Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
268/20.6GAFAF.G1
Relator: PAULO ALMEIDA CUNHA
Descritores: CRIME DE USURPAÇÃO DE COISA IMÓVEL
VIOLÊNCIA
CONSUMAÇÃO
CRIME DE INTRODUÇÃO EM LUGAR VEDADO AO PÚBLICO
CRIME DE DANO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/05/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
1. A acção típica violenta do crime de usurpação de coisa imóvel, previsto no art. 215.º, n.º 1, do Código Penal, não se esgota na violência exercida sobre as pessoas.
2. A violência típica ali prevista abrange igualmente as próprias coisas, no sentido de destruição ou danificação dos obstáculos físicos que impeçam ou dificultem a entrada do agente do crime dentro da coisa imóvel alheia.
3. O crime em apreço é um crime de consumação instantânea, isto é, consuma-se com a invasão do imóvel.
4. Por outro lado, o crime em apreço é execução vinculada, isto é, a invasão da coisa imóvel alheia deve ser cometida por meio de violência prévia ou contemporânea à execução do crime.
5. A falta de prova da violência da invasão determina necessariamente a absolvição do arguido pela prática do imputado crime de usurpação de imóvel.
6. Subsistindo a prova da entrada dolosa do arguido em imóvel alheio fechado e não habitado, bem como a danificação dolosa pelo arguido da fechadura do portão da garagem, tais condutas convocam a chamada à colação das normas relativas às incriminações de introdução em lugar vedado ao público e de dano simples que constam dos artigos 191.º e 212.º do Código Penal
7. O preenchimento do tipo de crime de introdução em lugar vedado ao público não exclui a punição autónoma e cumulativa do arguido a título de crime de dano.
Decisão Texto Integral:
Acordam os Juízes Desembargadores, em conferência, na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – RELATÓRIO

1. Decisão recorrida
No âmbito do processo n.º 268/20...., que corre os seus termos no Juízo Local Criminal de ..., foi proferida sentença, datada de 23.01.2024, que decidiu condenar o arguido AA, como autor material e na forma consumada, pela prática de um crime de usurpação de coisa imóvel, previsto e punido pelo art. 215.º do Código Penal, na pena de 9 (nove) meses de prisão efectiva.

2.
Recurso
Inconformado com esta sentença, o referido arguido recorreu da mesma, tendo concluído a respectiva motivação nos seguintes termos (transcrição):
“(…)
1- Foram incorretamente julgados, e por isso expressamente se impugnam os pontos 8), 11), 12), 13) e 14) da matéria de facto provada.
2- Os pontos impugnados, deveriam antes ter sido julgados como factos não provados, desde logo, porque a ofendida disse em tribunal que não reside naquele imóvel, nem lá guarda os seus pertences, nem cuida do mesmo; por não se ter provado que o arguido agiu dolosamente, e com a consciência de cometer um crime, sendo que o estroncamento da fechadura da garagem não lhe concedeu o acesso à casa, pois, que não possui qualquer ligação à casa, mas antes para aceder ao seu veículo automóvel que lá se encontrava.
3- O arguido vinha acusado de um crime de violação de domicílio agravado, previsto e punido pelo artigo 190.º, n.º 1 e n.º 3, em concurso aparente com um crime de dano simples, previsto e punido, pelo artigo 212.º, n.º 1 ambos do Código Penal.
4- Em que, não se vislumbra assim, em que medida estão preenchidos os elementos do tipo, uma vez que a ofendida não reside naquele imóvel, logo, não faz daquele imóvel a sua habitação, sendo que o estroncamento da fechadura, ponto 11) dos factos provados, seria alegadamente pelo MP aquilo que preenche o elemento do tipo legal de crime, quando exige o meio de arrombamento, bem como, o crime de Dano.
5- O qual nem tão pouco, se veio a provar, porque aquilo que resultou provado, foi o estroncamento somente da fechadura da garagem, que não possui qualquer acesso à casa, antes lá se encontrando o veículo automovel do arguido, conforme o depoimento da ofendida e arguido, transcritas da Ata de sessão se julgamento de 28.11.2023, nas páginas 13 a 18 do presente recurso. Improcedendo assim, a douta acusação promovida pelo MP, por não se verificar que a ofendida lá habitasse, que tivesse havido arrombamento ou violência, nem tão pouco crime de Dano, pois que o arguido tinha a necessidade de recuperar o seu veículo automóvel que se encontrava naquela garagem.
6- Sucede que, o arguido foi notificado da alteração não substancial dos factos, relativamente à alteração da qualificação jurídica, no Ato de Leitura de  Sentença, conforme consta do próprio teor da sentença recorrida na página 11. Pelo que, quando o arguido é confrontado com a alteração do tipo legal de crime de vinha acusado, já a sentença estava delineada, não se tendo garantido o direito de contraditório estabelecido no artigo 358.º, n.º 1 e 3 do CPP.
7- Vem assim, a douta sentença recorrida, de alguma forma tentar suprir o insucesso a que aquela acusação estava fadada, alegando ser do entendimento que o crime em causa não é a de violação de domicílio agravado, mas antes condenando o arguido pela prática do crime de usurpação de bem imóvel, previsto e punido no artigo 215.º do Código Penal.
8 - Atento aos elementos do tipo legal deste crime, que são os seguintes: 1 – a invasão ou ocupação de coisa imóvel alheia; 2- por meio de violência ou ameaça grave; 3- com a intenção de exercer direito de propriedade, posse, uso ou servidão não tutelados por lei. Verifica-se que no caso em apreço, não existiu, nem se fez qualquer tipo de prova nesse sentido, mormente de que a ofendida, tenha sofrido violência ou ameaça grave.
9 – Rogando-se a douta sentença, que a violência poder ser contra coisas, e não somente contra pessoas. O que não é matéria assente e da qual discordamos, assim como, a doutrina e a jurisprudência divergem – ver os vários Acórdãos citados nas páginas 8, 9 e 10 do presente recurso.
10- Como melhor escreve, J.M. Damião da Cunha, in Comentário Conimbricense do Código Penal, Parte Especial, Tomo II, 263, e do qual concordamos veemente, “quanto ao facto de saber se a violência se devia dirigir só contra as pessoas ou abrangeria também a violência contra as coisas. Devem interpretar-se os presentes elementos no mesmo sentido com que eles são integrados nos restantes tipos legais - isto é, tem de tratar-se de violência ou ameaça contra as pessoas… do que se trata é de garantir a propriedade imobiliária contra limitações injustificadas que se apoiem em atos que ponham em causa a liberdade pessoal…”.
11- Não se mostra preenchido, pois, um dos elementos objetivos do crime de usurpação de coisa imóvel imputado ao arguido - a ocupação por meio de violência ou ameaça grave. Porque, o arguido não agiu de violência contra a ofendida ou de ameaça grave, ou quaisquer atos que pusessem em causa a sua liberdade pessoal, nem tão pouco havia barreiras físicas, como se arroga a douta sentença, as portas estavam somente batidas, bem assim, releva o facto de que o arguido não estava convencido, não tendo a representação intelectual de que o prédio pertence a outrem, pelo que não se vê como possa ter dirigido a sua vontade à realização do tipo.
12- Aliás, o próprio referiu em audiência, que aquela é a sua casa, a casa que ele construiu, e que ele sempre manteve e cuidou, e que se arroga na pretensão de que o processo de partilha de bens, não traduziu a realidade dos factos, aquando do divórcio. O que, de certa forma é corroborado pela ofendida, bem como, pelos factos provados na douta sentença 5) e 6), em que o valor atribuído à casa no valor de 75.000,00€, diz respeito somente ao valor do terreno, por ser um prédio rústico e que a ofendida terá vindo a inscrever na matriz urbana somente em 2014. – ver transcrições da Ata de 28.11.2023, nas páginas 15 e16 do presente recurso.
13 - Ora, a própria ofendida confirmou, aquando do seu depoimento, que enquanto correram as partilhas, o arguido se encontrava preso, por ter sido condenado pelo crime de violência doméstica que aquele praticara contra si, e mais afirmou, que durante esse período colocou a casa à venda, da qual pretendia o preço de 750.000,00€ (setecentos e cinquenta mil euros), são 675.000,00€ a mais, no mesmo espaço temporal!! – ver transcrições da Ata de 28.11.2023, nas página 15 do presente recurso.
14 - Não obstante, e após se terem seguido vários processos, que condenam sempre o arguido e concedem a propriedade do imóvel à ofendida, sentenças baseadas sempre somente na presunção do artigo 7.º do Código do Registo Predial, não discutindo ou conhecendo do mérito, sequer o mapa ou o teor do processo do inventário que antecedeu e transitou em julgado, sendo que durante todo o processo de partilha, este se encontrava muito abalado, foi preso pelo crime de violência doméstica do qual cumpriu a pena completa, de dois anos, não tendo sido capaz de se defender e percecionar as consequências dessa sua omissão.
15- Tendo confidenciado ao Tribunal a quo, que requereu apoio jurídico para lançar mão de uma ação cível contra a ofendida, por forma a retificar o mapa de partilha, porém o ilustre patrono nomeado, entendeu já não ser possível tal pretensão por corrido o trânsito julgado. – ver transcrições da Ata de 28.11.2023, nas página 18 do presente recurso.
16 - Note-se que, o Arguido quando entrou na casa, encontrou as portas todas abertas, pelo que, a única fechadura que foi trocada pela ofendida e por ele estroncada, foi a da garagem, onde está o seu carro e que não tem sequer acesso à casa, conforme facto provado 11). O que, a nosso ver é revelador, da intenção da ofendida de provocar o comportamento do arguido, para de seguida chamar as autoridades. Pois, que a própria afirmou lá não residir e quando questionada em pleito, se o imóvel relacionado na partilha, dizia respeito apenas ao terreno ou à casa edificada, disse que não sabia, mas que o valor que atribuiu “… era para ele e para mim!”. – ver transcrições da Ata de 28.11.2023, nas páginas 15 e 16 do presente recurso.
17- Com o devido respeito, e não querendo de forma alguma desvalorizar, o que a ofendida terá vivido quando casada com o arguido, o certo é, que esta não terá ainda ultrapassado essa situação, pesa embora o arguido já tenha a sua conta paga com a sociedade, a ofendida tentou e tenta munir-se de todas as possibilidades para se insurgir contra ele, sendo conhecedora da convicção do arguido quanto à casa, usa de “artimanhas” para o castigar, pois, que não é atendível como é que estavam as portas todas abertas, apenas no trinco, sendo que o arguido possui e sempre  possuiu as chaves, e resolve trocar somente a fechadura da garagem para que aquele não consiga aceder ao carro que a própria reconhece como sendo do arguido, aliás a certa altura a Mma. Juiz questiona -a sobre o porquê de não ter usado novamente de uma providência cautelar, visto que já tinha tido sucesso anteriormente e que é mais célere e imediato, ao que esta se esquivou de responder, apontando para a orientação da advogada, quando neste processo e como se viu, nem sequer se constituiu assistente ou deduziu pedido de indemnização civil, não tendo de igual forma junto qualquer procuração forense. – ver transcrições da Ata de 28.11.2023, nas páginas 13 a 18 do presente recurso.
18 – Sendo que, pela lógica daquela douta sentença, também a ofendida incorre aqui na prática de um crime, agindo livre, voluntaria e conscientemente, por pretender assegurar para si a posse do veículo automóvel, que reconhece não ser seu, praticando assim, o crime de receptação, p. e p. pelo artigo 231.º do C. P.
19 - Todavia, não podemos deixar de relevar a convicção do arguido em entender que aquela é a sua casa, porque não consta no mapa de partilhas, que se encontra junto aos autos, o que consta é somente o terreno – prédio rustico. Diga-se que o arguido, não se introduziu na casa de um vizinho, ou de qualquer outro cidadão aleatória ou arbitrariamente, mas antes naquela que reconhece como sua propriedade, por ter sido no seu entendimento vítima do sistema judiciário.
20- Reitera-se, que o arguido não contestou a partilha em tempo útil, foi porque para isso não estava capaz, teria acabado de ser condenado a dois anos de prisão efetiva, pena que cumpriu durante todo aquele processo, tao pouco estaria capaz de percecionar a realidade concreta, ou sequer, de perceber as consequências dos prazos perentórios. Pelo que, não há dúvidas que este não atinge o alcance prático de que ao se introduzir naquela residência, comete um crime, falecendo assim a questão do dolo, da intenção de querer fazer seu algo que é de outrem, quando para o arguido o bem continua a ser dele e da sua ex-cônjuge, por ainda não partilhado.
21 - Bem assim, falece igualmente o crime de Dano, pois, que o crime de dano, no caso concreto, reveste natureza particular, não tendo a ofendida se constituído assistente, nem deduzido acusação particular para o efeito, nos termos do artigo 212.º, n.º 4, que remete para o artigo 207.º, uma vez que o arguido estroncou a fechadura da garagem, precisamente para aceder ao seu veículo automovel que lá se encontrava, e por dele necessitar, sendo que o valor da fechadura rondará a quantia de 15€, sendo por isso considerado de valor diminuto para efeitos penais.
22 - Citando, Germano Marques da Silva, in Curso de Processo Penal, vol. III, 1994, 175, “sem acusação formal o juiz está impedido de pronunciar o arguido, por falta de uma condição de prosseguibilidade do processo, ligada à falta do seu objeto, e, mercê da estrutura acusatória em que repousa o processo penal, substituindo-se o juiz ao assistente no colmatar da falta de narração dos factos, enraizaria em si uma função deles indagatória, num certo pendor investigatório, que poderia ser acoimado de não isento, imparcial e objetivo, mais próprio de um tipo processual de feição inquisitória, já
ultrapassado”.
23- A não se entender assim, violar-se-iam de modo desproporcionado as garantias de defesa do arguido e as regras dos artigos 18.º e 32.º n.ºs 1 e 5 da CRP, colocando, afinal, nas mãos do juiz o estatuto de acusador, o que a lei não permite.
24- Desta feita, não pode o arguido ser condenado pelo crime de Dano, que conforme vimos, aqui a ser entendido sempre seria pela sua natureza particular, e da qual não foi processado da maneira própria, sob pena de violação do princípio do Inquisitório e demais disposições legais.
25- Face a todo o exposto, somos de opinião de que o arguido deve ser absolvido dos crimes de que vem condenado, por não se encontrarem preenchidos os elementos do tipo, nem se ter tramitado da forma própria, figurando o real problema entre a ofendida e o arguido na esfera do direito civil, não tendo qualquer colhimento no âmbito penal.
26 – Acresce dizer-se, que se deve atender aos critérios da equidade, pois que não é a mesma coisa, condenar alguém que por meio de violência ou ameaça, invadiu ou ocupou coisa imóvel alheia, de forma arbitrária e aleatória, ou de alguém que resiste a defender aquele que entende ser o seu património. Sendo o direito de resistência, legitimo e constitucionalmente consagrado no artigo 21.º da C.R.P.
27 – A sentença recorrida viola assim, os artigos 358.º, n.ºs 1 e 3, 50.º e 283.º, n.º 3 do C.P.P.; artigos n.ºs 215.º, 231.º, 212.º, n.º 4 com remissão para o 207.º al. b), do C.P.; e artigos n.ºs 18.º, 32.º, 21.º e artigo 6.º n.º 2, da CEDH.
28 - Assim, e entre o demais já explanado, devem os pontos 8), 11), 12), 13) e 14) da matéria de facto dada como provada, serem dados como factos não provados, e consequentemente ser o arguido absolvido, assim se fazendo integral Justiça!!
Nestes termos, e mais de Direito, deve o presente recurso ser julgado totalmente procedente e, em consequência, deve o Recorrente ser absolvido da prática do crime de usurpação de coisa imóvel e do crime de Dano.
(…)”.

3. Resposta ao recurso
Após a admissão liminar do recurso, o Ministério Público junto do tribunal a quo respondeu a este recurso, concluindo (transcrição):
“(…)
1. Na sessão de julgamento de 23.01.2024 foi comunicada uma alteração não substancial dos factos nos moldes descritos na respectiva acta, da qual se deu conhecimento ao arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 358º, n.º1, do CPP.
2. Questionado o arguido, na pessoa da sua defensora, o mesmo declarou prescindir do prazo previsto no artigo 358º, n.º 1 do CPP.
3. Também entendeu o Tribunal que o enquadramento jurídico dos factos, já na forma inicialmente descrita na acusação e que se mantém após a alteração não substancial  dos factos, merecer melhor enquadramento na prática pelo arguido de um crime de usurpação de coisa imóvel, p. e p. pelo art. 215º do CP.
4. Desta alteração da qualificação jurídica deu-se conhecimento ao arguido, nos termos e para os efeitos do artigo 358º, n.º1 e 3, do CPP, tendo o arguido declarado prescindir do prazo previsto no artigo 358º, n.º 1, do CPP.
5. Sendo comunicada ao arguido a alteração da qualificação jurídica operada, em cumprimento do n.º 3 do artigo 358.º do CPP, assim se assegurando as suas garantias de defesa e o contraditório, forçoso é concluir que não existe qualquer reparo a fazer nesta matéria, não se observando qualquer nulidade.
6. O que se pretende com o regime do artigo 358.º do Código de Processo Penal, em caso de alteração de qualificação jurídica é que se garantam duas coisas, ambas necessárias à tutela da defesa do arguido: primeiro, que este seja informado da possibilidade de realização de uma convolação jurídica; e depois que, em face de tal advertência, lhe seja concedida uma oportunidade de redirecionar a sua defesa em função dessa novidade. Como se viu, o arguido prescindiu de prazo para se pronunciar quanto a tal alteração da qualificação jurídica, não podendo agora vir alegar que a não teve oportunidade de reagir quanto a tal alteração.
7. Também se impõe dizer que, face ao disposto no artigo 339.º, n.º 4 do CPP, o objeto do processo não é constituído pela incriminação imputada ao arguido, mas antes pelos factos que lhe são imputados.
8. Perante a reconfiguração jurídica não há qualquer alteração do objeto do processo, não sendo posto em causa o seu efeito de vinculação temática, pelo que não há intromissão nas funções do Ministério Público.
9. Os factos constantes da acusação são suficientes para preenchimento do tipo legal pelo qual se deduziu acusação, quer para preenchimento dos elementos objectivos do crime de usurpação de coisa imóvel pelo qual o arguido foi condenado.
10. O Ministério Público discorda da posição do recorrente quanto ao erro na apreciação da matéria de facto posto que a M.ma Juíza explicou de forma pormenorizada e justificada a valorização que deu à prova.
11. Os depoimentos da ofendida e da testemunha de acusação afiguraram-se coesos e credíveis.
12. De acordo com o princípio da livre apreciação da prova, o julgador dispõe de liberdade de formar a sua convicção sobre os factos com base apenas no juízo que se fundamenta no mérito objectivamente concreto desse caso, na sua individualidade histórica, tal como ele foi exposto e adquirido representativamente no processo.
13. Em regra e não obstante o disposto no artigo 410º, nº. 2 do CPP, o processo de formação da convicção do julgador não pode ser sindicado em sede de recurso, na medida em que se refere a algo que deriva da sua íntima convicção e, naturalmente, sujeito a uma margem de discricionariedade.
14. O juiz encontra-se numa posição privilegiada para melhor poder apreender as emoções, a sinceridade, a objectividade, a isenção, as contradições, avaliando o mais correctamente possível da credibilidade das declarações, tendo assim uma percepção própria do material probatório que é insindicável.
15. Entende-se que o tribunal levou a cabo errónea apreciação da prova quando, para a generalidade das pessoas, seja evidente uma conclusão contrária à exposta pelo tribunal, nisto se concretizando a limitação ao princípio da livre apreciação da prova, o que não sucede no caso em apreço.
16. Quanto ao não preenchimento dos elementos objectivos do tipo legal da usurpação de coisa imóvel, mais concretamente do requisite da violência, pese embora seja inequívoco que a jurisprudência difere nesta matéria, subscrevemos a posição assumida pela M.ma Juíza a quo, no sentido de que a violência ou ameaça, poderá dirigir-se a pessoas ou coisas.
17. Veja-se a este propósito o Acórdão do STJ, de 03/12/86, BMJ nº362 pag.345, Proc. n.º38703º, no âmbito do qual se decidiu que no crime de usurpação de coisa imóvel, o elemento «violência», compreende tanto a violência exercida para com as pessoas como contra as coisas. Tal violência pode ser de ordem meramente moral ou psicológica.
18. O tipo objectivo do crime em análise, consiste na invasão ou ocupação de coisa imóvel alheia, por meio de violência ou ameaça grave e a violência pode ser exercida sobre as pessoas (seja o ofendido, seja um terceiro, seja violência física, seja psicológica) ou sobre coisas.
19. O tipo legal pretendeu ser suficientemente abrangente para abarcar tanto a invasão violenta, como apenas a ocupação, conquanto que garantida por aqueles meios, não fazendo qualquer destrinça sobre o objecto da violência.
20. Ainda que não se perfilhe da posição sufragada pela sentença a quo, sempre teremos que concluir que a violência empregue pelo arguido, se orienta não só a coisas, mas também à própria ofendida, ainda que sob a forma de violência psicológica, colocando-a numa situação de autêntica impotência, pois que nem os Tribunais conseguem dar resposta ao problema.
21. Isto dito, entendemos que a conduta do arguido se subsume ao tipo legal de crime pelo qual foi condenado, não havendo qualquer reparo a fazer quanto a esta questão.
Face a tudo o exposto, entendemos que se deve manter nos seus precisos termos a douta decisão recorrida, assim se fazendo justiça.
(…)”.

4. Tramitação subsequente
Recebidos os autos nesta Relação, o processo foi com vista ao Digníssimo Procurador-Geral Adjunto, o qual emitiu parecer pugnando pela improcedência total do recurso.

Este parecer foi notificado para efeito de eventual contraditório e não foi apresentada qualquer resposta.

Efectuado o exame preliminar, foi determinado que o recurso fosse julgado em conferência.

Colhidos os vistos legais e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir.
*
II – FUNDAMENTAÇÃO
    
A) Objecto do recurso
Em conformidade com o disposto no art.º 412.º do Código do Processo Penal (CPP) e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de Outubro de 1995, o objecto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

Assim sendo,  importa apreciar as seguintes questões:
· Nulidade da sentença (violação do contraditório na alteração dos factos e da qualificação jurídica) 
· Impugnação do julgamento da matéria de facto
· Erro de enquadramento jurídico dos facto provados

B) Apreciação

1. Fundamentação de facto da decisão recorrida
A decisão recorrida apresenta, na parte que interessa, o seguinte teor no plano da fundamentação de facto (transcrição):
“(…)

III – FUNDAMENTAÇÃO

1 - Factos Provados
1) O arguido AA foi casado com a ofendida BB.
2) A sua casa de morada de família situava-se na Rua ..., em ..., ....
3) Por acórdão proferido pelo Tribunal da Relação de Guimarães, tirado no processo 2088/09...., no dia ../../2011 foi tal casamento dissolvido.
4) Na sequência dessa dissolução a ofendida requereu a partilha judicial dos bens em inventário, partilha, esta, que correu os seus termos no extinto ... Juízo do Tribunal Judicial de ..., no âmbito do processo n.º 2088/09....
5) A ofendida, na qualidade de cabeça de casal, relacionou o prédio rústico denominado ..., na qual está edificado a casa referida em 2, com o artigo matricial n.º ...85 e descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o número ...36.
6) Por sentença transitada em julgado no dia ../../2014, tal imóvel foi adjudicado à ofendida, encontrando-se registado a favor desta, pela Ap....67 de ../../2015, actualmente descrito como prédio urbano, inscrito na matriz urbana da freguesia ... sob o artigo ...44.º.
7) No processo 881/09...., que correu os seus termos no extinto ... Juizo do Tribunal Judicial de ..., foi o arguido condenado pela prática de um crime de violência doméstica, no qual era ofendida BB, tendo  cumprido pena efectiva de prisão, na sequência de revogação da sua suspensão, e tendo sido libertado no dia 19 de ../../2016.
8) Desde ../../2014 a ofendida passou a residir na residência descrita em 2 e 6, mormente aos fins-de-semana, após trocar as fechaduras, ali guardando os seus pertences, cuidando da mesma e do logradouro.
9) Após ser libertado o arguido estroncou a fechadura e introduziu-se na habitação, recusando-se a deixar o espaço o que deu causa a uma providência cautelar de restituição provisória de posse, que correu termos na Instância Central de Guimarães da Comarca de ..., ... Secção Cível, J..., sob o número 395/16...., que determinou a restituição da casa à ofendida e que teve que ser executada com recurso às forças policiais.
10) Decisão, esta, que o arguido voltou a incumprir, o que deu causa ao processo 346/16.... no qual foi condenado, por sentença-objecto de recurso, que a confirmou- transitada em julgado no dia 13 de Janeiro de 2020, no mais, a três crimes de usurpação de coisa imóvel, numa pena de 10 meses de prisão efectiva, tendo sido libertado no dia 12 de ../../2020, em resultado do regime excepcional de flexibilização da execução das penas e medidas de graça no âmbito da pandemia da doença COVID-19.
11) Sucede que, assim que foi libertado, o arguido, mais uma vez, dirigiu-se ao imóvel da ofendida, referido em 2 e nele se introduziu, permanecendo ali a viver até ao presente momento, tendo estroncado a fechadura da garagem, situada na parte de baixo do mesmo edifício.
12) O arguido bem sabia que novamente se introduzia em imóvel que não lhe pertencia, contra a vontade da sua proprietária, ali permanecendo, violando, assim, a sua propriedade, introdução e ocupação estas, que sabia que lhe estavam vedadas, pretendendo com a sua actuação exercer sobre o imóvel mencionado um direito de propriedade que bem sabia já não lhe pertencer, e em contrário do decidido em sede de inventário acima identificado.
13) Mais sabia que, para o efeito, estragou a fechadura acima referida, que também não lhe pertencia, provocando prejuízo à ofendida.
14) Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Mais se provou:
15) O teor do saneador-sentença proferido a 08-05-2017, no P.cível 6991/16...., transitado em julgado, junto aos autos, para cujo teor se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido, onde o aí réu, aqui arguido, foi obrigado a reconhecer o direito de propriedade da aí autora, aqui ofendida, sobre o supra identificado prédio, ficando obrigado a não aceder ao mesmo e/ou a praticar actos perturbadores do exercício pleno do direito de propriedade por parte da aí autora, aqui ofendida.
16) O arguido AA:
a) é divorciado;
b) aufere €209,00 de RSI;
c) tem 3 filhos maiores de idade;
d) possui o 9.º ano de escolaridade;
e) do seu CRC constam os antecedentes criminais, aí melhor descritos e constantes de fls. 231 e ss, cujo teor aqui se dá por integralmente reproduzido, designadamente:
-uma condenação no âmbito do P.881/09...., onde foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica na pena de 2 anos de prisão, suspensa com sujeição deveres, tendo visto revogada a suspensão e cumprido efectivamente a pena de prisão aí aplicada;
- no P.346/16.... no qual foi condenado, por decisão transitada em julgado no dia 13 de Janeiro de 2020, no mais, a três crimes de usurpação de coisa imóvel, numa pena única de 10 meses de prisão efectiva, bem como pela prática de um crime de desobediência qualificada, numa pena de multa-cfr. fls.27 e ss, para cujo teor se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido;
f) encontra-se junto aos autos a fls. 222 e ss relatório social referente ao arguido, para cujo teor se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido, segundo o qual:
 “A morada dos autos refere-se à casa de morada de família, onde o arguido reside há vários anos, excetuando os dois períodos em que foi privado da liberdade. Em 2009, a cônjuge do arguido saiu de casa e integrou casa abrigo e, posteriormente, fixou residência em parte desconhecida deste.
O arguido passou a residir sozinho, assegurando a sua sobrevivência económica com base em poupanças pessoais. Registou alguma fragilidade financeira em virtude de ter sido impossibilitado de aceder às contas bancárias do casal, por ordem judicial no âmbito de processo de partilha de bens.
Após a separação e divórcio litigioso, AA não voltou a contactar com o ex-cônjuge nem com os descendentes do casal, maiores.
Entre ../../2014 e ../../2016, AA cumpriu pena de prisão efetiva, no Estabelecimento Prisional .... Durante este período, não beneficiou de saídas ao exterior, por ausência de consciência crítica relativamente ao crime de violência doméstica pelo qual havia sido condenado, e por não equacionar outro enquadramento habitacional além da casa de morada de família, à data incluída no processo de partilha de bens.
Em 04-02-2020, AA foi novamente privado da liberdade, e permaneceu no Estabelecimento Prisional ... até 12-04-2020, quando foi libertado após perdão da pena de prisão não cumprida, nos termos da Lei n.º 9/2020 de 10 de abril.
No processo de partilha de bens, a imóvel passou a pertencer ao ex-cônjuge, situação que não terá sido aceite pelo arguido.
De acordo com os elementos da comunidade, AA regressou à morada dos autos, onde reside sozinho. É do conhecimento geral que o imóvel é pertença do ex-cônjuge, assim como a disfuncionalidade conjugal passada e as condenações de que o arguido já foi alvo.
AA não estabelece relações com os elementos da comunidade de residência, estando dotado a aparente isolamento.
Aufere apoio social, por parte da Cruz Vermelha Portuguesa – Delegação ..., na forma de rendimento social de inserção. Requereu apoio social em outubro de 2021, tendo sido deferido, com o valor de 189,66€, que mantém até atualmente.
De acordo com a Técnica responsável pelo acompanhamento do arguido, naquele âmbito, AA tem adotado uma atitude reservada e resistente.
AA foi condenado pela prática de um crime de violência doméstica, numa pena de dois anos de prisão, suspensa na sua execução por igual período, com a condição de pagar, no mesmo prazo, à assistente os montantes infra indicados, bem como frequentar um Programa contra a violência doméstica, e na pena acessória de proibição de contactos com a assistente, designadamente afastamento da residência e local de trabalho desta. AA não frequentou o programa e não efetuou o pagamento da indemnização devida. Durante aquele período, comparecia nas entrevistas agendadas pela DGRSP, mas demonstrava ausência de motivação para o cumprimento da medida.
Por incumprimento das condições impostas, a medida foi revogada e foi determinado o cumprimento da pena de prisão.
Regista outra condenação posterior, numa pena de 10 meses de prisão efetiva, pela prática de um crime de desobediência qualificada e três crimes de usurpação de coisa imóvel”.

2- Factos não Provados:
-Que à data dos factos a ofendida efectivamente residisse no imóvel acima identificado, fazendo do mesmo o seu domicílio;
-Que com a sua conduta o arguido tivesse pretendido violar a privacidade da residência e domicílio da ofendida, à data dos factos;
Não se provaram quaisquer outros factos com relevância para a decisão da causa articulados na acusação pública, ou alegados em audiência de discussão e julgamento que não se encontrem descritos como provados ou que se mostrem em oposição aos provados ou prejudicados por estes.

3- Convicção do Tribunal:
A convicção do tribunal, no que concerne aos factos dados como provados, baseou-se, fundamentalmente:
• Relatório de serviço de fls. 13;
• Certidão de fls. 26 a 48;
• Cópia de mandado de detenção e certidão de fls. 55 e 56
• Certidão predial de fls. 96 e 97
• CRC de fls. 99 a 101;
• Cópias provenientes do processo n.º 6991/16.... de fls. 115 a 183
• Relatório Social e crc actualizado junto aos autos
• documentos juntos aos autos durante a audiência de julgamento;
Em conjunto com a demais prova produzida em julgamento, a saber:
O arguido AA, desta feita, compareceu a julgamento, acabando por reconhecer que depois da libertação ocorrida no âmbito do perdão de pena ocorrido aquando da legislação covid19 voltou a introduzir-se na antiga casa morada de família, dizendo “não ter para onde ir”, admitindo ter estroncado a fechadura da garagem, dizendo ter lá o seu carro, dizendo quanto à porta principal a mesma só se encontrar no trinco, usando as chaves de casa que nunca deitou fora, acrescentando que não esperavam pelo seu regresso.
Perguntado se reconhecia que a propriedade do imóvel era agora da sua ex-cônjuge optou por não responder.
Recusa sair do imóvel, revelando-se inconformado com o decidido no inventário, que diz tê-lo prejudicado, dizendo não lograr encontrar situação habitacional alternativa (“não tenho outra habitação”, tendo prestado declarações sobre a sua actual situação económico-financeira e familiar, aqui complementadas com o teor do relatório social junto aos autos.
Foi igualmente ouvida BB, aqui ofendida e ex-mulher do arguido, a qual de forma isenta e credível voltou a descrever, o divórcio e processo de violência doméstica que correu termos em Tribunal e pelo qual o arguido acabaria por cumprir pena efectiva de prisão, bem como o processo de inventário para partilha de bens e adjudicação do imóvel à ofendida, nos termos melhor vertidos nos documentos já juntos aos autos.
Mais explicou que o arguido nunca aceitou o decidido em sede de partilhas, pelo que anteriormente teve já necessidade de lançar mão de uma providência cautelar de restituição provisória de posse referente ao imóvel, que lhe foi deferida, tendo sido coercivamente executada, tendo na noite desse mesmo dia o arguido voltado a lá se reintroduzir, factos estes que foram já apreciados e julgados no âmbito do P.346/16...., onde o arguido foi condenado por três  crimes de usurpação de coisa imóvel, por sentença confirmada por Ac. proferido pelo Trib. Relação de Guimarães, numa pena de 10 meses de prisão efectiva, cujo cumprimento chegou a iniciar, tendo passado cerca de 2 meses do início do cumprimento sido libertado devido ao perdão covid19, voltando a reingressar na casa da mesma, sua propriedade exclusiva desde as partilhas, tendo arrombado as novas fechaduras da garagem, que integra o mesmo edifício da casa, que a aí ofendida entretanto tinha aí colocado, voltando a assenhoriar-se do imóvel, como se fosse dele, enquanto a ofendida paga o respectivo IMI, vendo-se obrigada a morar em casa de familiares, pelo que continua interessada no prosseguimento criminal aqui movido ao arguido.
Por último foi ainda ouvido CC, militar da GNR, o qual de forma isenta, credível e em coerência com o que já tinha sido avançado pelo arguido e pela ofendida, atestou ter-se deslocado em serviço a 16-04-2020 ao imóvel referido, aí tendo encontrado o arguido o qual então lhe disse que a casa e o terreno adjacente lhe pertenciam.
Quanto aos factos não provados tal ficou a dever-se a não terem ficado cabalmente demonstrados. Com efeito, o imóvel em causa já desde 2016 que, pelos motivos melhor enunciados supra, passou, de facto, antes a ser o domicílio e “residência-habitação” do aqui arguido, ainda que sem cobertura legal (não tendo a ofendida, após breve reclusão do arguido aí passado de novo a habitar mas antes tendo apenas, nesse curto espaço de tempo, logrado mudar as fechaduras da garagem), não sendo o que preside à sua actuação a intenção de violação do domicílio da aqui ofendida, que do gozo do mesmo se vê privada, mas antes teimosamente continuar a afirmar e exercer uma propriedade sobre o mesmo, pese embora bem tenha consciência que após a partilha de bens subsequente ao divórcio com a aqui ofendida, o mesmo lhe deixou de pertencer, como voltou a ser judicialmente reconhecido no saneador sentença proferido, com o que se afigura não se conformar, por ser entender prejudicado com os moldes em que partilha ocorreu.
(…)”.

2. Nulidade da sentença (violação do contraditório na alteração dos factos e da qualificação jurídica)  
2.1. O recorrente alega que não pôde exercer o direito ao contraditório relativamente à alteração não substancial dos factos e à alteração da qualificação jurídica oficiosamente decididas e comunicadas na sessão de julgamento em que viria a ocorrer a leitura da sentença ora recorrida.

2.2. É consabido que a alteração não substancial dos factos descritos na acusação está sujeita a um regime que prevê expressamente o exercício do contraditório pelo arguido.

Na verdade, o n.º 1 do art. 358.º, n.º 1, do CPP, dispõe que “Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa”.

A mesma garantia de defesa está prevista na situação de alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação, pois o n.º 3 do referido normativo dispõe que “O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia.”

A preterição deste contraditório relativo à alteração não substancial dos factos gerará a nulidade da sentença “que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º” (art. 379.º, n.º 1, al. b), do CPP).

Por seu turno, a preterição menos grave do contraditório relativo à alteração da qualificação jurídica inquinará o processo, pelo menos, de irregularidade (art. 118.º, n.ºs 1 e 2, do CPP).   

Vejamos o que sucedeu no caso concreto.

2.3. Efectivamente, na sessão de julgamento realizada no dia 23 de Janeiro de 2024, o Senhor Juiz comunicou ao arguido – então presente e assistido pela Ilustre Defensora – uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação nos termos e para os efeitos do aludido art. 358.º, n.º 1, do CPP.

Confrontado com esta alteração dos factos, a Ilustre Defensora declarou prescindir do prazo para exercer o contraditório ali previsto.

Posteriormente, ainda na mesma sessão, o Senhor Juiz comunicou ao arguido uma alteração da qualificação jurídica dos factos descritos na acusação nos termos e para os efeitos do aludido art. 358.º, n.ºs 1 e 3, do CPP.

Esta alteração traduziu-se na imputação alternativa do crime de usurpação de coisa imóvel, p. e p. no art. 215.º do Código Penal.  

Confrontado com esta outra alteração, desta feita da qualificação jurídica, a Ilustre Defensora declarou igualmente prescindir do prazo para exercer o contraditório.

À face da tramitação processual concretamente verificada, é manifesto que o arguido teve a possibilidade de exercer o contraditório e que não houve qualquer violação das garantias de defesa a este respeito.

2.4. Aqui chegados, importa concluir que o recurso improcede nesta parte.

3. Erro de julgamento da matéria de facto.
3.1. Impugnação do julgamento da matéria de facto
Dispõe o art. 428.º do CPP que os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.

Dado que no caso em análise houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação integral, pode o tribunal de recurso reapreciá-la na perspectiva ampla prevista nos artigos 412.º, n.º 3, e 431º do CPP, ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.

Nestes casos de impugnação da matéria de facto, a apreciação pelo tribunal superior já não se restringe ao texto e contexto da decisão, mas abrange a análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada/gravada) produzida em audiência, mas sempre a partir de balizas fornecidas pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus imposto pelos n.º s 3 e 4 do artigo 412.º, tendo em vista o reexame dos erros de procedimento ou de julgamento e visando a modificação da matéria de facto, nos termos do artigo 431.º, alínea b), do Código de Processo Penal.

Este recurso não tem por finalidade nem pode ser confundido com um "novo julgamento" da matéria de facto, assumindo-se antes como um “remédio” jurídico.

Na verdade, conforme salientou o Prof. Germano Marques da Silva, “Recorde-se que o recurso ordinário no nosso Código é estruturado como um remédio jurídico, visa corrigir a eventual ilegalidade cometida pelo tribunal a quo. O tribunal ad quem não procede a um novo julgamento, verifica apenas da legalidade da decisão recorrida, tendo em conta todos os elementos de que se serviu o tribunal que proferiu a decisão recorrida. Por isso também a renovação da prova só seja admitida em situações excepcionais e sobretudo que tenha de indicar expressamente os vícios da decisão recorrida.” (Registo da prova em Processo Penal. Tribunal Colectivo e Recurso, in Estudos em homenagem a Cunha Rodrigues, vol. I, Coimbra 2001, pág. 809).

No mesmo sentido, ficou escrito no Ac. STJ de 17 de Fevereiro de 2005, Proc. 04P4324, “(…) o recurso em matéria de facto para a Relação não constitui um novo julgamento em que toda a prova documentada é reapreciada pelo Tribunal Superior que, como se não tivesse havido o julgamento em 1ª Instância, estabeleceria os factos provados e não provados e assim indirectamente validaria ou a factualidade anteriormente assente, mas é antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir erros in judicando ou in procedendo, que são expressamente indicados pelo recorrente, com referência expressa e específica aos meios de prova que impõem decisão diferente, quanto aos pontos de facto concretamente indicados, ou com referência à regra de direito respeitante à prova que teria sido violada, com indicação do sentido em que foi aplicada e qual o sentido com que devia ter sido aplicada”.
 
Por conseguinte, o recurso em matéria de facto, destina-se apenas à reapreciação da decisão proferida em primeira instância em pontos concretos e determinados. Tem como finalidade a reapreciação de “questões de que pudesse conhecer a decisão recorrida” (cfr. designadamente o art. 410º, n.º l do CPP).

Daí que o legislador tenha estabelecido um específico dever de motivação e formulação de conclusões do recurso nesta matéria - cfr. artigo 412º, n.º 1, 3 e 4 do CPP.

Segundo o n.º 3 do citado artigo 412º, quando impugne a decisão proferida sobre matéria de facto, o recorrente deve especificar:

a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.

Por seu turno, nos termos do n.º4 do mesmo artigo 412.º, na redacção que lhe foi conferida pela lei n.º 27/2015, de 14 de Abril, “Quando as provas tenham sido gravadas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, nos termos do disposto no n.º3 do artigo 364.º, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens em que se funda a impugnação”. 

A este respeito, como se salientou no Ac. do STJ de 19-5-2010, processo n.º 696/05.7TAVCD.S1, que “As indicações exigidas pelos n.ºs 3 e 4 do artigo 412.º do CPP são imprescindíveis para a delimitação do âmbito da impugnação da matéria de facto e não um ónus de natureza puramente secundária ou meramente formal, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto. É o próprio ónus de impugnação da decisão proferida sobre matéria de facto que não pode considerar-se minimamente cumprido quando o recorrente se limite a, de uma forma vaga ou genérica, questionar a bondade da decisão proferida sobre matéria de facto”.

Nesta matéria, o Ac. da Rel. de Coimbra de 22.10.2008, proferido no proc. n.º 1121/03.3TACBR.C1, bem explicita “A especificação dos “concretos pontos de facto” só se mostra cumprida com a indicação do facto individualizado que consta da sentença recorrida … que considera incorrectamente julgado, sendo insuficiente a alusão a todos ou parte dos factos compreendidos em determinados números ou itens da sentença, sendo que a exigência legal de especificação das “concretas provas” só se queda satisfeita com a indicação do conteúdo específico do meio de prova”.

Ainda sobre a exigência contida na alínea b) do n.º 3 do artigo 412.º do CPP, importa não perder de vista, como bem se enfatizou no Ac. desta Rel. de Guimarães de 20-3-2006, proc.º n.º 245/06-1ª, in www. dgsi.pt: (…) a lei refere as provas que «impõem» e não as que “permitiriam» decisão diversa. É que afigura-se indubitável que há casos em que, face à prova produzida, as regras da experiência permitem ou não colidem com mais do que uma solução. Se a decisão do julgador, devidamente fundamentada, for uma das soluções plausíveis segundo as regras da experiência, ela será inatacável, já que foi proferida em obediência à lei que impõe que ele julgue de acordo com a sua livre convicção
*
Importa ter sempre presente que a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente (artigo 127º do Código de processo Penal).

No caso do julgamento, a entidade competente é, naturalmente, o juiz.

A livre apreciação da prova não se confunde de modo algum com apreciação arbitrária da prova nem com a mera impressão gerada no espírito do julgador pelos diversos meios de prova.

A livre valoração da prova deve ser entendida como “valoração racional e crítica, de acordo com as regras comuns da lógica, da razão, das máximas da experiência e dos conhecimentos científicos, que permita objectivar a apreciação, requisito necessário para uma efectiva motivação da decisão” (Vide Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal II, Verbo, 1999, pp. 122-127).

Consequentemente, segundo a lição do Prof. Figueiredo Dias –, Lições de Direito Processual Penal, págs. 135 e segs. –, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode consequentemente assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação dessa convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente, porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação, ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos, ou porque não houve liberdade na formação da convicção. Doutra forma, seria uma inversão da posição dos personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar, pela convicção dos que esperam a decisão”.

Como justamente se salientou no Ac. da Rel. do Porto de 12-5-2004: “I - A convicção do julgador só pode ser modificada pelo tribunal de recurso quando seja obtida através de provas ilegais ou proibida, ou contra a força probatória plena de certos meios de prova ou, então, quando afronte, de forma manifesta, as regras da experiência comum. II - Sempre que a convicção seja uma convicção possível e explicável pelas regras da experiência comum deve acolher-se a opção do julgador”. 

Por isso, o recurso da matéria de facto não se destina a postergar o princípio da livre apreciação da prova.

Aliás,  “a decisão do Tribunal há-de ser sempre uma "convicção pessoal - até porque nela desempenham um papel de relevo não só a actividade puramente cognitiva mas também elementos racionalmente não explicáveis (v.g. a credibilidade que se concede a um certo meio de prova) e mesmo puramente emocionais" - Prof. Figueiredo Dias, Direito Processual Penal, vol. I, Coimbra, 1974, pág. 204.

3.2. Objecto da impugnação da matéria de facto
Explicitado o entendimento sobre o sentido e alcance da impugnação da matéria de facto, na vertente da impugnação ampla, importa constatar que o recorrente discorda parcialmente da decisão sobre o julgamento da matéria de facto, não havendo dúvidas quanto aos concretos factos sindicados, nem quanto às provas em que apoia a impugnação ampla.

Em concreto, o recorrente impugnou a matéria de facto constante dos factos dados como provados na decisão recorrida sob os números 8), 11), 12), 13) e 14) que considera incorrectamente julgados.

Ouvida a gravação da prova, importa cotejá-la com a motivação da decisão de facto e verificar se as provas indicadas pelo recorrente (e agora reapreciadas) impõem decisão diversa da proferida pela 1.ª instância.

3.3. A residência da ofendida no imóvel dos autos (Facto Provado 8)
O recorrente começa por impugnar o juízo probatório positivo alcançado pelo tribunal a quo relativamente à factualidade dada como provada sob o n.º 8 e que apresenta a seguinte redacção:
8) Desde ../../2014 a ofendida passou a residir na residência descrita em 2 e 6, mormente aos fins-de-semana, após trocar as fechaduras, ali guardando os seus pertences, cuidando da mesma e do logradouro.”

Alega o recorrente que as declarações do arguido e o depoimento da ofendida – testemunha BB – impõem decisão diversa nesta parte.

Sucede que o recorrente assenta o seu raciocínio num equívoco, pois aqui apenas interessa a realidade existente em meados de ../../2020 – quando o arguido se introduziu novamente no imóvel dos autos após ter sido libertado em resultado do regime excepcional de flexibilização da execução das penas em virtude da doença Covid-19 – e quanto a este concreto período o tribunal a quo deu como não provado “Que à data dos factos a ofendida efectivamente residisse no imóvel acima identificado, fazendo do mesmo o seu domicílio”.

Os demais factos provados 7), 9) e 10) – não impugnados – explicam o que sucedeu entre ../../2014 e ../../2020.

O arguido esteve preso no período compreendido entre ../../2014 e ../../2016.

Sentindo-se segura, a ofendida foi residir no imóvel dos autos em ../../2014 e aqui morou apenas enquanto o arguido esteve preso (Vide depoimento da testemunha BB na sessão de 28 de Novembro de 2023).

Em 19 de ../../2016, o arguido foi libertado e introduziu-se novamente na habitação, onde viria a permanecer ininterruptamente até ao início de 2020.

E usa-se a expressão “ininterruptamente” com toda a propriedade, pois não obstante o arguido ter sido coercivamente forçado a sair do imóvel pelas 15h30 do dia 14 de Julho de 2016 em virtude da execução da providência cautelar de restituição provisória da posse, a verdade é que o mesmo viria a introduzir-se novamente no imóvel ainda na noite daquele mesmo dia através da danificação a porta da entrada da habitação (Vide auto de ocorrência e aditamento policial que consta da certidão do processo 395/16....).    
Por conseguinte, a ofendida só logrou morar no imóvel dos autos enquanto o arguido esteve preso.

As declarações do arguido não contrariam o depoimento da ofendida nesta parte.

O facto provado n.º 8 sinaliza tão-só o início desta realidade habitacional e deve ser lido à luz da sucessão dos demais factos dados como provados.

Por conseguinte, as provas indicadas pelo recorrente não impõem uma decisão diversa da recorrida nesta parte.

3.4. A introdução do arguido no imóvel (Facto provado 11)
O recorrente impugna igualmente o juízo probatório positivo alcançado pelo tribunal a quo relativamente à factualidade dada como provada sob o n.º 11 e que apresenta a seguinte redacção:
11) Sucede que, assim que foi libertado, o arguido, mais uma vez, dirigiu-se ao imóvel da ofendida, referido em 2 e nele se introduziu, permanecendo ali a viver até ao presente momento, tendo estroncado a fechadura da garagem, situada na parte de baixo do mesmo edifício.”

Alega o recorrente que as declarações do arguido e o depoimento da ofendida impõem decisão diversa nesta parte.

Sucede que as declarações do arguido prestadas na sessão de julgamento de 28 de Novembro de 2023 são integralmente confessórias nesta parte.

Na verdade, o arguido confessou que se introduziu no imóvel dos autos e ali  permaneceu a viver até ao dia do julgamento, bem como que estroncou a fechadura do portão da garagem situada na parte inferior do edifício.

Nada se diz no facto provado 11) sobre a forma como o arguido se introduziu inicialmente no imóvel.

A divergência do recorrente é de outra ordem, pois alegou concretamente em sede de recurso que “o estroncamento da fechadura da garagem em apreço não lhe deu acesso à casa, pois que não possui qualquer ligação à casa, mas antes para aceder ao seu veículo automóvel que ali se encontrava”.

Ora, esta realidade fáctica relativa à alegada incomunicabilidade entre a garagem e os demais pisos superiores do imóvel constitui facto autónomo ao estroncamento da fechadura do portão da garagem ali dado como provado.

Tal realidade fáctica relevará tão-só no plano da impugnação dos demais factos impugnados, incluindo os relativos a imputação subjectiva, que serão analisados imediatamente a seguir.

Por conseguinte, os meios de prova indicados pelo recorrente não impõe uma decisão probatória diversa nesta matéria.

3.5. O dolo do arguido e a consciência da ilicitude (Factos provados 12 a 14)
O recorrente impugna igualmente o juízo probatório positivo alcançado pelo tribunal a quo relativamente à factualidade dada como provada sob os n.ºs 12 a 14 e que apresentam a seguinte redacção:
12) O arguido bem sabia que novamente se introduzia em imóvel que não lhe pertencia, contra a vontade da sua proprietária, ali permanecendo, violando, assim, a sua propriedade, introdução e ocupação estas, que sabia que lhe estavam vedadas, pretendendo com a sua actuação exercer sobre o imóvel mencionado um direito de propriedade que bem sabia já não lhe pertencer, e em contrário do decidido em sede de inventário acima identificado.
13) Mais sabia que, para o efeito, estragou a fechadura acima referida, que também não lhe pertencia, provocando prejuízo à ofendida.
14) Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.”

Alega o recorrente que as declarações do arguido e o depoimento da ofendida impõem decisão diversa nesta parte.

O recorrente alegou concretamente em sede de recurso que os referidos meios de prova não permitem dar como provado que “o arguido agiu dolosamente e com a consciência de cometer um crime, sendo que o estroncamento da fechadura da garagem em apreço não lhe deu acesso à casa, pois que não possui qualquer ligação à casa, mas antes para aceder ao seu veículo automóvel que ali se encontrava”.

Relembremos o que ficou escrito pelo tribunal a quo a respeito das declarações e do depoimento prestados pelo arguido e pela ofendida na sessão de julgamento de 28 de Novembro de 2023:
“O arguido AA, desta feita, compareceu a julgamento, acabando por reconhecer que depois da libertação ocorrida no âmbito do perdão de pena ocorrido aquando da legislação covid19 voltou a introduzir-se na antiga casa morada de família, dizendo “não ter para onde ir”, admitindo ter estroncado a fechadura da garagem, dizendo ter lá o seu carro, dizendo quanto à porta principal a mesma só se encontrar no trinco, usando as chaves de casa que nunca deitou fora, acrescentando que não esperavam pelo seu regresso.
Perguntado se reconhecia que a propriedade do imóvel era agora da sua ex-cônjuge optou por não responder.
Recusa sair do imóvel, revelando-se inconformado com o decidido no inventário, que diz tê-lo prejudicado, dizendo não lograr encontrar situação habitacional alternativa (“não tenho outra habitação” ( …).
Foi igualmente ouvida BB, aqui ofendida e ex-mulher do arguido, a qual de forma isenta e credível voltou a descrever, o divórcio e processo de violência doméstica que correu termos em Tribunal e pelo qual o arguido acabaria por cumprir pena efectiva de prisão, bem como o processo de inventário para partilha de bens e adjudicação do imóvel à ofendida, nos termos melhor vertidos nos documentos já juntos aos autos.
Mais explicou que o arguido nunca aceitou o decidido em sede de partilhas, pelo que anteriormente teve já necessidade de lançar mão de uma providência cautelar de restituição provisória de posse referente ao imóvel, que lhe foi deferida, tendo sido coercivamente executada, tendo na noite desse mesmo dia o arguido voltado a lá se reintroduzir, factos estes que foram já apreciados e julgados no âmbito do P.346/16...., onde o arguido foi condenado por três  crimes de usurpação de coisa imóvel, por sentença confirmada por Ac. proferido pelo Trib. Relação de Guimarães, numa pena de 10 meses de prisão efectiva, cujo cumprimento chegou a iniciar, tendo passado cerca de 2 meses do início do cumprimento sido libertado devido ao perdão covid19, voltando a reingressar na casa da mesma, sua propriedade exclusiva desde as partilhas, tendo arrombado as novas fechaduras da garagem, que integra o mesmo edifício da casa, que a aí ofendida entretanto tinha aí colocado, voltando a assenhoriar-se do imóvel, como se fosse dele, enquanto a ofendida paga o respectivo IMI, vendo-se obrigada a morar em casa de familiares, pelo que continua interessada no prosseguimento criminal aqui movido ao arguido.”

Esta síntese das declarações do arguido e da ofendida constituem uma expressão fiel do efectivamente sucedido no julgamento.

Acresce que se encontra assente – e não impugnado – que, na sequência de divórcio e da partilha dos bens comuns do casal, a propriedade do imóvel dos autos se mostra adjudicada e registada a favor da ofendida desde ../../2015.

Mais, o arguido já tinha sido condenado em pena de prisão efectiva, por decisão transitada em julgado em 13 de Janeiro de 2020, pela prática de três crimes de usurpação de imóvel por factos cometidos durante o ano de 2016 e por referência ao mesmíssimo imóvel dos autos.

Uma vez libertado no âmbito da execução da referida pena de prisão, o arguido decidiu novamente introduzir-se no mesmo imóvel contra a vontade da ofendida e ali permaneceu a viver até ao final do julgamento realizado já nestes autos.

O arguido declarou expressamente no julgamento que “sabia que a casa dos autos não tinha ficado para si na partilha” e que insiste em viver na mesma “porque não tem para onde ir”. 
                       
Mais declarou que “não quer sair da casa” porque “foi ele que a construiu” e “sente o dever de não a abandonar”, isto apesar de “saber que os tribunais não lhe dão razão”.

A intenção de cometer os factos dados como provados está confessada.

O mesmo se passa com a necessária consciência da ilicitude da sua conduta, sendo irrelevante que o arguido entenda obstinadamente que tem o direito de continuar ali a viver contra a vontade da ofendida e em negação das várias decisões judiciais civis e criminais já proferidas e transitadas em julgado antes da prática dos factos ora sob julgamento.

Estando afastada a inimputabilidade do arguido, tal circunstancialismo afasta qualquer quadro de erro sobre a ilicitude.

Aqui chegados, conforme acima anunciado, não se deixará de abordar a prova relativa à forma concreta de introdução do arguido no imóvel dos autos.

O facto provado 13) menciona que o arguido estroncou a fechadura do portão da garagem para efeito de introdução no imóvel da ofendida no dia em que foi libertado.

Ora, sucede que a ofendida deu conta no julgamento de que não alterara as fechaduras da porta principal da casa existente no piso acima da garagem em virtude de já ter suportado muitas despesas com anteriores mudanças de fechadura após as anteriores invasões do arguido.

Mais esclareceu que o arguido tinha as chaves desta porta e, consequentemente, o mesmo poderia entrar na casa sem necessitar de forçar a fechadura.

Por seu turno, o arguido esclareceu que utilizou efectivamente estas chaves que mantinha consigo para entrar na casa pela referida porta.

Por outro lado, a ofendida acrescentou que apenas alterara a fechadura do portão da garagem sem fornecer as novas chaves ao arguido e que esta garagem não apresentava qualquer comunicação com os pisos superiores.

O arguido confirmou esta incomunicabilidade e mais declarou que estroncou efectivamente a fechadura do portão da garagem para aceder ao seu veículo automóvel ali deixado estacionado antes de ser preso.

Tais provas contrariam os factos dados como provados na decisão recorrida na parte em que ficou assente que o arguido estroncou a fechadura do portão da garagem  para efeito de se introduzir no imóvel, pois a entrada nos pisos habitáveis faz-se por outra porta e a garagem não apresenta qualquer comunicação interna com aqueles pisos superiores.
     
Acresce que nenhuma das pessoas ouvidas no julgamento esclareceu quando é que ocorreu o estroncamento da fechadura do portão da garagem.

É certo que o estroncamento da fechadura do portão da garagem – existente no piso inferior do edifício – levado a cabo pelo arguido seja para que efeito for, nomeadamente para efeito do alegado acesso ao seu veículo automóvel ali deixado estacionado antes de ser preso, não apaga a respectiva entrada voluntária e não consentida no imóvel que sabia que não lhe pertencia, nem anula a actuação possessória do arguido relativamente à totalidade deste imóvel onde o arguido tem vivido.

Mas não se pode dar como assente que o arguido estroncou a fechadura existente no portão da garagem para invadir o imóvel dos autos.

Por conseguinte, as provas indicadas pelo recorrente impõem uma decisão diversa da recorrida na parte relativa ao facto provado 13), o qual passa a ter a seguinte redacção:
13) Mais sabia que estragou a fechadura acima referida, que também não lhe pertencia, provocando prejuízo à ofendida”.

Simetricamente, é aditado aos factos não provados um facto autónomo com a seguinte redacção:
 “- Que o arguido tivesse estragado a fechadura do portão da garagem para se introduzir no imóvel no dia em que foi libertado”

Aqui chegados, importa concluir que procede parcialmente nesta parte a impetrada impugnação ampla dos factos.

Este desfecho poderá determinar um enquadramento jurídico diferente dos factos dados como provados, com eventual repercussão nas penas aplicadas.

4. Errado enquadramento jurídico dos factos dados como provados
4.1. A decisão recorrida condenou o arguido pela prática, como autor material e na forma consumada, de um crime de usurpação de coisa imóvel, previsto e punido pelo art. 215.º, n.º 1, do Código Penal.

Esta condenação foi então precedida da absolvição do arguido da autoria material de um crime de violação de domicílio agravada, p. e p. pelo art. 190.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, em concurso aparente com um crime de dano simples, p. e p. pelo art. 212.º, n.º 1, do mesmo diploma legal.

O recorrente insurge-se contra a referida qualificação jurídica dos factos dados como provados e pugna pela absolvição total.

4.2. Relembremos os factos dados como provados e não provados – acima transcritos – e vejamos, igualmente, o enquadramento jurídico dos mesmos levado a cabo na decisão recorrida (transcrição):

«(…)
IV – ASPECTO JURÍDICO DA CAUSA
Enquadramento jurídico-penal dos factos
Vem o arguido acusado da prática na forma consumada, de um crime de violação de domicílio agravado, previsto e punido pelo artigo 190.º, n.º 1 e n.º 3, em concurso aparente com um crime de dano simples, previsto e punido, pelo artigo 212.º, n.º 1, ambos do Código Penal.
Crime de Violação de Domicilio:
Estatui o Art. 190º do Código Penal, e sob a epígrafe “Violação de domicilio ou perturbação da vida privada” o seguinte:
“1 - Quem, sem consentimento, se introduzir na habitação de outra pessoa ou nela permanecer depois de intimado a retirar-se é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 240 dias.
2 - Na mesma pena incorre quem, com intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego de outra pessoa, telefonar para a sua habitação ou para o seu telemóvel.”
3- Se o crime previsto no n.º 1 for cometido de noite ou em lugar ermo, por meio de violência ou ameaça de violência, com uso de arma ou por meio de arrombamento, escalamento ou chave falsa, ou por três ou mais pessoas, o agente é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
O bem jurídico protegido pelo novo crime (dado que este ilícito foi introduzido no Código Penal pela revisão de 1995, onde se acrescentou este crime de perturbação da vida privada) é a paz e o sossego de outra pessoa, ainda que reportados á paz e ao sossego gozados no espaço físico da habitação (neste sentido Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código Penal, á luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem, pg. 512.)
A inviolabilidade do domicílio é um dos direitos, liberdades e garantias consagrados na Constituição e surge igualmente nos principais documentos internacionais sobre direitos humanos. Este direito tem uma relação muito próxima com o direito à reserva da intimidade da vida privada e familiar, que aqueles instrumentos legais também protegem.
A lei proíbe a introdução e/ou permanência, sem consentimento, na habitação de outra pessoa.
O termo «habitação» engloba, além da casa propriamente dita, qualquer outro espaço fechado destinado a cumprir a finalidade de habitação, como um quarto de hotel, uma garagem ou mesmo um contentor que alberguem pessoas, não relevando se esse espaço é ou não propriedade do morador.
Estes crimes podem ser cometidos através de duas formas: entrando nos espaços protegidos sem consentimento do morador ou permanecendo neles contra a sua vontade, mesmo não tendo a introdução sido criminosa (por exemplo, porque o morador consentiu na entrada do agente ou porque este acreditou erroneamente que tal consentimento existia). Assim, haverá crime se um convidado for instado a retirar-se de casa do anfitrião — por ex., por ter sido desagradável — e não o fizer.
Como refere, a Dra. Filipa Isabel Gromicho Gomes, na sua dissertação de Doutoramento sobre o título de O NOVO CRIME DE PERSEGUIÇÃO: CONSIDERAÇÕES SOBRE A NECESSIDADE DE INTERVENÇÃO PENAL NO ÂMBITO DO STALKING: “Tutelando o bem jurídico da reserva da vida privada, um dos ilícitos típicos a que mais se recorria na contenção ou punição das situações de stalking era o tipo ilícito previsto e punido pelo artigo 190º do CP. De acordo com Manuel da Costa Andrade, a reserva da vida privada surge aqui sob a sua perspetiva formal, estando este preceito “diretamente comprometido com a salvaguarda da área de reserva pessoal contra as ações de devassa sob a forma de acesso indevido ao espaço normal de representação e exercício da privacidade/intimidade”.
Acrescenta ainda a citada Autora que: “Para este artigo 190º do CP ser aplicado é necessário que se verifique uma de duas situações: ou há efectiva introdução na habitação da vítima pelo agente, ou a perturbação da vida privada é consumada com recurso a telefonemas. Quanto à primeira das modalidades (nº 1 do artigo 190º do CP), só assumem “relevo típico os atentados que atualizem a ultrapassagem das barreiras físicas (parede, telhado, solo) que demarcam um “território” que o “bloqueamento físico subtrai ao acesso comum e converte em lugar de realização privada”. Fazendo uso dos ensinamentos de Manuel da Costa Andrade, “está excluída a tipicidade de todas as formas de perturbação (ruído, lançamento de objetos) que não impliquem a entrada física da pessoa”. (tese disponível na internet)
Quanto ao crime de dano, dispõe o art. 212.º do Código Penal que “quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa alheia é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa.”
O dano é um crime comum, de sujeito passivo indeterminado, de acção ou omissão, material, de resultado e uniofensivo.
Pode ser cometido por qualquer pessoa, bastando que incida sobre coisa alheia, e em que é condição de realização do ilícito a ocorrência de um resultado final de destruição, danificação, desfiguração ou inutilização de uma coisa, assim se ofendendo o bem jurídico propriedade.
O bem jurídico protegido por este tipo de crime é a propriedade.
Ora, quanto a nós, como comunicado no início da diligência, antes entendemos ter o arguido incorrido na prática de um novo crime de usurpação de coisa imóvel.
Com efeito, na acusação proferida fala-se em violação pelo arguido, quer da privacidade, quer da propriedade da ofendida.
Nos termos do art.º 190º, n.º 1, do C. Penal, prevê-se e pune-se a violação de domicílio, através da introdução na habitação de outra pessoa, sem o consentimento desta, ou a sua permanência depois de intimado a retirar-se, sendo aí o bem jurídico protegido a privacidade/intimidade inerentes à habitação, sendo titulares (ou portadores) desse direito serão todos quantos partilharem essa habitação, de forma legítima, seja qual for o seu fundamento jurídico: um direito real, uma relação obrigacional ou uma situação de direito público, sendo o elemento subjectivo constituído pela vontade livre e consciente de praticar o(s) acto(s) com a intenção de perturbar a vida privada, a paz e o sossego da pessoa ofendida - cfr. Ac. RP de 06-12-2019, in www.dgsi.pt.
Sucede que, como acima referido, o imóvel em causa já desde 2016 que, pelos motivos melhor enunciados supra, passou, de facto, antes a ser o domicílio e “habitação” do aqui arguido, ainda que sem cobertura legal, aproveitando a ofendida que o mesmo estava ausente em recente cumprimento de pena para mudar a fechadura da garagem, quando é surpreendida com o Perdão Covid 19, não sendo o que preside à sua actuação a intenção de violação do domicílio da aqui ofendida (que entretanto foi residir há muito com um familiar, pretendendo vender a casa em causa), que do gozo do imóvel se vê privada, mas antes teimosamente continuar a afirmar e exercer uma propriedade sobre o mesmo, pese embora bem tenha consciência que após a partilha de bens subsequente ao divórcio com a aqui ofendida, o mesmo lhe deixou de pertencer, como voltou a ser judicialmente reconhecido no saneador sentença proferido, e reafirmado no P. crime 346/16...., cuja sentença objecto de recurso por parte do arguido, foi confirmada por douto Ac. RG, com o que o arguido se afigura continuar a não se conformar, por ser entender prejudicado com os moldes em que partilha ocorreu.
Assim sendo, entendemos, face ao acima dito, e dado como provado e não provado, e tendo em consideração que o a inviolabilidade do domicílio é o bem jurídico protegido pelo art.190.º do C.Penal, que o arguido não terá incorrido na prática deste crime mas antes, mas, uma vez mais (cfr. sentença proferida no P. 346/16...., onde o arguido foi condenado, entre o mais, pela prática de 3 crimes de usurpação de coisa imóvel, sentença esta confirmada por douto Ac. RG), na prática do crime de usurpação de coisa imóvel, nos termos melhor infra referidos, nos quais o bem jurídico protegido é a propriedade imobiliária, propriedade esta que, já segundo a acusação, havia também sido atingida pela actuação do aqui arguido.

Vejamos.

.Do Crime de Usurpação de coisa imóvel

Dispõe o Artigo 215.º do Código Penal, sob a epígrafe “Usurpação de coisa imóvel”, o seguinte:
1 - Quem, por meio de violência ou ameaça grave, invadir ou ocupar coisa imóvel alheia, com intenção de exercer direito de propriedade, posse, uso ou servidão não tutelados por lei, sentença ou acto administrativo, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhe não couber em atenção ao meio utilizado.
2 - A pena prevista no número anterior é aplicável a quem, pelos meios indicados no número anterior, desviar ou represar águas, sem que a isso tenha direito, com intenção de alcançar, para si ou para outra pessoa, benefício ilegítimo.
3 - O procedimento criminal depende de queixa.
Como refere Paulo Pinto de Albuquerque, o bem jurídico protegido pela incriminação “(…) é a propriedade imobiliária” (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal, pg. 594).
Acrescenta ainda o referido e citado autor que “O crime de usurpação de coisa imóvel é um crime de dano (quanto ao grau de lesão do bem jurídico protegido) e de resultado (quanto à forma de consumação do ataque ao objecto da acção.” (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal, pg. 594).
Refere ainda o citado Autor que “O tipo objectivo de ilícito consiste na invasão ou ocupação de coisa imóvel alheia (…) por meio de violência ou ameaça grave. (…) e a violência pode ser exercida sobre as pessoas (seja o ofendido, seja um terceiro, seja violência física, seja psicológica) ou sobre coisas.” (Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário ao Código Penal, pg. 594 e 595).
A acção de invadir ou ocupar coisa imóvel alheia tem de ser realizada por meio de violência ou ameaça grave, ou seja, é necessário que o agente recorra à força ou intimidação grave para invadir ou ocupar o bem imóvel alheio.
Como refere Damião da Cunha, “A acção tem de consistir num invadir ou num ocupar. (…) De facto, parece que a invasão tem, em regra, por finalidade a ocupação. A invasão significa a introdução ou penetração, com um carácter não meramente momentâneo, em imóvel alheio, contra ou sem autorização de quem de direito, sendo acompanhada por elementos objectivos que revelem a intenção de permanecer no imóvel. A ocupação corresponde, de facto, à intervenção ou intromissão na posse – não sendo necessária a ocupação definitiva antes sendo suficiente uma ocupação temporária, conquanto duradoura. (…) Isto significa que o tipo legal pretendeu ser suficientemente abrangente para abarcar tanto a invasão violenta, como apenas a ocupação, conquanto que garantida por aqueles meios” (J. M. Damião da Cunha, em anotação ao art. 215º no Comentário Conimbricense do Código Penal, Tomo II, pg. 262).
No Acórdão do STJ datado de 03.12.86, entendeu-se que “A “violência” na usurpação de coisa imóvel pode ser para com as pessoas como contra as coisas e pode ser moral ou psicológica”. (In, BMJ nº 362 pg. 345, proc. n.º38703).
Como se refere no Ac.RP de 26-06-2013, in www.dgsi.pt: I – No crime de Usurpação de coisa imóvel, do art. 215.º do CP, a violência ou ameaça grave inerente ao conceito de “usurpação” tem de ser exercida contra as pessoas, no sentido de, pela força ou intimidação física grave, tomar de assalto o bem imóvel vencendo a oposição de outrem que até então detinha a sua posse ou evidenciada pelo emprego de meios destinados a vencer os obstáculos postos pelo detentor da coisa para proteção desta.
Quanto a nós a “violência ou ameaça grave” prevista no citado normativo penal tanto pode ser exercida contra as pessoas como contra as coisas.
Com efeito pode fazer-se uso da força ou intimidação física grave para tomar de assalto (invadir/ocupar) o bem imóvel, vencendo pessoalmente a oposição de outrem que até então detinha a posse desse bem imóvel ocupado ou invadido mas pode também ser exercida contra coisas, quando se traduza no emprego de meios destinados a vencer os obstáculos postos pelo detentor da coisa para proteção desta, designadamente arrombamento de fechaduras, portões, vedações, etc.
Como se realça no citado Ac. desta Relação de 27.02.2002, “do que se trata é de garantir a propriedade imobiliária contra limitações injustificadas que se apoiem em atos que ponham em causa a liberdade pessoal”.
Cfr. Ac RP de 27-02-2002: “A ameaça ou a violência têm de ser graves, de modo que o mal prometido ou praticado deve ser para o visado de capital importância, levando-o a sacrificar-se na sua liberdade de querer e agir. Do que se trata é de garantir a propriedade imobiliária contra limitações injustificadas que se apoiem em actos que ponham em causa a liberdade pessoal”.
Aliás, discussão idêntica é tida sobre o conceito de esbulho violento em sede de restituição provisória de posse. Devendo sempre fazer-se uma leitura conjugada e coerente de todo o ordenamento jurídico, aqui aplicável mutatis mutandis.
Cfr. Ac. STJ de 19-10-2016, in www.dgsi.pt: I- A respeito do requisito da “violência”, a jurisprudência firmada no STJ oscilou ao longo dos anos entre a tese do acórdão recorrido – que considerou violência relevante aquela que é exercida contra a pessoa do possuidor – e a tese do acórdão-fundamento – que considerou bastante para integrar o requisito em causa a violência exercida sobre a coisa. V - O conceito de violência encontra-se plasmado no art. 1261.º, n.º 1, do CC, que define como violenta a posse adquirida através de coacção física ou de coacção moral nos termos do art. 255.º do mesmo Código. VI - A violência aqui retratada não implica necessariamente que a ofensa da posse ocorra na presença do possuidor. Basta que o possuidor dela seja privado contra a sua vontade em consequência de um comportamento que lhe é alheio e impede, contra a sua vontade, o exercício da posse como até então a exercia – pelo que se sufraga a acepção mais lata de esbulho violento. VII - A interpretação mais restritiva seria redutora e deixaria sem tutela cautelar o possuidor privado da sua posse por outrem que, na sua ausência e sem o seu consentimento, actuou por forma a criar obstáculo ou obstáculos que o constrangem, nomeadamente, impedindo-lhe o acesso à coisa.
Acresce que a norma penal em causa não faz essa distinção, nem limitação.
Ora, no caso aqui em discussão ficou provado que, assim que foi libertado, o arguido, mais uma vez, dirigiu-se ao imóvel da ofendida, referido em 2 e nele se introduziu, permanecendo ali a viver até ao presente momento, tendo estroncado a fechadura da garagem, situada na parte de baixo do mesmo edifício.
O arguido bem sabia que novamente se introduzia em imóvel que não lhe pertencia, contra a vontade da sua proprietária, ali permanecendo, violando, assim, a sua propriedade, introdução e ocupação estas, que sabia que lhe estavam vedadas, pretendendo com a sua actuação exercer sobre o imóvel mencionado um direito de propriedade que bem sabia já não lhe pertencer, e em contrário do decidido em sede de inventário acima identificado e do decidido no saneador sentença infra referido em 15.
Mais sabia que, para o efeito, estragou a fechadura acima referida, que também não lhe pertencia, provocando prejuízo à ofendida.
Agiu livre, voluntária e conscientemente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei penal.
Assim sendo, o arguido, no decurso da sua conduta, usou de violência (estroncamento da fechadura da garagem integrante do imóvel), para à mesma voltar a aceder, mantendo-se até hoje a habitar no imóvel identificado, voltando assim a desrespeitar a exclusiva propriedade da ofendida, removendo com violência o obstáculo que a mesma aí havia voltado a colocar para defesa e protecção da sua propriedade aquando da nova mudança de fechadura da garagem pela mesma levado a cabo, voltando assim o arguido novamente a “expropriar” o imóvel à sua legítima proprietária, para isso valendo-se designadamente do arrombamento de uma fechadura do imóvel – a da garagem, a qual se situa na parte de baixo do mesmo edifício.
II - Em obediência ao princípio da consumpção, aplicável aos delitos de realização intencionada, com particular predominância àqueles que têm como elemento constitutivo numa intenção de apropriação de coisa alheia, ela consome todas as condutas do mesmo sujeito, ainda que em si criminosas, que caibam dentro dessa intenção e não importem aumento do dano  causado pelo primeiro delito - caso do dano com a destruição de muros e culturas e subtracção de pedras, estreios, ferros e terras.
Tal situação de usurpação aliás, mantém-se até aos dias de hoje.
Ac. RC de 10-05-2006, in www.dgsi.pt
I- O crime de usurpação de imóveis é um crime que se consuma, inserindo todos os elementos do tipo, com a acção de violência exercida sobre as pessoas ou o estado de facto instalado, relativamente às coisas usurpadas, de uma forma instantânea, sendo que a acção ilícita perdura enquanto se mantiver a situação de ocupação da coisa;
Quanto ao dano da fechadura, sai consumido.
Cfr. Ac. RP de 09-06-1999, in www.dgsi.pt, para cujo teor se remete e aqui se dá por integralmente reproduzido, cujo entendimento se sufraga.
I - As ocupações violentas de propriedades são abrangidas pelo crime de usurpação de imóveis que abrange a violência que é exercida sobre as coisas, nomeadamente quando se traduza no emprego de meios destinados a vencer os obstáculos postos pelo detentor da coisa para protecção desta.
(…)”.  

4.3. Desde logo, antecipa-se que a decisão recorrida – ainda que não tivesse permanecido incólume na parte que aqui ora releva no plano do julgamento da matéria de facto –, não merece censura na parte em que afastou a imputação do crime de violação de domicílio, uma vez que a ofendida já não habitava efectivamente no imóvel dos autos quando o arguido o invadiu e ocupou novamente.

Contudo, já não se pode acompanhar o restante decidido, nomeadamente em matéria de preenchimento do tipo do crime de usurpação de coisa imóvel previsto no art. 215.º, n.º 1, do Código Penal.

Naturalmente, importa apresentar a referida norma jurídico-penal convocada para a apreciação desta questão, a qual apresenta a seguinte redacção (negrito e sublinhado nossos):

Artigo 215.º
Usurpação de coisa imóvel
1 - Quem, por meio de violência ou ameaça grave, invadir ou ocupar coisa imóvel alheia, com intenção de exercer direito de propriedade, posse, uso ou servidão não tutelados por lei, sentença ou acto administrativo, é punido com pena de prisão até 2 anos ou com pena de multa até 240 dias, se pena mais grave lhe não couber em atenção ao meio utilizado.

É insofismável que não ficou provada qualquer invasão do imóvel mediante ameaças dirigida à ofendida ou qualquer outra pessoa.

Resta-nos, assim, verificar se ficou provado o elemento típico objectivo da violência.

Também não ficou provada qualquer invasão do imóvel por meio de violência dirigida à ofendida ou qualquer outra pessoa.

Contudo, a aplicação do referido tipo incriminador não se esgota na violência exercida sobre as pessoas.

A este respeito, perfilha-se a posição maioritária da Doutrina e da Jurisprudência – desde muito cedo firmada – que entende que a violência típica ali prevista abrange igualmente as próprias coisas, no sentido de destruição ou danificação dos obstáculos físicos que impeçam ou dificultem a entrada do agente do crime dentro da propriedade (MAIA GONÇALVES, “Código Penal Português, 1995, p. 727; JOSÉ ANTÓNIO BARREIROS, “Crimes contra o património”, 1996, p. 118; PINTO DE ALBUQUERQUE; “Comentário do Código Penal”, 2021, p. 911; Ac. STJ 03.12.1986, BMJ n.º 362, p. 345; Ac. TRE 15.11.1983, CJ VIII, tomo 5, p. 285; Ac. TRL 22.07.1987, CJ XII, tomo 4, p. 174;  Ac. TRC 06.04.1988, CJ XIII, tomo 2, p. 92; Ac. TRP 26.06.1996, CJ XXI, tomo 3, p. 240).   
Acresce que o crime em apreço é um crime de consumação instantânea, isto é, consuma-se com a invasão do imóvel.

Por outro lado, o crime em apreço é execução vinculada, isto é, a invasão da coisa imóvel alheia deve ser cometida por meio de violência prévia ou contemporânea à execução do crime.
  
Consequentemente, se a violência ocorrer após a consumação do crime, nomeadamente para manter a invasão, não se verifica este crime, sem prejuízo do preenchimento de outros tipos de crime  (MAIA GONÇALVES, “Código Penal Português, 1995, p. 727).

Uma vez expostos os limites relevantes do tipo incriminador em presença, avancemos para os factos dados como provados.

Liminarmente, importa referir que a situação concreta ora sob julgamento é diferente da situação que determinou a condenação do mesmo arguido – já transitada em julgado no âmbito do processo 346/16.... – pelos factos relativos às invasões do mesmíssimo imóvel ocorridas em 2016.

Em ../../2016, a ofendida tinha mudado a fechadura da porta principal e o arguido teve a necessidade de estroncar a fechadura desta porta para invadir o imóvel da ofendida, onde, aliás, o mesmo viria a residir até ser detido no início do ano de 2020 (vide certidão da sentença do processo ...6 junta aos autos).

Em ../../2020, quando o arguido saiu do estabelecimento prisional em virtude do perdão da pena aplicada no referido processo ...6, o arguido mantinha então as chaves da última fechadura que tinha sido colocada na porta principal e não precisou de estroncar esta fechadura para entrar no imóvel.

É certo que ficou provado que o arguido estroncou a fechadura do portão da garagem situada na parte debaixo do edifício.

Contudo, não ficou provado quando é que este particular estroncamento teve lugar.

 Mais relevante ainda, não ficou provado que foi através da garagem que o arguido invadiu o imóvel dos autos quando foi libertado em ../../2020, pois até foi colocado em evidência neste recurso que a garagem não apresenta qualquer comunicação com os pisos superiores habitáveis do edifício.      

Por conseguinte, a falta de prova da violência da invasão determina necessariamente a absolvição do arguido pela prática do imputado crime de usurpação de imóvel.

Aqui chegados, importa concluir que o recurso procede nesta parte.

4.4. Não obstante a referida absolvição, subsiste a prova da entrada dolosa do arguido em imóvel alheio fechado e não habitado, bem como a danificação dolosa pelo arguido da fechadura do portão da garagem. 

Tais condutas convocam a chamada à colação de outras normas jurídico-penais e mantêm em aberto a questão da responsabilização criminal do arguido pela prática dos factos que subsistiram dados como provados.

Assim, não se pode deixar de transcrever as normas relativas às incriminações de introdução em lugar vedado ao público e de dano simples que constam dos artigos 191.º e 212.º do Código Penal:

Artigo 191.º
Introdução em lugar vedado ao público
Quem, sem consentimento ou autorização de quem de direito, entrar ou permanecer em pátios, jardins ou espaços vedados anexos a habitação, em barcos ou outros meios de transporte, em lugar vedado e destinado a serviço ou a empresa públicos, a serviço de transporte ou ao exercício de profissões ou actividades, ou em qualquer outro lugar vedado e não livremente acessível ao público, é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias.

Artigo 212.º
Dano
1 - Quem destruir, no todo ou em parte, danificar, desfigurar ou tornar não utilizável coisa ou animal alheios, é punido com pena de prisão até três anos ou com pena de multa.
2 - A tentativa é punível.
3 - O procedimento criminal depende de queixa.
4 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 206.º e 207.º

Os factos provados preenchem os elementos típicos objectivos e subjectivos dos referidos tipos de crime.

Diversamente do alegado pelo recorrente, ficou provado que o arguido sabia que o imóvel e a fechadura em apreço não lhe pertenciam.

Acresce que também não se vislumbra qualquer causa de justificação de ou de exculpação relativamente a qualquer um dos referidos tipos de crime.

A este respeito, nomeadamente num contexto de saída do arguido do meio prisional em virtude do perdão da pena, importa referir que a alegada necessidade de uma casa para residir nunca poderá justificar a invasão e ocupação de casas alheias vazias (PINTO ALBUQUERQUE, “Comentário do Código Penal”, 4.ª Edição, 2021, p. 817).

A este respeito, o recorrente alega que tem o direito de morar na casa dos autos ao abrigo de um pretenso direito de resistência.

Tal pretensão não faz qualquer sentido, desde logo porque o recorrente não alegou sequer – conforme prevê o art. 21.º da Constituição – que estivesse impossibilitado de recorrer à autoridade pública, mais concretamente, que tivesse estado impedido de aceder aos tribunais para defesa dos seus eventuais direitos desde a propositura judicial do inventário que conduziu à partilha e à adjudicação do imóvel dos autos em 2014.

A subsunção cumulativa dos factos provados aos referidos tipos de crimes não suscita quaisquer reservas, pois o preenchimento do tipo de crime de introdução em lugar vedado ao público não exclui a punição autónoma e cumulativa do arguido a título de crime de dano, nomeadamente no termos do art. 212.º do Código Penal (Vide COSTA ANDRADE, “Comentário Conimbricense do Código Penal”, TOMO I, 2012, p. 1038).

Aqui chegados, importa verificar se existe algum obstáculo a esta alteração da qualificação jurídica e à perseguição criminal do arguido relativamente aos referidos ilícitos criminais.

4.5. A imputação do crime de dano simples não é propriamente uma novidade, pois já constava da acusação pública e foi considerada consumida pelo crime de usurpação de coisa imóvel.

O mesmo não se passa com a imputação do crime de introdução em lugar vedado ao público.

Contudo, importa não perder de vista que a imputação de um crime de violação de domicílio também já constava da acusação pública.

Acresce que o crime de introdução em lugar vedado ao público é um minus em relação ao crime de violação de domicílio.

Assim sendo, a alteração da qualificação jurídica agora operada não carece de prévia comunicação ao arguido, nos termos do disposto no artigo 358.º, n.º 1 e 3, do CPP, uma vez que, ao degradar a acusação por um crime de violação de domicílio – traduzido na introdução não consentida na habitação de outra pessoas – em um crime de introdução em lugar vedado ao público – traduzido na mera entrada não consentida em lugar vedado e não livremente acessível ao público –, não implica a necessidade de nova defesa: não sendo juridicamente relevante, não “surgem vulneradas as garantias de defesa do arguido”[cfr. neste sentido, v.g., os Acs da Rel. do Porto de 13-6-2018, proc.º n.º 189/17.0GCOVR.P1, rel. Eduarda Lobo, de 9-1-2013, proc.º n.º 31/09.5GCVLP.P1, rel. Maria Manuela Paupério, de 28-09-2011, proc.º n.º 170/10.0GAVLC.P1, rel. Artur Oliveira, de 12-01-2011, proc.º n.º 208/07.8TACDR.P1, da Rel. de Coimbra de 23-11-2011, rel. Orlando Gonçalves, da Rel. de Évora de 05-03-2013, rel. Sénio Alves, todos disponíveis em www.dgsi.pt e da Rel. de Guimarães de 21-11-2012, proc.º n.º 1080/10.6PBGMR.G1, rel. Cruz Bucho (não publicado).

Importa, porém, apurar se se verificam quanto a esses crimes as necessárias condições objectivas de procedibilidade.

Nesta matéria, o recorrente pugna pela natureza particular do crime de dano em presença à luz da al. b) do n.º 1 do art. 207.º, do Código Penal, aplicável por força do disposto no n.º 4 do art. 212.º do mesmo diploma legal.

Sucede que não foi dado como provado que o estroncamento da fechadura do portão da garagem fosse indispensável à satisfação imediata de uma necessidade do arguido.

Consequentemente, o crime de dano em apreço não apresenta a reclamada natureza particular. 

Assim sendo, todos os crimes ora imputados ao arguido revestem natureza procedimental semi-pública, sendo certo que foi oportunamente apresentada queixa pela ofendida.
Importa agora determinar as consequências jurídicas dos factos mais favoráveis ao arguido dados como provados, sem prejuízo da proibição de reformatio in pejus.

5. Consequências jurídicas dos factos dados como provados.
5.1. Para tanto, importa conhecer previamente as molduras penais cominadas na lei penal:

i) O crime de introdução em lugar vedado ao público sob análise é punido com pena de prisão até 3 meses ou com pena de multa até 60 dias;
ii) O crime de dano simples sob análise é punido com pena de prisão até 3 anos ou com pena de multa até 360 dias.
           
Como estes crimes concretamente imputados ao arguido são punidos, em alternativa, com pena privativa e pena não privativa da liberdade, coloca-se a questão da escolha da pena nos termos do art. 70.º do Código Penal.
           
A circunstância de o arguido ter já sido condenado anteriormente pela prática de crimes de usurpação de coisa imóvel por referência ao mesmo imóvel dos autos, bem como pela prática de crime de violência doméstica cometido contra a mesma ofendida dos autos, inculca desde logo, a ideia de perigosidade e de elevadas exigências de prevenção especial.

Assim sendo, actualmente, só a pena privativa de liberdade é susceptível de promover a recuperação social do arguido e satisfazer as exigências de reprovação e de prevenção que se fazem sentir no caso concreto.

Cumpre agora decidir da medida concreta das penas privativas da liberdade em apreço, com obediência aos critérios plasmados nos artigos 40.º e 71.º do Código Penal

5.2. Nos termos do artigo 40.º do Código Penal, “ a aplicação de penas e de medidas de segurança visa a protecção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade” (n.º 1).

Em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa (n.º 2).

As finalidades da punição são, pois, as consideradas no citado artigo 40.º do Código Penal : protecção de bens jurídicos e reintegração do agente na sociedade. Estas finalidades são complementares no sentido de que não se excluem materialmente, havendo sempre que encontrar um justo equilíbrio na sua ponderação (cfr. Ac. do S.T.J de 10-12-1997, Proc.º n.º 916/97, 3ª secção)

Com a ponderação das exigências de prevenção geral procura dar-se satisfação à necessidade comunitária de punição do caso concreto, tendo-se em conta, de igual modo, a premência da tutela dos respectivos bens jurídicos.

E com o recurso à vertente da prevenção especial almeja-se satisfazer as exigências da socialização do agente, com vista à sua reintegração na comunidade (Ac. do S.T.J. de 4-7-1996, Col. de Jur.- Acs. do S.T.J., ano IV, tomo 2, pág. 225

A defesa da ordem jurídico-penal, tal como é interiorizada pela consciência colectiva (prevenção geral positiva ou de integração), é a finalidade primeira, que se prossegue, no quadro da moldura penal abstracta, entre o mínimo em concreto imprescindível à estabilização das expectativas comunitárias na validade da norma violada e o máximo que a culpa do agente consente: entre esses limites, satisfazem-se, quanto possível, as necessidades da prevenção especial positiva ou de socialização (Ac. do S.T.J. de 15-10-1997, Proc.º n.º 589/97, 3ª secção).

É também esta, em síntese, a lição do Prof. Figueiredo Dias (“O Código Penal Português de 1982 e a sua reforma”, in Revista Portuguesa de Ciência Criminal, Ano 3, Fasc. 2-4, Dezembro de 1993, págs. 186-187).

Dando concretização aos vectores enunciados, o n.º 2 do artigo 71.º do Código Penal enumera, exemplificativamente, uma série de circunstâncias atendíveis para a graduação e determinação concreta da pena, que, não fazendo parte do tipo de crime, depuserem a favor ou contra o agente.
 
No que respeita à execução dos factos, os autos revelam a comissão  conjunta de um crime de introdução em lugar vedado ao público e um crime de dano simples.

A conduta do arguido revela um elevado desvalor de acção e de resultado assente sobretudo na duração temporal da ofensa à propriedade alheia, pois o arguido permaneceu mais de três anos no imóvel dos autos que não pertencia e contra a vontade da ofendida.

Os crimes apresentam uma forte conexão interna entre si, pois o arguido estroncou precisamente a fechadura do portão da garagem do imóvel que ocupa abusivamente.

Por referência aos crimes em presença e não obstante a moldura penal mais severa aplicável ao dano, a acção típica mais grave é preenchida pela introdução em lugar vedado ao público, pois julgamento não apurou sequer o valor da fechadura danificada pelo arguido, o qual não poderá deixar de ser considerado como diminuto.

O dolo do agente foi directo e intenso, como sucede naturalmente neste tipo de criminalidade permanente.
           
Relativamente às condições pessoais do agente, os autos revelam um indivíduo divorciado com 67 anos de idade que apresenta actualmente fraca escolaridade e condições financeiras precárias traduzidas no desemprego e na atribuição de rendimento social de inserção.

No plano familiar, a arguido reside sozinho na casa abusivamente ocupada e não mantém quaisquer contactos com os seus três filhos maiores de idade.

Aliás, o arguido invadiu a casa dos autos imediatamente após ter sido libertado do estabelecimento prisional em virtude do perdão de penas aprovado no âmbito da pandemia da doença COVID-19.  

No caso concreto, as necessidades de prevenção geral são mais elevadas em matéria de introdução em lugar vedado ao público quando visa casas fechadas e não habitadas, pois provoca invariavelmente alarme social  dos proprietários e reclama uma forte resposta de reposição comunitária da eficácia da norma e bens jurídicos afectados.

As necessidades de prevenção geral são medianas em matéria de dano simples.

Por outro lado, as necessidades de prevenção especial são especialmente acentuadas pelos impressivos antecedentes criminais do arguido em matéria de usurpação do imóvel dos autos e pela vontade declarada no julgamento de permanecer neste imóvel contra o decidido pelos tribunais.

No plano da culpa, importa ter presente que o arguido actua persistentemente da forma dada como provada não obstante ser conhecedor de várias decisões judiciais transitadas em julgado a partir de 2014 que atribuíram a propriedade do imóvel dos autos à ofendida e que já passaram pela retirada coerciva do arguido do mesmo.

Por outro lado, a total insensibilidade revelada pelo arguido às anteriores condenações acentua ainda mais o juízo de censura elevado que merecem os factos típicos dados como provados.

Tudo ponderado, entende-se como adequada, necessária e proporcional a aplicação das seguintes penas parcelares ao arguido:

· crime de introdução em lugar vedado ao público  – pena de 3 meses de prisão;
· crime de dano simples – pena de 4 meses de prisão.

Importa agora proceder ao cúmulo jurídico das penas parcelares aplicadas ao arguido.  

5.3. No caso concreto, a moldura abstracta do cúmulo varia entre o mínimo de 4 meses de prisão e o máximo de 7 meses de prisão (art. 77.º, n.º 2, do Código Penal). 
           
Na medida da pena única são considerados, em conjunto, os factos e a personalidade do agente (art. 77.º, n.º 1, in fine,).

Não tendo o legislador optado pelo sistema de acumulação material no apuramento da pena no concurso de crimes, é forçoso concluir que com a fixação da pena conjunta se pretende sancionar o agente, não só pelos factos individualmente considerados, mas também e especialmente pelo respectivo conjunto, não como mero somatório de factos criminosos, mas enquanto revelador da dimensão e gravidade global do comportamento delituoso do agente.

Importante na determinação da pena conjunta será a averiguação sobre se ocorre ou não conexão relevante entre os factos em concurso, sem esquecer a quantidade, a natureza e a gravidade dos crimes praticados e das penas aplicadas, tudo ponderado em conjunto com a personalidade do agente referenciada aos factos, tendo em vista a obtenção de uma visão unitária do conjunto dos factos.
           
Com este trabalho de análise global pretende-se descortinar se o conjunto dos factos praticados pelo condenado é a expressão de uma tendência criminosa ou se a repetição emerge antes de factores meramente ocasionais.

Reproduzindo aqui tudo o que se deixou escrito a respeito das penas parcelares, com especial enfoque no total desrespeito e alheamento do arguido pelas decisões judiciais proferidas há cerca de uma década, bem como nos antecedentes criminais de igual natureza que visam o mesmo imóvel dos autos, afigura-se adequada a ultrapassagem do ponto médio da moldura penal e a aplicação da pena única de 6 meses de prisão.

5.4. Não obstante já ter sido dada preferência à pena privativa da liberdade para realizar as finalidades da punição, coloca-se ainda a possibilidade de substituição da pena única de 6 meses prisão ora aplicada pelas seguintes penas não privativas da liberdade:

a) Prestação de trabalho a favor da comunidade (art. 58.º, nº 1);
b) Suspensão da execução da pena de prisão (art. 50.º, n.º 1).

Para tanto, é necessário que o tribunal conclua que se realizam, através destes meios, de forma adequada e suficiente, as finalidades de punição.

Já se avançou acima que as necessidades de prevenção geral e especial são muito elevadas no caso concreto.

Por outro lado, atentas a problemática e persistente desvalorização das decisões judiciais relativas à propriedade do imóvel dos autos e a existência de antecedentes criminais de igual natureza – por referência a este mesmo imóvel – já sancionados com pena de prisão efectiva, não se concebe um prognóstico favorável ao cumprimento da pena na comunidade, isto é, o Tribunal entende que a simples censura do facto e a ameaça de prisão, ou mesmo o trabalho comunitário, já não realizam de forma adequada e suficiente as finalidades de punição.

Dir-se-á que o arguido também é insensível à ressocialização do encarceramento, mas tal pena de ultima ratio revela-se necessária para assegurar a protecção dos bens jurídicos valiosos que o arguido colocou novamente em crise com a sua conduta criminosa.

Aliás, importa não perder de vista que a última experiência prisional do arguido foi abruptamente interrompida pelas medidas de clemência aprovadas no âmbito da pandemia da doença COVID-19 e que o arguido saiu directamente da cadeia para o imóvel cuja usurpação motivara aquela pena de prisão efectiva, com isso contribuindo activamente para a própria revogação do perdão de que beneficiara e para o cumprimento do remanescente da pena perdoada.
 
Importa, pois, concluir, novamente, que já passou a oportunidade de afastar o arguido da criminalidade através da aplicação de penas de substituição e que estamos perante um caso em que se justifica o cumprimento efectivo da pena única de prisão aplicada ao arguido.

Cabe especialmente ao arguido, enquanto primeiro interessado, com a ajuda dos serviços de reinserção social, aproveitar a sua passagem pelo meio prisional para investir efectivamente na aquisição de competências para uma vida em liberdade.

Concluindo, a pena de prisão ora aplicada não ficará suspensa na respectiva execução.

5.5.  Uma vez afastada a aplicação da referida pena de substituição, antecipa-se, desde já, que está igualmente afastada a execução desta pena de prisão efectiva em regime de permanência na habitação.
 
O art. 43.º, n.º 1, al. a), do Código Penal, na redacção da Lei 94/2017, passou a dispor que “sempre que o tribunal concluir que por este meio se realizam de forma adequada e suficiente as finalidades da execução da pena de prisão e o condenado nisso consentir, são executadas em regime de permanência na habitação, com fiscalização por meios técnicos de controlo à distância: (…) a pena de prisão efectiva não superior a dois anos.”.

É certo que a medida concreta da pena de prisão aplicada ao recorrente viabiliza a respectiva execução em regime de permanência na habitação.

Contudo, importa não perder de vista que outro tribunal já considerou, por decisão transitada em julgado, que o regime de permanência na habitação já não satisfazia as aludidas necessidades de prevenção especial por referência ao ora recorrente.

E compreende-se plenamente a solução ali alcançada, pois o arguido tinha desrespeitado uma providência cautelar de restituição provisória de posse e tinha  usurpado várias vezes o imóvel dos autos.

A tudo isto acresce a reiteração pelo arguido da conduta criminosa imediatamente após a aplicação do perdão, a duração da nova ocupação do imóvel e a sua vontade expressa de permanecer neste imóvel contra o decidido pelos tribunais.

Ora, neste concreto circunstancialismo de preocupante e persistente falta de interiorização do desvalor das últimas condutas ilícitas e culposas, não se vislumbra nenhuma razão que imponha uma decisão diversa da adoptada no processo n.º ...6.

De facto, a solução de cumprimento efectivo da pena de prisão em regime prisional surge como a solução necessária para assegurar a finalidade primordial de reintegração social do recluso, preparando-o para conduzir a sua vida de modo socialmente responsável, sem cometer crimes, em obediência ao disposto no art. 42.º do Código Penal. 

III – DECISÃO

Em função do exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar parcialmente procedente o presente recurso e, consequentemente:

a. Alteram o julgamento da matéria de facto provada e não provada nos termos acima referidos (Vide II : B : 3.5.);
b. Absolvem o arguido do crime de usurpação de coisa imóvel que lhe era imputado;
c. Operada a legal convolação, condenam o arguido pela prática de um crime de introdução em lugar vedado ao público p. e p. pelo art. 191.º e de um crime de dano p. e p. pelo art. 212.º, n.º 1, todos do Código Penal, nas penas de 3 (três) meses de prisão e de 4 (quatro) meses de prisão, respectivamente e, em cúmulo jurídico, na pena única de 6 (seis) meses de prisão
d. E mantêm o mais decidido na sentença recorrida.

Sem custas (atenta a procedência parcial).
*
Após trânsito em julgado, esta decisão deverá ser igualmente comunicada ao processo n.º 346/16.... e ao Tribunal de Execução de Penas do Porto (resolução do perdão de pena).
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Guimarães, 5 de Junho de 2024
(Texto elaborado em computador pelo relator e integralmente revisto pelos signatários)

(Paulo Almeida Cunha - Relator)
(Madalena Caldeira)
(Paulo Correia Serafim)