Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
205/16.2T8VLN-E.G1
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: INSOLVÊNCIA
NATUREZA URGENTE DE TODOS OS APENSOS
EXTEMPORANEIDADE DE RECURSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/27/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECLAMAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I O art.º 9º do CIRE, quando no seu n.º 1 se refere ao carácter urgente do processo de insolvência, aí incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, abarca os processos que nascem por apenso à insolvência e também os que são determinados apensar ao abrigo do art.º 85º do CIRE.
II A criação da convicção de que o processo não tinha natureza urgente face ao seu desenrolar, tem de ser analisada perante os concretos contornos do caso, não bastando atentar no mero decurso do tempo dessa tramitação.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I RELATÓRIO (reproduzindo parte do que consta da decisão reclamada, e adaptando-se no mais).

Acordam os Juízes da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães.
Em 29/12/2020 MASSA INSOLVENTE DE EMP01..., LDA., instaurou contra AA, ação comum, pedindo a condenação do R. a pagar à A. a quantia global de €108.488,68, acrescida de juros de mora contados à taxa legal em vigor para operações comerciais, desde a citação até efetivo pagamento.
Deu à ação o valor de €108.488,68.
Em 28/9/2021, foi o processo transferido para apensar aos autos de insolvência nº. .......
Foi admitida nos autos a intervenção principal provocada de BB e CC, pedida pelo R..
O interveniente CC foi citado editalmente em 28/6/2023, constando a advertência no edital e anúncio que “O prazo é contínuo não se suspendendo, nas férias judiciais.”
Em 17/7/2023 o R. apresentou requerimento nos autos, e novamente em 7/8/2023.
O processo foi tramitado durante esses meses, tendo sido proferido despacho em 28/8/2023.
Em 25/9/2023 foi proferido despacho no sentido de se diligenciar pela nomeação de defensor ao ausente e sua citação em representação, o que foi concretizado nessa data com a advertência que “O prazo é contínuo não suspendendo, nas férias judiciais.”
Ao longo deste período de tempo o R. foi apresentando requerimentos (probatórios) nos autos, e prorrogações de prazo, que foram sendo tramitados e deferidos.
Em 16/01/2024 (conclusão de 15/01) foi proferido despacho saneador que julgou “parcialmente procedente a invocada excepção peremptória de prescrição, declarando-se prescrito o direito da Autora no referente aos juros de mora vencidos até 10.02.2016, pelo que se absolve parcialmente o Réu em conformidade, prosseguindo os autos quanto ao demais peticionado.”
No mesmo despacho foi fixado como valor da ação o indicado na p.i..
E foi designada data para audiência de julgamento: 23/02/2024.
O despacho foi notificado às partes em 17/1/2024.

Em 21/2/2024 foi apresentado recurso do mesmo pelo R., onde invoca:
“II. DA TEMPESTIVIDADE
3. Determina o 638º do CPC, no seu nº1, que «o prazo para a interposição do recurso é de 30 dias».
4. Tendo sido o Douto Despacho Saneador notificado via Citius, datando a elaboração da notificação de 17/01/2024, presumem-se as partes notificadas em 22/01/2024.
5. O prazo de interposição de recurso iniciou-se no dia 23/01/2024 e termina no dia 21/02/2024, pelo que presente recurso é tempestivo.”
Não foram apresentadas contra-alegações.
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Em 22/2/2024 é proferido despacho de não admissão do recurso, nos seguintes termos:
“Atenta a data do em que se considera o recorrente notificado do despacho saneador (datado de 16.01.2024) em crise (notificação expedida em 17.01.2024, considerando-se as partes notificadas em 22.01.2024) e a data da apresentação das respectivas alegações (21.02.2024), têm-se estas por manifestamente extemporâneas e legalmente inadmissíveis, em face do disposto nos art.ºs 248.º e 139.º, n.º 5 e 638.º, n.º 1, todos do CPC e, ainda o art.º 9.º n.º 1 do CIRE, que confere natureza urgente ao presente processo/apenso, assim não se admitindo o recurso ora interposto pelo Réu AA.---
Custas a cargo do/a recorrente, fixando-se a taxa de justiça no mínimo legal.---
Notifique.”
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Notificado em 22/02/2024, o R./reclamante, em 7/03/2024, queixa-se desta decisão suscitando a sua reapreciação, pugnando que a presente reclamação seja julgada procedente e, em consequência, admitido o recurso de apelação, apresentando a seguinte argumentação que se reproduz:

“1. Vem a presente Reclamação interposta do Douto Despacho de fls., o qual não admitiu o recurso interposto pelo ora Reclamante para o Tribunal da Relação de Guimarães [a seguir designado de TRG].
2. É o seguinte o teor do Douto Despacho:
«Atenta a data do em que se considera o recorrente notificado do despacho saneador (…) em crise (…) e a data da apresentação das respectivas alegações (…), têm-se estas por manifestamente extemporâneas e legalmente inadmissíveis, em face do disposto nos art. 248º e 139º, nº5 e 638º, nº1, todos do CPC e, ainda o art. 9º, nº1 do CIRE, que confere natureza urgente ao presente processo/apenso, assim não se admitindo o recurso ora interposto pelo Réu AA».
3. Não pode o Recorrente/Reclamante conformar-se com tal douta Decisão, pelas razões que passará sucintamente passará a expor.
Efectivamente,
4. Os presentes autos foram originariamente distribuídos, no ano de 2020, ao ... Juízo Central Cível de ..., como Acção de Processo Comum, sob o número 4017/20.....
5. Posteriormente, já após a Contestação, foi determinada a apensação ao Processo de Insolvência, assumindo nova numeração (Processo nº205/16....).
6. Desde a Citação do Reclamante, por vicissitudes processuais diversas (que não podem ser imputadas ao Tribunal, à Secretaria ou às partes) decorreram mais de 3 (três) anos.
7. A Audiência Prévia foi dispensada, por acordo, no decurso do corrente ano, ou seja, em 2024.
8. O Douto Despacho Saneador foi proferido em Fevereiro de 2024.
9. A verdade é que, salvo melhor opinião, a tramitação dos presentes autos não reflecte qualquer carácter de urgência.
10. Pelo que se criou a convicção no Reclamante de que os presentes autos seriam tramitados como a Acção de Processo Comum que são.
11. E, assim sendo, o prazo de interposição de recurso corresponderia, como no entendimento do Reclamante corresponde, a 30 (trinta) dias.
12. Veja-se a este respeito o Sumário do Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 09/07/2014, no qual foi Relator o Exmo. Sr. Juiz Conselheiro Dr. Pinto de Almeida, que parcialmente se transcreve [são nossos os itálicos, negritos e sublinhados]:
«1. As acções apensadas ao processo de insolvência, nos termos do art. 85º do CIRE, passam a ter, a partir da apensação, carácter urgente, nos termos do art. 9º do mesmo diploma: "tudo o que se relaciona com o processo é urgente, aí incluindo todos os incidentes, apensos e recursos".
2. Tendo uma acção apensada ao processo de insolvência nos termos do art. 85º do CIRE sido processada durante mais de seis anos após a apensação, sem que a questão da urgência fosse suscitada, é razoável e perfeitamente plausível que a parte admitisse que o entendimento do Tribunal fosse no sentido de que o processo não era urgente.
3. Aquele facto era, pelo menos, adequado a criar na parte a convicção de que o prazo de que dispunha para apresentar as alegações de recurso para o Tribunal da Relação não corria em férias, de acordo com o regime previsto no art. 144º nº 1 do CPC (então em vigor).
4. Esta convicção é fundada e legítima e merece, por isso, a tutela do direito, como se reconheceu, para situação similar, na fundamentação do AUJ deste Tribunal de 31.03.2009.
5. Estamos perante uma situação de confiança justificada, assente na boa fé e gerada pela aparência, que deve ser protegida, conduzindo à "preservação da posição nela alicerçada"».
13. Com base no entendimento sufragado no citado Aresto, o prazo de interposição de recurso corresponde a 30 (trinta) dias.
14. Em sentido similar, o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, de 09/01/2017, no qual foi Relator o Exmo. Sr. Juiz Desembargador Dr. António Domingos Pires Robalo:
«I – Preceitua o nº1 do art. 9º da CIRE «O processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, tem carácter urgente e goza de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal».
II - Referindo-se a lei a todos os apensos, não se vê razão para excluir destes as acções apensadas nos termos do art. 85º nº 1 do CIRE (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus).
III - Porém, sendo a acção processada como se não se tratasse de um processo urgente, em várias das suas fases processuais, sem que a questão da urgência fosse suscitada, (…) é razoável e perfeitamente plausível que a recorrente admitisse que o entendimento do tribunal fosse realmente aquele e que tivesse actuado em conformidade».
15. Como se refere no primeiro dos citados Acórdãos, «a tramitação coerente e unitária quanto às regras jurídicas aplicáveis que, em regra, se estabelece para o processo principal e seus apensos, visa a prossecução de razões de certeza e segurança jurídica, bem como de «tutela de legítimas expectativas determinantes de relevantes investimentos de confiança». Ora, nos presentes autos, (…) até à presente data, a tramitação prosseguida nos presentes autos desde o seu início e após a apensação ao processo de insolvência não revestiu ou respeitou o carácter de urgência (…)».
16. Consequentemente, rejeitar por extemporâneas as Alegações de Recurso apresentadas pelo ora Reclamante, com o fundamento no carácter urgente dos autos, «seria contrariar, de forma manifesta e ilegítima, a segurança jurídica do caso concreto e as legítimas expectativas criadas pelas partes, maxime, pela autora, ao longo da sua longa tramitação, as quais foram determinantes de relevantes investimentos de confiança nas normas jurídicas que vinham sendo aplicáveis nos autos (no caso concreto quanto à inaplicabilidade do art. 9.º n.º 1 do CIRE)».
17. Devendo, pelas razões de facto e de Direito enumeradas, ser consideradas tempestivas as Alegações de Recurso apresentadas pelo Reclamante e o Recurso admitido.
Sem conceder, por cautela de patrocínio, acrescentar-se-á,
18. São inconstitucionais, por violadoras dos Princípios da Justiça e da Tutela da Confiança ínsitos no Princípio do Estado de Direito Democrático, decorrentes do artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, as normas dos art. 9º e 86º do CIRE, quando conjuntamente interpretadas no sentido de que todos os processos apensados ao processo de Insolvência assumem carácter urgente, independentemente da sua natureza inicial e da tramitação não urgente que, efectivamente, foi imprimida aos autos.
19. Inconstitucionalidade que expressamente se suscita e que deverá ser apreciada e declarada.”
Pede por isso que, conhecendo-se da Reclamação, deverá a mesma ser julgada procedente e, em consequência, o Recurso interposto para o Tribunal da Relação de Guimarães ser admitido, com o regime de subida que vier a ser fixado, seguindo-se os seus ulteriores termos.
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Não foi apresentada resposta à reclamação.
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Por decisão da relatora de 10/4/2024 foi julgada improcedente a reclamação interposta pelo recorrente e, em consequência, mantido o despacho de 22/02/2024 de não admissão do recurso de 21/02/2024 relativo à decisão de 16/01/2024, pelos motivos consignados no despacho de não admissão.
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O reclamante/recorrente pediu que sobre essa decisão recaia um acórdão.
Não foi apresentada resposta.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
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II QUESTÕES A DECIDIR.

Ao abrigo do artº. 652º, nº. 3, do C.P.C., a apelante requer que sobre o despacho que indeferiu a reclamação e não admitiu o recurso interposto recaia um acórdão.
Há que apreciar a matéria sobre que recaiu a decisão em causa, e outras que se afigurem de conhecimento oficioso.
No caso concreto, e se a conferência decidir pela sua admissibilidade, há que determinar a subida dos autos.
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III FUNDAMENTOS.

Os fundamentos fácticos a atentar são os que já resultam do relatório supra.
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IV O MÉRITO DA RECLAMAÇÃO.

O requerimento em que é solicitada a prolação de acórdão não tem de ser motivado, ou seja, o requerente não tem de justificar a razão pela qual pede que sobre o objeto da reclamação recaia acórdão, porquanto o n.º 3 do art.º 652º apenas prevê que a parte que se considere prejudicada por qualquer despacho do relator, que não seja de mero expediente, pode requerer que sobre a matéria do despacho recaia um acórdão, sem exigir, portanto, mas também sem vedar, qualquer justificação para essa iniciativa da parte ou que esta tenha de motivar o seu inconformismo em relação à decisão individual prolatada pelo relator -Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil”, vol. I, 2ª ed., pág. 816, nota 9; Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., pág. 246, em que se lê: “Das decisões do relator podem as partes, em regra, reclamar para a conferência. Mais do que encarar esta iniciativa como uma forma de impugnação da decisão singular, trata-se de um instrumento que visa a substituição dessa decisão por uma outra com intervenção do coletivo (…). Atenta esta configuração, a atuação da parte pode consistir tão-só na manifestação de vontade e que a matéria em causa seja levada à conferência integrada pelo relator e pelos respetivos adjuntos. Com efeito, a lei (…), sem exigir expressis verbis (mas também sem vedar) qualquer justificação para essa iniciativa ou sequer a motivação que a leva a sustentar uma posição diversa”, acrescentando na pág. 247 que: “Em qualquer dos casos, é sobre o projeto elaborado pelo relator que o coletivo irá incidir, com manutenção, revogação ou alteração da decisão reclamada, de acordo com o entendimento que se revelar maioritário”.
O reclamante não aduziu argumentos suplementares, apenas destacando que “9. Dado que, analisando-se a evolução processual na plataforma Citius, se extrai que no ano de 2021 inexistiu tramitação no período de férias judiciais, no ano de 2022 houve uma notificação da Secretaria (em 10/08) e um Douto Despacho (em 30/08), no ano de 2023 houve várias notificações da Secretaria (em Agosto) e um Douto Despacho (em 28/08), no ano de 2024 verifica-se uma notificação da Secretaria (em 28/03).
10. Com o devido respeito por diferente entendimento, o facto de o Reclamante apresentar Requerimentos durante o período de férias judiciais, tal como o faz aos fins-de-semana ou mesmo fora do horário de funcionamento dos Tribunais, não pode abalar os argumentos por si apresentados na Reclamação de fls….”.
Assim sendo, e porque esses argumentos foram analisados na decisão singular, iremos reproduzi-la a adesão do coletivo à mesma.
“Começando por estabelecer os parâmetros do atual sistema recursivo temos como espécies legais de recursos os ordinários –apelação para a Relação e revista para o STJ-, e os extraordinários –para uniformização de jurisprudência e de revisão (artº. 627º do C.P.C.).
Como regra geral da sua admissibilidade temos o valor da ação e da sucumbência (artº. 629º, nº. 1, C.P.C.), e a particular relevância da decisão em causa (nºs. 2 e 3). 
Há também normas que restringem a recorribilidade; é o caso do artº. 630º, nº.1, C.P.C., relativamente aos despachos de mero expediente ou proferidos no uso legal de um poder discricionário, o caso dos despachos de natureza instrumental previstos no nº. 2 desse artigo e nessas situações, caso dos artºs. 226º, nº. 5, 569º, nº. 6, 590º. nº. 7, 595º, nº. 4, 617º, nº. 1, 641º, nº. 5, 119º, nº. 5, 129º. C), 879º, nº. 5, todos do C.P.C., além de outras disposições relativas á limitação de recurso para o STJ.
Ainda há que aferir como pressupostos da sua admissibilidade a regra do vencimento na causa aferida nos termos do artº. 631º do C.P.C..
Depois há que aferir se o recurso é interposto tempestivamente, respeitando o disposto no artº. 638º do C.P.C..
As regras gerais previstas no C.P.C. são aplicáveis sempre que não esteja prevista norma especial para o caso em apreciação.
Tratamos já de uma situação semelhante na decisão da relatora proferida no processo n.º 6507/17...., pelo que recorremos ao que aí dissemos na parte aplicável e quando se mostre oportuno.
No caso dos autos, diferentemente desse em que estávamos perante uma ação prevista nos art.ºs 141º e segs. do CIRE, aqui estamos perante uma ação que inicialmente foi proposta autonomamente na Instância Central Cível do Tribunal Judicial da Comarca de ..., em que posteriormente foi determinada a sua apensação ao processo de insolvência de EMP01..., LDª.
A primeira questão que aqui se coloca é se o art.º 9º do CIRE, quando no seu n.º 1 se refere ao carácter urgente do processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos, abarca os processos que nascem por apenso à insolvência e também os que são determinados apensar ao abrigo do art.º 85º do CIRE, ou apenas os primeiros.
Nesta primeira questão cremos que a resposta deve ser no sentido de abarcar ambos os casos. Não faria sentido a distinção, nem a lei distingue. Nesse sentido aliás decidiu-se no Ac. da Rel. de Coimbra citado pelo reclamante, de 9/01/2017, processo n.º 141/12.1TBVZL-D.C1.
E a justificação mostra-se cabalmente demonstrada nessa decisão, que passamos a citar: “A preocupação com a celeridade dos processos relativos à insolvência e a consagração do carácter urgente destes não surgiu apenas com o CIRE. De modo limitado no CPC de 1961 (art. 1179º, nº 2 – … o pedido de falência é sempre considerado urgente e tem preferência sobre qualquer outro serviço), o âmbito da urgência foi alargado no CPEREF (art 10º, nº 1 – os processos de recuperação da empresa e de falência, incluindo os embargos e recursos a que houver lugar, têm carácter urgente e gozam de precedência sobre o serviço ordinário do tribunal). E se este diploma não explicitava se a urgência era aplicável a todos os apensos do processo, o regime do CIRE é claramente mais abrangente, estendendo ainda mais, sem qualquer dúvida, o âmbito da urgência: têm carácter urgente o processo de insolvência, incluindo todos os seus incidentes, apensos e recursos.
Isto é, "tudo o que se relaciona com o processo é urgente, aí incluindo todos os incidentes, apensos e recursos" (cfr. Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 2ª ed., 113), ou seja, "o processo de insolvência e os processos que gravitam em torno deste” (cfr. Ana Prata, Morais Carvalho e Rui Simões, CIRE Anotado, 36).
Procurou-se, assim, potenciar a celeridade da tramitação do processo, estendendo o carácter urgente também aos apensos do processo de insolvência (cfr. Preâmbulo do DL 53/2004, de 18/3, ponto 15).
Por outro lado, essa intenção do legislador, de alargar o âmbito da urgência, está claramente reflectida no texto da norma: esta refere-se, com efeito, a todos os apensos, não fazendo qualquer distinção entre estes.
Apesar de a interpretação não dever cingir-se à letra da lei, tem de reconhecer-se que a fórmula utilizada aponta claramente no sentido de aí caberem todos os apensos do processo de insolvência, sem excepção, sendo esse sentido o que "melhor e mais imediatamente corresponde ao significado natural das expressões verbais utilizadas, e designadamente ao seu significado técnico-jurídico, no suposto de que o legislador soube exprimir com correcção o seu pensamento" (cfr. Baptista Machado, Introdução do Direito e ao Discurso Legitimador, 182 e 189 e art. 9º nº 3 do CC).
Aliás, referindo-se a lei a todos os apensos, não se vê razão para excluir destes as acções apensadas nos termos do art. 85º nº 1 do CIRE (ubi lex non distinguit nec nos distinguere debemus).
A apensação das acções, determinada nos termos do citado art. 85º, nº 1, tem por fundamento a conveniência que daí advém para os fins do processo (parte final do preceito); sendo a mesma ordenada, isso significa e pressupõe, portanto, que há conveniência e interesse na apensação (que não é automática), o que dita, logicamente, que haja um correspondente interesse na sua celeridade e que a acção apensada seja processada com a urgência exigida e inerente aos processos relativos à insolvência (cfr. Ac. S.T.J. de 9 de Julho de 2014, relatado por Pinto de Almeida).
Porém, tem sido entendido, o legislador dispõe de ampla margem de liberdade na concreta modelação do processo, devendo, contudo, observar que "os regimes adjectivos devem revelar-se funcionalmente adequados aos fins do processo e conformar-se com o princípio da proporcionalidade", não podendo "criar obstáculos que dificultem ou prejudiquem arbitrariamente ou de forma desproporcionada, o direito de acesso aos tribunais e a uma tutela jurisdicional efectiva” (cfr. Jorge Miranda e Rui Medeiros, CRP Anotada, Tomo I, 190; cfr. também Lopes do Rego, Comentários ao CPC, Vol. I, 2ª ed., 22).”
Igual decisão foi tomada no Ac. do STJ de 28/3/2017 (processo n.º 616/13.5TJVNF-L.G1.S1, www.dgsi.pt): “(…) Carece, contudo, de razão a Recorrente, uma vez que se assim fosse, nenhuma razão existiria para que os processos fossem deslocados do Tribunal onde começaram a correr, para o outro, onde se processa a insolvência. A ratio da norma inserta no artigo 85º do CIRE, está no principio da par conditio creditorum que subjaz ao processo de insolvência, visando-se concentrar num único processo, este, de todas as questões essenciais, visando uma apreciação unitária das mesmas, por forma a não criar clivagens entre os titulares de créditos, cfr Ana Prata, Jorge Morais Carvalho, Rui Simões, Código Da Insolvência E Da Recuperação De Empresas Anotado, 256/257.
Assim sendo, a urgência imposta pelo normativo inserto no artigo 9º do CIRE, impõe-se a todos os processos, incidentes, apensos, recursos e demais questões que enformem o processo de insolvência, daqui advindo a sem razão da Recorrente.”
Conjugando o art.º 9º do CIRE com o art.º 638º, n.º 1, do C.P.C., isto significa que no caso o recurso da decisão proferida (atento o disposto no art.º 644º, n.º 1, b), do C.P.C.) teria de ter sido interposto em 15 dias. Acresce que, se fosse o caso, o prazo correria em férias judiciais como decorre ainda da conjugação daquele artº. 9º com o artº. 138º, nº. 1, C.P.C. (este ex vi artº. 17º, nº. 1, CIRE).
Não está em causa que o mesmo foi claramente ultrapassado, uma vez que o recorrente não atendeu ao prazo de 15 dias, mas sim ao prazo de 30 dias.
Desse ponto de vista o despacho recorrido mostra-se inteiramente correto, nada sendo de apontar ao mesmo.
A questão que de seguida se coloca é se no caso concreto deve ser assumida nesta fase essa natureza urgente face ao desenrolar do processo.
Cumpre saber se, tal como se fez no Ac. do STJ de 9/7/2014 que cita e segue, bem como no já destacado Ac. da Rel. de Coimbra, não é de considerar a natureza urgente do processo, dada a sua concreta tramitação.
Vejamos então os argumentos que apresenta.
Essencialmente diz: o processo foi intentado em 2020; desde a citação do Reclamante, por “vicissitudes processuais diversas (que não podem ser imputadas ao Tribunal, à Secretaria ou às partes) decorreram mais de 3 (três) anos”; a audiência prévia foi dispensada, por acordo, no decurso do corrente ano, ou seja, em 2024; o despacho saneador foi proferido em fevereiro de 2024. “ A verdade é que, salvo melhor opinião, a tramitação dos presentes autos não reflecte qualquer carácter de urgência. (…) Pelo que se criou a convicção no Reclamante de que os presentes autos seriam tramitados como a Acção de Processo Comum que são.”
Ora, aqui retomamos o que já decidimos na outra reclamação e que a este propósito foi suscitado.
Em primeiro lugar diremos que os acórdãos em causa foram proferidos no âmbito dos concretos contornos muito particulares dos casos em apreciação, e extrapolar os seus argumentos para outras situações, mais ou menos semelhantes, é algo que tem de ser feito com todo o cuidado, sob pena de violação de princípios estruturantes do nosso sistema; por um lado temos a igualdade no acesso à justiça, mas por outro a segurança jurídica; se situados apenas no elemento temporal isso remete-nos para o campo da aleatoriedade que não podemos aceitar. Independentemente de nos revermos ou não nos acórdãos, e ainda que assim não fosse, os casos ali analisados têm divergências com o presente que tornam aqui inaplicáveis os respetivos argumentos, sendo certo que o mero decurso do tempo na tramitação do processo não foi o móbil das decisões, pelo que a “comparação de tempos” não é, para nós, fator relevante –todavia, ainda assim a ele aludiremos.
O processo em causa foi intentado em 29/12/2020, logo, na prática situamo-nos a partir de 2021, pelo que dizer que o processo se iniciou em 2020 dá de imediato uma imagem que não é real.
Só após a apensação, ou seja, a partir de 28/9/2021, é que podemos atender à sua marcha para a apreciação em causa.
Ora, a partir daí, admitida a intervenção de terceiros a pedido do aqui reclamante, havia que citá-los, diligência imprescindível à sua prossecução. Só se logrou citar um deles, e por via edital, em setembro de 2023. Porém, o processo não esteve “parado” e outras diligências probatórias se foram desenrolando, sempre a pedido do reclamante.
Contudo, o que para nós releva é que a citação deste interveniente deixou clara a natureza urgente do processo dados os termos (advertência) com que foi concretizada.
Mas mais importante ainda, é que o aqui reclamante apresentou requerimentos em período de férias judiciais e os mesmos foram despachos em período de férias. Logo não ficou, a nosso ver, qualquer dúvida, quanto á tramitação do processo em férias judiciais, decorrente do seu carácter urgente.
O processo foi sempre despachado de forma célere, com data supra na sua maioria; o despacho saneador foi proferido em 16/01/2024 e nessa data foi marcada julgamento para 23/02/2024.
Ora, face a isto, não vemos como poderia ter sido criada a convicção ao reclamante de que o processo não tinha natureza urgente. Pelo contrário, tudo “dizia” que sim, e se dúvidas tivesse deveria então ter suscitado a questão.
Ainda que as suas vicissitudes tenham conduzido a alguma demora da sua tramitação, nunca se poderia considerar criada qualquer convicção sobre a natureza não urgente do processo, sequer suscitar a dúvida de que não assumia essa natureza. Logo, não há que invocar o princípio da confiança, fundado em legítimas expetativas. Não se mostra sequer necessário entrar em cogitação com o (aleatoriedade decorrente do) tempo de decurso da ação até decisão final.
Aquele Ac. do STJ de 28/3/2017, em situação com alguma semelhança, disse: “De outra banda, não se vislumbra que a decisão plasmada no Aresto sob censura, ao não conhecer do objecto do recurso, por extemporaneidade na sua apresentação, tenha violado os princípios da certeza, da segurança jurídica, da confiança, da boa-fé e da proporcionalidade, os quais pressupõem o escrutínio da consistência e a legitimidade das expectativas dos cidadãos afectados por uma alteração das regras aplicáveis, havendo de concluir-se que quando o órgão judicial tenha encetado comportamentos capazes de gerar nestes cidadãos expectativas de continuidade, essas expectativas sejam legítimas, justificadas, fundadas em boas razões, e as partes tenham moldado a sua actuação processual tendo em conta aquela perspectiva de continuidade do comportamento do órgão jurisdicional, cfr inter alia a propósito do princípio da protecção da confiança, os Ac Tribunal Constitucional 128/2009 de 12 de Março de 2009 (Relatora Maria Lúcia Amaral); 413/2014 de 30 de Maio de 2014 (Relator Carlos Fernando Cadilha); 408/2015 de 23 de Setembro (Relatora Maria de Fátima Matamouros); e ainda os Ac do STJ de 9 de Julho de 2014 (Relator Pinto de Almeida) e de 17 de Maio de 2016 (deste mesmo colectivo) in www.dgsi.pt”.
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Resta a questão da suscitada inconstitucionalidade.
Diz o reclamante que (negrito nosso) “São inconstitucionais, por violadoras dos Princípios da Justiça e da Tutela da Confiança ínsitos no Princípio do Estado de Direito Democrático, decorrentes do artigo 2º da Constituição da República Portuguesa, as normas dos art. 9º e 86º do CIRE, quando conjuntamente interpretadas no sentido de que todos os processos apensados ao processo de Insolvência assumem carácter urgente, independentemente da sua natureza inicial e da tramitação não urgente que, efectivamente, foi imprimida aos autos”.
O reclamante quererá certamente referir-se ao art.º 85º do CIRE, que é o que aqui determinou a apensação. E mais concretamente ao art.º 20º da nossa Constituição que é o que rege especificamente quanto ao acesso ao direito e tutela jurisdicional efetiva.
Ora, o Acórdão do Tribunal Constitucional nº 248/2012, de 22.5, muito embora num contexto totalmente diverso, foi abordando a questão da urgência e celeridade do processo de insolvência e seus apensos; o que aí é dito está também ínsito no caso do art.º 9º do CIRE quando lhes confere carácter urgente, pelo que citaremos o mesmo em partes que se mostrem oportunos, face aos princípios invocados.
Ora, nele se diz: “O regime especial do processo de insolvência salvaguarda, aliás, um interesse constitucionalmente tutelado; é que o direito à tutela jurisdicional efetiva implica a previsão pelo legislador de procedimentos que possibilitem uma decisão em prazo razoável e se caracterizem pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos.
É certo que a natural especificidade do processo e a necessidade de celeridade não podem constitucionalmente justificar toda e qualquer solução legislativa ditada com tais objetivos.
(…)
Em suma, como se afirmou no já citado Acórdão n.º 178/2007, as exigências de celeridade não podem ser de tal ordem que se revelem desproporcionais e violadoras do direito de acesso aos tribunais:
“O direito de acesso aos tribunais para defesa dos direitos e interesses legalmente protegidos e obtenção de uma sua tutela jurisdicional, plena e efetiva, constitui um direito ou garantia fundamental que se encontra consagrada no art.º 20.º da Constituição. Mas daí não decorre que seja um direito absoluto, de uso incondicionado. Desde logo, ele consente as restrições que caibam nos parâmetros estabelecidos nos n.ºs 2 e 3 do art.º 18.º da CRP. Por outro lado, decorre da própria previsão constitucional que a tutela jurisdicional dos direitos e interesses legalmente protegidos seja efetuada “mediante um processo equitativo” e cujos procedimentos possibilitem uma decisão em prazo razoável e sejam “caracterizados pela celeridade e prioridade, de modo a obter tutela efetiva e em tempo útil contra ameaças ou violações desses direitos” que esse direito, além do mais, está sujeito a regras ou condicionamentos procedimentais e a prazos razoáveis de ação ou de recurso.
Ponto é que esses condicionamentos, pressupostos e prazos não se revelem desnecessários, desadequados, irrazoáveis ou arbitrários, e que não diminuam a extensão e o alcance do conteúdo desse direito fundamental de acesso aos tribunais”.
Aceitando-se, como princípio, que no processo de insolvência são justificáveis, em nome da celeridade, “desvios” em relação ao processo comum, a questão reside em saber se o “desvio” em causa é constitucionalmente tolerável, face ao princípio consagrado no artigo 20º, n.º1, da Constituição.
Ora, a nosso ver, justifica-se inteiramente que o prazo de recurso seja reduzido para 15 dias, quer no processo de insolvência, quer nos seus apensos e incidentes, quer naqueles apensos “supervenientes”, situação que não é, de modo algum, “nova” no nosso regime civil pois todos os processos urgentes vêm esse prazo encurtado. Mais uma vez não há que distinguir situações, porque o que se visa alcançar é que toda a panóplia de situações relacionadas com a insolvência sejam decididas de forma célere, em prol da estabilidade.
Retomando, e para concluir, o Ac. do STJ que já referimos, de 28/3/2017, diríamos: “…esta conclusão não viola o princípio do acesso ao direito consagrado no artigo 20º da CRPortuguesa, uma vez que a questão suscitada pela Recorrente foi apreciada por um Órgão jurisdicional, questão diversa é a possibilidade de impugnar as decisões produzidas, impugnação essa que está sujeita a outros critérios de conformação do legislador que in casu não se mostraram respeitados pela Recorrente.”.
Em suma, não é de admitir o presente recurso porque o mesmo é extemporâneo, nada havendo a apontar ao despacho reclamado, nem procedendo os argumentos no sentido de afastar o alcance da lei aplicada, nomeadamente por declaração de inconstitucionalidade; é pois de manter o despacho reclamado.”
Face aos argumentos aduzidos, diremos ainda que as partes podem apresentar requerimentos quando entenderem, mas a tramitação do processo pelo Tribunal em período de férias judiciais reporta-se, à partida, aos processos considerados urgentes, relativamente aos quais os prazos processuais não se interrompem (cfr. art.ºs 137º, n.º 1, e 138º, C.P.C.). Quanto à tramitação em concreto, apenas de acrescentar que a dificuldade ou demora na concretização de atos processuais não colide com o seu caráter urgente; a urgência não pode sacrificar/postergar a obediência aos trâmites devidos, nem o cumprimento dos princípios do processo civil, nem concretamente o direito ao contraditório e à prova. O processo foi despachado e cumprido de forma célere, não se registando a esse nível qualquer atraso.
Ainda a propósito da natureza urgente dos processos, independentemente da sua tramitação, veja-se o que vem explanado no Ac. da Rel. do Porto de 25/3/2021 (processo n.º 8385/16.0T8VNG-H.P1, www.dgs.pt).
Nada mais resta por isso acrescentar ao já apreciado e decidido, que o coletivo mantém.
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V DISPOSITIVO.

Nos termos e fundamentos expostos, julga-se improcedente a presente reclamação interposta pelo recorrente e, em consequência, mantém-se o despacho de 22/02/2024 de não admissão do recurso de 21/02/2024 relativo à decisão de 16/01/2024, pelos motivos consignados no despacho de não admissão, e consequentemente desatende-se a reclamação apresentada á conferência.
Custas a cargo do reclamante.
Notifique.
Guimarães, 27 de junho de 2024.

Os Juízes Desembargadores
Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Rosália Cunha.
2º Adjunto: Fernando Barroso Cabanelas
(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)