio silogismo considerado no seu todo: o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge estes fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão”.
Rodrigues Bastos (“Notas ao Código de Processo Civil”, 3.°, pag. 253) diz-nos:  “A economia processual, o prestígio das instituições judiciárias, reportando à coerência das decisões que proferem, e o prosseguido fim de estabilidade e certeza das relações jurídicas, são melhor servidas por aquele critério ecléctico, que sem tomar extensiva a eficácia de caso julgado a todos os motivos objectivos da sentença reconhece todavia essa autoridade à decisão daquelas questões preliminares que foram antecedente lógico indispensável à emissão da parte dispositiva do julgado”.
Se duas decisões incidem sobre a mesma questão processual e com base nos mesmos pressupostos, coloca-se a figura do caso julgado formal, e só assim não será se a segunda se baseia em diferente pressuposto(s) ou circunstância(s), ou diferente previsão legal que autorize a alteração da decisão (Ac. citado do STJ, de 8/3/2018).
Significa isto que, dada uma decisão que aprecia determinada questão processual, não podendo o próprio Tribunal que a deu reapreciá-la, e caso não seja sujeita ao crivo de um Tribunal Superior, a decisão transita em julgado, tendo de ser respeitada/obedecida/cumprida naquele processo.
Aplicando ao caso, efetivamente a questão do desbloqueio da conta bancária do insolvente foi objeto de apreciação por despachos de 21/12/2023 e de 16/2/2024, ambos transitados.
Porém, temos de interpretar o sentido do decidido, já que, tratando-se uma decisão judicial está sujeita à regra interpretativa prevista no art.º 236º do C.C.. A esse propósito, decidiu-se no Ac. desta Relação de 14/6/2017 (processo n.º 426/11.4TBPTL-A.G1), com a devida adaptação ao despacho judicial:
“I. Sendo a sentença um acto jurídico, formal e receptício, subtraído à liberdade negocial, na sua interpretação não se procura a reconstituição de uma declaração pessoal de vontade do julgador (entendida na base da determinação de um propósito subjectivo), mas sim o correcto entendimento do resultado final e objectivo de um percurso pré-ordenado à obtenção da dita decisão.
II. A interpretação da sentença deve, então, fazer-se de acordo com sentido que um declaratário normal, colocado na posição real do declaratário - a parte ou outro tribunal - possa deduzir do seu contexto, ponderando quer o dispositivo final, quer a antecedente fundamentação, quer inclusivamente a globalidade dos actos que precederam a dita decisão, bem como quaisquer circunstâncias relevantes posteriores à sua prolação (art. 236º, nº 1 do C.C., aplicável ex vi do art. 295º do mesmo diploma).”
Assim sendo, o deferimento do desbloqueio da conta bancária a que os despachos de 21/12/2023 e de 16/2/2024 se referem tem como pressuposto que a ele nada haja a obstar, designadamente pelo AI e feitas as pertinentes averiguações pelo mesmo.
É isso que consta expressamente do despacho de 21/12/2023 (“caso nada obste ao pedido”), e é isso que se deve inferir do despacho de 16/2/2024 quando remete para o despacho de 21/12 (“em face do despacho de 21/12”). Quanto a este último, se dúvidas surgissem haveria que atentar no facto de, após a informação prestada pela S.S. a pedido do AI e tendo o insolvente emitido pronuncia, o AI ainda nada tinha dito.
Nessa medida não é relevante que o AI só tenha vindo em momento posterior informar da pretendida apreensão do saldo bancário, já que o despacho tinha ressalvado a possibilidade do AI indicar (ainda, antes de proceder ao desbloqueio) motivo que obstasse ao pretendido.
É verdade que o AI foi notificado do ofício da S.S. pela secretaria em 31/1 e nada disse em 5, nem em 10 dias.
Porém, o despacho de 16/2 foi proferido sem ouvir o AI sobre a “versão” e insistência do insolvente, pelo que, ou o AI era previamente notificado dos requerimentos de 2/2 e de 5/2, ou então, não sendo como não foi, o despacho só pode ser lido como mantendo o “caso nada obste ao pedido”, não obstante em termos literais o “em face do despacho de 21/12” pudesse sugerir a ausência de informação que obstasse.
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Por outro lado, o despacho recorrido, e em conformidade com o requerido pelo AI, pronuncia-se invocando o art.º 241º-A, nº1 do CIRE, que dita: “1 - Finda a liquidação do ativo do devedor e encerrado o processo de insolvência nos termos do disposto na alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, caso ingressem bens ou direitos suscetíveis de alienação no património daquele, o fiduciário deverá, com prontidão, proceder à sua apreensão e venda, sendo para o efeito aplicável o disposto no título vi, com as devidas adaptações.”
Ou seja, o motivo de do deferimento do requerido foi a informação prestada pelo AI após ter conhecimento do despacho proferido, informação essa que ainda não tinha sido apreciada/ponderada pelo Tribunal, e por isso que ainda não tinha sido objeto de qualquer despacho.
Significa isto, a nosso ver, que ainda que se pudesse ter interpretado de outro modo o despacho de 16/2 (no sentido de estar a permitir o desbloqueio), há, em apreciação no despacho recorrido, um concreto motivo, só agora conhecido, e que, na visão do Tribunal de 1ª instância, pode levar à apreensão do saldo bancário, pelo que nada impedia o Tribunal, e enquanto a suposta autorização de desbloqueio não estivesse cumprida, de proferir nova decisão, agora relativa à apreensão, sem violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional, e sem violação do caso julgado formal, porque é uma decisão diferente, baseada noutro e diferente pressuposto.
Note-se que o que foi deferido através do despacho recorrido foi a requerida “autorização para apreender o saldo bancário no valor de 5.896,01 euros, e proceder à sua liquidação nos termos do Artigo 241.º-A do CIRE.”; não foi a manutenção do bloqueio da conta tout court.
Resta então ponderar se tem aplicação ao caso o disposto no art.º 241º-A, n.º 1, CIRE, mencionado no despacho recorrido, o que nos remete para a questão de saber se podemos configurar estar perante um bem ou direito suscetível de alienação (bens ou direitos com conteúdo patrimonial, suscetíveis de penhora) que integre o património do insolvente após o encerramento do processo.
Basicamente estamos perante um saldo bancário, penhorado antes da declaração de insolvência à ordem de outro processo.
Este art.º 241º-A, n.º 1, do CIRE, reporta-se à liquidação adicional (finda a liquidação) de novos bens, com prévia apreensão feita ao abrigo do art.º 149º, n.º 1, a), CIRE.
Refere-se na exposição de motivos da Proposta de Lei n.º 115/XIV/3ª que se prevê que finda a liquidação do ativo, possa ainda ser possível, durante o período de cessão, o fiduciário apreender e vender bens que ingressem então no património do devedor e, posteriormente, afetar o respetivo produto da venda aos credores, nos mesmos moldes do rendimento disponível, evitando situações de enriquecimento sem causa daquele, e, acrescentamos nós, de fraude à lei.
Neste apenso e na decisão em apreço que nos cabe apreciar, o facto de não ter sido permitido ao insolvente o acesso ao saldo tem como fundamento a decisão de apreensão do saldo bancário pelo AI (cfr. art.º 55º, n.º 1, a) e 149º e segs., CIRE).
A execução (da S.S.) que corra contra o devedor não se extinguiu, apenas se impôs a sua suspensão –art.º 88º, n.º 1, CIRE. A S.S. é aqui credora.
O encerramento do processo teve por fundamento o art.º 230º, n.º 1, e), CIRE, pelo que quanto aos seus efeitos aplica-se o n.º 7 do art.º 233º, ou seja: “O encerramento do processo de insolvência nos termos da alínea e) do n.º 1 do artigo 230.º, quando existam bens ou direitos a liquidar, determina unicamente o início do período de cessão do rendimento disponível.”; cfr. ainda o art.º 239º, n.º 2. Diz-se por isso que este encerramento é uma ficção legal. Veja-se também o disposto no artº. 242º CIRE que estabelece o princípio fundamental da igualdade de credores.  
Nos autos não houve prévia apreensão de bens, verificando-se inexistência de ativo.
Caso não existam bens a liquidar o encerramento do processo ocorre em ato contínuo à prolação do despacho liminar de exoneração do passivo restante.
Assim se verificando, o AI cessa funções, ficando as que subsistem a cargo do fiduciário – no caso trata-se da mesma pessoa, sendo que o AI atua verdadeiramente naquelas vestes de fiduciário.
Assim sendo, tem pertinência relembrar princípios basilares, como seja: o processo de insolvência é tido como um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores ou pela forma prevista num plano de insolvência, ou, quando este se não se mostre possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores –art.º 1º do CIRE; a fase da liquidação prevista nos art.ºs 158º e segs. do CIRE destina-se à conversão do património que integra a massa insolvente numa quantia pecuniária a distribuir pelos credores com vista a satisfazer os seus créditos na medida do possível, o que se concretiza, fundamentalmente, através da venda dos bens que integram a massa insolvente; por sua vez a apreensão visa operacionalizar aqueles objetivos, formando a massa insolvente; veja-se ainda o art.º 152º, n.º 3, CIRE.
É neste desenrolar do processo que se integra o despacho em crise, pelo que nada impede, a nosso ver, a apreensão da quantia cativa nesta fase do mesmo, e tendo em vista tais finalidades.
Como refere Fernando Taínhas (Revista Julgar n.º 48, “Liquidação (Velhos e Novos Problemas)”, págs. 69 e 70) a liquidação superveniente do ativo surge como um “mecanismo excecional de liquidação ordenado à atribuição do fiduciário de competência liquidatária para os bens ou direitos com conteúdo patrimonial que o devedor adquira após o encerramento da fase de liquidação e do processo de insolvência, durante o período da cessão.”
E refere ainda: é pressuposto da sua aplicação que a aquisição patrimonial seja, de jure et de facto, sobreveniente ao desfecho da liquidação e do processo. Porém, dado o objetivo da norma e considerando, por isso, o seu desiderato teleológico, parece ser de admitir o recurso à liquidação superveniente do ativo nos casos de apuramento posterior de bens ou direitos do devedor preexistentes, que o AI por qualquer razão, não logrou apurar enquanto estava em curso a normal fase de apreensão e liquidação, apelando para o efeito à ratio legis do preceito e mediante interpretação extensiva do mesmo.
É precisamente esta a situação neste caso, pelo que seguimos aqui essa posição que nos parece a mais sensata e coerente.
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Em suma, o despacho recorrido mostra-se acertado quanto ao deferimento do requerido, com fundamento na decisão de apreensão da quantia cativa na conta ao abrigo do art.º 149º, n.º 1, a), e no disposto no art.º 241º-A. n.º 1, ambos do CIRE.
Deve, por isso, improceder a apelação.
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As custas são a cargo do recorrente, porque vencido (cfr. art.º 527º, n.ºs. 1 e 2, C.P.C.), sem prejuízo do benefício de apoio judiciário.
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso totalmente improcedente e, em consequência, negam provimento à apelação, mantendo a decisão recorrida.
Custas a cargo do recorrente, sem prejuízo do benefício de apoio judiciário (art.º 527º, n.ºs 1 e 2, do C.P.C.).
Guimarães, 27 de junho de 2024.
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Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Maria Gorete Roxo Pinto Baldaia de Morais
2º Adjunto: Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício
(assinaturas eletrónicas)