Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
989/23.1PBGMR.G1
Relator: FLORBELA SEBASTIÃO E SILVA
Descritores: CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA
REJEIÇÃO DA ACUSAÇÃO
ATIPICIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I. O facto de não se conseguir depreender quantos episódios ocorreram, em que data e hora (se mais recentemente ou há já alguns anos), e as suas concretas circunstâncias não leva forçosamente a que se considere a acusação vaga e genérica uma vez que o artº 283º nº 3 al. b) do CPP diz:
“A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.
II. O artº 311º do Código de Processo Penal não serve para o Tribunal de julgamento antecipar a sua decisão, sendo jurisprudência uniforme que o disposto no artº 283º nº 3 do Código de Processo Penal apenas obriga a narração de factos que permitam, em abstracto, o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do respectivo tipo legal imputado.
Se, depois, na prática, não se faz prova dos factos ou se se concluir que os mesmos, dentro de determinada interpretação jurídica não permitem chegar à conclusão da prática do crime, é outro assunto completamente diferente e que tem de ser guardado para o momento da sentença.
III. Apelidar uma mulher de “puta” “preguiçosa” e “gorda”, é não só abstractamente ofensivo e insultuoso, como tendo sido alegadamente efectuado dentro de um contexto de convivência conjugal, onde é devido o maior respeito entre cônjuges/unidos de facto, revela, dada a alegada frequência, um ataque à pessoa da vítima que se vê humilhada de forma sistemática, atingida na sua dignidade enquanto mulher e companheira.
Decisão Texto Integral:
Arguido: AA
Recorrente: Ministério Público

ACÓRDÃO

Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I. No âmbito do Processo Comum com intervenção do Tribunal Singular que corre termos pelo Juiz ... do Juízo Local Criminal de ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, sob o nº 989/23...., nos termos do artº 311º do Código de Processo Penal foi proferida decisão em 08-03-2024, com a refª ...27, na sequência de remessa dos autos para julgamento através do qual o Tribunal a quo rejeitou a acusação pública, deduzida pelo Ministério Público contra o arguido AA, nos seguintes termos:

“Registe e autue como processo comum, com intervenção do Tribunal singular.
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O Tribunal é competente.
O Ministério Público é dotado de legitimidade para o exercício da acção penal.
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Questão prévia:

O Ministério Público deduziu acusação pública contra AA, melhor identificado nos autos, imputando-lhe a prática de um crime de violência doméstica, previsto e punido, pelo art.º 152.º, n.º 1, al. d), e n.º 2, al. a), ambos do Código Penal.
Porquanto, considera indiciado que o arguido atuou no citado contexto situacional contra a ofendida, sua então companheira, ferindo a sua honra e consideração, saúde psíquica, intimidá-la, provocar-lhe receio de vir a sofrer atos atentatórios contra a sua integridade física e vida, deixando-a sem teto, obstaculizando-a ao prover do seu sustento, privando-a de exercer a sua atividade profissional, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar-lhe tal receio, e vulnerabilidade económica e emocional, tudo por forma a afetar a sua dignidade pessoal, não se coibindo de assim atuar na residência destes, e na presença do filho menor, apesar de aquela ser sua companheira e mãe do seu filho, e, como tal, lhe merecer especial respeito.

Assim, relativamente ao elemento objectivo do tipo, descreveu os factos do seguinte modo:
“1. O arguido e a ofendida, BB, iniciaram uma relação de namoro desde meados de 2011;
2. E passaram a viver em comunhão de mesa, cama e habitação, a partir de meados de 2015 até meados do ano de 2021;
3. Após, estiveram separados cerca de um ano,
4. E desde meados de 2022, voltaram a viver em comunhão de mesa, cama e teto até ao dia ../../2023, tendo fixado residência Rua ..., em ....
5. Desse relacionamento nasceu no dia ../../2018, CC.
6. À data dos factos a ofendida encontrava-se desempregada.
7. Durante a vivência como casal, o arguido, diariamente apelidou a vítima de gorda e, pelo menos uma vez por mês, apodava-a de puta.
8. E dizia-lhe que a mesma não fazia nada na vida, que era preguiçosa.
9. Desde o início do relacionamento que o arguido consumia substâncias estupefacientes, concretamente cannabis, vulgo haxixe, fazendo-o na presença do filho menor.
10. A ofendida pedia ao arguido que, pelo menos, não o fizesse na presença do filho comum;
11. Mas este ignorava-a, e mantinha o seu comportamento.
12. No dia ../../2023, em hora não apurada, no interior da habitação, o arguido disse à vitima que não a suportava, que já não conseguia olhar para ela.
13. E ordenou-lhe que saísse de casa, juntamente com o filho, expulsando-os.
14. A ofendida pediu ao arguido que lhe entregasse alguns objetos, nomeadamente, insufláveis, que necessitava para exercer a atividade que pretendia iniciar, com vista a prover pelo seu sustento.
15. Ao que este se recusou.
16. Assim, a ofendida teve de imediato deixar a casa, levando o seu filho, com receio de que este atentasse contra a sua integridade física ou vida.
17. Por ter sido expulsa, a vítima pediu auxilio ao seu padrasto, que a acolheu e ao menor.
18. No dia ../../2023, pelas 19.30, a ofendida, acompanhada por agentes da PSP, deslocou-se à Rua ..., em ..., com vista a retirar os seus bens pessoais e os instrumentos necessários à sua atividade profissional.
19. Porém, o arguido colocou o seu carro em frente à porta da garagem, impedindo a ofendida de aceder aos mesmos.
20. Contatado pelos Agentes da PSP, o arguido reiterou a sua recusa em entregar os mencionados bens da ofendida.”.
O arguido não requereu a abertura da instrução.
*
Dispõe o artigo 283.º, n.º 3, alínea b), do C.P.Penal que a acusação deverá conter sob pena de nulidade: “b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;”.
Ora, a este respeito é consabido que a função da incriminação em causa é de prevenir as frequentes formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho. Tendo a reforma do Código Penal efetuada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, introduzido importantes alterações ao regime até aí existente, passando a incriminar a par dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos. E, após a última revisão legislativa levada a cabo, esclareceu-se o que vinha sendo, precisamente, a maior querela interpretativa anteriormente suscitada, que consistia, precisamente, em saber se se exigia uma atuação reiterada do agente, repetindo sucessivamente condutas, alongando a violação típica no tempo, mesmo que por atuações diversas ou se bastava um único ato isolado, desde que a sua gravidade fosse tamanha que por si só, fosse adequado a atingir a dignidade do visado, isoladamente. E é precisamente neste último sentido que vai a atual previsão legislativa: basta um único ato para se integrar o tipo legal de crime em referência, desde que o mesmo, por si só, atinja o bem jurídico violado. Este consubstanciar-se-á, pois, na perpetração de qualquer ato de violência que afete, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional da vítima, diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa.
Todavia, não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, mas sim, e apenas, que os atos atinentes, analisados à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetrados, se consubstanciem em maus tratos, isto é, quando revelem uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente.
Ora, in casu, para além da conclusiva descrição factual contida nos pontos 9.º a 16.º da acusação, da mesma não se consegue depreender quantos episódios ocorreram, em que data e hora (se mais recentemente ou há já alguns anos), e as suas concretas circunstâncias, acabando por ter de concluir-se que a maioria dos factos descritos na acusação são vagos e conclusivos.
É que de relevo apenas se pode retirar que:
“Durante a vivência como casal, o arguido, (…) e, pelo menos uma vez por mês, apodava-a de puta” (parte do facto 7.); “E ordenou-lhe que saísse de casa, juntamente com o filho, expulsando-os (facto 13.)”. E de resto, também relativamente a estes episódios, não sabemos, no caso do primeiro mencionado a sua regularidade, nem os seus concretos contornos, quando ocorreram. E no caso do segundo facto mencionado, o termo utilizado é genérico e vago (a saber, expulsando-os), e não ressalta, nem consta da acusação, de que forma o arguido alegadamente expulsou a ofendida, para que daí resulte preenchido o elemento objectivo do tipo, traduzindo-se, quando individualmente considerado, num facto até inócuo do ponto de vista criminal.
No mais, quanto aos factos descritos: “Durante a vivência como casal, o arguido, diariamente apelidou a vítima de gorda” (parte do facto 7.); “No dia ../../2023, em hora não apurada, no interior da habitação, o arguido disse à vitima que não a suportava, que já não conseguia olhar para ela.” (facto 12.), sempre se refira, cremos que, desta descrição objectiva não avulta a imputação de quaisquer factos ou a prolação de quaisquer expressões desonrosas por parte do arguido.
Nos crimes contra a honra, como salienta o Acórdão da Relação do Porto de 19-12-2007, o que, de resto, constitui doutrina e jurisprudência uniforme, cumpre considerar, não só as expressões em si mesmas ou o seu significado, mas todas as circunstâncias envolventes, como seja, a comunidade mais ou menos restrita a que pertencem os intervenientes, a relação existente entre estes, o contexto em que as palavras são produzidas e a forma como o são.
O que significa que a protecção penal dada à honra e consideração e a punição dos factos que atentem contra esses bens jurídicos só se justifica em situações que objectivamente as palavras proferidas não têm outro sentido que não a ofensa, ou em situações em que, ultrapassada a mera susceptibilidade pessoal, as palavras dirigidas à pessoa a quem o foram, são indubitavelmente injuriosas, lesivas da honra e consideração do lesado.
Neste sentido o Prof. Faria Costa alerta para que «o cerne da determinação dos elementos objetivos se tem sempre de fazer pelo recurso a um horizonte de contextualização. Reside, pois, aqui, um dos elementos mais importantes para, repete-se, a correcta determinação dos elementos objetivos do tipo».
Ora, quanto a nós, não constam da acusação quaisquer factos, mas apenas juízos de valor, os quais não têm tutela penal, face ao tipo em causa. O alegado na acusação reconduz-se a juízos valorativos atípicos perante o preceito incriminador, não constituindo, por isso, conduta típica tutelada pela norma (nem violência domestica, nem de injúria).
O Direito Penal deve ter um caráter fragmentário, cumprindo uma função de ultima ratio, não podendo intervir sempre que a linguagem ou afirmações utilizadas incomodam o visado, devendo a sua intervenção reservar-se para as situações em que é atingido o núcleo essencial das qualidades morais inerentes à dignidade da pessoa humana.
Destarte, excluída que se encontra a reiteração e/ou regularidade das condutas ofensivas, dir-se-á também que a gravidade subjacente ao evento descrito não atinge aquele patamar, ao nível do desvalor da ação e do resultado, capaz de fazer concluir por se estar perante um caso de maus tratos físicos e/ou psíquicos reveladores de uma conduta maltratante, onde pontificam sentimentos de crueldade, desprezo, especial desejo de humilhar e fazer sofrer a vitima.
Por outro lado, pelos motivos supra expostos, temos, pois, por excluída a adequação dos factos vertidos no libelo acusatório ao preenchimento dos elementos objectivos típicos do crime de injúria, p. e p. pelo art.º 181.º do Cód. Penal.
Dispõe o artigo 311º, do C.P.Penal, sob a epígrafe de “saneamento do processo” que:
“1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.”.
Pelo exposto rejeito a presente acusação ao abrigo do disposto no art.º 311º, n.ºs 2, alínea a) e 3 alínea d) do Código de Processo Penal, por manifestamente infundada, uma vez que os factos imputados ao arguido são insuficientes para se afirmar a existência de crime.
Sem custas.
Notifique.”

II.  Inconformado veio o Ministério Público interpor recurso em 16-03-2024, com a refª ...31, através do qual oferece as seguintes conclusões:

“I. Por despacho proferido no dia 8 de março de 2024, o Tribunal «a quo», ao abrigo do disposto no artigo 311.º, n.ºs 2, alínea a), 3, alínea d), do Código do Processo Penal, rejeitou a acusação pública deduzida pelo Ministério Público contra o arguido, por entender que esta é manifestamente infundada, uma vez que os que lhe são factos imputados são insuficientes para se afirmar a existência de crime.
II. O Tribunal «a quo» discorre que não se consegue depreender quantos episódios ocorreram, em que data e hora (se mais recentemente ou há já alguns anos). Entendemos que os factos se encontram devidamente balizados espácio-temporalmente, nomeadamente, o facto do arguido, durante a coabitação, uma vez por mês, apelidou a ofendida de puta, em casa, é suficientemente concreto, não é vago, nem conclusivo, no contexto da violência doméstica.
III. Nesse sentido atente-se ao Ac. TRP, de 24-11-2021, proferido no processo n.º 304/20.6PAVLG.P1, relatado por JOÃO PEDRO PEREIRA CARDOSO: (…) não é exigível de ninguém, sequer a vítima, que fixe/memorize o dia e o lugar concretos em que ocorreu cada um dos comportamentos ofensivos do agente (…); Ac. do STJ de 20-02-2019, proferido no proc. 25/17.7GEEVR.S1, relatado por JÚLIO PEREIRA: (…) perante práticas reiteradas ao longo de dezenas de anos, os episódios em concreto diluem-se na fita do tempo, ganhando antes relevo a visão global da conduta do arguido; (…) Concede-se que, em abstracto, a referência temporal à conduta ilícita pode revelar-se decisiva para efeitos, por exemplo, de prescrição. Em concreto tal problema não se coloca dado que os maus tratos se traduziram em condutas reiteradas do arguido ao longo da vida em comum com a ofendida e que cessaram quando esta decidiu abandonar a residência do casal. É esta a argumentação que nos parece que também tem que ser adotada no caso em apreço.
IV. Abona, ainda, o Tribunal «a quo» que o termo expulsando-os é genérico e vago e não ressalta da acusação, nem consta da acusação, de que forma o arguido alegadamente expulsou a ofendida. Neste conspecto, tal interpretação é infundada porquanto nos artigos 12 a 17 do libelo acusatório é descrito objetivamente qual a conduta perpetrada pelo arguido (No dia ../../2023, em hora não apurada, no interior da habitação, o arguido disse à vitima que não a suportava, que já não conseguia olhar para ela. E ordenou-lhe que saísse de casa, juntamente com o filho, expulsando-os. A ofendida pediu ao arguido que lhe entregasse alguns objetos, nomeadamente, insufláveis, que necessitava para exercer a atividade que pretendia iniciar, com vista a prover pelo seu sustento. Ao que este se recusou. Assim, a ofendida teve de imediato deixar a casa, levando o seu filho, com receio de que este atentasse contra a sua integridade física ou vida.)
V. Mais entendeu que expulsar, da habitação comum, a sua companheira e o filho menor, nascido em ../../2018, é um facto até inócuo do ponto de vista criminal. Crê que o arguido apelidar a sua companheira, e mãe do seu filho, «gorda», «puta», «que não fazia nada na vida», «preguiçosa», «que não a suportava, que já não conseguia olhar para ela», não avulta a imputação de quaisquer factos ou a prolação de quaisquer expressões desonrosas por parte do arguido.
VI. Inversamente ao sufragado, as condutas consubstanciam maus tratos infligidos pelo arguido à vítima. A título exemplificativo, apelidar de "gorda" ao nosso parceiro ou parceira, todos os dias, e expulsa-la, bem como ao filho menor, da habitação comum, configuram maus tratos típicos (psíquicos), mesmo que se entendesse que não são puníveis como crimes autónomos.
Neste sentido, confira-se os seguintes arestos: Ac. TRL de 28-10-2021, proferido no processo n.º 94/20.1PBVFX.L1-9, relatado por LÍGIA TROVÃO: Assim, integra o tipo penal p. e p. pelo art. 152º na vertente de «maus tratos psíquicos», a conduta do agente que, no interior do domicilio comum e aproveitando a ausência da progenitora da menor, sua companheira, dirigindo-se à filha menor desta, sua “enteada”, apelidava-a de “gorda”, “porca”, “ trezentos quilos”, “és uma baleia”, “és uma gorda”, “ és um cocó “, “não vales nada”, “não te quero aqui em casa” (…) na medida em que tais condutas são suscetíveis de pôr em causa esta pacífica convivência, abalar irremediavelmente a confiança da(s) vítima(s) no seu agressor e tal dimensão não encontra proteção em outro tipo legal, à exceção do art. 152º do Código Penal; Ac. do TRG de 26/02/2020, proferido no processo 105/17.9GAMGD.G1 relatado por AUSENDA GONÇALVES: (…) A unidade de acção típica não é excluída pela realização repetida de actos parciais, quer estes actos integrem, ou não, em si mesmos, outros tipos de crime (…); o Ac. do TRL de 17/04/2013, proferido no processo 790/09.5GDALM.L1-3, relatado por MARIA DA GRAÇA DOS SANTOS SILVA (apud Ac. do TRG de 26/02/2020): O bem jurídico protegido pelo crime de violência doméstica (…), é susceptível de ser afectado por toda uma diversidade de comportamentos, (…); Taipa de Carvalho, in Comentário Conimbricense, Tomo I, apud Ac. do TRE de 09/01/2018, proferido no processo 1296/16.1PBSTB.E1, relatado por ANTÓNIO JOÃO LATAS: A ratio deste artigo 152.º vai muito além dos maus tratos físicos, compreendendo os maus tratos psíquicos [p.ex. humilhações, provocações, ameaças, curtas privações da liberdade de movimentos, etc.], (…) ameaças mesmo que não configuradoras em si de um crime de ameaça]; Ac. do TRC de 07/02/2018, proferido no processo 663/16.5PBCTB.C1, relatado por BRÍZIDA MARTINS: A conduta típica do crime de violência doméstica inclui, para além da agressão física (mais ou menos violenta, reiterada ou não), a agressão verbal, a agressão emocional (p. ex., coagindo a vítima a praticar atos contra a sua vontade), a agressão sexual, a agressão económica (p. ex., impedindo-a de gerir os seus proventos) e a agressão às liberdades (de decisão, de ação, de movimentação, etc.), as quais, analisadas no contexto específico em que são produzidas e face ao tipo de relacionamento concreto estabelecido entre o agressor e a vítima, indiciam uma situação de maus tratos, ou seja, um tratamento cruel, degradante ou desumano da vítima.
Neste último conspecto, o facto do arguido impedir que a ofendida tivesse acesso aos seus bens só por si, conforme os factos descritos nos artigos 13 a 20 da acusação, configuram uma modalidade típica do crime, nos termos do artigo 152.º, n.º 1, do Código Penal, in fine: " (...) impedir o acesso aos recursos económicos e patrimoniais próprios ou comuns".
VII. E, por último, na esteira do Ac. do TRP de 12-01-2022, proferido no processo n.º 761/19.3T9STS.P1, relatado por AMÉLIA CATARINO: É ao acusador que cabe a iniciativa da definição do objecto de uma acusação. E, nesta tarefa, não pode ser ajudado e/ou nem corrigido pelo juiz, sob pena de violação do modelo acusatório estruturante do processo penal, imparcialidade que também se refere o art. 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos. Entendimento pacifico, hoje, é o de que, no momento a que se refere o artigo 311º do Código de Processo Penal, o juiz não pode decidir do mérito da acusação por via da sindicância da avaliação da suficiência dos indícios efectuada pelo Ministério Público. A jurisprudência fixada pelo Supremo Tribunal de Justiça em 12 de Junho de 2013, é no sentido de que “a alteração, em audiência de discussão e julgamento, da interpretação dos factos constantes da acusação ou da pronúncia, não pode ocorrer sem que haja produção de prova, de harmonia com o disposto no art. 358º, nºs 1 e 3 do Código de Processo Penal”, limita os poderes do juiz, sobre a acusação, antes do julgamento.
VIII. Na acusação consta a descrição objetiva dos factos típicos dos ilícito que integram o crime de violência doméstica, e por isso, não enferma de nenhum vício, não sendo manifestamente infundada. E como tal, o tribunal «a quo» não deveria ter rejeitado acusação, mas sim deveria ter sido recebida, por conter todos os elementos exigidos pelos artigos 283.º do Código do Processo Penal, para a submissão do agente a julgamento.
IX. O Tribunal «a quo» violou, assim, por errada interpretação e aplicação, nomeadamente, o preceituado nos artigos 283.º, e 311.º, n.ºs 2, al. a), e 3, al. d), ambos do Código do Processo Penal, e descurou os princípios da autonomia do Ministério Público e do principio do acusatório consagrados, respetivamente, nos artigos 219.º, n.º 2 e 32.º, n.º 5 da Constituição da República Portuguesa e artigo 6.º da Convenção Europeia dos Direitos Humanos.
Termos em que, deverá ser julgado procedente o presente recurso, revogando a decisão recorrida, substituindo por outra que receba a acusação, e subsequente submissão do arguido a julgamento, assim se fazendo Justiça.”

III. O recurso foi admitido por despacho de 19-03-2024 com a refª ...94 tendo sido fixado efeito suspensivo, o qual foi por nós corrigido para efeito devolutivo através do despacho de 05-06-2024 com a refª ...83.

IV. Nenhuma resposta foi oferecida.

V. Foi aberta vista nos termos do disposto no artº 416º nº 1 do CPP, tendo a Exmª Srª. Procuradora-Geral Adjunta proferido douto parecer em 09-05-2024, com a refª ...66, no qual também pugna pela procedência do recurso.

VI. Cumprido o disposto no artº 417º nº 2 do CPP nenhuma resposta foi oferecida.

VII. Foram colhidos os vistos e realizada a conferência.

VIII. Analisando e decidindo.

O objecto do recurso, e portanto da nossa análise, está delimitado pelas conclusões do recurso, atento o disposto nos artºs 402º, 403º e 412º todos do CPP.[1]
 
Entende o digno recorrente que a acusação por si apresentada não padece das falhas apontadas no despacho recorrido, devendo ter sido liminarmente admitida.
           
Está, assim, em causa saber se a acusação apresentada pelo MºPº reúne todos os requisitos legais para ser liminarmente admitido e, assim, levar ao agendamento de julgamento nos termos do artº 312º do Código de Processo Penal.
           
Vejamos, olhando, primeiro, o teor da acusação pública apresentada em 21-01-2024 com a refª ...31:

“O Ministério Público acusa para julgamento em processo comum com intervenção do Tribunal Singular, nos termos do artigo 16.º, n.º 2, al. b) e 283.º do Código de Processo Penal, o arguido:
AA, filho de DD e de EE, natural de ..., ..., nascido a ../../1991, solteiro, operário fabril, residente na Rua ..., em ...; porquanto:
1. O arguido e a ofendida, BB, iniciaram uma relação de namoro desde meados de 2011;
2. E passaram a viver em comunhão de mesa, cama e habitação, a partir de meados de 2015 até meados do ano de 2021;
3. Após, estiveram separados cerca de um ano,
4. E desde meados de 2022, voltaram a viver em comunhão de mesa, cama e teto até ao dia ../../2023, tendo fixado residência Rua ..., em ....
5. Desse relacionamento nasceu no dia ../../2018, CC.
6. À data dos factos a ofendida encontrava-se desempregada.
7. Durante a vivência como casal, o arguido, diariamente apelidou a vítima de gorda e, pelo menos uma vez por mês, apodava-a de puta.
8. E dizia-lhe que a mesma não fazia nada na vida, que era preguiçosa.
9. Desde o início do relacionamento que o arguido consumia substâncias estupefacientes, concretamente cannabis, vulgo haxixe, fazendo-o na presença do filho menor.
10. A ofendida pedia ao arguido que, pelo menos, não o fizesse na presença do filho comum;
11. Mas este ignorava-a, e mantinha o seu comportamento.
12. No dia ../../2023, em hora não apurada, no interior da habitação, o arguido disse à vitima que não a suportava, que já não conseguia olhar para ela.
13. E ordenou-lhe que saísse de casa, juntamente com o filho, expulsando-os.
14. A ofendida pediu ao arguido que lhe entregasse alguns objetos, nomeadamente, insufláveis, que necessitava para exercer a atividade que pretendia iniciar, com vista a prover pelo seu sustento.
15. Ao que este se recusou.
16. Assim, a ofendida teve de imediato deixar a casa, levando o seu filho, com receio de que este atentasse contra a sua integridade física ou vida.
17. Por ter sido expulsa, a vítima pediu auxilio ao seu padrasto, que a acolheu e ao menor.
18. No dia ../../2023, pelas 19.30, a ofendida, acompanhada por agentes da PSP, deslocou-se à Rua ..., em ..., com vista a retirar os seus bens pessoais e os instrumentos necessários à sua atividade profissional.
19. Porém, o arguido colocou o seu carro em frente à porta da garagem, impedindo a ofendida de aceder aos mesmos.
20. Contatado pelos Agentes da PSP, o arguido reiterou a sua recusa em entregar os mencionados bens da ofendida.
21. O arguido quis e logrou ferir a ofendida na sua honra e consideração, saúde psíquica, intimidá-la, provocar-lhe receio de vir a sofrer atos atentatórios contra a sua integridade física e vida, deixando-a sem teto, obstaculizando-a ao prover do seu sustento, privando-a de exercer a sua atividade profissional, bem sabendo que a sua conduta era adequada a causar-lhe tal receio, e vulnerabilidade económica e emocional, tudo por forma a afetar a sua dignidade pessoal, não se coibindo de assim atuar na residência destes, e na presença do filho menor, apesar de aquela ser sua companheira e mãe do seu filho, e, como tal, lhe merecer especial respeito.
22. O arguido agiu de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida pela lei penal.
Pelo exposto, o arguido cometeu, em autoria material e na forma consumada 1 (UM) CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA, agravado, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e c), e n.º 2, al. a), 4, 5 e 6 do Código Penal.
O Ministério Público requer ao abrigo das disposições conjugadas dos n.ºs 1 e 2 do artigo 21.º da Lei nº 112/2009, de 16 de setembro e artigo 82.º-A do Código de Processo Penal, que seja atribuída à vítima uma indemnização a ser paga pelo arguido.
Prova:
Testemunhal:
1. BB, vítima melhor id. a fl. 4v, cuja audição se requer que ocorra na ausência do arguido ou por videoconferência, nos termos do disposto nos artigos 352.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, 15.º, n.º 2, 21.º, n.º 2, al. c) da Lei n.º 130/2015, de 4-9, 20.º, n.º 2 e 32.º, n. º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16-09 e artigos 15.º e 29.º da Lei n.º 93/99, de 14-07, para sua proteção e para garantir a prestação de depoimento não condicionado pela presença do arguido;
2. O Sr. Agente da PSP, a requisitar, a prestar serviço na Esquadra ..., e melhor id. a fl. 4: FF, com o n.º de matrícula ...68.
Documental:
Auto de notícia de fls. 4 e ss
Assentos de Nascimento de fls. 26 e 27, 29 e ss
Certificado de registo criminal de fl. 28
Proteção da vítima (RISCO MÉDIO):
Determina-se o reforço do policiamento de proximidade, justificado pela prolação do presente despacho.
Promove-se que se proceda a reavaliação do risco nas posteriores fases do processo, mormente aquando da prolação do despacho que designa dia para o julgamento.
Estatuto coativo:
Promove-se que o arguido aguarde os ulteriores termos sujeito ao termo de identidade e residência, prestado a fl. 44.”

Nos termos do disposto no artº 311º do Código de Processo Penal, cuja epígrafe é “saneamento do processo”:

“1 - Recebidos os autos no tribunal, o presidente pronuncia-se sobre as nulidades e outras questões prévias ou incidentais que obstem à apreciação do mérito da causa, de que possa desde logo conhecer.
2 - Se o processo tiver sido remetido para julgamento sem ter havido instrução, o presidente despacha no sentido:
a) De rejeitar a acusação, se a considerar manifestamente infundada;
b) De não aceitar a acusação do assistente ou do Ministério Público na parte em que ela representa uma alteração substancial dos factos, nos termos do n.º 1 do artigo 284.º e do n.º 4 do artigo 285.º, respectivamente.
3 - Para efeitos do disposto no número anterior, a acusação considera-se manifestamente infundada:
a) Quando não contenha a identificação do arguido;
b) Quando não contenha a narração dos factos;
c) Se não indicar as disposições legais aplicáveis ou as provas que a fundamentam; ou
d) Se os factos não constituírem crime.”
             
E, nos termos do disposto no artº 283º do Código de Processo Penal, subordinado à epígrafe “acusação pelo Ministério Público”:
           
“1 - Se durante o inquérito tiverem sido recolhidos indícios suficientes de se ter verificado crime e de quem foi o seu agente, o Ministério Público, no prazo de 10 dias, deduz acusação contra aquele.
2 - Consideram-se suficientes os indícios sempre que deles resultar uma possibilidade razoável de ao arguido vir a ser aplicada, por força deles, em julgamento, uma pena ou uma medida de segurança.
3 - A acusação contém, sob pena de nulidade:
a) As indicações tendentes à identificação do arguido;
b) A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada;
c) As circunstâncias relevantes para a atenuação especial da pena que deve ser aplicada ao arguido ou para a dispensa da pena em que este deve ser condenado;
d) A indicação das disposições legais aplicáveis;
e) O rol com o máximo de 20 testemunhas, com a respetiva identificação, discriminando-se as que só devam depor sobre os aspetos referidos no n.º 2 do artigo 128.º, as quais não podem exceder o número de cinco;
f) A indicação dos peritos e consultores técnicos a serem ouvidos em julgamento, com a respectiva identificação;
g) A indicação de outras provas a produzir ou a requerer;
h) A indicação do relatório social ou de informação dos serviços de reinserção social, quando o arguido seja menor, salvo quando não se mostre ainda junto e seja prescindível em função do superior interesse do menor;
i) A data e assinatura.
(…)”

Ora, o despacho recorrido rejeitou a acusação, acima citada, assente na ideia de que a mesma se apresenta vaga e genérica, e que não há factos, antes, juízos de valor.
           
Recapitulemos o despacho no que a este aspecto diz directamente respeito:

«Ora, in casu, para além da conclusiva descrição factual contida nos pontos 9.º a 16.º da acusação, da mesma não se consegue depreender quantos episódios ocorreram, em que data e hora (se mais recentemente ou há já alguns anos), e as suas concretas circunstâncias, acabando por ter de concluir-se que a maioria dos factos descritos na acusação são vagos e conclusivos.
É que de relevo apenas se pode retirar que:
“Durante a vivência como casal, o arguido, (…) e, pelo menos uma vez por mês, apodava-a de puta” (parte do facto 7.); “E ordenou-lhe que saísse de casa, juntamente com o filho, expulsando-os (facto 13.)”. E de resto, também relativamente a estes episódios, não sabemos, no caso do primeiro mencionado a sua regularidade, nem os seus concretos contornos, quando ocorreram. E no caso do segundo facto mencionado, o termo utilizado é genérico e vago (a saber, expulsando-os), e não ressalta, nem consta da acusação, de que forma o arguido alegadamente expulsou a ofendida, para que daí resulte preenchido o elemento objectivo do tipo, traduzindo-se, quando individualmente considerado, num facto até inócuo do ponto de vista criminal.
No mais, quanto aos factos descritos: “Durante a vivência como casal, o arguido, diariamente apelidou a vítima de gorda” (parte do facto 7.); “No dia ../../2023, em hora não apurada, no interior da habitação, o arguido disse à vitima que não a suportava, que já não conseguia olhar para ela.” (facto 12.), sempre se refira, cremos que, desta descrição objectiva não avulta a imputação de quaisquer factos ou a prolação de quaisquer expressões desonrosas por parte do arguido.»

Ora, e salvo o devido respeito, não podemos sufragar o entendimento plasmado no despacho recorrido uma vez que se nos afigura que o Tribunal a quo parece não saber distinguir um facto de uma conclusão.

Veja-se que no despacho recorrido se afirma: “Ora, in casu, para além da conclusiva descrição factual contida nos pontos 9.º a 16.º da acusação…”

Contudo, olhando os factos vertidos em 9º a 16º da acusação, claramente se verifica tratarem-se de factos, e não meras conclusões ou descrição conclusiva:
             
“9. Desde o início do relacionamento que o arguido consumia substâncias estupefacientes, concretamente cannabis, vulgo haxixe, fazendo-o na presença do filho menor.
10. A ofendida pedia ao arguido que, pelo menos, não o fizesse na presença do filho comum;
11. Mas este ignorava-a, e mantinha o seu comportamento.
12. No dia ../../2023, em hora não apurada, no interior da habitação, o arguido disse à vitima que não a suportava, que já não conseguia olhar para ela.
13. E ordenou-lhe que saísse de casa, juntamente com o filho, expulsando-os.
14. A ofendida pediu ao arguido que lhe entregasse alguns objetos, nomeadamente, insufláveis, que necessitava para exercer a atividade que pretendia iniciar, com vista a prover pelo seu sustento.
15. Ao que este se recusou.
16. Assim, a ofendida teve de imediato deixar a casa, levando o seu filho, com receio de que este atentasse contra a sua integridade física ou vida.”

Os factos elencados em 9º a 16º da acusação são objectivos e concretos, não se vislumbrando matéria conclusiva.

Por outro lado, ao contrário do referido no despacho recorrido, os factos não são vagos, nem genéricos.

O facto de não se conseguir depreender quantos episódios ocorreram, em que data e hora (se mais recentemente ou há já alguns anos), e as suas concretas circunstâncias não leva forçosamente a que se considere a acusação vaga e genérica uma vez que o artº 283º nº 3 al. b) do CPP diz:
“A narração, ainda que sintética, dos factos que fundamentam a aplicação ao arguido de uma pena ou de uma medida de segurança, incluindo, se possível, o lugar, o tempo e a motivação da sua prática, o grau de participação que o agente neles teve e quaisquer circunstâncias relevantes para a determinação da sanção que lhe deve ser aplicada”.

Mas, no caso em apreço, a acusação pública até especifica as datas, excepto as horas que, francamente, não é sequer expectável que o fizesse, uma vez que está em causa uma narrativa que abrange alguns anos de convivência conjugal.

Veja-se:
1. O arguido e a ofendida, BB, iniciaram uma relação de namoro desde meados de 2011;
2. E passaram a viver em comunhão de mesa, cama e habitação, a partir de meados de 2015 até meados do ano de 2021;
3. Após, estiveram separados cerca de um ano,
4. E desde meados de 2022, voltaram a viver em comunhão de mesa, cama e teto até ao dia ../../2023, tendo fixado residência Rua ..., em ....
9. Desde o início do relacionamento que o arguido consumia substâncias estupefacientes, concretamente cannabis, vulgo haxixe, fazendo-o na presença do filho menor.
12. No dia ../../2023, em hora não apurada, no interior da habitação, o arguido disse à vitima que não a suportava, que já não conseguia olhar para ela.
13. E ordenou-lhe que saísse de casa, juntamente com o filho, expulsando-os.
18. No dia ../../2023, pelas 19.30, a ofendida, acompanhada por agentes da PSP, deslocou-se à Rua ..., em ..., com vista a retirar os seus bens pessoais e os instrumentos necessários à sua atividade profissional.
19. Porém, o arguido colocou o seu carro em frente à porta da garagem, impedindo a ofendida de aceder aos mesmos.

Francamente, não conseguimos compreender a dificuldade do Tribunal a quo em localizar factos objectivos, situados no tempo e no espaço, na acusação pública oferecida pelo MºPº que, a nosso ver, se mostra perfeitamente exemplar.

Afirma-se, ainda, no despacho recorrido que:

“No mais, quanto aos factos descritos: “Durante a vivência como casal, o arguido, diariamente apelidou a vítima de gorda” (parte do facto 7.); “No dia ../../2023, em hora não apurada, no interior da habitação, o arguido disse à vitima que não a suportava, que já não conseguia olhar para ela.” (facto 12.), sempre se refira, cremos que, desta descrição objectiva não avulta a imputação de quaisquer factos ou a prolação de quaisquer expressões desonrosas por parte do arguido.”
 
Além de se discordar da análise efectuada pelo Tribunal a quo de que os factos em referência não traduzem expressões desonrosas e ofensivas  – parece que o Tribunal a quo não só ignorou que da acusação consta a imputação ao arguido de ter apelidado a mulher de “puta”, e de “preguiçosa”, e o “não poder olhar para uma pessoa” revela “asco” ou “repulsa” que de per se são objectivamente ofensivas, como também ignora que muitos casos de bullying nas escolas andam em torno de apelidar a vítima de “gorda” que, no fundo, visa colocar em causa a sua auto-imagem e auto-estima – a verdade é que o Tribunal a quo antecipa-se no seu juízo de valor.

Veja-se o que diz o Tribunal a quo quanto a uma tomada de posição jurídica ainda antes do julgamento:

Ora, a este respeito é consabido que a função da incriminação em causa é de prevenir as frequentes formas de violência no âmbito da família, da educação e do trabalho. Tendo a reforma do Código Penal efetuada pelo Decreto-Lei n.º 48/95, de 15 de março, introduzido importantes alterações ao regime até aí existente, passando a incriminar a par dos maus tratos físicos, os maus tratos psíquicos. E, após a última revisão legislativa levada a cabo, esclareceu-se o que vinha sendo, precisamente, a maior querela interpretativa anteriormente suscitada, que consistia, precisamente, em saber se se exigia uma atuação reiterada do agente, repetindo sucessivamente condutas, alongando a violação típica no tempo, mesmo que por atuações diversas ou se bastava um único ato isolado, desde que a sua gravidade fosse tamanha que por si só, fosse adequado a atingir a dignidade do visado, isoladamente. E é precisamente neste último sentido que vai a atual previsão legislativa: basta um único ato para se integrar o tipo legal de crime em referência, desde que o mesmo, por si só, atinja o bem jurídico violado. Este consubstanciar-se-á, pois, na perpetração de qualquer ato de violência que afete, por alguma forma, a saúde física, psíquica e emocional da vítima, diminuindo ou afetando, do mesmo modo, a sua dignidade enquanto pessoa.
Todavia, não é suficiente qualquer ofensa à saúde física, psíquica, emocional ou moral da vítima, mas sim, e apenas, que os atos atinentes, analisados à luz do contexto especialmente desvalioso em que são perpetrados, se consubstanciem em maus tratos, isto é, quando revelem uma conduta maltratante especialmente intensa, uma relação de domínio que deixa a vítima em situação degradante ou um estado de agressão permanente.

Ora, o artº 311º do Código de Processo Penal não serve para o Tribunal de julgamento antecipar a sua decisão, sendo jurisprudência uniforme que o disposto no artº 283º nº 3 do Código de Processo Penal apenas obriga a narração de factos que permitam, em abstracto, o preenchimento dos elementos objectivos e subjectivos do respectivo tipo legal imputado.

Se, depois, na prática, não se faz prova dos factos ou se se concluir que os mesmos, dentro de determinada interpretação jurídica não permitem chegar à conclusão da prática do crime, é outro assunto completamente diferente e que tem de ser guardado para o momento da sentença.

Conforme tem sido jurisprudência assente, da qual aqui citamos apenas alguns exemplares:
“I. A acusação só deve ser considerada manifestamente infundada, e consequentemente rejeitada, com base na al. d) do nº3 do artº 311º do CPP, quando resultar evidente, que os factos nela descritos, mesmo que porventura viessem a ser provados, não preenchem qualquer tipo legal de crime.
II. Esse pressuposto não se verifica nos casos em que o juiz, no despacho saneador, fazendo um juízo sobre a relevância criminal dos factos, escorado em determinado entendimento doutrinal ou jurisprudencial, opta por uma solução jurídica, quando, na situação concreta, outra, ou outras, seriam possíveis. Ou seja: a previsão da al. d) do nº3 do artº 311º não pode valer para os casos em que só o entendimento doutrinal ou jurisprudencial adoptado, quando outro diverso se poderia colocar, sustentou a não qualificação dos factos como penalmente relevantes.”[2]

“I. Só e apenas quando de forma inequívoca os factos que constam na acusação não constituem crime é que o Tribunal pode declarar a acusação manifestamente infundada e rejeitá-la.
II. Os factos não constituem crime quando, entre outras situações, se verifica uma qualquer causa de extinção do procedimento ou se a factualidade em causa não consagra de forma inequívoca qualquer conduta tipificadora do crime imputado.
III. Se a questão focada na acusação for juridicamente controversa, o juiz no despacho do artigo 311º do CPP não pode considerar a mesma (acusação) manifestamente improcedente.”[3]

“I. Os poderes do juiz (de julgamento) sobre a acusação, antes do julgamento, são limitados.
II. O conceito de acusação «manifestamente infundada», assente na atipicidade da conduta imputada, implica um juízo sobre o mérito de uma acusação que, formalmente válida, possa ser manifestamente desmerecedora de julgamento, não justificando o debate.
III. Mas a alínea d), do nº 3 do art. 311º do Código de Processo Penal não acolhe um exercício dos poderes do juiz que colida com o acusatório; o tribunal é livre de aplicar o direito, mas não pode antecipar a decisão da causa para o momento do recebimento da acusação, devendo apenas rejeitá-la quando ela for manifestamente infundada, ou seja, quando não constitua manifestamente crime.
IV. Se os factos narrados realizam crime segundo uma corrente jurisprudencial significativa, não pode a acusação ser considerada como manifestamente infundada.”[4]
- sublinhado e negrito nossos

Ora, no caso sub judice, a acusação apresentada pelo MºPº é clara, contém a narração de todos os factos necessários ao preenchimento do tipo legal imputado ao arguido, não sendo inequívoca que os factos em apreço não constituem crime.

Apelidar uma mulher de “puta” “preguiçosa” e “gorda”, é não só abstractamente ofensivo e insultuoso, como tendo sido alegadamente efectuado dentro de um contexto de convivência conjugal, onde é devido o maior respeito entre cônjuges/unidos de facto, revela, dada a alegada frequência, um ataque à pessoa da vítima que se vê humilhada de forma sistemática, atingida na sua dignidade enquanto mulher e companheira.

Um homem dizer à sua mulher que não a suporta, nem sequer quer olhar para ela é altamente degradante para a mulher que se vê repudiada, tendo o arguido alegadamente expulso da casa comum mulher e filho, deixando-os na rua com apenas a roupa do corpo, e não permitindo que a mulher vá buscar os seus pertences, nem os seus instrumentos de trabalho, exerce um claro domínio e uma vontade de subjugação em relação à mulher a quem nega os mais elementares deveres de respeito, colocando em causa a sua dignidade humana.
 
Como é que o arguido expulsou a mulher e filho é algo que deve ficar reservado para o julgamento, como a concretização da restante matéria de facto que está sujeita a prova.

Ora, o Tribunal a quo fez um julgamento sumário olhando apenas para a acusação sem lograr demonstrar em que medida faltam factos necessários para preenchimento do crime imputado ao arguido.

O Tribunal a quo despende linhas a conjecturar sobre um crime de injúria (que ao que parece não vê na matéria de facto apesar dos epítetos “puta”, “preguiçosa” e “gorda”) quando o crime imputado é um crime de violência doméstica que se insere num contexto mais amplo e específico, e toma partida, sem sequer permitir que se faça prova sobre a dinâmica dos factos, acerca do que para si será uma insignificância penal, em total oposição ao que tem sido o entendimento jurisprudencial nesta matéria.

Porque a acusação pública contém todos os factos necessários para o preenchimento do crime em causa, quer em relação aos elementos objectivos do tipo penal em questão, quer em relação aos elementos subjectivos, não se mostrando a acusação nem vaga, nem genérica, nem conclusiva, claro se torna ver que o despacho recorrido tem de ser revogado e substituído por outro que receba a acusação e designe data para o respectivo julgamento tendo em atenção que estamos no âmbito de um processo com natureza urgente.

Tem, assim, de proceder o presente recurso.

Decisão:

Em face do acima exposto os Juízes Desembargadores da Secção Penal da Relação de Guimarães decidem conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, em consequência, anulam a decisão recorrida, devendo a mesma ser substituída por uma que, admitindo liminarmente a acusação pública, designa data para julgamento nos termos do artº 312º do Código de Processo Penal.
Sem custas.
                                                          
Guimarães, 18 de Junho de 2024.
                                                          
Florbela Sebastião e Silva (Relatora)
Madalena Augusta Parreiral Cabral (1ª Adjunta)
Isabel Cristina Gaio Ferreira de Castro (2ª Adjunta)
                                             


[1] Ver a nota 1 do acórdão da RC de 21/01/2009, relatado por Gabriel Catarino, no proc. 45/05.4TAFIG.C2, in www.dgsi.pt, que reproduzimos: “Cfr. Ac. do Supremo Tribunal de Justiça de 05.12.2007; proferido no proc. nº 1378/07, disponível in Sumários do Supremo Tribunal de Justiça; www.stj.pt. “O objecto do recurso é definido e balizado pelas conclusões extraídas da respectiva motivação, ou seja, pelas questões que o recorrente entende sujeitar ao conhecimento do tribunal de recurso aquando da apresentação da impugnação – art. 412.º, n.º 1, do CPP –, sendo que o tribunal superior, tal qual a 1.ª instância, só pode conhecer das questões que lhe são submetidas a apreciação pelos sujeitos processuais, ressalvada a possibilidade de apreciação das questões de conhecimento oficioso, razão pela qual nas alegações só devem ser abordadas e, por isso, só assumem relevância, no sentido de que só podem ser atendidas e objecto de apreciação e de decisão, as questões suscitadas nas conclusões da motivação de recurso, questões que o relator enuncia no exame preliminar – art. 417.º, n.º 6, do CPP –, a significar que todas as questões incluídas nas alegações que extravasem o objecto do recurso terão de ser consideradas irrelevantes. Cfr. ainda Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 24.03.1999, CJ VII-I-247 e de 20-12-2006, processo 06P3661 em www.dgsi.pt) no sentido de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões formuladas [Ressalvando especificidades atinentes à impugnação da matéria de facto, na esteira do doutrinado pelo acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 17-02-2005, quando afirma que :“a redacção do n.º 3 do art. 412.º do CPP, por confronto com o disposto no seu n.º 2 deixa alguma margem para dúvida quanto ao formalismo da especificação dos pontos de facto que no entender do recorrente foram incorrectamente julgados e das provas que impõem decisão diversa da recorrida, pois que, enquanto o n.º 2 é claro a prescrever que «versando matéria de direito, as conclusões indicam ainda, sob pena de rejeição» (...), já o n.º 3 se limita a prescrever que «quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar (...), sem impor que tal aconteça nas conclusões.” -proc 04P4716, em www.dgsi.pt; no mesmo sentido o acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 16-06-2005, proc 05P1577,] (art.s 403º e 412º do Código de Processo Penal), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (art. 410º nº 2 do Código de Processo Penal e Acórdão do Plenário das secções criminais do STJ de 19.10.95, publicado no DR Iª série A, de 28.12.95).”.
[2] Acórdão da Relação de Lisboa de 25-11-2009 localizável em:
https://www.pgdlisboa.pt/jurel/jur_busca_processo.php?buscaprocesso=742/08.2GCMFR.S1.L1&codseccao=3
[3] Acórdão da Relação do Porto de 11-07-2012 localizável em:
http://www.dgsi.pt/jtrp.nsf/d1d5ce625d24df5380257583004ee7d7/488fc56f7c684f8780257a44003184c5?OpenDocument
[4] Acórdão da Relação de Évora de 15-10-2013 localizável em:
http://www.dgsi.pt/jtre.nsf/134973db04f39bf2802579bf005f080b/a447d2b470d54dff80257c0500362a0f?OpenDocument