Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | FÁTIMA FURTADO | ||
Descritores: | CRIME DE VIOLÊNCIA DOMÉSTICA VÍTIMA MENOR DEPOIMENTO PARA MEMÓRIA FUTURA RECUSA DE DEPOIMENTO | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 06/05/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
Sumário: | I - A criança que assiste a factos integradores de crime de violência doméstica é ela própria expressamente considerada uma vítima pelo artigo 67.º-A, n.º 1, al. iii), do Código de Processo Penal. II. Estando os autos em fase de inquérito, cuja direção é legalmente atribuída ao Ministério Público – como estabelece o artigo 53.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal – tem de se reconhecer que é precisamente o Ministério Público quem saberá a melhor forma de promover a obtenção e conservação das respetivas provas indiciárias. III. O artigo 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, não poderá ter outra interpretação que não seja a de que a regra é o deferimento do pedido de declarações para memória futura da vítima, só tal não acontecendo quando dos autos resultarem razões relevantes que objetivamente desaconselhem essa recolha antecipada de prova. IV. A eventual incapacidade da criança de compreender o significado do exercício da faculdade de recusar o depoimento, uma vez que os arguidos são os seus pais (cf. artigo 134, nº 1, al. a) e nº 2 do Código de Processo Penal), não é circunstância impeditiva da sua capacidade de testemunhar. . Tal situação (a verificar-se em concreto) é facilmente suprida pelos meios legais adequados, com a nomeação de curador/patrono à criança, que por ela possa decidir pela recusa, ou não, de prestar depoimento. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, no Tribunal da Relação de Guimarães A. RELATÓRIO No processo de inquérito nº 904/23...., remetido ao Juízo de Instrução Criminal de Braga – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, para a prática de atos da competência do Juiz de Instrução Criminal, foi decidido indeferir a tomada de declarações para memória futura da criança AA, por despacho de 12.01.2024, com o seguinte teor: «Diz o MP que se investigam factos que configuram a prática de um crime de violência doméstica reciproca (entre os progenitores) e pretende ouvir em declarações para memória futura o filho dos mesmos (AA) de 7 anos de idade. Decidindo. Não se percebe o fundamento da tomada de declarações para memória futura ao menor – pois o MP não é claro, limitando-se a dizer que por o mesmo residir com os progenitores (ambos já arguidos) é provável que tenha assistido a factos susceptíveis de, em abstracto, integrar a prática do indicado crime de violência doméstica. Assim, uma vez que ao menor não foi atribuído o estatuto de vítima (sequer especialmente vulnerável – artigos 20.º, 21.º e 22.º/1 da lei 130/2015, de 04/09) parece que a audição do menor será enquanto testemunha provável de factos que tenha eventualmente presenciado (cfr. artigo 128.º/1 do CPP). Sem prejuízo de as vítimas de violência doméstica (e o MP parece que assim considera o menor ao, entre o mais, referir o disposto no artigo 2.º/-b) da Lei 112/2009, de 16/09) apenas deverem serem inquiridas na medida do necessário para os fins do processo (artigo 16.º/2 da Lei 112/2009), o que apesar de caber ao MP aferir não se basta com a alegação de que é provável que tenha assistido a factos, o certo é que uma criança de 7 anos não entenderá, logo por si não exercerá livre e esclarecidamente, o direito de recusa de depoimento a que alude o artigo 134.º/1-a) do CPP. Ou seja, mesmo que uma criança de tenra idade (e uma criança a de 7 anos não deixa de o ser) tenha capacidade para narrar factos, o certo é que não tem capacidade para “compreender o significado e trancendência do exercício da faculdade de recusar o depoimento” – cfr, A Recusa de Depoimento de Familiares do Arguido: o Privilégio Familiar em Processo Penal (notas de estudo), do Senhor Desembargador Cruz Bucho. Lembre-se que a idade de 12 anos é um marco etário relevante nos termos da lei (cfr. A Lei n.º 147/99, de 01 de Setembro). Como diz o referido autor: Assim, por exemplo, um menor de 5 ou 6 anos de idade, em princípio é plenamente capaz de relatar em tribunal aquilo que viu o arguido, seu pai, fazer a uma irmã do menor, a uma colega desta, ou à sua mãe, mas não é capaz de exercer conscientemente a faculdade de recusar depor contra seu pai, acusado da prática de um crime de abuso sexual de crianças ou de um crime de violência doméstica. E citando mais uma vez o referido estudo “Nesta última situação a decisão de declarar ou de se recusar o depor compete ao representante legal do menor ou, na sua falta ou impedimento por ser o agente do crime, a um curador”. Ora, no caso concreto, o representante legal do menor são os próprios progenitores – os dois (já constituídos arguidos), pelo que seria relativamente a ambos os progenitores que a criança teria de exercer (ou escolher um) o direito de recusa. Um claro quadro de vitimização, resultante da colocação da criança no conflito interior de decisão contra quem vê como protector. Neste quadro de entendimento, não se vê que importe a nomeação de curador ao menor, tal como não se vê que importe nomear patrono ao mesmo (artigo 22.º/3 da Lei 130/2015, de 04/09). Termos em que indefiro a tomada de declarações para memória futura. Notifique. Devolva ao MP.» * Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso, apresentando a competente motivação que remata com as seguintes conclusões:«I— Está em investigação a prática de factos que configuram o crime de violência doméstica por parte dos arguidos. II — Foi indeferida a tomada de declarações para memória futura do filho dos arguidos. III- A criança não foi inquirida e por isso não é possível afirmar que presenciou os factos. IV- A especial vulnerabilidade da testemunha resulta quer da sua idade quer da relação familiar que a une aos arguidos —seus pais. V — Nas situações de crianças e jovens que assistem a situações de violência doméstica deve ser deferida a tomada de declarações para memória futura, excepto quando se mostre totalmente desnecessária. VI — As crianças/menores que vivem em contexto de violência doméstica, a esta sendo expostas por a assistirem, sofrem danos directos, sendo, pois, “vitimas” de tal crime. VII- O despacho faz uma interpretação desconforme aos artigos 2.° da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e 67º-A do Código de Processo Penal, 8.º e 69.º, n.º 1 da Constituição da República Portuguesa. VIII - A Convenção Sobre os Direitos da Criança, adoptada pela Assembleia Geral das Nações Unidas em 20 de Novembro de 1989 e ratificada por Portugal em 21 de Setembro de 1990, estabelece no seu artigo 19. 0, um poder dever de tomada de declarações para memória futura quando em causa está o depoimento de uma criança/jovem. IX — Ainda que assim não se entenda, o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 26.º e 28.ºda Lei n.º 93/99, de 14 de Julho por não considerar os menores vítimas especialmente vulneráveis. X — A eventual falta de capacidade para compreender o significado e o alcance da faculdade de recusar o depoimento não pode ser argumento para indeferir a realização da tomada de declarações para memória futura. Xl — Esta eventual falta de capacidade sempre se verificará em qualquer fase do processo. XII — O que se impõe nesta situação é a nomeação de curador à criança/testemunha, uma vez que os legais representantes/pais são ambos arguidos. XIII — Importará de igual modo a nomeação de patrono à criança. Xl - Termos em que deve ser revogado o despacho recorrido, substituindo o por outro que determine a realização da prestação de declaração para memória futura de AA, a nomeação de curador e de patrono, assim se fazendo JUSTIÇA.» * Nesta Relação, o Exmo. Senhor Procurador-Geral adjunto emitiu parecer, no sentido da procedência do recurso.* Colhidos os vistos, cumpre apreciar e decidir.* B. FUNDAMENTAÇÃOConforme é jurisprudência assente, o âmbito do recurso delimita-se pelas conclusões extraídas pelo recorrente a partir da respetiva motivação, sem prejuízo da tomada de posição sobre todas e quaisquer questões que sejam de conhecimento oficioso e de que ainda seja possível conhecer[1]. . A questão aqui a decidir circunscreve-se a aferir se devem, ou não, ser tomadas declarações para memória futura ao filho dos arguidos AA, nascido em ../../2016. *** APRECIAÇÃO DO RECURSONo presente inquérito investigam-se factos suscetíveis de integrarem a prática, por cada um dos arguidos BB e CC, de um crime de violência doméstica, relativamente a acontecimentos ocorridos a 28 de novembro de 2023, aquando da entrega do filho de ambos, a criança AA, e outros fatos anteriores. As declarações para memória futura requeridas pelo Ministério Público e indeferidas pelo Exmo. Sr. Juiz de Instrução, são precisamente as daquele filho dos arguidos, nascido a ../../2016. É claro que, neste momento, ou seja, antes da tomada de declarações, como enfatiza o Ministério Público em ambas as instâncias, naturalmente que não se pode ter a certeza se a criança assistiu a factos integradores do crime de violência doméstica, ocorridos a 28 de novembro de 2023 ou em datas anteriores. Porém, os elementos já constantes do inquérito revelam séria probabilidade que a eles tenha assistido. E se tal se vier a confirmar, então também ela própria é considerada vítima, por ter estado exposta a contexto de violência doméstica, como o considera expressamente o artigo 67.º-A, n.º 1, al. iii), do Código de Processo Penal. Deve ainda ter-se presente, como também invoca o Ministério Público no recurso, o conceito de «vítima especialmente vulnerável» previsto tanto na Lei 112/2009, de 16 de setembro, como no artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, que engloba todas as pessoas que sofrem dano emocional ou moral, ou perda material, diretamente causada por ação ou omissão no âmbito de crime de violência doméstica, e que, por conseguinte, não inclui apenas os ofendidos diretos da prática do crime. Relativamente à tomada de declarações para memória futura à vítima de violência doméstica, regula em especial o artigo 33.º da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro (Regime Jurídico Aplicável à Prevenção da Violência Doméstica e à Proteção e Assistência às suas Vítimas), que (de forma mais ampla do que o regime geral previsto no artigo 271.º do Código de Processo Penal), estabelece um regime de exceção à regra geral de que todos os depoimentos e declarações devem ser prestados em audiência (artigo 355.º do Código de Processo Penal), prescrevendo: «1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento.». O poder conferido ao juiz neste âmbito não é arbitrário e no seu exercício deve ser tomado em linha de conta o flagelo crescente que assume este tipo de crimes, que a par da produção legislativa que tem vindo a originar, exige um particular empenho e uma atuação concertada dos órgãos de polícia criminal e das autoridades judiciárias. Acresce que, como também evidencia o Ministério Público no recurso, «quer o artigo 33.° da lei da Violência Doméstica quer os artigos 26.° e 28.° da Lei de Protecção de Testemunhas não exigem um prévio juízo de indiciação mas apenas que os factos possam integrar a prática de crime, que o depoimento seja importante para esclarecer sobre todos os factos que permitirão afirmar ou infirmar pela prática do crime e que a diligência seja mais benéfica para a testemunha do que a sua reinquirição em várias fases processuais.» E, no caso, é insofismável que a tomada de declarações à criança AA se justifica. Havendo por isso uma objetiva vantagem na sua inquirição de uma só vez, ao invés da sua (eventual) inquirição repetida, em diversas fases do processo, evitando-se situações de revitimação. Assim, estando os autos em fase de inquérito, cuja direção é legalmente atribuída ao Ministério Público – como estabelece o artigo 53.º, n.º 1, al. b) do Código de Processo Penal – tem de se reconhecer que é precisamente o Ministério Público quem saberá a melhor forma de promover a obtenção e conservação das respetivas provas indiciárias. Como já escrevemos a propósito no acórdão desta Relação de 12.08.2020, proferido no proc. n.º 12/20.8GDVCT-B.G1, da mesma relatora do presente processo[2], «o art.º 33.º da Lei n.º 112/2009 não poderá ter outra interpretação que não seja a de que a regra é o deferimento do pedido de declarações para memória futura da vítima, só tal não acontecendo quando dos autos resultarem razões relevantes que objetivamente desaconselhem essa recolha antecipada de prova”. Neste contexto, se o Ministério Público pediu a tomada de declarações para memória futura da criança AA, potencial vítima violência doméstica, mais não fez do que seguir o procedimento que deve ser normalmente adotado neste tipo de crimes – como resulta da lei e é, aliás, prática frequente, - não resultando dos autos razões relevantes que objetivamente desaconselhem essa recolha antecipada de prova. Quanto à questão da alegada eventual incapacidade do menor de compreender o significado do exercício da faculdade de recusar o depoimento, uma vez que os arguidos são os seus pais (cf. artigo 134, nº 1, al. a) e nº 2 do Código de Processo Penal), não é circunstância impeditiva da sua capacidade de testemunhar e, como tal, não pode ser argumento para indeferir a respetiva tomada de declarações para memória futura. Como se sabe, a lei processual penal só exclui, à partida, a capacidade para testemunhar aos interditos por anomalia psíquica (cf. artigo 131.º n.º 1), inexistindo qualquer impedimento ou proibição da audição de menores de idade (independentemente de os seus pais/representantes legas serem, ou não, arguidos). Pelo que a indeferir-se a tomada de declarações para memória futura com o fundamento da incapacidade de uma criança compreender o significado do exercício da faculdade de recusar o depoimento, a questão iria colocar-se novamente mais tarde, sempre que o processo prosseguisse para as fases processuais subsequentes e a criança fosse indicada como testemunha. Aliás, tal situação (a verificar-se em concreto) será facilmente suprida pelos meios legais adequados, com a nomeação de curador/patrono à criança, que por ela possa decidir pela recusa, ou não, de prestar depoimento Não poderá, pois, subsistir o despacho recorrido, procedendo o recurso. *** D. DECISÃOPelo exposto, acordam em conferência os juízes desta secção penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em conceder provimento ao recurso do Ministério Público e, consequentemente, revoga-se o despacho recorrido, determinando-se a tomada de declarações para memória futura à criança AA (nos termos requeridos pelo Ministério Público), devendo na 1ª instância serem determinadas as diligências que se entendam necessários para a sua concretização. * Sem tributação.* Guimarães, 5 de junho de 2024 (Texto integralmente elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários – artigo 94.º, n.º 2 do Código de Processo Penal –, encontrando-se assinado na primeira página, nos termos do artigo 19.º da Portaria nº 280/2013, de 26.08, revista pela Portaria nº 267/2018, de 20.09.) Fátima Furtado (Relatora) Carlos Cunha Coutinho (1º Adjunto) Armando Azevedo (2º Adjunto) [1] Cfr. artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, III, 2ª edição revista e atualizada, Editorial Verbo, 2000, pág. 335, v. [2] Disponível em www.dgsi.pt |