Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
140/24.0T8VRL-E.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: PROCESSO CRIME OU DE MERA ORDENAÇÃO SOCIAL
ARRESTO PREVENTIVO
APREENSÃO DE BENS
INTERESSES PÚBLICOS DO ESTADO
INSOLVÊNCIA
EXCLUSÃO DE BENS A APREENDER
INTERESSES PRIVATÍSTICOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 10/17/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. A perda de bens produzidos por, e de vantagens resultantes do, crime constitui um instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium, anunciando ao agente do crime, ao potencial criminoso e à comunidade em geral que nenhum benefício resultará da prática de um ilícito («o crime não compensa»); e, prosseguindo finalidades primacialmente preventivas, encerra um mecanismo penal de protecção de bens jurídicos, garantindo, desta forma, um ordenamento patrimonial sadio (em que apenas se admitem modos de aquisição e de incremento patrimonial válidos, não sendo a prática de crimes uma forma legítima de enriquecer.

II. No regime da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro (que estabeleceu medidas de combate à criminalidade organizada), nomeadamente no seus art.º 7.º e 10.º, está-se perante o que vulgarmente se designa por perda alargada ou ampliada, em que não há conexão directa entre a perda (do património incongruente) e o facto ilícito típico: estende-se o confisco a vantagens de origem desconhecida que se encontram na posse ou titularidade do agente, através de presunções que assentam na condenação por certos crimes tipicamente rendosos.

III. Face às presunções que permitem o apuramento da vantagem económica que terá resultado da prática de determinado tipo de crime (muito antes, ou de forma independente, da concreta identificação e localização dos bens ou valores que essa mesma vantagem terá permitido adquirir ou transferir para o criminoso), numa grande maioria de casos (precisamente os relacionados com a prática dos crimes mais rentáveis e de mais difícil investigação e prova) só o arresto preventivo permitirá assegurar os desígnios de prevenção geral e especial ínsitos na sua futura e definitiva perda.

IV. Os interesses públicos do Estado na prevenção e repressão da actividade criminosa devem prevalecer sobre os interesses privatísticos ínsitos na execução universal de bens pelo colectivo dos credores de um devedor insolvente (criminoso ou terceiro de má fé, face à obtenção de bens ou vantagens que integram o seu património); e a declaração de insolvência não constitui qualquer causa de restrição ou constrangimento à responsabilização penal, determinada noutros e independentes pressupostos.

V. Todos os bens apreendidos no âmbito de um processo criminal ou de contra-ordenação, mercê de infração que ali se investigue ou julgue, não poderão ser apreendidos no processo de insolvência, independentemente de o terem sido nos termos do art.º 178.º ou do art.º 228.º, ambos do CPP, face à ratio da excepção prevista na parte final da al. a) do n.º 1 do art.º 149.º, do CIRE.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada
1.1.1. Em 03 de Novembro de 2023, no procedimento cautelar n.º 13738/15.... (do Juízo de Instrução Criminal do Porto - Juiz ...) foi decretado o arresto do património de EMP01..., Limitada, para  garantia da futura perda de vantagens adquiridas por força da prática de diversos crimes (entre eles associação criminosa, prevaricação, participação económica em negócio, branqueamento e falsificação de documento), sendo os relacionados especificamente com esta Sociedade os de prevaricação e participação económica em negócio, previstos e puníveis, respectivamente, pelos art.ºs 11.º e 23.º, ambos da Lei n.º 34/87 de 16 de Julho (tudo conforme decisão judicial respectiva  junta as autos, que aqui se dá por integralmente reproduzida).

1.1.2. Em 07 de Novembro de 2023, no procedimento cautelar n.º 13738/15.... (do Juízo de Instrução Criminal do Porto - Juiz ...) foi arrestado o «património titulado pela sociedade arguida, EMP01..., LDA., identificada pelo NIPC ...43, na pessoa do seu representante legal, AA» (arresto determinado em 03 de Novembro de 2024), nele se incluindo um prédio urbano, sito em ..., descrito sob o n.º  ...53... da freguesia e concelho ..., e inscrito na matriz predial sob o artigo ...68 (tudo conforme «AUTO DE ARRESTO» junto as autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido, com bold apócrifo).

1.1.3. Em 26 de Novembro de 2023, no processo crime n.º 13738/15.... (do ... Juízo de Instrução Criminal do Porto) foi deduzida acusação (que aqui se dá por integralmente reproduzida) contra plúrimos arguidos, mas não contra EMP01..., Limitada, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
Relativamente às sociedades EMP01..., EMP02..., EMP03..., EMP04..., EMP05..., Lda., EMP06..., EMP07..., EMP08..., EMP09..., EMP10... e EMP11..., Lda. apurou-se os factos descritos na acusação que consubstanciam apenas a prática de crimes de prevaricação e participação económica em negócio, p. e p. pelos artigos 11.º e 23.º da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, não se encontram contemplados no artigo 11.º, n.º 2, do Código Penal, nem mesmo no artigo 6.º-A da Lei n.º 34/87, de 16 de julho, aditado pela Lei n.º 94/2021, de 21 de dezembro. Em igual situação se encontram as sociedades EMP12..., EMP13..., EMP14... e EMP15....

Relativamente a todas as demais circunstâncias denunciadas, realizadas todas as diligências de prova elencadas na acusação, nomeadamente buscas domiciliárias e não domiciliárias, interceções telefónicas, análise de material digital, dos procedimentos suspeitos, das contas bancárias dos arguidos e demais documentação apreendida, efetuadas perícias pelo sector de perícia financeira e contabilística e a intervenção de um Especialista do NAT, não foi possível recolher indícios suficientes da prática de crime, com exceção dos factos pelos quais a seguir se deduz acusação.

Pelo que, considerando a prova produzida nos autos e os factos fortemente indiciados, não resulta a necessidade de realizar quaisquer outras diligências de prova, insuscetível de alterar as conclusões alcançadas na presente investigação.
Assim, determina-se o arquivamento dos autos, nesta parte, ao abrigo do disposto no artigo 277.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Penal.
(…)»

1.1.4. Em 25 de Janeiro de 2024, nos autos de insolvência pertinentes a EMP01..., Limitada (que com o n.º 140/24.... corem termos pelo Juízo de Comércio de Vila Real) - que a ela se apresentou em 15 de Janeiro de 2024 - foi declarada a insolvência respectiva por sentença (que aqui se dá por integralmente reproduzida), lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
5 - Ordeno a imediata apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, dos elementos da contabilidade da insolvente e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos (art. 36º al. g) do Código da Insolvência e a Recuperação de Empresa).
(…)
Nos termos do disposto no art. 88º nº 1 do Código da Insolvência e da recuperação de Empresa, com a presente sentença fica vedada a possibilidade de instauração ou de prosseguimento de qualquer ação executiva que atinja o património da insolvente.
(…)»

1.1.5. Em 21 de Fevereiro de 2024, no procedimento cautelar n.º 13738/15.... (do Juízo de Instrução Criminal do Porto - Juiz ...) foi proferido acórdão (que aqui se dá por integralmente reproduzido) pelo Tribunal da Relação do Porto, julgando improcedente o recurso antes interposto pela aqui Insolvente (EMP01..., Limitada) e Outros, relativamente à decisão que decretara o arresto do seu património, mantendo o mesmo, lendo-se nomeadamente no dito acórdão:
«(…)
A perda alargada é uma non conviction based confiscation, porquanto não significa uma condenação pela prática de um determinado crime, mas apenas a perda de um património incongruente, que tem como pressuposto uma condenação, mas não se confunde com ela.
Conforme refere o Tribunal Constitucional, “embora enxertado naquele processo penal, o que está em causa neste procedimento não é já apurar qualquer responsabilidade penal do arguido, mas sim verificar a existência de ganhos patrimoniais resultantes de uma atividade criminosa. Daí que, quer a determinação do valor dessa incongruência, quer a eventual perda de bens dai decorrente, não se funde num concreto juízo de censura ou de culpabilidade em termos ético-jurídicos, em num juízo de concreto perigo daqueles ganhos servirem para a prática de futuros crimes, mas numa constatação de uma situação em que o valor do património do condenado, em comparação com o valor dos rendimentos lícitos auferidos por este faz presumir a sua proveniência ilícita, importando impedir a manutenção consolidação dos ganhos ilegítimos 2”.
Trata-se de um mecanismo processual cautelar, reverso adjectivo de mecanismo substantivo previsto no artigo 111.º, n.º 4, do Código Penal, revelando uma área de tutela específica, mais reduzida do que a da apreensão tradicional.
Com efeito, neste caso está apenas em causa a apropriação provisória ou a mera criação judicial de um vínculo de indisponibilidade sobre coisas localizadas no património lícito do visado, cuja posse não pode ser, em princípio, censurada. Já não há nenhuma ligação reprovável, ainda que atenuada (sucedâneo, vantagem indireta) entre uma coisa e um crime qualquer.
Enquanto que a apreensão garante o confisco da própria coisa que consubstancia a vantagem, aqui acautela-se a perda do seu valor. Garante-se o confisco do património incongruente. Sendo impossível demonstrar uma relação entre esse património e um qualquer crime concreto, a lei autoriza apenas o arresto.
Quando estão em causa os proventos, direta ou indiretamente, resultantes da prática do crime ou o seu sucedâneo, o legislador utiliza a apreensão; quando apenas está em causa o valor daqueles proventos ou do património incongruente o legislador utiliza o arresto.
Como referimos supra, no arresto para perda alargada já não está em causa garantir o confisco do valor da vantagem decorrente da prática de um crime, mas apenas assegurar a perda do valor do património incongruente do arguido, nomeadamente daquele património que não é compatível com os seus rendimentos lícitos. Para além das vantagens associadas à prática do crime sub judicio, emerge aqui um património inexplicável, que importa confiscar.
Neste caso não há sequer uma relação entre o valor da incongruência e um qualquer crime passado. O grau de ligação entre o quantum da incongruência e o crime é uma mera presunção: o valor do património incongruente presume-se proveniente de actividade criminosa, não sendo necessário proceder, sequer, à sua identificação e demonstração. O que está em causa é uma situação patrimonial inexplicável presumivelmente proveniente de atividade criminosa, que, todavia, o Ministério Público não consegue imputar a um qualquer crime concreto.
(…)»

1.1.6. Em 27 de Fevereiro de 2024, nos autos de insolvência pertinentes a EMP01..., Limitada, foi apreendido como verba única o prédio «urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...53, da freguesia e concelho ..., inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...68, com o valor patrimonial de € 111.038,85» (tudo conforme «AUTO DE ARROLAMENTO Nº 01 - BENS IMÓVEIS» junto as autos, que aqui se dá por integralmente reproduzido).

1.1.7. Em 24 de Abril de 2024, nos autos de insolvência pertinentes a EMP01..., Limitada, foi proferido despacho (que aqui se dá por integralmente reproduzido), pedindo informação ao processo crime n.º 13738/15.... sobre o eventual levantamento do arresto de bens da referida Sociedade ali realizado, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Requerimento de 25.03.2024: Conforme resulta do relatório junto pelo administrador, o património da insolvente foi alvo de arresto preventivo no âmbito do processo crime identificado nos autos, razão pela qual não se mostram até ao presente apreendidos outros bens além do assinalado.
*
Compulsados os elementos referentes ao citado processo crime, mormente o despacho de acusação, verifica-se que a sociedade insolvente não foi acusada e havendo interesse na apreensão integral do património que a ela pertence, com vista à sua liquidação pelo administrador da insolvência, oficie ao processo (crime) em referência (13738/15....), com nota de urgente, para que informe quanto às condições para o imediato levantamento do arresto ali ordenado, ao património da sociedade EMP01..., Lda., aqui declarada insolvente por sentença transitada em julgado, sob pena de se estar a subtrair bens a um património destinado à satisfação dos credores, que nos autos da insolvência tem universalmente garantidos os seus créditos por via da reclamação, quando é certo que inexiste fundamento para manter o arresto desse património que não pertence aos arguidos, para garantir direitos dos seus credores.
(…)»

1.1.8. Em 14 de Maio de 2024, no processo crime n.º 13738/15...., foi proferido despacho aderindo a prévia promoção do Ministério Público, mantendo o arresto dos bens de EMP01..., Limitada, lendo-se nomeadamente na referida promoção (que aqui se dá por integralmente reproduzida):
«(…)
Em primeiro lugar cumpre-nos clarificar que o referido art.º 36.º, alí. g), do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante, apenas CIRE), refere-se a arresto e penhoras cíveis, inaplicável in casu.
Analisando a questão material, sempre diremos, num esforço de síntese argumentativa mais telegráfica, o seguinte:
- O confisco das vantagens possui carácter quase absoluto que apenas cede perante terceiros de boa fé;
- Os eventuais credores na insolvência (que não conhecemos) não são terceiros, nem a insolvente está de boa fé (atendendo aos factos descritos na acusação);
- O arresto foi efetivado antes da data da insolvência (o que, a nosso ver, até poderá reconduzir desde logo a insolvência a uma insolvência dolosa);
- As vantagens do crime não deixam de o ser, ou seja, não passam a assumir diferente natureza pelo simples facto de ter sido requerida e decretada a insolvência;
- O crime não é título aquisitivo da propriedade e o património que os credores eventualmente poderiam almejar receber é apenas aquele que pertence à insolvente e não o produto do crime ou o que se presume produto do crime.
(…)
Mas, na senda da fundamentação mais telegráfica que aduzimos supra, densificamos e discriminados assim os argumentos mais relevantes:
i. O crime não é titulo aquisitivo; o crime não constitui uma forma de adquirir a “propriedade” sobre um bem ou valor, e nessa medida, o património que os credores eventualmente poderiam almejar receber é apenas aquele que pertence ao insolvente, e não aquele que, por ter sido obtido mediante a lesão dos interesses de toda a sociedade, pertence à comunidade de cidadãos representada pelo Estado.
As formas de aquisição da propriedade estão expressamente previstas na Lei, e nelas não se inclui a prática do crime.

ii. As vantagens do crime não deixam de o ser, ou seja, não passam a assumir diferente natureza, pelo simples facto de ter sido requerida e decretada a declaração de insolvência;

iii. Qualquer ação tendente a assegurar conversão, transferência, ocultação ou dissimulação das vantagens do crime configura um comportamento que assume relevância penal;

iv. O confisco pelo Estado representa o único destino legal e legítimo para as vantagens do crime.
Seria impensável que se admitisse que as vantagens do crime, ou o incremento patrimonial correspondente que estas geraram, servisse para pagar as dívidas que direta ou indiretamente oneram o(s) arguido(s).

v. A remoção dos incentivos económicos obtidos com a prática do facto ilícito típico é obrigatória e não está sujeita a critérios de oportunidade ou muito menos de conveniência.
A formulação legislativa das normas substantivas é inequívoca e não deixa margem à discricionariedade: o artigo 110.º do Código Penal é inequívoco a esse respeito: “1 - São declarados perdidos (….)” (sublinhado e ênfase nossos)

vi. O confisco das vantagens possui carácter quase absoluto; cede, apenas, perante a necessidade de proteção dos “terceiros” de “boa-fé (ou seja, significa que este terceiro, estando de boa-fé, deverá ser reconhecido como aquele que tem o poder ou a capacidade de impedir a concretização do confisco).
Nos termos previstos no artigo 111.º do CP: por um lado temos de distinguir a posição do insolvente, e, por outro, a posição dos credores desse insolvente. O insolvente, ainda que possa ser classificado como «terceiro» não estará, em regra, de «boa-fé» tal como este conceito deve ser concretizado no confisco das vantagens, e os credores da insolvente, podendo eventualmente estar de «boa-fé», não são para estes efeitos «terceiros».
E, após a entrada em vigor da Lei n.º 30/2017, de 30-05, o ordenamento jurídico nacional continuou a fazer referência, unicamente, aos bens «pertencentes» a terceiros: Art.º 111.º, n.º 1: (…) a perda não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens não pertencerem, (…) nenhum dos agentes ou beneficiários. (sublinhado nosso)
A Directiva 2014/42 EU refere a este respeito, no considerando 33, as garantias que são devidas aos “terceiros que alegam ser proprietários dos bens em causa ou titulares de outros direitos de propriedade («direitos reais» ou «ius in re»).
Nesta medida, não deverá reconhecer-se legitimidade para evitar a concretização do confisco àquele que invoque outro direito real para além da propriedade plena.
Os credores não são proprietários. Uma corrente jurisprudencial vem admitindo que, nestes casos, pese embora a impossibilidade de travar o confisco, poderão os credores obter o ressarcimento devido através da convocação da doutrina da “perda da chance” responsabilizando o património pessoal dos responsáveis pela prática do facto ilícito típico [Cour de cassation 27 février 2008].
Será no processo penal, com as regras próprias vigentes nesta constelação normativa, que deverá ser apreciada e resolvida a questão relativa à manutenção ou não do arresto ou da apreensão decretados com vista a assegurar a perda das vantagens do crime, e do subsequente confisco, quando o proprietário seja declarado insolvente.
Fins do processo penal enquanto instrumento de realização da justiça que nas palavras de Figueiredo Dias visa alcançar: “a revelação das grandes relações funcionais entre as singulares normas e problemas jurídico-processuais e a totalidade da ordem jurídica”.
Não existe, em qualquer outra jurisdição, uma regra semelhante à prevista no artigo 7.º do CPP, que permite conhecer todas as questões jurídicas que interessem à decisão da causa penal.
O Tribunal Penal poderá conhecer as questões relativas à insolvência, à proteção dos credores e vítimas, e à responsabilização penal e civil dos arguidos. O contrário não é verdade, ou seja, a jurisdição onde se decidem e resolvem as questões relativas à insolvência não possui legitimidade para apreciar questões que integrem a «causa penal», sejam de natureza criminal ou de natureza patrimonial.
Face ao predito, os eventuais credores do arguido insolvente não integram o conceito de “terceiro”, não podendo, pois, impedir o confisco, ainda que sejam titulares de direitos reais de garantia sobre os bens a confiscar.

Face ao predito, as finalidades que subjazem ao confisco não podem ser colocadas em crise por via da declaração da insolvência.
Não se olvide que, as vantagens provenientes da prática de facto ilícito típico mantêm a mesma natureza após decretação da insolvência.
Não se afigura, pois, admissível, nem defensável, que os credores vejam as suas dívidas solvidas com tais vantagens.

A. Nesta medida, promovo se indefira, in totum, o requerido pelo Exmo. Administrador de Insolvência;

B. Promovo se informe o processo de insolvência n.º 140/24...., a correr termos no Juízo de Comércio de Vila Real, da pendência deste ‘nosso’ processo (principal), com cópia da presente promoção, enviando também para cabal esclarecimento, cópia integral do despacho de acusação proferido, e bem assim do arresto ao património titulado pela sociedade arguida, aí insolvente, ‘EMP01... Lda.’, nomeadamente, a conta bancária referida supra com o IBAN  ...42 e o património imobiliário, nos termos que o próprio auto de arresto documenta;

C. Mais promovo se informe o meu Exmo. Colega titular naqueles autos de insolvência no Juízo do Comércio de Vila Real da pendência deste ‘nosso’ processo crime (principal) e dos bens arrestados à sociedade arguida (com menção à data do arresto e com envio de cópia do respetivo auto), com cópia da presente promoção, em ordem a que, se verificados os respetivos pressupostos, diligencie pela reclamação de créditos ou verificação ulterior créditos (ainda que condicional, atendendo ao arresto penal) e ainda aferir, em concreto, da possível insolvência dolosa.
(…)»

1.1.9. Em 03 de Junho de 2024, nos autos de insolvência pertinentes a EMP01..., Limitada, o Administrador da Insolvência veio pedir que o Tribunal a quo se pronunciasse sobre o eventual levantamento da apreensão de imóvel realizada nos mesmos autos, lendo-se nomeadamente no seu requerimento (que aqui se dá por integralmente reproduzido):
«(…)
a) Através da presente notificação foi o aqui signatário notificado para informar os autos acerca do estado da liquidação;

b) Contudo, tal como é do conhecimento dos presentes autos, os bens apreendidos a favor da massa insolvente (imóvel e saldo bancário) foram previamente arrestados no âmbito do procedimento cautelar com o n.º de processo 13738/15...., do Juízo de Competência Genérica de Montalegre, do Tribunal da Comarca de Vila Real;

c) Sendo que, entretanto, o referido Tribunal entende que o arresto determinado e confirmado em sede de recurso naqueles autos é de manter;

d) Pelo que indeferiu o requerido pelo Administrador de Insolvência quando requereu a transferência do valor arrestado para a conta bancária da massa insolvente;

e) Entendimento que, agora, em face do exposto na promoção do Ministério Público, o aqui signatário, salvo melhor opinião, entende ser o correcto por aplicação do disposto na parte final da alínea a), do n.º 1, do artigo 149º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas;

f) Sucede que, entretanto, o aqui signatário, no âmbito do referido processo n.º 13738/15...., foi notificado pelo Ministério Público para proceder ao levantamento da apreensão do imóvel, conforme consta da cópia da respectiva notificação que aqui se junta (Doc. 01);

g) Situação que o aqui signatário ainda se encontra a analisar e que a entender-se ser de realizar terá de ser sempre autorizada pelo presente Tribunal, sendo que, desde já, o aqui signatário solicita pronúncia quanto a tal aspecto.
(…)»

1.1.10. Em 11 e 13 de Junho de 2024, nos autos de insolvência pertinentes a EMP01..., Limitada, notificadas da promoção do Ministério Públio, as credoras EMP16..., S.A., EMP17..., S.A. e Banco 1..., S.A. vieram pronunciar-se, pedindo que se mantivesse a apreensão do imóvel realizada no processos de insolência.
Alegaram para o efeito que: o imóvel pertenceria à Sociedade e não aos seus sócios; só estes, e não também aquela, foram alvos de uma acusação crime; e não haveria qualquer decisão a declará-lo perdido a favor do Estado.

1.1.11. Em 20 de Junho de 2024 foi proferido despacho (que aqui se dá por integralmente reproduzido) nos autos de insolvência pertinentes a EMP01..., Limitada, mantendo a apreensão de imóvel nele realizada, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Requerimentos de 11.06 e 13.06 de 2024: Por despacho datado de 24.04.2024 este Tribunal oficiou ao processo crime que corre termos no Juízo de Competência Genérica de Montalegre, com o n.º 13738/15...., no sentido de ser levantado o arresto que incide sobre o(s) bens da aqui insolvente, já que a mesma não foi constituída arguida naqueles autos, com os fundamentos dele constantes.
Não obstante, no dito processo crime decidiu-se manter o arresto preventivo sobre tais bens.
Dado conhecimento ao administrador da insolvência do exposto veio o mesmo requerer o levantamento do imóvel aqui apreendido, o que mereceu expressa oposição dos credores EMP17..., S.A., EMP16...; S.A. e Banco 1..., S.A..
Em face da posição fundamentada dos credores e na sequência do já consignado nos autos, decide-se manter a apreensão, cujo levantamento foi requerido aos 03.06.2024.
Notifique e dê conhecimento ao processo crime acima identificado.
(…)»
*
1.2. Recursos
1.2.1. Fundamentos
Inconformado com o despacho a manter a apreensão de imóvel realizada no processo de insolvência de EMP01..., Limitada, o Ministério Público interpôs recurso de apelação, pedindo que se revogasse o mesmo e se ordenasse o levantamento daquela apreensão.
 
Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):

1. A apreensão excepcionada pela parte final da al. a) do nº1 do artigo 149º do CIRE inclui o arresto determinado para garantia da perda em valor das vantagens obtidas com a prática de infracção de carácter criminal.

2. O interesse público na «prevenção da criminalidade em globo, ligado à ideia (…) de que «o ´crime` não compensa», por um lado, e na «necessidade de restauração da ordem patrimonial dos bens correspondente ao direito vigente», por outro, deve prevalecer sobre o interesse dos credores na satisfação dos seus créditos. 

3. Não cumpre à instância de comércio sindicar a bondade da decisão de arresto proferida por instância penal, nomeadamente pelo facto de o insolvente não ter assumido a qualidade de arguido na acusação deduzida perante esta última.

4. Por isso, constatando o tribunal que o imóvel apreendido na insolvência havia sido arrestado para garantia da perda em valor das vantagens obtidas com a prática de infracção de carácter criminal, outra decisão não lhe cabia senão a de ordenar o respectivo levantamento.

5. Não o fazendo, o tribunal violou o disposto no indicado artigo 149º nº1 al.a), parte final, do CIRE.

6. Termos em que, salvo melhor entendimento, deve a decisão ora em crise ser revogada e substituída por outra que ordene o levantamento da apreensão levada a cabo para garantia dos interesses dos credores.
*
1.2.2. Contra-alegações
Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.
*
II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL
O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (arts. 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC) [1].
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida) [2], uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação/reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa).
*
2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar
Mercê do exposto, e do recurso de apelação do Ministério Público (interposto de despacho a manter a apreensão de imóvel realizada nos autos de insolvência pertinentes a EMP01..., Limitada), uma única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal ad quem:

· Questão Única - Tendo sido previamente arrestado um imóvel para garantia da perda em valor das vantagens obtidas com a prática de infracção de carácter criminal, deverá o mesmo ficar isento de posterior apreensão em processo de insolvência relativo ao seu proprietário (por aquele arresto estar excepcionado na parte final da al. a) do n.º 1 do art.º 149.º do Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas [3]) ?  
*
III - FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

Com interesse para a apreciação das questões enunciadas, encontram-se assentes (mercê do conteúdo dos próprios autos) os factos já discriminados em «I - RELATÓRIO», que aqui se dão por integralmente reproduzidos.
*
IV - FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO

4.1. Perda de bens e/ou vantagem económica a favor do Estado
4.1.1. Regime geral
4.1.1.1. Código Penal
Lê-se no art.º 110.º do CP que: são «declarados perdidos a favor do Estado» os «produtos de facto ilícito típico, considerando-se como tal todos os objetos que tiverem sido produzidos pela sua prática»  e as «vantagens de facto ilícito típico, considerando-se como tal todas as coisas, direitos ou vantagens que constituam vantagem económica, direta ou indiretamente resultante desse facto, para o agente ou para outrem» (n.º 1); a «perda dos produtos e das vantagens referidos nos números anteriores tem lugar ainda que os mesmos tenham sido objeto de eventual transformação ou reinvestimento posterior, abrangendo igualmente quaisquer ganhos quantificáveis que daí tenham resultado» (n.º 3); se «os produtos ou vantagens referidos nos números anteriores não puderem ser apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor, podendo essa substituição operar a todo o tempo, mesmo em fase executiva, com os limites previstos no artigo 112.º-A» (n.º 4); e o «disposto nos números anteriores tem lugar ainda que nenhuma pessoa determinada possa ser punida pelo facto, incluindo em caso de morte do agente ou quando o agente tenha sido declarado contumaz» (n.º 5).
Está-se aqui (no regime do CP) perante o que vulgarmente se designa por perda [4] comum, clássica ou tradicional, isto é, «aquela que exige a demonstração do vínculo existente entre o facto ilícito típico em investigação e aquele bem concreto, susceptível de ser declarado perdido, de que é exemplo paradigmático a perda dos instrumentos, produtos e vantagens previstas no (…) Código Penal, ou a perda de objectos, coisas ou direitos relacionados com o facto, no âmbito (…) do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro» (Hélio Rigor Rodrigues, «Gabinete de Recuperação de Activos - O que é, para que serve e como actua», Revista do CEJ, 2013, pág. 71).

A perda de bens produzidos por, e de vantagens resultantes do, crime constitui um instrumento de política criminal, com finalidades preventivas, através do qual o Estado exerce o seu ius imperium, anunciando ao agente do crime, ao potencial criminoso e à comunidade em geral que nenhum benefício resultará da prática de um ilícito («o crime não compensa») [5]; e, prosseguindo finalidades primacialmente preventivas, encerra um mecanismo penal de protecção de bens jurídicos, garantindo, desta forma, um ordenamento patrimonial sadio (em que apenas se admitem modos de aquisição e de incremento patrimonial válidos, não sendo a prática de crimes uma forma legítima de enriquecer [6]) [7].
Logo, o instituto da perda de bens ou de vantagem patrimonial é uma providência sancionatória que não tem natureza jurídica de pena acessória (que pressupõe uma pena principal aplicada pela aprática de um ilícito criminal), nem mesmo de medida de segurança (que pressupõe a perigosidade daquele a que é aplicada), consubstanciando um tertium genus, uma reacção penal mais próxima do instituto da responsabilidade civil [8].

Os pressupostos legais da perda de bens e/ou de vantagens são apenas o facto antijurídico e a existência de proveitos (tendo-se consagrado um conceito amplo de vantagens, numa tentativa esforçada de abranger tudo aquilo que - directa ou indirectamente proveniente do facto ilícito típico - possa significar um enriquecimento patrimonial do visado).

Precisa-se, porém, que se está aqui (CP) perante um regime geral da perda de instrumentos, produtos e vantagens, que só será aplicável quando não houver lei especial, nomeadamente editada para um tipo particular ou específico de criminalidade (em que a remoção dos meios económicos subjacentes à prática de determinados crimes - v.g. de tráfico de droga, de corrupção -, através da perda da recompensa prometida, é o meio verdadeiramente mais eficaz de combater a actividade ilícita que visou o lucro) [9].
Face ao um regime especial [10], e para o mesmo efeito da perda, exigir-se-á, então, a prática pelo agente, não de um qualquer facto ilícito, mas da concreta infração prevista no diploma especial (sendo, em regra, os requisitos para a perda de bens e/ou vantagens a favor do Estado mais amplos no regime geral que nos regimes especiais) [11].
*
Mais se lê, no art.º 111.º, n.º 2, do CP que, ainda «que os instrumentos, produtos ou vantagens pertençam a terceiro, é decretada a perda quando: a) O seu titular tiver concorrido, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiver retirado benefícios; b) Os instrumentos, produtos ou vantagens forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo ou devendo conhecer o adquirente a sua proveniência; ou c) Os instrumentos, produtos ou vantagens, ou o valor a estes correspondente, tiverem, por qualquer título, sido transferidos para o terceiro para evitar a perda decretada nos termos dos artigos 109.º e 110.º, sendo ou devendo tal finalidade ser por ele conhecida».
Logo, podem inclusivamente ser declarados perdidos a favor do Estado bens e/ou vantagens que nem mesmo integram o património do agente do crime, mas sim de terceiro, desde que mantenham uma relação tipificada com a infração praticada, o que exclui necessariamente a sua boa fé: o terceiro proprietário concorreu, de forma censurável, para a sua utilização ou produção, ou retirou do facto ilícito benefício; ou conhecia, ou devia conhecer, a proveniência dos instrumentos, produtos ou vantagens quando os adquiriu após a prática do facto ilícito;  ou conhecia, ou devia conhecer, que apenas foram transferidos para si pelo agente da infração para que este evitasse a perda decretada nos termos dos artigos 109.º e 110.º, do CP.
*
4.1.1.2. Ilícito de mera ordenação social
Lê-se no art.º 22.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (regime do Ilícito de Mera Ordenação Social) que podem «ser declarados perdidos os objectos que serviram ou estavam destinados a servir para a prática de uma contra-ordenação, ou que por esta foram produzidos, quando tais objectos representem, pela sua natureza ou pelas circunstâncias do caso, grave perigo para a comunidade ou exista sério risco da sua utilização para a prática de um crime ou de outra contra-ordenação» (n.º 1); e salvo «se o contrário resultar do presente diploma, são aplicáveis à perda de objectos perigosos as regras relativas à sanção acessória de perda de objectos» (n.º 2).
Mais se lê, no art.º 23.º do mesmo diploma que quando, «devido a actuação dolosa do agente, se tiver tornado total ou parcialmente inexequível a perda de objectos que, no momento da prática do facto, lhe pertenciam, pode ser declarada perdida uma quantia em dinheiro correspondente ao valor daqueles».

Lê-se ainda no art.º 26.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, que a «perda de objectos perigosos pertencentes a terceiro só pode ter lugar» quando «os seus titulares tiverem concorrido, com culpa, para a sua utilização ou produção, ou do facto tiverem tirado vantagens; ou» quando «os objectos forem, por qualquer título, adquiridos após a prática do facto, conhecendo os adquirentes a proveniência».

Por fim, lê-se no mesmo diploma, no seu art.º 24.º, que o «carácter definitivo ou o trânsito em julgado da decisão de perda determina a transferência da propriedade para o Estado ou outra entidade pública, instituição particular de solidariedade social ou pessoa colectiva de utilidade pública que a lei preveja»; e no seu art.º 25.º que a «perda de objectos perigosos ou do respectivo valor pode ter lugar ainda que não possa haver procedimento contra o agente ou a este não seja aplicada uma coima».
*
4.1.2. Regime particular - Criminalidade organizada
Lê-se no art.º 7.º da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro (que estabeleceu medidas de combate à criminalidade organizada [12]) que, em «caso de condenação pela prática de crime referido no artigo 1.º, e para efeitos de perda de bens a favor do Estado, presume-se constituir vantagem de atividade criminosa a diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito» (n.º 1); e, para «efeitos desta lei, entende-se por “património do arguido” o conjunto dos bens» que  «estejam na titularidade do arguido, ou em relação aos quais ele tenha o domínio e o benefício, à data da constituição como arguido ou posteriormente», ou transferidos «para terceiros a título gratuito ou mediante contraprestação irrisória, nos cinco anos anteriores à constituição como arguido», ou recebidos «pelo arguido nos cinco anos anteriores à constituição como arguido, ainda que não se consiga determinar o seu destino» (n.º 2).
Está aqui (no regime da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro) perante o que vulgarmente se designa por perda alargada ou ampliada, em que não há conexão directa entre a perda (do património incongruente) e o facto ilícito típico: estende-se o confisco a vantagens de origem desconhecida que se encontram na posse ou titularidade do agente, através de presunções que assentam na condenação por certos crimes tipicamente rendosos [13]

Começa-se por precisar que esta «perda de bens determinada pelo art.º 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2012, de 11 de Janeiro, não incide propriamente sobre bens determinados, mas sobre o valor correspondente à diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito», importando, por isso, uma operação de liquidação.
Precisa-se ainda que a base de partida desta operação de liquidação «é o património do arguido, todo ele, pois o conceito é utilizado no art. 7.º numa perspetiva omnicompreensiva, de forma a abranger não só os bens de que o arguido seja formalmente titular (do direito de propriedade ou de outro direito real), mas também aqueles de que ele tenha o domínio de facto e de que seja beneficiário (é dizer, os bens sobre os quais exerça os poderes próprios do proprietário), à data da constituição como arguido ou posteriormente». Assim, e para este efeito, «incluem-se, no património do arguido, os bens transferidos para terceiros de forma gratuita ou através de uma contraprestação simbólica nos cinco anos anteriores à constituição de arguido e os por ele recebidos no mesmo período».
Uma vez apurado «o valor do património, há que confrontá-lo com os rendimentos de proveniência comprovadamente lícita, auferidos pelo arguido naquele período. Se desse confronto resultar um “valor incongruente”, não justificado, incompatível com os rendimentos lícitos, é esse montante da incongruência patrimonial que poderá ser declarado perdido a favor do Estado» (Ac. da RP, de 11.06.2014, Neto de Moura, Processo n.º 1653/12.2JAPRT-A.P1).
 
De novo a remoção dos meios económicos subjacentes à prática de determinados crimes (v.g. de tráfico e de corrupção), através da perda da recompensa prometida, é visto como o meio mais eficaz de combater uma concreta actividade ilícita que visa o lucro; e de novo se permite que se declarem perdidos bens e/ou vantagens que formalmente não pertencem ao agente do crime mas sobre os quais o mesmo mantém o domínio de facto e permanece beneficiário.
*
4.2. Arresto preventivo
4.2.1. Regime geral - Código Penal 
4.2.1.1. Arresto (preventivo) - Garantia patrimonial
Lê-se no art.º 227.º do CPP (incluído no seu Título III, relativo às medidas de garantia patrimonial) que o «Ministério Público requer prestação de caução económica quando haja fundado receio de que faltem ou diminuam substancialmente as garantias» da «perda dos instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico ou do pagamento do valor a estes correspondente» (al. b) do n.º 1); e esta «caução económica mantém-se distinta e autónoma relativamente à caução referida no artigo 197.º e subsiste até à decisão final absolutória ou até à extinção das obrigações» (n.º 5).
Está-se aqui perante uma caução económica enquanto medida de garantia patrimonial (que só pode ser decretada quando se verifiquem os pressupostos fixados no n.º 1 do art.º 227.º do CPP), e não enquanto medida de coacção (que deve obedecer a critérios de legalidade, adequação e proporcionalidade, e que só pode ser aplicada face à verificação dos requisitos fixados no art.º 204.º do CPP [14]) [15].
Na determinação do seu montante deve atender-se ao valor da quantia a garantir, ou seja, do pedido da perda de vantagens [16].

Mais se lê, no art.º 228.º do CPP, que, para «garantia das quantias referidas no artigo anterior, a requerimento do Ministério Público ou do lesado, pode o juiz decretar o arresto, nos termos da lei do processo civil; se tiver sido previamente fixada e não prestada caução económica, fica o requerente dispensado da prova do fundado receio de perda da garantia patrimonial» (n.º 1); o «arresto é revogado a todo o tempo em que o arguido ou o civilmente responsável prestem a caução económica imposta» (n.º 5).
Logo, está-se perante um arresto preventivo, meio de conservação da garantia patrimonial dos credores, que consiste numa apreensão judicial de bens, no caso que integram o património lícito do visado.
O mesmo «segue o disposto nos artºs 364º e 365º do CPC no que concerne à forma de processamento e à relação entre o procedimento cautelar e o processo principal», devendo o «pedido (…) ser tramitado em requerimento autónomo, a apensar ao processo principal, com observância do preceituado nos artºs 392º e 393º, e 365º «ex vi» artº 376º, todos do Código do Processo Civil». O «requerimento inicial deve observar ainda o disposto na alínea a) do nº 1 do artº 552º do CPC, indicando e identificando quem são os visados (requeridos) pela diligência» (Ac. da RL, de 04.07.2018, Margarida Vieira de Almeida, Processo n.º 122/13.8TELSB-AR.L1-9).
*
4.2.1.2. Arresto (preventivo) versus Apreensão
Lê-se no art.º 178.º do CPP (incluído no seu Capítulo III, relativo às apreensões, do Título III, relativo aos meios de obtenção da prova), no seu n.º 1, que são «apreendidos os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de um facto ilícito típico, e bem assim todos os animais, as coisas e os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova».
Mais se lê, no art.º 186.º do CPP, que: logo «que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeito de prova, os animais, as coisas ou os objetos apreendidos são restituídos a quem de direito ou, no caso dos animais, a quem tenha sido nomeado seu fiel depositário» (n.º 1); e logo «que transitar em julgado a sentença, os animais as coisas ou os objetos são restituídos a quem de direito, salvo se tiverem sido declarados perdidos a favor do Estado» (n.º 2).
Contudo, ressalva-se do regime exposto «o caso em que a apreensão de animais, coisas ou objetos pertencentes ao arguido, ao responsável civil ou a terceiro deva ser mantida a título de arresto preventivo, nos termos do artigo 228.º» (n.º 5, do art.º 186.º citado).
Logo, está aqui em causa a apreensão do património ilícito do visado (aquele em que existe um nexo de causalidade entre as vantagens - diretas ou indiretas - e o crime).

Precisa-se que é hoje pacífico que a figura em causa não serve apenas finalidades probatórias (enquanto meio de obtenção de prova), consubstanciando igualmente uma garantia da eficácia da futura declaração de perda da vantagem. Assim, uma vantagem poderá ser apreendida com a finalidade única de assegurar a execução do confisco [17].
*
Lê-se ainda no art.º 48.º-A do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro (regime do Ilícito de Mera Ordenação Social) que podem «ser provisoriamente apreendidos pelas autoridades administrativas competentes os objectos que serviram ou estavam destinados a servir para a prática de uma contra-ordenação, ou que por esta foram produzidos, e bem assim quaisquer outros que forem susceptíveis de servir de prova» (n.º 1); os «objectos são restituídos logo que se tornar desnecessário manter a apreensão para efeitos de prova, a menos que a autoridade administrativa pretenda declará-los perdidos» (n.º 2); e, em «qualquer caso, os objectos são restituídos logo que a decisão condenatória se torne definitiva, salvo se tiverem sido declarados perdidos» (n.º 3).
*
4.2.2. Regime especial - Criminalidade organizada
Lê-se no art.º 10.º da Lei n.º 5/2012, de 11 de Janeiro, que: para «garantia do pagamento do valor determinado nos termos do n.º 1 do artigo 7.º, é decretado o arresto de bens do arguido» (n.º 1); a «todo o tempo, logo que apurado o montante da incongruência, se necessário ainda antes da própria liquidação, quando se verifique cumulativamente a existência de fundado receio de diminuição de garantias patrimoniais e fortes indícios da prática do crime, o Ministério Público pode requerer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de atividade criminosa» (n.º 2); e o «arresto é decretado pelo juiz, independentemente da verificação dos pressupostos referidos no n.º 1 do artigo 227.º do Código de Processo Penal, se existirem fortes indícios da prática do crime» (n.º 3), sendo que em tudo o que «não contrariar o disposto» na mesma «lei é aplicável ao arresto o regime do arresto preventivo previsto no Código de Processo Penal» (n.º 4).

Logo, e continuando o arresto preventivo a garantir o pagamento do valor que constitui a vantagem da actividade criminosa, face ao regime especial editado para a criminalidade organizada e económico-financeira é, porém, decretado independentemente da comprovação de um justificado receio de perda da garantia patrimonial. Mantem-se, porém, a necessidade de se proceder à prévia liquidação de vantagens, o que normalmente sucede na acusação [18].

Enfatiza-se ainda que, tal como no regime geral do CP, no regime especial da criminalidade organizada, o arresto pode incidir sobre bens de que formalmente é titular um terceiro; mas exige-se para o efeito que esteja indiciado que o requerido do arresto, inicialmente proprietário dos mesmos, os transmitiu para terceiro, a título gratuito ou quase gratuito, para diminuir a garantia dos credores [19].
Sendo-o, o titular formal dos direitos afectados por essa decisão pode (e tal como o arguido) ilidir a presunção do art.º 7.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002,de 11 de Janeiro, nomeadamente provando (através da demonstração inteligível dos fluxos económico-financeiros na origem das aquisições em causa) que os bens foram adquiridos com proventos de actividade lícita [20].

Precisa-se ainda que, tal como «ensina o Conselheiro Maia Costa em anotação ao artº 228º, nº 1, 1ª parte do CPP, mesmo quando o arresto preventivo decorre do disposto nos artºs 10 e 11º da Lei nº 5/2002, de 11 de Janeiro, segue o preceituado no artº 228º do CPC, logo, segue sempre os termos do processo civil já supra referidos» (Ac. da RL, de 04.07.2018, Margarida Vieira de Almeida, Processo n.º 122/13.8TELSB-AR.L1-9).
*
4.3. Apreensão de bens em processo de insolvência
4.3.1. Regime regra
Lê-se no art.º 36.º, n.º 1, al. g), do CIRE, que na sentença «que declarar a insolvência, o juiz» decreta «a apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, dos elementos da contabilidade do devedor e de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos e sem prejuízo do disposto no n.º 1 do artigo 150.º».
De forma conforme lê-se no art.º 149.º, n.º 1, do CIRE que, proferida «a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que estes tenham sido: a) Arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for»; b) Objecto de cessão aos credores, nos termos dos artigos 831.º e seguintes do Código Civil».
A apreensão de bens é, assim, um dos efeitos principais da declaração de insolvência, sendo simultaneamente, uma providência executiva, já que permite  a liquidação para ulterior pagamento aos credores, e uma providência conservatória, na medida em que evita que o devedor pratique actos que possam diminuir a garantia dos seus credores [21]
Possui ainda um alcance geral, isto é, trata-se de uma apreensão universal no que se refere ao património do devedor, abrangendo quer os bens que já lhe pertenciam à data da declaração da insolvência, quer os que venham a pertencer-lhe na pendência do processo de insolvência.

Mais se lê, no 150.º do CIRE, que: o «poder de apreensão resulta da declaração de insolvência, devendo o administrador da insolvência diligenciar, sem prejuízo do disposto nos n.ºs 1 e 2 do artigo 756.º do Código de Processo Civil, no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues, para que deles fique depositário, regendo-se o depósito pelas normas gerais e, em especial, pelas que disciplinam o depósito judicial de bens penhorados» (n.º1); a «apreensão é feita pelo próprio administrador da insolvência, assistido pela comissão de credores ou por um representante desta, se existir, e, quando conveniente, na presença do credor requerente da insolvência e do próprio insolvente» (n.º 2); a «apreensão é feita mediante arrolamento, ou por entrega directa através de balanço», podendo, em caso de «oposição ou resistência à apreensão», ser requisitado «o auxílio da força pública, sendo então lícito o arrombamento de porta ou de cofre e lavrando-se auto de ocorrência do incidente» (n.º 4).
Tendo «a apreensão dos elementos da contabilidade e dos bens do devedor  (…) relevância directa para o processo de insolvência», há mesmo quem afirme que «a apreensão de bens está no cerne da actividade processual do administrador da insolvência» (Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, pág. 190).
*
4.3.2. Regime excepcional
4.3.2.1. Consagração da excepção
Ressalva-se, porém, da apreensão de bens a realizar em processo de insolvência os que tenham sido apreendidos por virtude de infracção, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social, o que encontra a sua justificação na especial natureza dos bens jurídicos tutelados pelo Direito Penal e pelo Direito de Mera Ordenação Social.
Com efeito, lê-se no art.º 149.º, n.º 1, al. a) citado, na sua versão integral, que, proferida «a sentença declaratória da insolvência, procede-se à imediata apreensão dos elementos da contabilidade e de todos os bens integrantes da massa insolvente, ainda que estes tenham sido» arrestados, «penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for, com ressalva apenas dos que hajam sido apreendidos por virtude de infracção, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social».

É, assim, pacífico, por incontestável, que os bens apreendidos por virtude de infração - quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social - estão excluídos do âmbito dos bens a apreender para a massa insolvente.
*
4.3.2.2. Âmbito da excepção
Discute-se, porém, o real significado da expressão «apreendidos», isto é, se deve ser tomada em sentido estrito (abrangendo apenas os bens apreendidos nos termos do art.º 178.º do CPP), ou em sentido amplo (abrangendo todos os bens objecto de uma idêntica apreensão material realizada ao abrigo do mesmo CPP, nomeadamente no âmbito de arresto preventivo realizado mercê do seu art.º 228.º [22]).

Com efeito, é inegável que a lei processual penal distingue a apreensão de bens (prevista no art.º 178.º) e o arresto preventivo (previsto no art.º 228.º), grosso modo: a apreensão de bens stricto sensu tem em vista a conservação da prova e a retenção de objetos que, em razão do crime com que estão relacionados, podem ser declarados perdidos a favor do Estado (daqui lhe resultando uma função de conservação da prova e uma outra de garantia da execução da decisão penal quando esta haja de declarar perdidos a favor do Estado instrumentos, produtos e vantagens do crime); já o arresto preventivo tem uma exclusiva função de garantia, visando assegurar o pagamento da pena pecuniária, das custas do processo, de qualquer outra dívida para com o Estado relacionada com o crime, do pagamento das vantagens de facto ilícito típico e do valor correspondente às perdas dos instrumentos, produtos e vantagens de facto ilícito típico.
Ora, sendo pacífico que tendo os bens e/ou as vantagens sido apreendidos em processo penal, nos termos do art.º 178.º do CPP, ou de contraordenação, nos termos do art.º 22.º do Decreto-Lei n.º 433/82, de 27 de Outubro, não podem sê-lo em processo de insolvência [23], outro tanto não sucede com bens objecto de outra apreensão material  «por virtude de infracção, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social».

São, assim, possíveis dois entendimentos: um primeiro, que considera que todos os bens apreendidos no âmbito de um processo penal ou de contra-ordenação, mercê de infracção que ali se investigue ou julgue, não poderão ser apreendidos no processo de insolvência (enfatizando a ratio da excepção prevista na parte final da al. a), do n.º 1, do art.º 149.º, do CIRE) [24]; e um segundo, que considerara que apenas os bens apreendidos nos termos do art.º 178.º do CPP não poderão ser apreendidos no processo de insolvência, podendo, por isso, sê-lo os que sejam objecto de arresto preventivo ali realizado nos termos do art.º 228.º do CPP (enfatizando a diferença de figuras jurídicas,  tidas com significados e campos de aplicação distintos) [25].
*
Para que se professe um ou outro dos entendimentos referidos, importa, então, que se verifiquem os diferentes elementos de interpretação, tendo-se, porém, presente o disposto no art.º 9.º do CC, isto é: que a «interpretação não deve cingir-se à letra da lei, mas reconstituir a partir dos textos o pensamento legislativo, tendo sobretudo em conta a unidade do sistema jurídico, as circunstâncias em que a lei foi elaborada e as condições específicas do tempo em que é aplicada» (n.º 1); não «pode, porém, ser considerado pelo intérprete o pensamento legislativo que não tenha na letra da lei um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso» (n.º 2); e na «fixação do sentido e alcance da lei, o intérprete presumirá que o legislador consagrou as soluções mais acertadas e soube exprimir o seu pensamento em termos adequados» (n.º 3).
 
i. elemento literal

Para o primeiro entendimento, enfatiza-se a circunstância de o legislador ter usado um sentido lato de «apreensão» na primeira parte do art. 149.º, n.º 1, al. a), do CIRE, conforme resulta da conjunção alternativa «ou»arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos»); e ter-se referido genericamente, na excepção que consagrou na segunda parte do preceito, a bens que «hajam sido apreendidos», sem fazer qualquer distinção ou precisão acerca da natureza ou tipo dessa apreensão, exigindo apenas que essa apreensão tenha sido efetuada por virtude de infracção, quer de caracter criminal, quer de mera ordenação social.
 Ora, onde o legislador não distinguiu, não se justificaria que o intérprete procedesse a qualquer distinção; e, assim, nada permitiria afirmar que o sentido lato de «apreensão» não se tivesse mantido inalterado em toda a extensão do art.º 149.º, n.º 1, al. a), do CIRE.

Enfatiza-se ainda que não se afirmou que a apreensão excludente é a verificada nos termos da lei processual penal ou contraordenacional (o que, então necessariamente, remeteria para o art.º 178.º do CPP), mas sim «em virtude de infração», criminal ou contraordenacional.
Ora, à semelhança dos instrumentos e produtos do crime (art.º 109.º do CP), também as vantagens da prática do crime são declaradas perdidas a favor do Estado (art. 110.º do CP) e, no caso de não haverem sido apropriados em espécie, a perda é substituída pelo pagamento ao Estado do respetivo valor (art.ºs 109.º, n.º 3 e 110.º, n.º 4, ambos do CP).

Já para o segundo entendimento, enfatiza-se a circunstância de o legislador, tendo previsto antes a imediata apreensão no processo de insolvência de todos os bens «arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos, seja em que processo for», limitou depois a excepção a essa apreensão universal «apenas dos [bens] que hajam sido apreendidos» por virtude de infracção, quer de carácter criminal, quer de mera ordenação social.
Ora, a utilização naquela norma da palavra «apenas» é algo que mostra a clara intenção da lei em só abranger na excepção os casos em que tenha havido apreensão, uma vez que o legislador processual penal confere às expressões «apreensão» e «arresto» um sentido específico, nomeadamente quanto ao objecto de uma e de outro, sem prejuízo da apreensão material subjacente a ambos.

ii. elemento sistemático

Para o primeiro entendimento, enfatiza-se a circunstância do conceito de apreensão no CIRE dever ser subsidiário da lei processual civil (nos termos do art.º 17.º do CIRE), e não da lei penal, substantiva ou adjectiva.
Ora, para a lei processual civil a apreensão reporta-se à tomada judicial de domínio material sobre coisas ou valores, por forma a subtraí-los ao domínio antes exercido pelo seu detentor/possuidor/proprietário devedor (retirando-os da respectiva disponibilidade).

Já para o segundo entendimento, enfatiza-se a circunstância de o legislador penal distinguir, sistemática e relevantemente, a apreensão do arresto preventivo, fazendo-o nomeadamente: nos art.ºs 178.º e 228.º, ambos do CPP;  no Regime Geral das Contraordenações, onde se prevê exclusivamente a apreensão de objetos (art.º 48.º-A);  no regime jurídico dos crimes contra a economia e contra a saúde pública, onde se distingue a apreensão de bens (art.º 46.º do Decreto-Lei n.º 28/84, de 20 de Janeiro) do arresto preventivo (art.º 49.º deste diploma); e no diploma sobre criminalidade organizada e económico-financeira, onde o arresto serve para garantir o pagamento do valor correspondente à diferença entre o valor do património do arguido e aquele que seja congruente com o seu rendimento lícito (art.ºs 7.º e 10.º, da Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro).
Do mesmo modo o faz o legislador no CIRE, quando no art.º 36.º, al. g), afirma que a sentença de declaração de insolvência decreta, em regra, a «apreensão, para imediata entrega ao administrador da insolvência, (…) de todos os seus bens, ainda que arrestados, penhorados ou por qualquer forma apreendidos ou detidos», distinguindo, assim, «os bens arrestados» dos bens «por qualquer forma apreendidos».

iii. elemento teológico 
Para o primeiro entendimento, enfatiza-se a diferente natureza do privatístico processo de insolvência e do público processo penal, o que reflecte a diferente natureza dos valores que lhes estão subjacentes, a justificar a primazia daqueles que são objecto do segundo em detrimento do primeiro.

Precisando, e conforme resulta do art.º 1.º do CIRE, o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem por finalidade a satisfação dos credores, por meio da liquidação do património do devedor insolvente e da repartição por aqueles do produto obtido (processo de liquidação total e colectiva).
Ora, pretendendo-se que todos os credores do mesmo devedor exerçam os seus direitos no âmbito de um único processo e o façam em condições de igualdade (não tendo nenhum credor qualquer privilégio ou outras garantias que não aqueles que sejam reconhecidos pelo direito da insolvência e nos precisos termos em que este o reconhece), impõe-se que, durante a pendência do processo de insolvência, os credores apenas possam exercer os seus direitos no seu âmbito e em conformidade com os preceitos do respectivo Código (art.º 90.º do CIRE), só aí podendo reclamar o pagamento dos seus créditos, ainda que já se encontrem reconhecidos em outro processo (art.º 128.º do CIRE). Trata-se de uma pura lógica de garantia do princípio par conditio creditorum, interesse puramente privatístico, e que visa assegurar que para qualquer credor não advenha um prejuízo superior àquele que está implícito na eventual inexistência de bens suficientes a assegurar o crédito respectivo.
Contudo, e como é apodítico, o único e exclusivo património de que os credores dispõem aqui para o pagamento dos seus créditos é o património do insolvente, aquele que o seja efectivamente (e não também aquele que o seja apenas de forma aparente ou formal, por na realidade pertencer a terceiro) [26]; e baseado numa forma lícita de aquisição (já que o crime não é reconhecido pela ordem jurídica portuguesa como forma de aquisição de bens ou valores) [27].
Ora, a declaração de perda de bens e/ou vantagens a favor do Estado envolve a respectiva ablação do património do autor do crime, o que significa que tais bens (ou o seu valor, se não houverem sido apropriados em espécie) não podem: ter-se como integrantes do património do devedor insolvente, com vista à repartição pelos credores do produto obtido por eles, na execução universal que a insolvência representa, sob pena de se estar a permitir a prática de branqueamento de capitais [28];  ou, no limite, beneficiar o agente devedor insolvente quando excedam o necessário para pagamento aos seus credores (art.º 184.º, n.º 1, do CIRE). Justificar-se-ia, assim, que, quer a sua preventiva apreensão (art.º 178.º do CPP), quer a apreensão de bens para garantia do pagamento do valor que lhes corresponde, ainda que por via de arresto preventivo (arts.º 227.º, n.º 1, al. b) e 228.º, n.º 1, ambos do CPP), obste à sua apreensão para a massa insolvente.
De outro modo não se vê como se poderia eficazmente assegurar os fins da justiça penal, quando é, precisamente e cada vez mais, «através da declaração da perda de vantagens», para cuja garantia se promoveu o arresto preventivo de bens e valores (e não propriamente da perda de bens concretos e determinados, objecto de primitiva apreensão), que se pretende «fazer crer à sociedade que “o crime não compensa”, almejando-se, deste modo, anular o sentimento de compensação material que o agente possa sentir com o crime, dissuadindo-o da sua prática» (Ana Patrícia Bernardo Cabaço, O Regime da Perda de Vantagem do Crime no Código Penal. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual, E-Book do CEJ, Colecção Formação do Ministério Público, Maio de 2021, in https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=RIV2GBCZ2B4%3d&portalid=30).

Já para o segundo entendimento, enfatiza-se que só a apreensão realizada nos termos do art.º 178.º do CPP prossegue finalidades directamente atinentes ao processo penal e ao direito penal; e, por isso, só ela justificaria a compressão dos direitos dos credores do arguido insolvente.
Com efeito, estando ali em causa «os instrumentos, produtos ou vantagens relacionados com a prática de facto ilícito típico, e bem assim todos os objetos que tiverem sido deixados pelo agente no local do crime ou quaisquer outros suscetíveis de servir a prova», servem os mesmos «a função dupla da apreensão de meio de obtenção da prova e de garantia processual da perda de bens a favor do Estado», por estarem, de algum modo, ligados «diretamente ao facto ilícito típico. Já assim não será, porém, quanto a bens que são arrestados para garantir o cumprimento efectivo de uma obrigação patrimonial, ainda que mediatamente relacionada com um facto ilícito típico (ou com determinada atividade criminosa).
Dito de outra forma: são ressalvados apenas os bens que são apreendidos em virtude de infração criminal, porque se tem em vista a prova de uma infração e o decretamento de uma consequência jurídica da infração - a perda de bens. Estes bens – e não outros - é que não são apreendidos para a massa insolvente, precisamente porque são apreendidos para a prossecução de finalidades diretamente atinentes ao processo penal e ao direito penal» (Maria João Antunes, «Arresto preventivo e apreensão em processos penal e processo de insolvência», Católica Law Review, Volume IV, n.º 3, Novembro de 2020, pág. 141, com bold apócrifo).
*
Tudo ponderado, dir-se-á que, salvo o devido respeito por opinião contrária, só de forma algo redutora se pode considerar que o arresto preventivo realizado para assegurar a futura perda de vantagens obtidas mercê da prática de crime não prossegue finalidades atinentes ao processo penal e ao direito penal, aqui de forma em tudo idêntica às asseguradas pela apreensão realizada no mesmo âmbito: ambos visam, paritariamente, que o crime não compense, isto é, que o seu agente não alcance e conserve o lucro ou vantagem económica que, em derradeira análise, o motivou para a sua pática [29].
Dir-se-á, mesmo, que cada vez mais terá de ser na perda da vantagem económica (no património incongruente) que o Estado terá de investir, e não tanto na apreensão dos concretos bens que a traduzem, face não só à multiplicidade de meios usados pelos criminosos para dissimular a sua aquisição e conservação (tornando difícil a precisa identificação dos bens e valores em que se corporizou), como ainda face à multiplicidade de meios usados pelos criminosos para dissimular a sua verdadeira titularidade (v.g. transferência formal para terceiros, controlados, porém, pelos próprios, incluindo a constituição de sociedades, nomeadamente off shores).
Logo, e face às presunções que permitem o apuramento da vantagem económica que terá resultado da prática de determinado tipo de crime (muito antes, ou de forma independente, da concreta identificação e localização dos bens ou valores que essa mesma vantagem terá permitido adquirir ou transferir para o criminoso), numa grande maioria de casos (precisamente os relacionados com a prática dos crimes mais rentáveis e de mais difícil investigação e prova) só o arresto preventivo permitirá assegurar os desígnios de prevenção geral e especial ínsitos na sua futura e definitiva perda [30].
Dir-se-á ainda que outro entendimento seria incentivo bastante para que bens e/ou vantagens obtidos com a prática de uma infracção criminal (titulados pelo próprio agente do crime ou formalmente por um terceiro, com vista à sua ocultação), justificativos de prévio arresto preventivo realizado em sede de processo penal (por forma a garantir a futura perda do respectivo valor), viessem depois a revelar-se insusceptíveis da possibilidade dessa perda, pela simples promoção (directa ou indirecta) da insolvência do seu titular (real ou meramente aparente), implicando a sua transferência para os respectivos credores (reais ou fictícios), ou para o próprio agente criminoso (no remanescente não necessário ao pagamento daqueles).
Ora, não só os interesses públicos do Estado na prevenção e repressão da actividade criminosa devem prevalecer sobre os interesses privatísticos ínsitos na execução universal de bens pelo colectivo dos credores de um devedor insolvente (criminoso ou terceiro de má fé, face à obtenção de bens ou vantagens que integram o seu património) [31], como a declaração de insolvência não constitui qualquer causa de restrição ou constrangimento à responsabilização penal, determinada noutros e independentes pressupostos [32].
Concluindo, e pelas razões expostas, considera-se que o arresto preventivo realizado nos termos do art.º 228.º do CPP está abrangido na excepção prevista na parte final da al. a) do n.º 1 do art.º 149.º do CIRE, isto é, os bens e/ou valores dele objecto não podem ser apreendidos em sede de processo de insolvência relativo ao seu titular.
*
4.4. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
4.4.1. Arresto preventivo realizado em processo penal
Concretizando, verifica-se em 03 de Novembro de 2023, no procedimento cautelar n.º 13738/15.... (do Juízo de Instrução Criminal do Porto - Juiz ...) foi decretado o arresto do património de EMP01..., Limitada, para  garantia da futura perda de vantagens adquiridas por força da prática de diversos crimes (entre eles associação criminosa, prevaricação, participação económica em negócio, branqueamento e falsificação de documento), sendo os relacionados especificamente com esta Sociedade os de prevaricação e participação económica em negócio, previstos e puníveis, respectivamente, pelos art.ºs 11.º e 23.º, ambos da Lei n.º 34/87 de 16 de Julho.

Mas se verifica que este arresto foi concretizado em 07 de Novembro de 2023, nele se incluindo um prédio urbano, sito em ....
Verifica-se ainda que em 26 de Novembro de 2023, no processo crime n.º 13738/15.... (do ... Juízo de Instrução Criminal do Porto) foi deduzida acusação contra plúrimos arguidos, mas não contra EMP01..., Limitada.
Por fim, verifica-se que, em 21 de Fevereiro de 2024, no procedimento cautelar n.º 13738/15.... (do Juízo de Instrução Criminal do Porto - Juiz ...) foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação do Porto, julgando improcedente o recurso antes interposto por EMP01..., Limitada e Outros, relativamente à decisão que decretara o arresto do seu património, mantendo o mesmo, lendo-se nomeadamente no dito acórdão:
«(…)
A perda alargada é uma non conviction based confiscation, porquanto não significa uma condenação pela prática de um determinado crime, mas apenas a perda de um património incongruente, que tem como pressuposto uma condenação, mas não se confunde com ela.
Conforme refere o Tribunal Constitucional, “embora enxertado naquele processo penal, o que está em causa neste procedimento não é já apurar qualquer responsabilidade penal do arguido, mas sim verificar a existência de ganhos patrimoniais resultantes de uma atividade criminosa. Daí que, quer a determinação do valor dessa incongruência, quer a eventual perda de bens dai decorrente, não se funde num concreto juízo de censura ou de culpabilidade em termos ético-jurídicos, em num juízo de concreto perigo daqueles ganhos servirem para a prática de futuros crimes, mas numa constatação de uma situação em que o valor do património do condenado, em comparação com o valor dos rendimentos lícitos auferidos por este faz presumir a sua proveniência ilícita, importando impedir a manutenção consolidação dos ganhos ilegítimos”.
Trata-se de um mecanismo processual cautelar, reverso adjectivo de mecanismo substantivo previsto no artigo 111.º, n.º 4, do Código Penal, revelando uma área de tutela específica, mais reduzida do que a da apreensão tradicional.
Com efeito, neste caso está apenas em causa a apropriação provisória ou a mera criação judicial de um vínculo de indisponibilidade sobre coisas localizadas no património lícito do visado, cuja posse não pode ser, em princípio, censurada. Já não há nenhuma ligação reprovável, ainda que atenuada (sucedâneo, vantagem indireta) entre uma coisa e um crime qualquer.
Enquanto que a apreensão garante o confisco da própria coisa que consubstancia a vantagem, aqui acautela-se a perda do seu valor. Garante-se o confisco do património incongruente. Sendo impossível demonstrar uma relação entre esse património e um qualquer crime concreto, a lei autoriza apenas o arresto.
Quando estão em causa os proventos, direta ou indiretamente, resultantes da prática do crime ou o seu sucedâneo, o legislador utiliza a apreensão; quando apenas está em causa o valor daqueles proventos ou do património incongruente o legislador utiliza o arresto.
Como referimos supra, no arresto para perda alargada já não está em causa garantir o confisco do valor da vantagem decorrente da prática de um crime, mas apenas assegurar a perda do valor do património incongruente do arguido, nomeadamente daquele património que não é compatível com os seus rendimentos lícitos. Para além das vantagens associadas à prática do crime sub judicio, emerge aqui um património inexplicável, que importa confiscar.
Neste caso não há sequer uma relação entre o valor da incongruência e um qualquer crime passado. O grau de ligação entre o quantum da incongruência e o crime é uma mera presunção: o valor do património incongruente presume-se proveniente de actividade criminosa, não sendo necessário proceder, sequer, à sua identificação e demonstração. O que está em causa é uma situação patrimonial inexplicável presumivelmente proveniente de atividade criminosa, que, todavia, o Ministério Público não consegue imputar a um qualquer crime concreto.
(…)»
*
Dir-se-á, face ao exposto e de forma conforme com a legislação aplicável, que o arresto preventivo realizado no processo penal referido - nomeadamente, de imóvel pertencente a EMP01..., Limitada -, prescindia de qualquer (inexistente) exigência de que esta Sociedade fosse simultaneamente acusada no processo crime em causa, bastando para o efeito ter sido considerada como terceira de má fé face aos termos da aquisição (por si própria) do dito imóvel.
*
Dir-se-á, ainda, que o dito arresto preventivo, natural e necessariamente, prescindia de qualquer prévia declaração de perda a favor do Estado do património (ou de parte dele) da referida Sociedade.
Com efeito, uma tal «interpretação insólita esquece, desde logo, que nessa altura final (se, apesar de tudo, ainda, houver algum património) já não será necessária nenhuma garantia, bastando a mera execução da decisão. Nenhuma interpretação, por mais «grano salis» que tenha (…) poderá ultrapassar a separação elementar entre garantias processuais e decisão final. Uma coisa não se pode confundir com a outra. Por definição, as garantias aplicam-se num momento anterior, quando ainda não está decidida a questão material, destinando-se a assegurar a sua execução e a impedir que a decisão seja apenas simbólica. São uma forma excecional de afastar o periculum in mora. Relegar o arresto para esse momento derradeiro seria, portanto, uma solução contranatura que nem o legislador mais desastrado consagraria. 
Em segundo lugar, essa interpretação subverte o elemento gramatical, segundo o qual, «a todo o tempo, o Ministério Público requer o arresto de bens do arguido no valor correspondente ao apurado como constituindo vantagem de actividade criminosa» (art. 10.º, n.º 1, da Lei n.º 5/2002). A expressão «a todo o tempo» parece-nos clara, sem margem para quaisquer dúvidas razoáveis, discutindo-se na doutrina (…) apenas se poderá ser antes ou se terá que ser sempre depois da liquidação. Até hoje, nenhum dos nossos académicos (mesmo os mais adversos ao confisco) ousou dizer que o arresto só poderá ser accionado após a condenação. O mesmo acontece, igualmente, com a nossa jurisprudência (…) que tem decretado o arresto sem qualquer consideração sobre o momento da sua consumação (v. g. Ac. da Relação do Porto, de 11 de junho de 2014, processo n.º 1653/12.2JAPRT-A.P1, relatado por Neto de Moura)» (João Conde Correia, «Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de outubro de 2014. O arresto preventivo dos instrumentos e dos produtos do crime», Julgar on line, 2014, págs. 20 e 21) [33].
*
Conclui-se, assim, ter o arresto preventivo do património de EMP01..., Limitada, sido realizado válida e eficazmente, em sede de processo penal (como, aliás, já reconhecido em acórdão transitado em julgado).
*
4.4.2. Apreensão realizada em processo de insolvência
Concretizando novamente, verifica-se que, em 15 de Janeiro de 2024, EMP01..., Limitada apresentou-se à insolvência; e que a mesma foi decretada em 25 de Janeiro de 2024.
Mais se verifica que, em 27 de Fevereiro de 2024, nos respectivos autos de insolvência, foi apreendido como verba única o prédio «urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...53, da freguesia e concelho ..., inscrito na respetiva matriz predial sob o artigo ...68, com o valor patrimonial de € 111.038,85», cuja propriedade se acha inscrita em nome de EMP01..., Limitada.
Verifica-se ainda que, tendo o Ministério Público pedido o levantamento dessa apreensão (face ao prévio arresto preventivo realizado em sede de processo penal), as credoras EMP16..., S.A., EMP17..., S.A. e Banco 1..., S.A. vieram opor-se, alegando que:  o imóvel pertenceria à Sociedade e não aos seus sócios; só estes, e não também aquela, foram alvos de uma acusação crime; e não haveria qualquer decisão a declará-lo perdido a favor do Estado.
Por fim, verifica-se que em 20 de Junho de 2024 foi proferido despacho, nos autos de insolvência pertinentes a EMP01..., Limitada, mantendo a apreensão de imóvel nele realizada, em «face da posição fundamentada dos credores».

Ora, e salvo o devido respeito por opinião contrária, não pode manter-se a referida apreensão.
Com efeito, se bem que aqui, em sede de processo de insolvência, os credores tenham legitimidade para requerer a manutenção da apreensão realizada (ao contrário do que sucede no processo crime, em que lhes falece legitimidade para reagirem ao arresto preventivo aí realizado [34]), os argumentos que aduziram para o efeito, e que o Tribunal a quo fez seus,  mostram-se, porém, insubsistentes: já se demonstrou supra que podem ser arrestados bens ou valores de terceiro, com vista a garantir a perda futura a favor do Estado de vantagem económica proveniente de infração criminal; e que sempre o deverão ser antes de qualquer decisão a declará-los perdidos a favor do Estado
*
Deverá, assim, decidir-se em conformidade, julgando totalmente procedente o recurso de apelação do Ministério Público.
*
V - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar totalmente procedente o recurso de apelação do Ministério Público e, em conformidade, em

· Revogar o despacho recorrido, ordenando agora o levantamento da apreensão do património de EMP01..., Limitada realizada no respectivo processo de insolvência, por ter sido previamente alvo de um arresto preventivo por virtude de infração de carácter criminal.
*
As custas da apelação seriam pelo Ministério Público (por ter retirado benefício do recurso, sem dedução de oposição no mesmo, conforme art.º 527.º, n.º 1 e n.º 2, do CPC), estando, porém, isento delas (conforme art.º 4.º, n.º 1, al. a), do RCP).
*
Guimarães, 17 de Outubro de 2024.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.ª Adjunta - Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade;
2.º Adjunto - Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício.


[1] «Trata-se, aliás, de um entendimento sedimentado no nosso direito processual civil e, mesmo na ausência de lei expressa, defendido, durante a vigência do Código de Seabra, pelo Prof. Alberto dos Reis (in Código do Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 359) e, mais tarde, perante a redação do art. 690º, do CPC de 1961, pelo Cons. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 1972, pág. 299» (Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 765/13.0TBESP.L1.S1, nota 1 - in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem). 
[2] Neste sentido, numa jurisprudência constante, Ac. da RG, de 07.10.2021, Vera Sottomayor, Processo n.º 886/19.5T8BRG.G1, onde se lê que questão nova, «apenas suscitada em sede de recurso, não pode ser conhecida por este Tribunal de 2ª instância, já que os recursos destinam-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido».
[3] O Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas (doravante CIRE) foi aprovado pelo Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18 de Março.
[4] Fala-se habitualmente de perda na perspectiva de quem era proprietário dos bens (ablação) e em confisco na perspectiva do Estado, que os adquire (aquisição). 
[5] Neste sentido, Ac. da RP, de 12.07.2017, , Processo n.º .
[6] Neste sentido, Pedro Caeiro, «Sentido e função do instituto da perda de vantagens, relacionadas com o crime no confronto com outros meios de prevenção da criminalidade reditícia (em especial, os procedimentos de confisco in rem e a criminalização do enriquecimento “ilícito”», Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 21, n.º 2, Abril-Junho 2011, Coimbra Editora, pág. 269
[7] Assinalam-se ainda como finalidades da perda ou confisco de bens ou vantagens: o reforço das intenções de prevenção geral e especial, ao obstaculizar ao (re)investimento dos ditos ganhos ilegais no cometimento de novos ilícitos criminais, e ao canalizar os bens apreendidos para o apetrechamento das instituições de combate ao crime e para as indemnizações das vítimas; e a redução dos riscos de contaminação da economia, resultante da concorrência desleal no mercado induzida ou reforçada pelo investimento de proventos ilícitos nas actividades empresarias.
Há ainda quem enfatize que, em «concretização da necessidade de “restauração da ordem patrimonial” enquanto conjunto de valores protegidos, será ainda imprescindível acrescentar que as medidas ablativas das vantagens do crime visam, não só assegurar a sobrevivência do Estado de Direito, mas essencialmente proteger valores fundamentais de toda a comunidade, que na generalidade dos casos não chegam sequer a ser ponderados neste domínio do confisco, tais com a vida, a saúde e a liberdade dos cidadãos.
Como? E em que medida?
Basta singelamente que se formule uma valoração prognóstica dos efeitos da manutenção das vantagens patrimoniais no mercado jurídico.
Será ingénuo considerar que os benefícios económicos obtidos com a prática do crime (e que a motivaram) não serão, na generalidade dos casos, investidos quer, por um lado, no aperfeiçoamento e na utilização de técnicas cada vez mais avançadas de cometimento de novos ilícitos, e de financiamento de organizações criminosas ou mesmo terroristas, quer, por outro, na aproximação, pelo poder que o dinheiro confere, aos centros de decisão, com possibilidade de deturpar os interesses económicos não de alguns mas de todos.
Permitir, em qualquer caso, e sob qualquer circunstância que da prática do crime possam resultar incentivos económicos de qualquer espécie, implicará, sempre, alimentar estruturas larvares e parasitárias que, dependendo dos fenómenos criminais a que se dediquem, poderão não só ceifar as vidas ou a saúde de cidadãos cumpridores, como destruir ou fazer perigar a economia de toda uma nação. Tais efeitos, que em momento anterior às experiências de fenómenos como o “Lehman Brothers Holdings Inc.” e o amadurecimento das consequências do “corporate crime” bem como aos resultados na experiência islandesa e portuguesa exigiriam, noutros tempos, aturadas considerações, que neste momento, atenta a sua manifesta evidência, porquanto afectam, directa ou indirectamente, os rendimentos de todos os cidadãos, nos poderemos dispensar de formular» (Ac. da RL, de 13.02.2019, João Lee Ferreira, Processo n.º 324/14.0TELSB-CB.L1-3).
[8] Debruçando-se sobre a natureza jurídica da perda ou confisco, O Regime da Perda de Vantagem do Crime no Código Penal. Enquadramento jurídico, prática e gestão processual, E-Book do CEJ, Colecção Formação do Ministério Público, Maio de 2021, págs. 16 a 18, 47 e 48, 82 e 83, e 114 a 116 (in https://cej.justica.gov.pt/LinkClick.aspx?fileticket=RIV2GBCZ2B4%3d&portalid=30).
[9]  Neste sentido:  Ac. da RP, de 31.05.2017, Lígia Figueiredo, Processo n.º 259/15.9IDPRT.P1; ou Ac. da RC, de 08.11.2017,  Orlando Gonçalves, Processo n.º 326/16.1JACBR.C1.
[10] Consubstanciam, nomeadamente, regimes especiais para este efeito:
. Lei n.º 5/2002, de 11 de Janeiro - estabelece medidas de combate à criminalidade organizada e económico-financeira - artigos 7.º a 12.º-A (perda alargada) e 12.º-B (perda de instrumentos);
. Lei n.º 15/2001, 05 de Junho - aprova o Regime Geral das Infrações Tributárias (R.G.I.T.) - artigos 18.º a 20.º; 
. Decreto-Lei n.º 28/84, de 16 de Janeiro - rege a matéria relativa às infrações antieconómicas e contra a saúde pública - artigos 9.º, 46.º, 76.º; 
. Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de Janeiro - define o regime jurídico aplicável ao tráfico e consumo de estupefacientes e substâncias psicotrópicas - artigos 35.º a 39.º;
. Lei n.º 109/2009, de 15 de Setembro - Lei do Cibercrime - estabelece as disposições penais materiais e processuais, bem como as disposições relativas à cooperação internacional em matéria penal, relativas ao domínio do cibercrime e da recolha de prova em suporte eletrónico - artigo 10.º; 
. Lei n.º 5/2006, de 23 de Fevereiro - aprova o regime jurídico das armas e suas munições – artigo 94.º
 [11] Neste sentido, Ac. da RC, de 08.11.2017,  Orlando Gonçalves, Processo n.º 326/16.1JACBR.C1, onde se lê que «enquanto que enquanto no regime geral de perda de vantagens a culpa deixou de ser um pressuposto, podendo ser decretada a perda mesmo relativamente a factos ilícitos típicos praticados por inimputáveis», nos regimes especiais previstos em legislação avulsa, só poderá decretar-se essa perda quando estejam preenchidos todos os elementos constitutivos do tipo dos crimes a que respeitam esses diplomas, incluindo o facto culposo.
[12] Lê-se no art.º 1.º da Lei 5/2002, de 11 de Janeiro:
«1 - A presente lei estabelece um regime especial de recolha de prova, quebra do segredo profissional e perda de bens a favor do Estado, relativa aos crimes de:
a) Tráfico de estupefacientes, nos termos dos artigos 21.º a 23.º e 28.º do Decreto-Lei n.º 15/93, de 22 de janeiro;
b) Infrações terroristas, infrações relacionadas com um grupo terrorista, infrações relacionadas com atividades terroristas e financiamento do terrorismo;
c) Tráfico de armas;
d) Tráfico de influência;
e) Recebimento ou oferta indevidos de vantagem;
f) Corrupção ativa e passiva, incluindo a praticada nos setores público e privado e no comércio internacional, bem como na atividade desportiva;
g) Peculato;
h) Participação económica em negócio;
i) Branqueamento de capitais;
j) Associação criminosa;
k) Coação desportiva, apostas desportivas fraudulentas e aposta antidesportiva;
l) Pornografia infantil e lenocínio de menores;
m) Contrafação, uso e aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento contrafeitos e respetivos atos preparatórios, aquisição de cartões ou outros dispositivos de pagamento obtidos mediante crime informático, dano relativo a programas ou outros dados informáticos e sabotagem informática, nos termos dos artigos 3.º-A, 3.º-B, 3.º-C, 3.º-D, 3.º-E, 4.º e 5.º da Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, e ainda o acesso ilegítimo a sistema informático, se tiver produzido um dos resultados previstos nas alíneas a) e b) do n.º 5 do artigo 6.º daquela lei, for realizado com recurso a um dos instrumentos referidos no n.º 2 do mesmo artigo, ou integrar uma das condutas aí tipificadas;
n) Tráfico de pessoas;
o) Contrafação de moeda e de títulos equiparados a moeda;
p) Lenocínio;
q) Contrabando;
r) Tráfico e viciação de veículos furtados.
2 - O disposto na presente lei só é aplicável aos crimes previstos nas alíneas p) a r) do número anterior se o crime for praticado de forma organizada.
3 - O disposto nos capítulos ii e iii é ainda aplicável aos demais crimes referidos no n.º 1 do artigo 1.º da Lei n.º 36/94, de 29 de setembro.
4 - O disposto na secção ii do capítulo iv é ainda aplicável aos crimes previstos na Lei n.º 109/2009, de 15 de setembro, quando não abrangidos pela alínea m) do n.º 1 do presente artigo».
[13] Parte-se da constatação que é «hoje evidente que o «crime does pay, extraordinarily well, even beyond the imagination»3 e que só atingido o âmago deste lucrativo negócio se poderá lograr algum sucesso na luta contra o fenómeno. Os mais recentes escândalos e os números relativos aos valores envolvidas nas atividades criminosas (que só pecam por defeito) revelam a extensão do problema e as fragilidades do Estado de Direito» (João Conde Correia, «Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 8 de outubro de 2014. O arresto preventivo dos instrumentos e dos produtos do crime». Julgar on line, 2014, pág. 15 (in https://julgar.pt/wp-content/uploads/2014/10/Arresto-instrumentos-e-produto-da-atividade-criminosa-Julgar1.pdf).
[14] Lê-se no art.º 204.º do CPP que:
«1 - Nenhuma medida de coacção, à excepção da prevista no artigo 196.º, pode ser aplicada se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida:
a) Fuga ou perigo de fuga;
b) Perigo de perturbação do decurso do inquérito ou da instrução do processo e, nomeadamente, perigo para a aquisição, conservação ou veracidade da prova; ou
c) Perigo, em razão da natureza e das circunstâncias do crime ou da personalidade do arguido, de que este continue a actividade criminosa ou perturbe gravemente a ordem e a tranquilidade públicas.
2 - Nenhuma medida de coação, à exceção da prevista no artigo 196.º, pode ser aplicada a pessoa coletiva ou entidade equiparada arguida se em concreto se não verificar, no momento da aplicação da medida, perigo de perturbação do inquérito ou da instrução do processo ou perigo de continuação da atividade criminosa.
(…)»
[15] Neste sentido, na doutrina: Maia Gonçalves, Código de Processo Penal Anotado, 1994, pág. 374; Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código de Processo Penal, 2007, pág.600.
Na jurisprudência: Ac. da RP, de 13.02.2008, CJ, 2008, Tomo 1, pág. 218.
[16] Neste sentido: Ac. da RP, de 13.09.2017, Maria Ermelinda Carneiro, Processo n.º 44/14.5TACPV.P1; e Ac. da RP, de 30.05.2018, Francisco Mota Ribeiro, Processo n.º 2039/14.0JAPRT-D.P1.
[17] Neste sentido, na doutrina:
. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Volume II, 2.ª edição, Lisboa, Editorial Verbo, 1999, pág. 197 - onde se lê que a «apreensão não é apenas um meio de obtenção e conservação de provas, mas também de segurança de bens para garantir a execução, embora na grande maioria dos casos esses objetos sirvam também como meios de prova».
. Damião da Cunha, «Perda de bens a favor do Estado», Centro de Estudos Judiciários, 2002, pág. 26.
. Maria João Antunes, «Arresto preventivo e apreensão em processos penal e processo de insolvência», Católica Law Review, Volume IV, n.º 3, Novembro de 2020, pág. 135 (in file:///C:/Users/MJ01472/Downloads/9551-article-16497-2-10-20210202.pdf) - onde se lê que «a apreensão prevista nos artigos 178.º e ss. do CPP continuou a ter a dupla função de meio de obtenção da prova e de garantia processual da perda (do confisco) de bens (de instrumentos, de produtos e de vantagens). É assim, não obstante a inserção sistemática da apreensão no Título do Código que tem como objeto os meios de obtenção da prova e de estarmos perante meios processuais que cumprem finalidades distintas: a apreensão enquanto meio de obtenção da prova serve a finalidade processual penal de descoberta da verdade; a apreensão enquanto garantia processual da perda de vantagens serve a finalidade processual de realização da justiça».
Na jurisprudência:
. Ac. do TC n.º 294/2008, de 29.05.2008, Carlos Fernandes Cadilha (in www.tribunalconstitucional.pt, como todos os demais citados com a mesma proveniência) - onde se lê que «a apreensão é também um meio de segurança dos bens que tenham servido ou estivessem destinados a servir a prática do crime, ou que constituam o seu produto, lucro, preço ou recompensa, como forma de garantir a execução da sentença penal, o que também justifica a conservação dos objetos apreendidos à ordem do processo até à decisão final». Tem a «dupla função de meio de obtenção de prova e de garantia patrimonial do eventual decretamento de perda de valores a favor do Estado».
Este entendimento foi reiterado no Ac. do TC n.º 387/2019, de 26.06.2019, Maria de Fátima Mata Mouros.
. Ac. da RL, de 25.10.2017, Maria da Graça Santos Silva, Processo n.º 586/15.5TDLSB-H.L1-3 - onde se lê que o «instituto processual da apreensão tutela a necessidade de recolha e conservação de prova para efeitos de instrução do processo mas tem igualmente aplicação nas situações em que importa, única e exclusivamente, a segurança dos bens apreendidos, tendo em vista a sua disponibilização para efeitos de confisco, ou seja, é um meio ao serviço da eventualidade da declaração de perda de instrumentos, produtos e vantagens do crime, previstas nos artigos109.º e seguintes do CP».
[18] Neste sentido, Ac. da RL, de 29.04.2014, Luís Gominho, CJ, 2014, Tomo 2, pág.164.
[19] Neste sentido, Ac. da RL, de 04.07.2018, Margarida Vieira de Almeida, Processo n.º 122/13.8TELSB-AR.L1-9.
[20] Neste sentido, Ac. da RP, de 11.06.2014, Neto de Moura, Processo n.º 1653/12.2JAPRT-A.P1.
[21] Neste sentido, José Lebre de Freitas, «Apreensão, Restituição, Separação e Venda de Bens no Processo de Falência», Revista da Faculdade de Direito da Universidade de Coimbra, Volume 36, 1995, págs. 371 a 282, onde se lê que, «tendo por objecto, além dos elementos da contabilidade, todos os bens penhoráveis do falido, a apreensão reveste-se de um carácter definitivo que a distingue das providências cautelares. Com ela realiza-se é certo, uma finalidade de acautelamento», uma vez que o facto de os bens serem apreendidos pelo administrador da insolvência impede que o insolvente de proceder à sua ocultação ou dissipação. «Mas a função de apreensão consiste, essencialmente, em concretizar o conteúdo da massa falida e o objecto dos actos executivos (administração e alienação) que sobre ela subsequentemente se irão realizar. Trata-se de uma função semelhante à da penhora no processo executivo (…). A função da apreensão dos bens do falido extravasa assim a função cautelar, constituindo uma função executiva».
Ainda: Luís Manuel Teles de Menezes Leitão, Direito da Insolvência, 2011-3.ª edição, Almedina, Janeiro de 2011, págs. 167 e 168; Maria do Rosário Epifânio, Manual de Direito da Insolvência, 2016-6.ª edição, Almedina, Março de 2026, pág. 254; ou Catarina Serra, Lições de Direito da Insolvência, 2.ª edição, Almedina, Fevereiro de 2021, pág.190.
[22]  Recorda-se que, nos termos do art.º 391.º, n.º 2, do CPC, o «arresto consiste numa apreensão judicial de bens».
[23] Compreende-se, por isso, que se afirme que, terminado o processo penal ou contraordenacional e devendo os bens ser restituídos a antes arguido simultaneamente insolvente, «devem, então, ser entregues ao administrador da insolvência (…). Por isso, a declaração de insolvência deve ser comunicada aos tribunais onde corram os processos penais e de mera ordenação, sendo que neles, aliás, “o administrador da insolvência assume a representação do devedor para todos os efeitos de caráter patrimonial que interessem à insolvência” - ex vi do n.º 4 do art.º 81.º» (Luís A. Carvalho Fernandes e João Labareda, Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado, 3.ª edição, Quid Juris, Lisboa 2015, pág. 565).
[24] Neste sentido, na jurisprudência: Ac. da RL, 19.10.2010, Dina Monteiro, Processo n.º 2463/09.0TBOER.L1-7; Ac. da RC, de 09.01.2018, Maria Catarina Gonçalves, Processo n.º 110/17.5T8FND-E.C1; Ac. da RL, de 13.02.2019, João Lee Ferreira, Processo n.º 324/14.0TELSB-CB.L1-3; ou Ac. da RE, de 16.03.2023, Francisco Matos, Processo n.º 1812/21.7T8STR-E.E1.
[25] Neste sentido, na doutrina, Maria João Antunes, «Arresto preventivo e apreensão em processos penal e processo de insolvência», Católica Law Review, Volume IV, n.º 3, Novembro de 2020, pág. 137, onde se lê que «a apreensão garante a perda em espécie; as medidas de garantia patrimonial garantem a perda do valor.
É de concluir, atento o estatuído no artigo 228.º do CPP, que o arresto preventivo não pode ter como finalidade garantir a perda de bens a favor do Estado, prevista nos artigos 109.º, n.º 1, 110.º, n.os 1 a 3, e 111.º, n.º 2, do CP. Já poderá ter, porém, a finalidade de garantir o pagamento do valor correspondente aos bens a declarar perdidos a favor do Estado, ao abrigo dos artigos 109.º, n.º 3, 110.º, n.º 4, 111.º, n.º 3, do CP, quando não seja possível a apropriação em espécie dos instrumentos, dos produtos e das vantagens do facto ilícito típico».
Na jurisprudência, Ac. da RL, de 23.03.2023, Luís Correia de Mendonça, Processo n.º 7418/21.3T8LSB-E.L1-8.
[26] Neste sentido, Ac. da RL,  de 13.02.2019, João Lee Ferreira, Processo n.º 324/14.0TELSB-CB.L1-3, onde  se lê que a «salvaguarda da par conditio creditorum como fundamento e última finalidade do processo de insolvência implica igualmente que se reconheça que este encontra na sua génese o limite imanente do “economicamente possível” como referencial sob o qual gravita toda estrutura em que se encontra consagrado (o artigo 3.º n.º 1 do CIRE exige que os activos não sejam suficientes para assegurar o pagamento dos passivos).
Invocamos aqui no limite do economicamente possível porque os credores vão satisfazer os seus créditos apenas e só na proporção do património que pertence ao insolvente, ou seja, com base naquilo que o mesmo tem, e não por referência aquilo que teve ou deveria/poderia ter, nem por referência ao valor global que os credores tem direito a receber.
O património que os credores podem almejar repartir é por isso limitado, e esse limite encontra-se claramente definido pelo conjunto de activos que pertencem ao insolvente.
O processo de insolvência nasce por isso limitado e em consequência de um limite. Qual o fundamento para que, de repente se transforme numa plataforma centrifugadora que absorve e dilui todos os demais interesses concorrentes, ainda que de dignidade superior ?»
[27] Neste sentido, Ac. da RL, de 13.02.2019, João Lee Ferreira, Processo n.º 324/14.0TELSB-CB.L1-3, quando enfatiza que «as vantagens do crime não deixam de o ser, ou seja, não passam a assumir diferente natureza, pelo simples facto ter sido requerida e decretada a declaração de insolvência».
[28] Neste sentido, Ac. da RL,  de 13.02.2019, João Lee Ferreira, Processo n.º 324/14.0TELSB-CB.L1-3, onde se lê que, ao «permitir que as vantagens geradas pelo crime, diretas ou indiretas, ou o património que com elas se obteve, sejam distribuídas sem mais pelos credores, ainda que os créditos reconhecidos tenham sido gerados em consequência de negócios absolutamente alheios à prática do facto ilícito, estaria o processo de insolvência a promover a realização de todos os elementos do tipo objetivo do crime de branqueamento, na medida em que está a distribuir pelos credores as vantagens de um facto ilícito típico, a coberto, unicamente, do exclusivo interesse de satisfação dos interesses económicos destes».
Dir-se-á mesmo que esta «referência à criminalização da utilização das vantagens do crime demonstra igualmente que será juridicamente anacrónico equiparar as vantagens do crime a quaisquer outros “créditos” ou institutos que impliquem a transferência de património para o Estado, e que poderão ser considerados no processo de insolvência, como créditos privilegiados, garantidos ou comuns.
Seria impensável que se admitisse que as vantagens do crime, ou o incremento patrimonial correspondente, pelas mesmas gerado, servisse para pagar as dívidas que directa ou indirectamente oneram o arguido».
[29] No mesmo sentido, Ac. da RL,  de 13.02.2019, João Lee Ferreira, Processo n.º 324/14.0TELSB-CB.L1-3, onde se lê que  entender, «assim, como faz a Oponente, que o arresto preventivo visa assegurar uma mera pretensão cautelar relativa ao recebimento de um “crédito” configura uma inqualificável falácia, ainda mais quando está em causa o único mecanismo eficaz e não ingénuo de dissuasão da criminalidade que visa o lucro, que é aquela que mais prejuízos inflige aos cidadãos (ainda que muitas vezes sem vítimas identificadas)».
[30]  De algum modo reconhecendo a razoabilidade do afirmado, Maria João Antunes, adepta do segundo entendimento exposto supra, não deixa de afirmar que, sem «prejuízo de tudo o que foi dito relativamente ao direito vigente quanto à necessária distinção entre apreensão e arresto preventivo», entende «que do ponto de vista do direito a constituir a melhor solução é a de não diferenciar meios processuais consoante esteja em causa garantir a efetividade da decisão judicial de perda em espécie - apreensão - ou garantir a efetividade da decisão judicial de perda do valor - caução económica ou arresto preventivo». Defende, por isso, que «a melhor solução é a de a apreensão não ser, simultaneamente, um meio de obtenção da prova e uma garantia processual da perda dos produtos ou das vantagens de facto ilícito típico, desde logo porque prosseguem finalidades distintas: a apreensão que é meio de obtenção da prova serve a finalidade processual penal de descoberta da verdade ao passo que a apreensão que é garantia processual da perda serve a finalidade de realização da justiça. A opção político-criminal que se nos afigura correta é a da previsão legal de meios processuais específicos que garantam a efetividade da decisão final quer se trate de decisão de perda em espécie, por apropriação dos produtos ou das vantagens do crime, quer se trate de decisão de perda de valor, por pagamento do valor correspondente aos produtos ou vantagens ou do valor do património do arguido não congruente com os seus rendimentos lícitos» («Arresto preventivo e apreensão em processos penal e processo de insolvência», Católica Law Review, Volume IV, n.º 3, Novembro de 2020, pág. 142).
[31] Crê-se que exemplo desta ponderação (de prevalência do interesse público sobre o interesse particular, nesta concreta sede) é igualmente o Ac. STJ n.º 5/2024, de 9 de Maio, de fixação da seguinte jurisprudência: «Nos termos do disposto no artigo 111.º, n.ºs 2 e 4, do Código Penal, na redacção dada pela Lei n.º 32/2010, de 02/09, e no artigo 130.º, n.º 2, do Código Penal, na redacção anterior  à Lei n.º 30/2017, de 30/05, as vantagens adquiridas pela prática de um facto ilícito típico devem ser declaradas perdidas a favor do Estado, mesmo quando já integram a indemnização civil judicialmente pedida e atribuída ao lesado pelo mesmo facto».
Veja-se ainda Hélio Rigor Rodrigues e João Conde Correia, «Anotação ao Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 01-12-2014, processo 218/11.0GACBC.G1 (pedido de indemnização e confisco)», Julgar on line, Abril de 2015, págs. 2 a 15 (in https://julgar.pt/anotacao-ao-acordao-do-trg-de-01-12-2014-processo-21811-0gacbc-g1-pedido-de-indemnizacao-e-confisco/), cujo resumo é o seguinte: «A remoção dos incentivos económicos subjacentes à prática do crime, concretizada através do confisco das respectivas vantagens, constitui o único modo verdadeiramente eficaz de combater a actividade ilícita que visa o lucro. As finalidades preventivas que por esta via se alcançam, em conjugação com o quadro normativo vigente, impõem que se conclua de forma inequívoca que inexiste qualquer limite ao confisco motivado pela mera possibilidade de ser deduzido um pedido de indemnização civil».
[32] Neste sentido, Ac. da RL, de 13.02.2019, João Lee Ferreira, Processo n.º 324/14.0TELSB-CB.L1-3, onde se lê que, por «contraposição aos valores protegidos com o confisco das vantagens do crime, ao processo de insolvência haverá de reconhecer-se apenas o mero papel de gestão funcional de determinado património tendente a satisfazer os interesses dos credores na proporção dos seus créditos, de acordo com as regras de pagamento pré estabelecidas». Assim, numa «perspetiva de adequada ponderação de interesses, tendo em conta os fins que visam as leis que regem o confisco das vantagens e as leis falimentares, o juízo que nos deve orientar é precisamente o da preponderância dos interesses de manifesta relevância pública subjacentes ao confisco das vantagens sobre a tutela dos interesses económicos dos credores que, norteiam a existência do processo de insolvência».
Acresce que «esta preponderância do confisco sobre os interesses particulares da insolvência sempre poderia igualmente deduzir-se do reconhecimento assente que a declaração de insolvência não implica qualquer restrição ou constrangimento à responsabilização penal, quer das pessoas singulares quer coletivas, constituindo, inclusivamente, em determinados casos, uma condição objetiva de punibilidade – cfr. artigos 227.º e 228.º do CP».
[33] No mesmo sentido, Ac. da RL, de 23.09.2020, Cristina Almeida e Sousa, Processo n.º 324/14.0TELSB-CX.L1-3, onde se lê que, uma «vez que o arresto preventivo é decretado perante a séria e real possibilidade de os bens seu objecto virem a ser declarados perdidos a favor do Estado, tal como resulta das disposições conjugadas dos arts. 374° n° 3 alínea c) e 178º nº 7 do Código de Processo Penal, quer o bem pertença ao arguido, quer esteja na titularidade de terceiro e, dada a natureza das quantias pecuniárias cujo cumprimento visa assegurar, só depois de proferida a decisão final, condenatória ou absolutória, é que é possível apurar se e em que medida o património (lícito) do arguido deve ser colocado à disposição das finalidades patrimoniais do processo penal, no tocante ao confisco das vantagens do crime, ou ao cumprimento integral da responsabilidade penal e civil emergente do facto criminoso, de resto, em linha de coerência com as previsões contidas nos arts. 111º nºs 2 e 4 e 130º nº 2 do CP».
[34] Reproduz-se, a propósito, a posição do Ministério Público exarada no processo crime onde se realizou o arresto preventivo em referência, com a qual se concorda inteiramente:
«(…)
vi. O confisco das vantagens possui carácter quase absoluto; cede, apenas, perante a necessidade de proteção dos “terceiros” de “boa-fé (ou seja, significa que este terceiro, estando de boa-fé, deverá ser reconhecido como aquele que tem o poder ou a capacidade de impedir a concretização do confisco).
Nos termos previstos no artigo 111.º do CP: por um lado temos de distinguir a posição do insolvente, e, por outro, a posição dos credores desse insolvente. O insolvente, ainda que possa ser classificado como «terceiro» não estará, em regra, de «boa-fé» tal como este conceito deve ser concretizado no confisco das vantagens, e os credores da insolvente, podendo eventualmente estar de «boa-fé», não são para estes efeitos «terceiros».
E, após a entrada em vigor da Lei n.º 30/2017, de 30-05, o ordenamento jurídico nacional continuou a fazer referência, unicamente, aos bens «pertencentes» a terceiros: Art.º 111.º, n.º 1: (…) a perda não tem lugar se os instrumentos, produtos ou vantagens não pertencerem, (…) nenhum dos agentes ou beneficiários. (sublinhado nosso)
A Directiva 2014/42 EU refere a este respeito, no considerando 33, as garantias que são devidas aos “terceiros que alegam ser proprietários dos bens em causa ou titulares de outros direitos de propriedade («direitos reais» ou «ius in re»).
Nesta medida, não deverá reconhecer-se legitimidade para evitar a concretização do confisco àquele que invoque outro direito real para além da propriedade plena.
Os credores não são proprietários. Uma corrente jurisprudencial vem admitindo que, nestes casos, pese embora a impossibilidade de travar o confisco, poderão os credores obter o ressarcimento devido através da convocação da doutrina da “perda da chance” responsabilizando o património pessoal dos responsáveis pela prática do facto ilícito típico [Cour de cassation 27 février 2008].
Será no processo penal, com as regras próprias vigentes nesta constelação normativa, que deverá ser apreciada e resolvida a questão relativa à manutenção ou não do arresto ou da apreensão decretados com vista a assegurar a perda das vantagens do crime, e do subsequente confisco, quando o proprietário seja declarado insolvente.
Fins do processo penal enquanto instrumento de realização da justiça que nas palavras de Figueiredo Dias visa alcançar: “a revelação das grandes relações funcionais entre as singulares normas e problemas jurídico-processuais e a totalidade da ordem jurídica”.
Não existe, em qualquer outra jurisdição, uma regra semelhante à prevista no artigo 7.º do CPP, que permite conhecer todas as questões jurídicas que interessem à decisão da causa penal.
O Tribunal Penal poderá conhecer as questões relativas à insolvência, à proteção dos credores e vítimas, e à responsabilização penal e civil dos arguidos. O contrário não é verdade, ou seja, a jurisdição onde se decidem e resolvem as questões relativas à insolvência não possui legitimidade para apreciar questões que integrem a «causa penal», sejam de natureza criminal ou de natureza patrimonial.
Face ao predito, os eventuais credores do arguido insolvente não integram o conceito de “terceiro”, não podendo, pois, impedir o confisco, ainda que sejam titulares de direitos reais de garantia sobre os bens a confiscar.
(…)»