Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
661/20.4T8VCT-B.G1
Relator: JOSÉ FLORES
Descritores: ACÇÃO DE DIVISÃO DE COISA COMUM
CASO JULGADO
DECISÃO JUDICIAL
INTERPRETAÇÃO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/12/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- Sendo a sentença um acto jurídico, formal e receptício, subtraído à liberdade negocial, a sua interpretação é determinante para se perceber o seu verdadeiro sentido.
- Inexiste violação de caso julgado material ou formal em processo de divisão de coisa comum em que a sentença proferida na sua primeira fase declara a indivisibilidade do imóvel em causa e fixa as quotas de compropriedade que cada um dos seus donos possui e, na fase executiva do processo, se determina a venda desse mesmo imóvel na sua íntegra.
- De igual modo, não existe violação de caso julgado, nomeadamente o de cariz formal, entre um acórdão que, apreciando aquela sentença, julgou inexistir nulidade por falta de pronúncia e o referido despacho que determinou a venda do mencionado imóvel.
Decisão Texto Integral:
Relator – Des. José Manuel Flores
1ª - Adj. Des. Fernanda Proença Fernandes
2ª - Adj. Des. Maria Amália Santos

ACORDAM OS JUÍZES NA 3ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES:

I – Relatório

- Recorrente(s): AA;

- Recorrido/a(s):
- Banco 1..., S.A. – Sociedade Aberta;
- BB e CC
*
BB e esposa CC, intentaram acção especial de divisão de coisa comum contra DD e AA, pedindo que, fixadas as referidas quotas dos requerentes e dos requeridos, se proceda à adjudicação ou venda do prédio identificado nos artigos 1.º, 2.º e 3.º do seu articulado, com repartição dos respectivos valores.

Nesses itens está dito o seguinte:
 1º No lugar de ..., Rua ..., da freguesia ... e ..., do concelho ..., existe o prédio urbano, composto de parcela de terreno para construção, com a área de 2.165 m2, a confrontar actualmente do norte e nascente com caminho público, do sul com EE e herdeiros de FF e do poente com BB e GG, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo n.º ...37, com o valor patrimonial de € 25.610,48 [vide documento n.º ...].
2.º Neste prédio está construída uma casa de habitação de ... e ... andar, que ainda não tem licença de habitabilidade.
3.º O prédio referido nos artigos anteriores acha-se descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...85 – freguesia ... [vide documento n.º ...].

Foi proferida decisão que culminou com o seguinte dispositivo:

O requerido AA contestou, concluindo que deve a presente acção ser julgada parcialmente procedente na parte confessada pelo Requerido e improcedente na parte não confessada e impugnada.
A convite do Tribunal, os Autores requereram a intervenção principal provocada do Banco 1..., S.A..
Citado este, veio pedir que se admita a sua  Reclamação de Créditos, com vista ao reconhecimento, verificação e graduação do crédito de € 141.833,26 (cento e quarenta e um mil oitocentos e trinta e três euros e vinte e seis cêntimos) acrescido dos juros vencidos desde esta data de 07.06.2021 e vincendos, à taxa convencionada e em vigor de 1,053% a.a. acrescida da sobretaxa de 3% em caso de mora e respectivo imposto de selo sobre os juros e até efectivo e integral pagamento até integral pagamento, crédito este a ser pago ao Banco Reclamante pelo produto de venda do imóvel hipotecado.

Em 31.1.2022 foi proferida sentença como seguinte dispositivo:

“Declara-se que o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia ..., sob o n.º ...24, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo número ...37, é indivisível.
Fixa-se o quinhão de autores e réus em 1/2 para cada.”
Em 8.3.2022 o Requerido AA impugnou essa sentença.
Em conferência de interessados de 30.3.2022, foi acordado avaliar o “imóvel em discussão nos autos”.
Em 27.10.2022, foi proferido Acórdão neste Tribunal da Relação de Guimarães no qual se apreciou a referida apelação.
Nessa apelação defendia o Recorrente “no essencial, que os requerentes invocaram a compropriedade, não apenas sobre o prédio constituído por parcela de terreno para construção, mas também sobre as benfeitorias nele edificadas, acrescentando que, na contestação que apresentou, o ora recorrente impugnou a compropriedade dos requerentes sobre as benfeitorias existentes no prédio, pelo que, segundo alega, tal facto se encontra controvertido. Conclui, sustentando o seguinte: nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea d) a sentença ora recorrida deve ser declarada nula, porquanto, o tribunal “a quo” deixou se se pronunciar sobre questões que podia e devia ter tomado conhecimento, designadamente, a alegação de compropriedade dos Requerentes sobre as benfeitorias edificadas no prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia ..., sob o n.º ...85/...24, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo número ...37, e a respectiva impugnação da mesma por parte do Requerido.”[1]
O Acórdão concluiu, em suma, sic: “Como tal, verifica-se que o facto a que se reporta o apelante - o direito de compropriedade dos requerentes sobre a casa de habitação erigida no prédio urbano comum -, não foi alegado pelos requerentes, pelo que não poderá considerar-se relevante a impugnação que possa ter deduzido relativamente a este ou a qualquer outro facto não alegado pela parte contrária.”
Por isso, julgou-se inexistir a arguida nulidade por omissão de pronúncia e decidiu-se declarar improcedente a apelação.
Em conferência de interessados de 13.12.2023, registada a falta de acordo sobre a adjudicação da propriedade plena do imóvel dos autos, foi determinada a realização da sua venda.
*
Inconformado com tal decisão, dela interpôs o Réu AA o presente recurso de apelação, em cujas alegações formula, em suma, as seguintes
conclusões:

1) Vem o presente recurso interposto do despacho proferido a fls… pela Instância Local de ... do Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo, no processo supra referido, de acordo com a qual foi determinado o infra:
“Manifestaram as partes não lograr alcançar acordo quanto à adjudicação da propriedade plena do imóvel dos autos e, tendo em conta que o mesmo foi declarado indivisível nos termos da sentença proferida, ao abrigo do disposto no artigo 929º, n.º 2, parte final, do Código de Processo Civil, determino a realização da sua venda.  (…)
6) Resulta, pois, cristalino que o despacho ora recorrido ordenou a venda da parcela de terreno para construção e a casa de habitação erigida no prédio urbano comum pelo valor determinado pela avaliação datada de 31 de Maio de 2022.
7) O relatório pericial junto a fls… dos autos avalia o prédio urbano composto de parcela de terreno para construção identificado no artigo ....º da pi, o qual se encontra descrito no registo nos termos indicados no artigo 3.º e sobre o qual se encontra construída uma casa de habitação, nos termos constantes do artigo 2.º da pi no valor global de: - sem licença de utilização 356 250,00 (trezentos e cinquenta e seis mil e duzentos e cinquenta euros), e na de situação de ter sido obtida a respectiva licença de utilização no valor de 359 250,00.
8) Contradizendo, assim, directamente o decidido em sentença de 1ª instância e confirmado por Acórdão dessa Relação: deveria ter sido ordenada a venda: “Da análise destes artigos da petição inicial, conjugada com a pretensão deduzida na presente acção, decorre que a divisão de coisa comum se reporta ao prédio urbano composto de parcela de terreno para construção identificado no artigo ....º, o qual se encontra descrito no registo nos termos indicados no artigo 3.º e sobre o qual se encontra construída uma casa de habitação, nos termos constantes do artigo 2.º. Compulsada a petição inicial, não se vislumbra que os requerentes invoquem qualquer direito,de compropriedade ou outro,sobre a construção erigida no prédio urbano composto por parcela de terreno para construção, não alegando sequer a quem pertence a casa de habitação de ... e ... andar, que ainda não tem licença de habitabilidade, implantada no terreno que constitui o prédio comum. A pretensão deduzida na presente acção reporta-se ao prédio urbano composto de parcela de terreno para construção, o que foi claramente entendido pelo apelante, conforme decorre das alegações de recurso, nas quais afirma que não foi peticionada a divisão das benfeitorias, mas apenas da parcela de terreno. Com efeito,a situação decompropriedadeinvocada pelosrequerentes na petiçãoinicial respeita unicamente ao prédio urbano comum constituído por parcela de terreno para construção, conforme alegado no artigo ....º, em termos similares ao pedido formulado no articuladoemapreciação.Como tal,verifica-se que o facto a que se reporta o apelante - o direito de compropriedade dos requerentes sobre a casa de habitação erigida no prédio urbano comum -, não foi alegado pelos requerentes, pelo que não poderá considerar-se relevante a impugnação que possa ter deduzido relativamente a este ou a qualquer outro facto não alegado pela parte contrária.”
9) A sentença bem como o Acórdão proferidos no âmbito dos presentes autos já transitaram em julgado. O caso julgado tanto designa a qualidade de imutabilidade da decisão judicial que transitou em julgado, como o conjunto dos efeitos jurídicos que têm o transito em julgado da decisão judicial por condição.
10)Diz-se que a decisão transitou em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação (cf. artigo 628.º 1 ), o que sucede in casu, tanto a sentença como o Acórdão confirmatório da mesma encontram-se transitados em julgado e são insusceptíveis de recurso ou reforma.
11)Efectivamente, decorre, desde logo, do artigo 613.º, n.º 1, que, prolatada a sentença ou despacho, o tribunal não os pode revogar, por perda de poder jurisdicional.
Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais.
12)Resumidamente, dir-se-á que o caso julgado formal incide apenas e só sobre questões de carácter processual. Daí que a sua força obrigatória se limite ao próprio processo, já que apenas obsta a que o julgador possa, na mesma acção, alterar a decisão proferida. Mas já não impedindo que, noutra acção, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes, pelo mesmo ou por outro tribunal (cfr. Ac. do STJ de 28.06.1994, CJ/Acs. STJ, tomo II, pág. 159). Como escreveu o Prof. Alberto dos Reis, “[ao] caso julgado, ou seja material ou seja simplesmente formal, anda inerente a ideia de imutabilidade. O trânsito em julgado imprime à decisão carácter definitivo; uma vez transitada em julgado, a decisão não pode ser alterada. Por ser assim, é que a cada passo se faz coincidir o casojulgadoformal com ofenómenoda simples preclusão.Ocasojulgadoformal consiste precisamente em estar fechada a via dos recursos ordinários; este caso julgado forma-se quando a parte vencida perdeu o direito de lançar mão dos recursos ordinários para fazer alterar a decisão respectiva.
13)No caso em apreço existindo decisão que esclareceu cabalmente que Da análise destes artigos da petição inicial, conjugada com a pretensão deduzida na presente acção, decorre que a divisão de coisa comum se reporta ao prédio urbano composto de parcela de terreno para construção identificado no artigo ....º, o qual se encontra descrito no registo nos termos indicados no artigo 3.º e sobre o qual se encontra construída uma casa de habitação, nos termos constantes do artigo 2.º , formou-se assim caso julgado formal, com força obrigatória dentro do processo (art. 672º do CPC).
14)A força obrigatória do referido caso julgado formal obsta a que o despacho de que ora se recorre decidisse em sentido contrário, ou seja, que a presente acção de divisão comum se destina a obter divisão sobre a parcela de terreno e sobre a moradia nela eregida.
15)A aceitar-se a produção de efeitos da decisão recorrida estaríamos perante uma contradição de julgados, o que não pode aceitar-se.
16)O caso julgado formal que se constituiu e que é vinculativo dentro do processo impede a subsistência do despacho de que ora se recorre, impondo a sua revogação.
17) Acresce ainda que, dentro do processo, a definitividade da decisão impede que nele ela seja contraditada ou repetida. Fora do processo, produz-se um efeito preclusivo material: não só precludem todos os possíveis meios de defesa do réu vencido e todas as possíveis razões do autor que perde a acção, mas também, com maior amplitude, toda a indagação sobre a relação controvertida, delimitada pela pretensão substantivada (pedido fundado numa causa de pedir) deduzida em juízo. o caso julgado material é, pois, primacialmente caracterizado por impor às partes uma norma de comportamento, baseada no prévio acertamento, com o referido efeito preclusivo, das respectivas situações jurídicas ao contrário das preclusões (processuais) do direito à prática dos vários actos processuais que precedem a sentença, esta preclusão manifesta-se assim no plano do direito substantivo.
18)A inadmissibilidade de nova decisão em futuro processo entre as mesmas partes e com o mesmo objecto, seja repetindo-a (proibição de repetição), seja modificando-a (proibição de contradição), mais não é do que consequência processual desse efeito substantivo: uma vez conformadas, pela sentença, as situações jurídicas das partes, elas passam a ser indiscutíveis. Esta indiscutibilidade manifesta-se de dois modos: - Entre as mesmas partes e com o mesmo objecto (isto é, com o mesmo pedido e a mesma causa de pedir), não é admissível nova discussão: o caso julgado opera negativamente, constituindo uma excepção dilatória que evita a repetição da causa (efeito negativo do caso julgado);  - Entre as mesmas partes mas com objectos diferenciados, entre si ligados por uma relação de prejudicialidade, a decisão impõe-se enquanto pressuposto material da nova decisão: o caso julgado opera positivamente, já não no planodaadmissibilidadedaação,mas nodoméritodacausa,com eleficando assente um elemento da causa de pedir (efeito positivo do caso julgado).
19)A autoridade de caso julgado destina-se a evitar a prolação dedecisões posteriores que sejam juridicamente incompatíveis com a primeira. Esse escopo assenta em duas ordens de razões. A primeira razão é a de que a decisão transitada em julgado que seja de procedência constitui um título jurídico (ou fonte) de efeitos jurídicos recognitivos ou constitutivos finais nas esferas das partes.
20)Ou seja, o efeito negativo e o efeito positivo do caso julgado, i.e., a excepção de caso julgado e a autoridade de caso julgado, são duas faces da especial qualidade da decisão judicial transitada em julgado, nos termos do artigo 628.º: a “força obrigatória” da decisão judicial dentro do processo (cf. artigo 620.º) e fora dele, quando julgue do mérito (cf. artigo 619.º).
21)Tudo visto, também por aqui se visa “obstar a que a situação jurídica material definida por uma sentença possa ser validamente definida de modo diverso por outrasentença”(Ac.doSTJde27-02-2018/Proc.2472/05.8TBSTR.E1(FÁTIMA GOMES)).
22)Donde, e face ao supra exposto não pode subsistir o despacho recorrido por ofensa ao caso julgado devendo o mesmo ser substituído por outro que respeite, não viole, e/ou entre em contradição com o doutamente decidido em 1ª Instância e confirmado por Acórdão desse Venerando Tribunal.
           
A Recorrida apresentou contra-alegações nas quais conclui que, ao determinar a venda do bem em divisão de acordo com o valor constante do relatório pericial junto aos autos, a decisão proferida pelo Tribunal da 1.ª Instância não violou qualquer preceito legal, sendo inteiramente certa a argumentação e as considerações em que se baseia, devendo por isso manter-se inalterada.
II – Delimitação do objecto do recurso e questões prévias a apreciar:
Nos termos dos Artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, as conclusões delimitam a esfera de actuação do tribunal ad quem, exercendo uma função semelhante à do pedido na petição inicial.[2] Esta limitação objectiva da actividade do Tribunal da Relação não ocorre em sede da qualificação jurídica dos factos ou relativamente a questões de conhecimento oficioso, desde que o processo contenha os elementos suficientes a tal conhecimento (cf. Artigo 5º, nº 3, do Código de Processo Civil). Também não pode este Tribunal conhecer de questões novas[3] que não tenham sido anteriormente apreciadas porquanto, por natureza, os recursos destinam-se apenas a reapreciar decisões proferidas.[4]
No caso, as questões enunciadas pela recorrente prendem-se com a alegada violação de caso julgado.
Colhidos os vistos, cumpre decidir.

III – Fundamentos

1. Factos (cf. art. 662º, do Código de Processo Civil)
São os que emergem do processo, nomeadamente os acima relatados.

2. Direito
Conforme decorre das conclusões do Apelante, o objecto da presente apelação contende com a alegada existência de contradição de julgado entre decisões proferidas neste mesmo processo e que, no seu entender, obstam a que o despacho de que ora se recorre decidisse em sentido contrário, ou seja, que a presente acção de divisão comum se destina a obter divisão sobre a parcela de terreno e sobre a moradia nela erigida (item 14) das suas conclusões) e determinam que não pode subsistir o despacho recorrido (item 22).
Ao longo das suas conclusões, nas quais o Apelante deveria ter exposto de forma sintética e clara aquilo que se enuncia no disposto no art. 639º, nº 2, do Código de Processo Civil, o enquadramento dessa questão é algo descoordenado, envolvendo a discussão indistinta de institutos variados, como sejam os de caso julgado formal, material e autoridade de caso julgado, sem que se perceba qual a solução que o Apelante preconiza (cf. art. 639º, nº 2, al. b)).
No entanto, a questão colocada é, objectivamente, a alegada contradição, pelo que iremos proceder nos termos do art. 5º, nº 3, do Código de Processo Civil.
Dita o art. 619º, nº 1, do Código de Processo Civil, que transitada em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º.
Por sua vez, o art. 620º, nº 1, do mesmo Código, acrescenta que as sentenças e os despachos que recaiam unicamente sobre a relação processual têm força obrigatória dentro do processo.

No caso em apreço, o Apelante alega que existe contradição entre, por um lado, uma sentença que apreciou o mérito da pretensão do Autor e o Acórdão que se pronunciou sobre alegada nulidade formal daquela e, por outro, a decisão formal ou processual que determinou a venda do imóvel em causa: no seu entender, esta contradiz directamente o decidido em sentença de 1ª instância e
confirmado por Acórdão dessa Relação.
Sucede que, como decorre, desde logo, da simples tipologia das decisões em confronto, é inviável enquadrar a questão colocada no seio do mesmo instituto.
Com efeito, entre o Acórdão proferido e a decisão em crise, poderia eventualmente falar-se de caso julgado formal, na medida em que estão em causa duas decisões que se limitaram a apreciar questões processuais ou formais, pelo que, a existir alguma contradição entre as mesmas, estaríamos perante violação do disposto no art. 620º, nº 1, do C.P.C..
Já no confronto entre a decisão de mérito proferida, a sentença, e a decisão recorrida, a eventual contradição cai em princípio no âmbito do caso julgado material, mencionado no art. 619º, nº 1, do Código de Processo Civil.
Em ambos os casos, a solução é o cumprimento da decisão prolatada em primeiro lugar (cf. art. 625º, do C.P.C.).
Como já dizia o Código Civil de Seabra de 1867, no seu art. 2502º (Do Caso Julgado), caso julgado é o facto ou o direito, tornado certo por decisão de que não há recurso.
No caso, não se discute que as decisões que, alegadamente, foram violadas, transitaram em julgado, pelo que vamos partir dessa premissa.
Começando pela alegada violação do julgado no Acórdão de 27.10.2022, julgamos que não assiste razão ao Recorrente.
O caso julgado formal é uma noção que se reporta à impossibilidade de alterar o conteúdo de uma decisão judicial por meio de recurso ou reclamação e recai apenas sobre o conteúdo interno, sobre a relação processual, em nada contendendo com a relação material que se submeteu à apreciação do tribunal.
A sua eficácia manifesta-se apenas intraprocessualmente, só vinculando, por isso mesmo, dentro do próprio processo em que a decisão ou o despacho são proferidos, exactamente porque o seu âmbito se revela quanto a questões de carácter processual.[5]
Em concordância ficou, a propósito, dito no Ac. deste Tribunal da Relação de Guimarães, de 2.5.2024[6]: “O caso julgado formal, por oposição ao caso julgado material, restringe-se às decisões que apreciam matéria de direito adjectivo, produzindo efeitos limitados ao próprio processo – Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 745.
As decisões de forma que incidem sobre aspectos processuais, adquirindo, em regra, valor de caso julgado formal, são vinculativas no processo, produzindo efeitos processuais: enquanto efeito negativo, resulta da decisão transitada a insusceptibilidade de qualquer tribunal, incluindo o que a proferiu, se voltar a pronunciar sobre ela; como efeito positivo, resulta da decisão transitada a vinculação do tribunal que a proferiu (e de outros) ao que nela foi definido ou estabelecido - Miguel Teixeira de Sousa, ob cit. p. 572.
Assim, qualquer despacho proferido sobre questão processual, uma vez transitado em julgado, adquire valor de imutabilidade, sendo no processo inadmissível (e por isso ineficaz – art. 625.º, nº 2 do CPC) decisão posterior sobre a mesma questão que dele tenha sido objecto – não sendo respeitados os efeitos processuais resultantes de decisão transitada em julgado, ocorrerá situação de contraditoriedade, a solucionar de acordo com a regra prescrita no art. 625.º do CPC, valendo aquela que primeiro transitou em julgado (princípio da prioridade do trânsito em julgado que vale também para as decisões de natureza adjectiva proferidas no processo, como resulta do nº 2 do art. 625.º do CPC) –Ac. da Relação do Porto de 17/05/2022 (João Ramos Lopes), proc. 1320/14.2TMPRT.P1, em www.dgsi.pt.
Porque assim, o caso julgado formal de uma decisão obsta a que no processo seja tomada nova decisão (seja renovando, seja modificando a anterior) e, como referido no acórdão do STJ de 8/03/2018 (Fonseca Ramos), uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e não recorrida, seja objecto de repetida decisão (se tal acontecer, a segunda decisão deve ser desconsiderada por violação do caso julgado formal assente na prévia decisão - disponível em www.dgsi.pt.
O pressuposto nuclear do instituto consiste em a pretensão - ao nível da relação meramente processual - constituir a renovação, alteração ou repetição duma anteriormente decidida.
Determinar quando tal ocorre, remete-nos para o âmbito objectivo do caso julgado, isto é, para a determinação do seu objecto, do quantum da matéria que foi apreciada pelo tribunal na decisão transitada.
Esse quantum definidor dos limites objectivos respeita, no caso julgado formal, à questão processual concretamente apreciada e decidida. (…) Para a compreensão do alcance da figura, a questão de direito tem de derivar ou promanar de um similar quadro lógico-factual. À similitude lógico-factual não pode deixar de corresponder uma teleologia de sentido funcional-processual, ou seja, uma inferência de alcance e dimensão compreensiva que se contém no momento em que se coloca em tela de juízo a questão jurídico-normativa que se aprecia e decide. Daí que, a oposição de decisões tem de se inserir e integrar num quadro teleológico similar e idêntico para ambas as decisões. Vale por dizer que o pressuposto discursivo e lógico-funcional em que as decisões, tomadas como contraditórias, assentam têm de servir o mesmo fim correlativo de análise e sentido teleológico – Ac. do STJ de 07/03/2018 (Gabriel Catarino), processo n.º 98/17.2YFLSB, disponível em www.dgsi.pt.”
Na situação em apreço essa identidade não se encontra presente.
O Acórdão de 27.10.2022, respeitando os limites do disposto nos arts.  635º, nº 4 e 639º, nº 1, do Código de Processo Civil, limitou-se a apreciar se, nos termos do artigo 615º, n.º 1, alínea d), do mesmo Código, a sentença recorrida devia ser declarada nula, porquanto, o tribunal a quo alegadamente deixara de se pronunciar sobre questões que podia e devia ter tomado conhecimento, designadamente, a alegação de compropriedade dos Requerentes sobre o edificado no referido prédio.
E o que é certo é que essa nulidade não foi reconhecida e a decisão limitou-se a julgar improcedente a apelação, sendo impertinente a citação de partes da fundamentação desse acórdão para se encontrar nesse julgado algo que possa, por um lado, ser contrariado pela decisão aqui recorrida ou, por outro lado, constituir um elemento determinante para interpretar a sentença que apreciou para o efeito de avaliar a violação de caso julgado formal ou material desta última.
Esta, à partida, deve valer por si e ser devidamente interpretada.
Posto isto, passando ao confronto dessa sentença com o despacho agora recorrido, há que, antes de mais, perceber o seu julgado para saber se existe algum conflito relevante.
Com efeito, como se preconiza em Ac. deste Tribunal da Relação de Guimarães[7]: I - Sendo a sentença um acto jurídico, formal e receptício, subtraído à liberdade negocial, na sua interpretação não se procura a reconstituição de uma declaração pessoal de vontade do julgador (entendida na base da determinação de um propósito subjectivo), mas sim o correcto entendimento do resultado final e objectivo de um percurso pré-ordenado à obtenção da dita decisão. II. A interpretação da sentença deve, então, fazer-se de acordo com sentido que um declaratário normal, colocado na posição real do declaratário - a parte ou outro tribunal - possa deduzir do seu contexto, ponderando quer o dispositivo final, quer a antecedente fundamentação, quer inclusivamente a globalidade dos actos que precederam a dita decisão, bem como quaisquer circunstâncias relevantes posteriores à sua prolação (art. 236º, nº 1 do C.C., aplicável ex vi do art. 295º do mesmo diploma).
Em suma se, como afirma José Ortega Y Gasset, o homem é o homem e a sua circunstância, a decisão do tribunal será ela própria mas também a sua circunstância.
Ora, no caso, o pano de fundo desta decisão é um processo de divisão de coisa comum desencadeado pelos Autores e cujo objecto está devidamente identificado na respectiva petição nos termos acima relatados, ou seja, do prédio identificado nos artigos 1.º, 2.º e 3.º do seu  articulado, que inclui uma casa de habitação de ... e ... andar, que ainda não tem licença de habitabilidade, realidade predial essa descrita na respectiva Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...85.
Ora, foi esse imóvel, completo, que, em nosso entender, foi objecto da decisão de 31.1.2022, como se depreende do seu dispositivo, no qual ficou a constar, sic “o prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ..., freguesia ..., sob o n.º ...24, inscrito na matriz predial urbana sob o artigo número ...37, é indivisível”.
Essa leitura também se extrai da referência à sua “parte urbana” na seguinte passagem: “Doutro passo, nada foi referido quanto à possibilidade de a parte urbana ser fraccionada – antes pelo contrário, as partes acordaram na impossibilidade de fraccionamento.” Julgamos que aqui, com alguma falta de rigor técnico, o Tribunal a quo se referia ao edificado no mencionado terreno para construção.
Acresce que, depois disso, foi essa realidade completa (o terreno e a construção nele implantada) que foi tida em conta no processo, nomeadamente na avaliação que foi determinada por despacho de 30.3.2022 e ficou a constar do relatório pericial junto em 31.5.2022, no qual se conclui que o valor do imóvel, com todas as suas componentes, atinge o valor de 358917 euros, o que passou sem qualquer reparo de algum dos intervenientes processuais.
Essa interpretação é ainda conferida pela circunstância de estarmos perante uma realidade jurídica indissociável, independentemente dos direitos obrigacionais e ou reais que cada uma das partes, nomeadamente o Apelante possa invocar em relação às ditas “benfeitorias”.
Essa realidade, de acordo com um declaratário normal nas circunstâncias verificadas, é a que emerge do conceito de coisa (art. 202º, do C.C.) que enquadra o bem jurídico em causa: um prédio urbano que constitui um imóvel e inclui todas as suas partes integrantes (arts. 203º e 204º, do C.C.).
Por fim, dir-se-á que a sentença em apreço, de acordo com essa essa premissa, considerou que os intervenientes processuais identificados nos autos eram comproprietários, na proporção encontrada, do imóvel em discussão, não tendo feito qualquer ressalva ou exclusão, até porque, como se assinala no seu texto, ninguém discutiu a propriedade nesses termos, o que está em consonância com o facto de o Apelante, na sua contestação, ter aceite a factualidade respeitante à descrição e inscrição predial formulada pelos Autores e, no restante, se ter limitado a uma impugnação genérica. Aliás, no posterior recurso dessa sentença, o Apelante não discute essa propriedade mas sim um aspecto formal da sentença relacionada com alegados direitos sobre as benfeitorias que alegadamente realizou no prédio.
Por tudo isto, com o devido respeito pela interpretação que possa ser extraída do Acórdão proferido por este Tribunal da Relação de Guimarães em 2022 mas que, neste caso, não constitui factor relevante para a definição do sentido da decisão proferida em primeira instância, julgamos que esta sentença declara a indivisibilidade da coisa imóvel descrita pelos Autores nos itens 1º a 3º da sua petição inicial, razão pela qual não existe contradição ou conflito entre o que foi decidido nela e o que se determinou na decisão aqui recorrida.
De resto, insista-se, o que se declarou nessa sentença foi apenas e só a indivisibilidade e titularidade da propriedade do imóvel que se considerou ser objecto dos autos, de acordo com o preconizado para a primeira fase (cf. arts. 926º a 927º, do C.P.C.) desse processo especial (pelo que o julgado nunca poderia estar em contradição com esta última decisão que, pura e simplesmente, determinou a sua venda sem qualquer ressalva).
Além disso, rebatendo outros argumentos, de natureza técnica, invocados pelo Apelante, é inviável falar aqui de uma violação desse dispositivo ou declaração, que é de mérito, por um despacho procedimental que se limitou a determinar a venda do imóvel em causa, ou seja é juridicamente impróprio considerar a possibilidade de uma violação do caso julgado material, positiva ou negativamente, decorrente dessa decisão, tal como ele é concebido pelo legislador no art. 619º, nº 1, do C.P.C.. Assim como é impróprio confrontar essa decisão material com uma decisão de cariz formal ou procedimental como é aquela que determinou a venda em crise.
Na eventualidade de se estar perante a desconformidade descrita pelo Apelante no seu recurso (o que já concluímos não ocorrer aqui), estaríamos provavelmente perante um mero excesso de pronúncia (art. 615º, nº 1, al. d), 2ª parte, do C.P.C.).
Neste conspecto, deve improceder a Apelação, com custas a cargo do Recorrente, como decorre do disposto no art. 527º, do C.P.C..

IV. DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes que constituem esta 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães, em julgar improcedente a apelação.

Condena-se nas custas da apelação o Recorrente (cf. art. 527º, do Código de Processo Civil).
N.
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Sumário[8]:
 - Sendo a sentença um acto jurídico, formal e receptício, subtraído à liberdade negocial, a sua interpretação é determinante para se perceber o seu verdadeiro sentido.
- Inexiste violação de caso julgado material ou formal em processo de divisão de coisa comum em que a sentença proferida na sua primeira fase declara a indivisibilidade do imóvel em causa e fixa as quotas de compropriedade que cada um dos seus donos possui e, na fase executiva do processo, se determina a venda desse mesmo imóvel na sua íntegra.
- De igual modo, não existe violação de caso julgado, nomeadamente o de cariz formal, entre um acórdão que, apreciando aquela sentença, julgou inexistir nulidade por falta de pronúncia e o referido despacho que determinou a venda do mencionado imóvel. 
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Guimarães, 12-06-2024


[1] Citamos aqui o texto do Acórdão referido
[2] Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, Almedina, 2017, pp. 106.
[3] Conforme se refere no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.7.2016, Gonçalves Rocha, 156/12, «Efetivamente, e como é entendimento pacífico e consolidado na doutrina e na Jurisprudência, não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objeto de apreciação da decisão recorrida, pois os recursos são meros meios de impugnação das decisões judiciais pelos quais se visa a sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação». No mesmo sentido, cf. Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 4.10.2007, Simas Santos, 07P2433, de 9.4.2015, Silva Miguel, 353/13.
[4] Abrantes Geraldes, Op. Cit., p. 107.
[5] Cf. A APLICAÇÃO JUDICIAL DO CONCEITO DO CASO JULGADO: ANÁLISE CRÍTICA, p. 53 in https://repositorium.sdum.uminho.pt/bitstream/1822/51789/1/Germana%20Sanhudo%20Barreira.pdf
[6] Recurso de Apelação no Proc. Nº 2851/14.0T8VNF.G1 – in https://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/2843f61fc8bac7dd80258b17003e618f?OpenDocument
[7] De 14.6.2017, in http://www.dgsi.pt/jtrg.nsf/86c25a698e4e7cb7802579ec004d3832/9164c0d66ce90fd3802581990047b346?OpenDocument
[8] Da responsabilidade do relator – cf. art. 663º, nº 7, do Código de Processo Civil.