Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | ARMANDO AZEVEDO | ||
Descritores: | CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA REVOGAÇÃO DA SUSPENSÃO DA PENA DE PRISÃO INCUMPRIMENTO DAS CONDIÇÕES DA SUSPENSÃO | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 06/05/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
Sumário: | I- O cumprimento das condições da suspensão da suspensão da pena de prisão não constitui um fim em si mesmo, com ele se visando alcançar algo que está mais além, o que nos conduz às razões que determinaram a imposição de condições da suspensa da pena, à edificação das bases que favoreçam a reinserção social do arguido e previnam a reincidência, por forma a que o juízo de prognose efetuado no momento da condenação não saia gorado; II- Nessa medida, não é de revogar a suspensão da pena de prisão aplicada pela prática do crime de violência doméstica se, pese embora o arguido não ter cumprido rigorosamente todas as determinações que lhe foram dadas no âmbito das condições que lhe foram impostas como condição da suspensão, compareceu à maior parte das consultas que lhe foram designadas, entregou quase todos os exames que lhe foram solicitados, compareceu às entrevistas com a Exma. Técnica de Reinserção Social da D.G.R.S.; sempre que convocado pelo tribunal, compareceu para prestar os esclarecimentos tidos por necessários; e, para além disso, ao longo do último ano, não se registaram situações similares às que estiveram na origem do presente processo, mantendo o arguido e a ofendida, sua esposa, uma vivência conjunta, com os três filhos do casal, sendo que o arguido mantém a sua situação laboral, trabalhando por conta própria na construção civil, constituindo o suporte financeiro do agregado familiar. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães: I- RELATÓRIO 1. No processo comum, com intervenção de tribunal singular nº 133/19...., do Tribunal Judicial a Comarca de ..., Juízo Local Criminal de ..., em que é arguido AA, com os demais sinais nos autos, por sentença proferida a 14.07.2023, transitada em julgado, o arguido foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea b) do Código Penal, e de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, alínea b) do Código Penal, na pena única de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, sujeita às seguintes injunções: − Obrigação de frequência de programa de formação de prevenção para agressores de violência doméstica; − Obrigação de se sujeitar a consulta médica e, caso se mostre necessário, realização de tratamento psicológico/psiquiátrico, a eventual dependência alcoólica de que o arguido padeça. 2. Por despacho datado de 16.01.2024, foi decidido indeferir o pedido formulado pelo Ministério Público de revogação da suspensão da pena de prisão em que o arguido havia sido condenado, mais se tendo determinado que, no prazo de 3 meses, fosse elaborado relatório por parte da DGRSP que informe os autos: se o arguido mantém a frequência do programa de formação de prevenção para agressores de violência doméstica; se o arguido mantém o tratamento psiquiátrico; se ao arguido foi diagnosticada dependência alcoólica e, em caso afirmativo, se se encontra a realizar tratamento. 3. Não se conformando com deste despacho, dele interpôs recurso o Ministério Público, extraindo da respetiva motivação, as seguintes conclusões (transcrição)[1]: I. Nos presentes autos, por sentença proferida a 14.07.2023 e transitada em julgado, o Arguido/Recorrido AA foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea a), e n.º 2, alínea b) do Código Penal, e de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea d), e n.º 2, alínea b) do Código Penal, na pena única de 3 (três) anos de prisão, suspensa na sua execução, por igual período, sujeita às seguintes injunções: − Obrigação de frequência de programa de formação de prevenção para agressores de violência doméstica; − Obrigação de se sujeitar a consulta médica e, caso se mostre necessário, realização de tratamento psicológico/psiquiátrico e a eventual dependência alcoólica de que o arguido padeça. II. O Tribunal a quo, no despacho ora objeto de impugnação, judiciou pelo indeferimento da revogação da suspensão da pena de 3 anos de prisão aplicada ao Arguido/Recorrido AA e determinou que os autos aguardem o termo da suspensão da pena de prisão, posição esta com o qual não se concorda. III. Na sentença proferida, o Tribunal a quo formulou um juízo de prognose favorável, dando ao Arguido/Recorrido AA uma oportunidade de ultrapassar os ilícitos criminais que praticou, evitando a sua ingressão no sistema prisional e privilegiando a sua ressocialização na comunidade. IV. Por o Arguido/Recorrido AA não cumprir, de forma voluntária e culposa, as supra referenciadas injunções, por despacho proferido a 02.11.2022, foi este solenemente advertido para fazer um esforço sério em cumprir as condições da suspensão. V. Acontece que, no dia 10.08.2023, a DGRP informou os presentes autos que o Arguido/Recorrido AA “mantém uma consciência limitada da problemática criminal, não identificando o bem jurídico nem o reconhecendo o dano/vítima implícita na conduta tipificada, compareceu às consultas agendadas no CRI ..., mas não revela adesão ao tratamento.”, bem como que “tem cumprido com as consultas de psiquiatria no Hospital ..., no entanto faltou à última, alegando esquecimento. Comparece às entrevistas junto desta DGRSP, no entanto revela dificuldade na análise/censura dos comportamentos criminais objeto da condenação”. VI. Exercendo-se o contraditório, em sede de audição de condenado, no dia 12.10.2023, o Arguido/Recorrido AA justificou a sua conduta nos seguintes moldes: − Não compareceu a todas as consultas agendadas, quer em especialidade de psiquiatria, quer em especialidade de psicologia, por esquecimento; − No que concerne à não entrega dos exames clínicos solicitados pela equipa médica que o acompanha, apenas não entregou as análises sanguíneas, porquanto não lhe tinha sido passada a competente prescrição médica para as fazer, bastando que tal acontecesse para ele realizar as aludidas análises. VII. No dia 19.10.2023, o Centro de Respostas Integradas ... esclareceu que, no dia 16.02.2023, foi entregue ao Arguido/Recorrido AA um “estudo CAD geral (Análises Clínicas, Ecografia Abdominal, Raio X Torácico e ECG)”, tendo este apenas levado à consulta, no dia 16.06.2023 e após muita insistência, o ECG, a Radiografia Torácica e a Ecografia Abdominal, e não levado outros exames importantes pedidos pelo médico de serviço. VIII. No dia 06.12.2023, veio ainda a DGRSP esclarecer o seguinte: − O Arguido/Recorrido AA “não compareceu à última consulta de psicologia com o CAVVD designada para o passado dia 21/9/2023, sendo que a psicóloga, após essa data, efetuou diversas tentativas de contacto telefónico com o arguido que se mostraram infrutíferas, pelo que desde então não se realizaram mais consultas”; − Contactado o Arguido/Recorrido AA, este referiu que danificou o telemóvel e, por isso, perdeu o contacto da psicóloga; − O Arguido/Recorrido AA “apenas contactou telefonicamente esta equipa da DGRSP no dia 15/11/2023, data em que o técnico gestor de processo se encontrava de baixa médica prolongada, tendo o mesmo apenas regressado ao ativo no dia 29/11/2023”; − No dia 05.12.2023, foi fornecido novamente o contacto da psicóloga ao Arguido/Recorrido AA, de modo a que esteja reagendasse aconsulta que faltou; − Quanto ao tratamento da sua dependência alcoólica, o Arguido/Recorrido AA compareceu no CRI ... nas consultas agendas para os dias 16.02.2023, 02.03.2023, 16.06.2023 e 17.11.2023, faltando às consultas agendadas para os dias 24.03.2023 e 13.07.2023. IX. Ademais, após solicitação de esclarecimentos adicionais, no dia 09.01.2024, veio a DGRSP informar que o Arguido/Recorrido AA: − “não compareceu à última consulta de psicologia com o CAVVD - Centro de Atendimento a Vítimas de Violência Doméstica do Centro Social e Cultural de ..., consulta especializada para agressores de violência doméstica, designada para o passado dia 21/9/2023, sendo que, segundo a psicóloga responsável, após essa data, efetuou diversas tentativas de contacto telefónico com o condenado às quais este não atendeu nem devolveu as chamadas.”; − “Quando confrontado com a informação supra exposta, afirmou que danificou o seu telemóvel, tendo perdido vários contactos que nele constavam, nomeadamente o da psicóloga em causa. Deste modo, em sede de entrevista realizado com AA no Tribunal Judicial de ... a 5/12/2023, foi pelo Técnico Superior cedido o contacto telefónico da referida psicóloga, tendo o mesmo se comprometido a entrar em contacto com esta a fim de reagendar nova consulta o que não veio a ocorrer. Deste modo, o condenado não revela motivação para reagendamento de consulta com a psicóloga, embora tenha sido diversas vezes informado/motivado para a concretização desse dever.”; − “Relativamente ao tratamento à dependência alcoólica, segundo informação do Centro de Resposta Integrada, onde o arguido se encontra em acompanhamento, AA esteve presente em consulta nos dias: 16/02/2023, 02/03/2023, 16/06/2023 e 17/11/2023. Não compareceu nas seguintes consultas: - 24/03/2023 e 13/07/2023.” E compareceu à consulta agendada para o dia 21.12.2023, porém releva “pouca adesão ao processo de acompanhamento”; − No que concerne à consulta de psiquiatria, o condenado AA faltou à última consulta agendada para o dia 09.08.2023, encontrando-se novaconsulta agendada para o dia 24.04.2024, pelas 11h. X. Aqui chegados, verificamos que, mesmo após a solene advertência, o Arguido/Recorrido AA mantém a postura de não cumprir com as injunções a que estava obrigado, não comparecendo a todas as consultas de psiquiatria e psicologia agendadas, quer alegando um suposto esquecimento sem justificação, quer não atendendo as chamadas dos médicos, ou sequer as devolvendo. XI. Ora, é por demais evidente que o Arguido/Recorrido AA, de forma voluntária, impede o seu acompanhamento médico, porquanto, até ao dia de hoje, não realizou todos os exames clínicos que os médicos que o acompanham solicitam no dia 16.02.2023, alegando que não lhe foi prescrita qualquer receita médica, o que não se mostra ser verídico, quando confrontando com o ofício do Centro de Respostas Integradas ...; XII. Para além de não frequentar, por vontade própria, programa especializado para agressores de violência doméstica, tal qual se mostra obrigado por decisão condenatória proferida pelo Tribunal a quo. XIII. Destarte, contemplando a postura expressamente assumida pelo Arguido/Recorrido AA, desde que transitou a sentença proferida nestes autos, e mesmo após a solene advertência por parte do Tribunal a quo, apenas podemos concluir que este não cumpriu, nem pretende cumprir, por vontade e intensão própria, as injunções a que está a suspensão da pena de prisão adstrita, apenas cumprindo o que bem entender e quando assim o deseja. XIV. Ademais, nestes autos, o comportamento adotado pelo Arguido/Recorrido AA, para justificar os incumprimentos, foi culpabilizar os médicos e técnicos que o acompanham, apesar de saber que tais incumprimentos apenas a si se devem e que, ao não cumprir as injunções, desrespeita total e frontalmente a sentença proferida pelo Tribunal a quo. XV. Desta forma, somos do entendimento que, inequivocamente, o juízo de prognose favorável feito nestes autos foi posto irremediavelmente em crise pela postura do Arguido/Recorrido AA, tendo desaparecido o fundamento para que se mantenha a suspensão daquela pena de prisão, porquanto este infringiu de forma culposa, grosseira e repetidamente as condições que lhe haviam sido impostas para a suspensão da pena de prisão que foi aplicada nos presentes autos. XVI. Por fim, mostra-se desprovida de razão a argumentação de que o período de suspensão ainda não se mostra findo, podendo o Arguido/Recorrido AA ainda cumprir as injunções, porquanto, se durante decorridos mais de 2 (dois) anos sobre o trânsito em julgado da sentença, este pouco ou nada fez para cumprir as injunções a que está obrigado, não será no restante do período que o irá fazer, principalmente quando o Tribunal a quo, até então, não o responsabilizou pela postura que este adotou. XVII. A decisão do Tribunal a quo ora em crise viola o consagrado pelo artigo 56.º, n.ºs 1, alínea a), e 2, do Código Penal, e pelo artigo 495.º, n.º 2, do Código de Processo Penal. Motivo pelo qual deve o presente recurso merecer total provimento, devendo: − Revogar-se o despacho objeto de impugnação, substituindo-o por outro que, considerando a violação culposa, grosseira e reiterada, pelo Arguido/Recorrido AA, das injunções que lhe foram impostas, revogue a suspensão da execução da pena de 3 anos de prisão que havia sido aplicada nos presentes autos ao arguido e ordene o cumprimento da pena de 3 anos de prisão em que foi condenado. Assim farão V. Ex.as, a elementar e sã JUSTIÇA! 4. O arguido, apesar de notificado, não respondeu ao recurso. 5. Nesta instância, a Exma. Senhora Procuradora-Geral Adjunta, discordando, pelas razões que indica, da posição sustentada no recurso, emitiu parecer no sentido da manutenção do despacho recorrido. 6. Foi cumprido o disposto no artigo 417º nº2 do CPP e não foi apresentada qualquer resposta. 7. Após ter sido efetuado exame preliminar, foram colhidos os vistos legais e realizou-se a conferência. Cumpre apreciar e decidir. II- FUNDAMENTAÇÃO 1- Objeto do recurso O âmbito do recurso, conforme jurisprudência corrente, é delimitado pelas suas conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, sem prejuízo naturalmente das questões de conhecimento oficioso[2] do tribunal, cfr. artigos 402º, 403º e 412º, nº 1, todos do CPP. Assim, considerando as razões da discordância do recorrente sintetizadas nas conclusões do recurso interposto, a questão a decidir consiste em saber se deverá ser revogado o despacho recorrido e, consequentemente, revogada a suspensão da pena da pena de prisão em que o arguido foi condenado. 2. O despacho recorrido 2.1- O despacho recorrido tem o seguinte teor Tal como se referiu no despacho de 17 de Novembro de 2023, a sentença proferida nos autos não sujeitou a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido a regime de prova, mas tão só ao cumprimento das seguintes injunções: - obrigação de frequência de programa de formação de prevenção para agressores de violência doméstica (que consiste, pelo que nos é dado a perceber, em consultas de psicologia no CAVVD); - obrigação de se sujeitar a consulta médica e, caso se mostre necessário, realização de tratamento psicológico/psiquiátrico e a eventual dependência alcoólica de que o arguido padeça. Compulsados os autos resulta que, após a solene advertência em auto de audição datado de 02/11/2022, e ainda que não de forma assídua, o arguido compareceu a consultas de psiquiatria, estará a cumprir com o esquema terapêutico e compareceu a consultas de psicologia no CAVVD (não resultando dos autos que a frequência de programa de formação de prevenção para agressores de violência doméstica esteja irremediavelmente comprometida). Por outro lado, não há ainda nos autos comprovativo de diagnóstico de dependência alcoólica a demandar tratamento. É certo que o arguido não realizou todos os exames clínicos que lhe foram prescritos pelo médico do CRI, mas daqui não resulta, necessariamente, que não o fará, sendo certo que o arguido efectuou testes ao álcool com resultado negativo, em 16.02.2023 e 02.03.2023. Assim, tendo em atenção que o termo da suspensão da execução da pena de prisão ocorrerá apenas em 08/11/2024, dispõe o arguido ainda de 10 meses para demonstrar nos autos o cumprimento da totalidade das injunções que lhe foram impostas, discordando-se que a conduta inconstante por parte do arguido até ao momento seja bastante para se concluir que o mesmo infringiu grosseira ou repetidamente as injunções que lhe foram impostas a ponto de justificar a revogação da suspensão da execução dapena de prisão (cfr. artigo 56.º, n.º 1, al. a) do Código Penal) antes do termo respectivo. Pelo exposto, indefere-se a promovida revogação e determina-se que os autos aguardem o termo da suspensão da execução da pena de prisão. Mais se determina que, no prazo de 3 meses, seja elaborado relatório por parte da DGRSP que informe os autos: se o arguido mantém a frequência do programa de formação de prevenção para agressores de violência doméstica; se o arguido mantém o tratamento psiquiátrico; se ao arguido foi diagnosticada dependência alcoólica e, em caso afirmativo, se se encontra a realizar tratamento. Notifique. 3- Apreciação do recurso A questão a decidir consiste em saber se deve ser mantida a suspensão da execução da pena de prisão em que o arguido foi condenado, ou se, ao invés, como defende a Exma. Senhora Procuradora da República, deve antes ser revogada. Preceitua o artigo 56°, nº 1 al. a) do Código Penal que "A suspensão da execução da pena de prisão é revogada sempre que, no seu decurso, o condenado: Infringir grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de readaptação social. Como bem refere Paulo Pinto de Albuquerque[3], “A infração grosseira dos deveres, das regras de conduta ou do plano de reinserção social não tem que ser dolosa, sendo bastante a infração que resulta de uma atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade”. “O juízo sobre a revogação da suspensão da pena há-de decorrer de uma manifesta violação dos deveres impostos ao condenado que mostre inequivocamente uma frustração da finalidade prosseguida pela suspensão da execução da pena”, cfr. Ac RP de 05.05.2010, processo 259/06.0GBMTS.P1, acessível em www.dgsi.pt. Em sentido semelhante, vide também v.g. o Ac. RC de 10.05.2023, processo 103/21.8PBLMG-A.C1, acessível em www.dgsi.pt, no qua se sustenta que “ Violação grosseira será assim aquela que toda e qualquer violação que possa evidenciar-se como qualificada, qualitativamente denotativa da dimensão do incumprimento do dever ou obrigação impostos, no sentido de se considerar que tal violação se assume como grave na própria amplitude e determinação com que, na sua essência, deixou de ser cumprida a obrigação imposta, e não, portanto, quando se traduz num mero incumprimento parcial de uma tal obrigação ou, tratando-se de uma obrigação de execução continuada, que tal incumprimento se verificou apenas em algumas vezes contadas, em comparação com outras em que a mesma foi sendo cumprida.” Nessa medida, “Trata-se de situações limite, pois que o legislador fala em infração grosseira ou repetida, a denunciar nitidamente que o condenado teve aí uma atuação significativamente culposa que pôs por terra a esperança que se depositou na sua recuperação, cfr. Simas Santos e Leal – Henriques, Noções Elementares de Direito Penal, 2º ed. 2003, pág. 208 e ss.. “A revogação da suspensão da execução da pena de prisão só deve ter lugar quando seja a única e última forma de conseguir alcançar as finalidades da pena sendo, portanto, cláusula de ultima ratio”, cfr. Ac. RC 30.01.2019, processo 127/17.0GAMGR-A.C1, disponível em www.dgsi.pt. Como assinala F. Dias[4], “A culpa no incumprimento (….) sendo (…) pressuposto da consequência jurídica, em nada deve influenciar a escolha da medida que o tribunal vai tomar: mesmo esta deve ser função exclusiva das probabilidades, porventura ainda subsistentes, de manter o delinquente afastado da criminalidade no futuro e, deste modo, do significado que o incumprimento assuma para o juízo de prognose feito no momento da aplicação da suspensão da execução da prisão”. Na verdade, em caso de incumprimento culposo das condições da suspensão da pena de prisão, a lei não prevê como consequência apenas a revogação da suspensão, a qual consiste, obviamente, a mais gravosa, e necessariamente, a verificar-se, tem o significado que que se frustraram completamente as razões da suspensão. Para além dela, existe o regime do artigo 55º do CP, coma epígrafe “Falta de cumprimento das condições da suspensão o qual estabelece que: “ Se, durante o período da suspensão, o condenado, culposamente, deixar de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta impostos, ou não corresponder ao plano de reinserção, pode o tribunal: a) Fazer uma solene advertência; b) Exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão; c) Impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de reinserção; d) Prorrogar o período de suspensão até metade do prazo inicialmente fixado, mas não por menos de um ano nem por forma a exceder o prazo máximo de suspensão previsto no n.º 5 do artigo 50.º”. Como se refere no sumário do Ac. RL de 25.05.2017, processo 317/14.7PBPDL-A.L1-9, acessível em www.dgsi.pt, “I- Da conjugação dos artigos 55.º e 56.º do Código Penal resulta claro, que o simples incumprimento, ainda que com culpa, dos deveres impostos como condição da suspensão, pode não justificar a revogação, sendo que a suspensão da pena radica e tem como finalidade principal, o afastamento do arguido, no futuro, da prática de novos crimes ; II-A revogação da suspensão só se impõe, nos termos da al. a) do nº 1 do art. 56º do Código Penal quando o condenado infrinja grosseira ou repetidamente os deveres ou regras de conduta impostos, ou o plano individual de reinserção e cumulativamente revelar que as finalidades que estavam na base da suspensão não puderam, por meio dela, ser alcançadas, assim a infracção grosseira será só a que resulta de uma atitude particularmente censurável de descuido ou leviandade, aqui se incluindo a colocação intencional do condenado em situação de incapacidade de cumprir os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano individual de reinserção; III- Verificando-se uma situação de incumprimento das condições da suspensão da pena, haverá que distinguir duas situações, em função das respectivas consequências: uma primeira, quando no decurso do período de suspensão, o condenado, com culpa, deixa de cumprir qualquer dos deveres ou regras de conduta, ou não corresponde ao plano de readaptação (que com a revisão de 2007 passou a ser designado de “plano de reinserção”), pode o tribunal optar pela aplicação de uma das medidas previstas no artigo 55.º do C. P., a saber: fazer uma solene advertência; exigir garantias de cumprimento das obrigações que condicionam a suspensão; impor novos deveres ou regras de conduta, ou introduzir exigências acrescidas no plano de readaptação; prorrogar o período de suspensão; e outra segunda, quando no decurso da suspensão, o condenado, de forma grosseira ou repetida, viola os deveres ou regras de conduta impostos ou o plano de readaptação, ou comete crime pelo qual venha a ser condenado e assim revele que as finalidades que estiveram na base da suspensão não puderam, por intermédio desta, ser alcançadas, a suspensão é revogada (artigo 56.º, n.º 1, do C. Penal); Assim, definido o quadro legal com base no qual é possível revogar a suspensão da execução da pena de prisão, vejamos a factualidade do caso concreto dos presentes autos. 1. Em 2 de novembro de 2022, o arguido foi ouvido, tendo sido advertido nos termos do art.º 55.º n.º 1 al. a) do Código Penal, para o devido cumprimento das condições da suspensão da pena. Na sequência dessa advertência, em 21 de dezembro de 2022, foi prestada informação pelo Departamento de Psiquiatria da ..., que o arguido: “Tem comparecido às consultas agendadas, sendo que a ultima foi a 14-12-2022 e a próxima esta agendada para 26-06-2023. Nos registos clínicos o mesmo estará a cumprir com o esquema terapêutico instituído.” 2. Posteriormente, em 10 de agosto de 2023, a D.G.R.S.P. prestou a seguinte informação: - Ao longo do último ano de acompanhamento o condenado compareceu às entrevistas agendadas pela TRS e colaborou na informação solicitada, no entanto mantém dificuldade na análise/censura dos comportamentos criminais objeto da condenação; - Foi encaminhado por estes serviços para consulta no Hospital ... – consulta externa de psiquiatria, que segundo informação desta entidade:”… o utente tem comparecido as consultas agendadas, sendo que a próxima é a 9 de agosto/2023 ás 14:40..” Segundo o condenado, não compareceu a esta consulta por alegado esquecimento. - No que diz respeito às consultas no CRI ... compareceu na 1ª consulta na ET De ... em 16/02/2023. Em 02/03/2023 compareceu na consulta de psicologia, mas não trouxe exames requeridos para avaliação médica. Em 24/03/2023 faltou a consulta de psicologia, tendo sido remarcada para 31/03/2023, bem como consulta médica, que não se realizaram por atraso do utente e inexistência de vagas para o mesmo dia. O Utente refere ter sido avisado (não por este serviço) que a consulta estaria agendada para as 11H00 e não para as 10H00. - Em 16/06/2023 compareceu a consulta de psicologia, mas não teve avaliação médica por não ter trazido, novamente, os exames solicitados na sua 1º consulta. A 13/07/2023 faltou novamente, não tendo remarcado. Não revela adesão ao processo de acompanhamento.” - Relativamente às consultas de psicologia com o CAVVD, segundo esta entidade o condenado tem comparecido às consultas agendadas. - Foram realizados também, em contexto de consultas agendadas, dois testes de álcool com resultado negativo, em 16.02.2023 e 02.03.2023 - Segundo a ofendida, ao longo do último ano não se registaram situações similares às que levaram à abertura do presente processo, mantendo ambos uma vivência conjunta, juntamente com os três filhos do casal .e o arguido mantém a sua situação laboral, trabalhando por conta própria na construção civil, apontando como rendimento mensal um valor aproximado aos 700€. 3. Em 12 de outubro de 2023, foram tomadas novas declarações ao arguido, o qual justificou a falta às consultas agendadas, alegando esquecimento, acrescentando que apenas não entregou as análises sanguíneas, porquanto não lhe tinha sido passada a competente prescrição médica para as fazer, bastando que tal acontecesse para ele realizar as aludidas análises. Ora, em face da factualidade descrita, não podemos deixar de concordar com a Exma. Procuradora Geral – Adjunta, quando, no seu parecer, concluiu, dizendo que: “… embora não cumprindo, de forma rigorosa, a apresentação às consultas, certo é que, após a advertência referida, o arguido compareceu, não a todas, mas à sua maior parte, efectuando, do mesmo modo, quase todos os exames que lhe foram solicitados e apresentando uma justificação para não ter apresentado as análises sanguíneas, tendo, por outro lado, o Centro de Atendimento a Vítimas de Violência Doméstica do Centro Social e Cultural de ... informado que o mesmo tem comparecido às consultas agendadas. Ou seja, o arguido não revelou, no período já decorrido, uma total indiferença face à pena de suspensão que lhe foi aplicada, não integrando a sua conduta, em nossa opinião, uma violação “ grosseira e/ou repetida “ das injunções que lhe foram impostas ao ponto de justificar a revogação da suspensão da execução da pena de prisão antes do termo respectivo. Embora, neste momento, o prognóstico, quanto ao seu comportamento, seja de alguma forma, reservado, por não ter seguido, criteriosamente, o agendamento das consultas, ainda assim deverá merecer a oportunidade de, até ao final do período de suspensão, demonstrar que interiorizou as finalidades inerentes à suspensão decretada, responsabilizando-se por melhor cumprir o determinado, designadamente, comparecendo às consultas ainda em falta. E pese embora se refira que mantém dificuldade na análise/censura dos comportamentos criminais objeto da condenação, em nossa opinião, importa não olvidar, nem desvalorizar, o facto de, igualmente, não haver registo de condutas similares às que justificaram o inicio dos autos, mostrando-se o arguido inserido familiar e socialmente, a trabalhar com regularidade, auferindo, mensalmente, cerca de 700,00€, o que cria a expectativa de que logrará alcançar aquele objectivo.” Na verdade, o arguido não tem cumprido rigorosamente todas as determinações que lhe foram dadas no âmbito das condições que lhe foram impostas como condição da suspensão da pena de prisão, porquanto não compareceu a todas as consultas de psicologia e de psiquiatria que lhe foram marcadas, nem se fez acompanhar dos exames que lhe foram solicitados, e as justificações apresentadas evidenciam, pelo menos, descuido e falta de atenção da sua parte. Apesar disso, compareceu à maior parte das consultas que lhe foram designadas, entregou quase todos os exames que lhe foram solicitados, compareceu às entrevistas com a Exma. Técnica de Reinserção Social da D.G.R.S. e, sempre que convocado pelo tribunal, compareceu para prestar os esclarecimentos tidos por necessários. Importa notar que as condições da suspensão são exigentes na medida em que demandam do arguido um comportamento constante prolongado no tempo de permanente atenção e cuidado. Nesta medida, podemos afirmar que se é verdade que o arguido, até ao momento, não tem vindo a cumprir rigorosamente com as condições da suspensão da pena, esforçou-se por as cumprir e cumpriu na sua maior parte. E, por isso, não podemos afirmar que ocorra uma violação “ grosseira e/ou repetida das condições da suspensão da pena e que o arguido se tenha alheado por completo da suspensão da pena e das suas finalidades, estando irremediavelmente comprometida a reinserção social do arguido em liberdade. Conforme refere Paulo Pinto de Albuquerque[5] “o critério material para decidir sobre a revogação da suspensão é exclusivamente preventivo, isto é, o tribunal deve ponderar se as finalidades preventivas que sustentaram a decisão de suspensão ainda podem ser alcançadas com a manutenção da mesma ou estão irremediavelmente prejudicadas em virtude da conduta posterior do condenado”. Acresce que, não podemos olvidar que o cumprimento das condições da suspensão da suspensão da pena não constitui um fim em si mesmo, na medida em que com ele se visa alcançar algo que está mais além, o que nos conduz às razões que determinaram a imposição de condições da suspensa da pena, à edificação das bases que favoreçam a reinserção social do arguido e previnam a reincidência, por forma a que o juízo de prognose efetuado no momento da condenação não saia gorado. Nessa medida, e para além do já referido relativamente às consultas de psicologia e psiquiatria, e relativamente às quais deverá oportunamente ser considerado qual o seu efeito no comportamento do arguido, designadamente no âmbito da dinâmica familiar, regista-se os dois testes de álcool realizados pelo arguido deram resultado negativo Relativamente ao contexto familiar do arguido, ao longo do último ano não se registaram situações similares às que estiveram na origem do presente processo, mantendo o arguido e a ofendida, sua esposa, uma vivência conjunta, com os três filhos do casal, sendo que o arguido mantém a sua situação laboral, trabalhando por conta própria na construção civil, constituindo o suporte financeiro do agregado familiar. Como se sumariou no Ac. RE de 08.03.2018, processo 2207/13.1GBABF-A.E1, acessível em www.dgsi.pt «I. O incumprimento culposo dos deveres e regras de conduta impostos na sentença como condição de suspensão da prisão, consente as consequências previstas nas alíneas do art. 55º do Código Penal, medidas que o despacho judicial que conhece do incumprimento tem sempre de equacionar expressamente. II. Estando em causa, não o cometimento de um novo crime no decurso do período da suspensão da prisão, mas a violação de dever, de regra de conduta ou a não correspondência a plano de reinserção, comportamentos que integram a previsão do art. 55º do Código Penal, deve o tribunal pronunciar-se expressamente sobre a eficácia das medidas previstas nesta norma para se alcançarem ainda as finalidades da punição. III. E mesmo em caso de infracção grosseira e repetida aos deveres e às regras de conduta (podendo já configurar-se a previsão do art. 56º, nº 1, al. a), do CP), há que ponderar sempre, e previamente, a viabilidade da manutenção da ressocialização em liberdade. IV. Os princípios da proporcionalidade e da necessidade de pena norteiam a ponderação até à extinção da sanção, e a prorrogação do período de suspensão da prisão (art. 55º al. d) do CP) será a resposta mais adequada se, no quadro de um incumprimento culposo e grosseiro, as circunstâncias do caso ainda permitirem conservar a confiança na eficácia da pena não detentiva». Em suma, no caso vertente, neste momento, e pese embora algumas dificuldades do arguido em cumprir, seria precipitado proceder à revogação da suspensão da pena de prisão. O termo da suspensão da execução da pena de prisão ocorrerá apenas em 08 de novembro de 2024, pelo que o arguido ainda poderá demonstrar nos autos o cumprimento da totalidade das injunções que lhe foram impostas e que não se gorou o juízo de prognose favorável subjacente à suspensão decretada. Assim sendo, o despacho recorrido deverá manter-se, improcedendo assim o recurso. III – DISPOSITIVO Nos termos e pelos fundamentos expostos, acordam os juízes que constituem a Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em julgar improcedente o recurso, assim confirmando o despacho recorrido. Sem custas. Notifique. Guimarães, 05 de junho de 2024 Armando Azevedo - Relator Fernando Chaves - 1º Adjunto Carlos da Cunha Coutinho - 2º Adjunto [1] Nas transcrições das peças processuais irá reproduzir-se a ortografia segundo o texto original, sem prejuízo da correção de erros ou lapsos manifestos, bem assim da formatação do texto, da responsabilidade do relator. [2] De entre as questões de conhecimento oficioso do tribunal estão os vícios da sentença do nº 2 do artigo 410º do C.P.P., cfr. Ac. do STJ nº 7/95, de 19.10, in DR, I-A, de 28.12.1995, as nulidades da sentença do artigo 379º, nº 1 e nº 2 do CPP, irregularidades no caso no nº 2 do artigo 123º do CPP e as nulidades insanáveis do artigo 119º do C.P.P.. [3] In Comentário do Código Penal, Universidade católica Editora, 3ª edição atualizada, pág. 316. [4] In “As Consequências Jurídicas do Crime, pág. 355-356. [5] Obra citada, pág. 317. |