Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO PERES COELHO | ||
Descritores: | NULIDADE DE SENTENÇA ÁGUAS PARTICULARES INVERSÃO DE TÍTULO RENUNCIA AO DIREITO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 01/09/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 1ª SECÇÃO CÍVEL | ||
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Sumário: | I – A nulidade por condenação ultra ou extra petitum constitui um corolário do princípio do dispositivo, representando a sanção para a violação do preceituado no artigo 609, n.º 1, do Código de Processo Civil em vigor, segundo o qual “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir”. II – O direito à água nascida em prédio alheio, conforme o título da sua constituição, pode ser um direito de usar e dispor irrestritamente da água, desintegrada da propriedade superficiária e sem vinculação a qualquer prédio, e pode ser apenas o direito de a aproveitar num determinado prédio, com as limitações inerentes às necessidades deste. Estando pedido o reconhecimento do direito mais amplo (propriedade), não há violação do princípio do dispositivo se for reconhecido o mais limitado (servidão), por via da mesma forma de aquisição originária. III – Sendo necessária a realização de obras no prédio serviente com vista ao uso/conservação da água que era aproveitada equitativamente em dois prédios distintos, resultantes da divisão do prédio dominante, ambos os consortes são obrigados a contribuir na mesma proporção para as despesas das obras, só podendo eximir-se a essa obrigação se renunciarem à servidão em proveito do outro. IV – A eventual invalidade da renúncia, por inobservância da forma legalmente prevista, não impede que o respectivo beneficiário adquira, por usucapião, o direito correspondente. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães: I. RELATÓRIO: “EMP01... Unipessoal, Lda”, AA e BB, intentaram a presente acção declarativa, com processo comum, contra CC, DD e EE, pedindo, para além do reconhecimento de um direito de servidão sobre uma água de consortes, que se reconheça que a um prédio de sua propriedade, que identificam, “pertence” metade da água que nasce num prédio de terceiros (Campo da ...) e que para condução dessa água se mostra constituída, em benefício daquele seu prédio, uma servidão de aqueduto sobre um prédio dos réus, que igualmente identificam, ao qual “pertence” a outra metade da água, e bem ainda que os réus sejam condenados a repor a circulação da água, realizando as obras para tal necessárias, concedendo-se-lhes para o efeito um prazo razoável, não superior a 60 dias, e fixando-se uma sanção pecuniária compulsória não inferior a €50,00 por cada dia de atraso no cumprimento dessa obrigação, e a absterem-se de, no futuro, colocarem quaisquer entraves ou embaraços à fruição da água, igualmente sob pena de pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de montante não inferior a €50,00 por cada infracção. Citados, os réus contestaram sustentando que adquiriram, por usucapião, o direito de propriedade sobre a totalidade da água nascida no ... e pedindo, em via reconvencional, o reconhecimento desse seu direito, e, subsidiariamente, a extinção, pelo não uso, da servidão de aqueduto que onerava o seu prédio em benefício do prédio das autoras. As autoras replicaram, pugnando pela improcedência do pedido reconvencional. Dispensada a audiência prévia, foi proferido despacho saneador, meramente tabelar, no qual se admitiu o pedido reconvencional, seguido de despacho a identificar o objecto do litígio e a enunciar os temas da prova, que não mereceu qualquer reparo. Procedeu-se à realização da audiência de discussão e julgamento com observância de todo o formalismo legal e, em seguida, foi proferida sentença, julgando parcialmente procedente a acção e a reconvenção. Inconformadas, as autoras interpuseram o presente recurso, concluindo a sua alegação nos seguintes termos: I. A 09/06/2024 o Insigne Tribunal a quo proferiu douta Sentença em que julgou parcialmente improcedente o pedido das Recorrentes e procedente o pedido reconvencional dos Recorridos. II. Todavia as Recorrentes não podem conformar-se com boa parte da matéria de facto dada como provada pelo MM.º Juiz do Tribunal de 1ª Instância, uma vez que a motivação para a fundamentação dos factos foi efetuada essencialmente – exclusivamente – com base na regras da experiência, uma vez que os intervenientes diretos em boa parte dos factos faleceram há muito. III. Assim, as Recorrentes pretendem ver revogada a Decisão aqui em crise, em diversos pontos da matéria de facto dada como provada, o que resultará, como veremos, numa alteração do sentido da mesma. IV. Ora, em boa medida, a divergência existente entre o entendimento vertido na Sentença e o entendimento das Recorrentes prende-se com o facto destas entenderem que em nenhum momento ficou provado que a Sra. FF abdicou da água identificada no ponto 11) dos factos provados, e que nem ela, nem os respetivos Herdeiros, nomeadamente as aqui Recorrentes e os filhos GG e BB, tiveram conhecimento do modo como os Recorridos afetaram/destinaram em 1994, em prejuízo do prédio identificado como 333 (pertencente inicialmente a FF), a totalidade da água – que deveria ser dividida – não permitindo que corresse uma única gota para o prédio identificado em 1) dos factos provados, ficando necessariamente prejudicada a aplicação do instituto da usucapião, invocado pelos Recorridos. V. Pelo que, com base nos depoimentos/declarações produzidos em sede de audiência de discussão e julgamento, supratranscritos, deverá ser alterada/revogada a douta Sentença em determinados segmentos. VI. Assim, apresenta o facto provado 19) a seguinte redação: “FF, por intermédio dos seus caseiros, usou a água do campo da ..., destinando-a à rega e lima, até uma data não concretamente apurada, mas, no máximo, até meados da década de 80.” (com destaque nosso) VII. Ora, quanto ao segmento destacado (“mas, no máximo, até meados da década de 80.”) não podem as Recorrentes aquiescer pois não encontra qualquer sustentação na prova produzida. VIII. Na verdade, tal não tem correspondência ao alegado pelas partes nos respetivos articulados (art.º 19.º da p.i. e art.º 17 da contestação), o que nos faz avançar para a década de 90. IX. Tal resulta nomeadamente do depoimento prestado por GG, que ora se transcreve: [00:11:33] GG: O meu irmão comprou aquilo em 1992. Eu creio que ele teria demolido a caixa repartidora um ano mais tarde, mais coisa menos coisa. E a água chegou, e o meu irmão deixou escrito nesse sentido, em junho de 1994, a água voltou a cair através da canalização que ele fez. [00:12:07] Mandatário das Autoras (Dr. HH): Senhor engenheiro, então, a partir dessa data, temos como seguro, a água já não estava a chegar ao tanque da sua mãe? [00:12:17] GG: A partir dessa data, como a caixa repartidora foi demolida, a água não mais chegou ao tanque da minha mãe. X. Portanto, do depoimento de GG fica evidenciado que, para além de ser o único que tem conhecimento sobre os imóveis antes de 1992, andou mal o insigne Tribunal a quo, quando dá provada a última parte do facto aqui em crise: “até uma data não concretamente apurada, mas, no máximo, até meados da década de 80”, acrescentando, além do mais: “Pensámos até que esta data se nos afigura demasiado cautelosa.” (sic Sentença), tudo sem qualquer suporte probatório. XI. Assim, a douta Sentença deverá ser revogada neste segmento, passando a ter a seguinte redação: “19) FF, por intermédio dos seus caseiros, usou a água do campo da ..., destinando-a à rega e lima, até uma data não concretamente apurada.” XII. Quanto aos factos provados 33), 34) e 36), em específico quanto aos segmentos, respetivamente: (…) “abdicando a mãe FF de aproveitar aquela água.” (…) “abdicando do uso da água a que tinha direito pela escritura de 1956.” (…) “nunca a FF levantou qualquer objecção pelo facto da água ser aproveitada, em exclusivo, por parte dos RR.” Também não podem as Recorrentes aquiescer. XIII. Ora, para apreender o efetivamente sucedido deverá considerar-se, antes de mais, que II – marido da Ré JJ e pai dos Réus DD e EE – adquire o prédio rústico ...31 – confinante com o prédio ...33 que pertence aos Recorrentes – através de doação, tal como foi dado como provado: “23) CC, viúva e sem filhos, por escritura pública de 26/05/1992, lavrada no ... Cartório Notarial ..., a fls. 56, do livro ...9-E, doou o prédio rústico com a matriz ...31-R, que agora ao pertence aos RR., a seu sobrinho II.” (sic Sentença) XIV. Portanto, só depois da doação é que se colocou o tema da existência ou inexistência da água. XV. Ora este respeito, a Recorrida JJ apresenta a seguinte tese no seu depoimento: [00:02:09] CC: Não, não. Depois, resolvemos restaurar a casa. Quando, portanto, começámos a restaurar a casa, não é? Passado algum tempo verificámos que não havia água, que não tínhamos água para fazer as obras e isso tudo. Nessa casa, foi onde nasceu a minha sogra. Nós na altura começámos a pensar como é que havíamos de fazer, havia a hipótese de fazer um furo, portanto, de adquirirmos água para a casa. Também havia um poço, mas que no verão estava seco. Portanto, não tínhamos água também. E a minha sogra é que nos incentivou a dizer que havia uma água de mina, se nós não queríamos, portanto, quando adquirimos não tinha água nenhuma, a minha sogra incentivou-nos a nós tentarmos usar a água de mina, que era da casa, em vez de fazer o furo, portanto, para termos água na casa. E ela disponibilizou-se se nós adquiríssemos a água, usarmos a água para nós. Nós estivemos a ver, aquilo ficava muito caro, muito dinheiro, não é? Para fazermos essa obra, porque estava tudo atolado. As pessoas que nos começaram a fazer o restauro da casa, viram que não havia hipótese nenhuma, desde a mina até à casa, aquilo tinha de ser tudo restaurado, estava tudo desfeito, praticamente. Ela, como nasceu lá na casa, tinha, gostava muito que nós fizéssemos, portanto, que utilizássemos a água, que nos tempos dos pais dela, era utilizada na casa, mas que depois deixou. Portanto, aquilo esteve muitos anos abandonado e deixou de existir. E o meu marido, com ela, portanto, na altura, éramos, ele é que tratava de tudo, resolveram fazer, portanto, o restauro da mina. Portanto, isso deu imenso trabalho, porque teve que se pedir à Junta, teve que se pedir a todas as pessoas que passavam por lá, que até foi a minha sogra, na altura, que deu a ajuda nisso, porque ela como nasceu lá conhecia as pessoas dos terrenos por onde passava a água, e com os dois fizeram, realmente, conseguiram, portanto, recuperar, voltar a ter água na casa, em 1994. Portanto, em 1994, começámos a ter água da mina. Portanto, segundo a minha sogra, já não havia lá água há muito tempo, aquilo estava tudo destruído, não é? (…) [00:06:04] CC: Fala lá e por isso é que o meu marido, na altura, disse que para fazer as obras que tinha a fazer, que só com uma garantia. Portanto, que podia utilizar a água, que ia recuperar, na casa e, portanto, para a horta e assim para essas coisas. Portanto, e que não era para distribuir, porque senão que não gastava aquele dinheiro. A minha sogra também não tinha dinheiro para fazer nada e a minha sogra disse “a água é vossa”. Disse sempre “a água é vossa” e foi só nessas condições que nós aceitámos essa hipótese, porque senão tínhamos feito um furo e não tínhamos ido buscar a água que nos deu. Gastámos muito dinheiro nisso, não é? XVI. Ora, também aqui não se compreende como o insigne Tribunal a quo julgue que é plausível que II tivesse avançado com uma obra em que gastou “muito dinheiro” sem qualquer alegada garantia… que aparentemente pretendia! Ora, atento o alegado, se estava em causa “muito dinheiro” porque não foi levada a escrito a alegada vontade da Sra. FF abdicar da água? Precisamente porque não foi a vontade desta. XVII. Até porque, de acordo com os depoimentos/declarações de todos os inquiridos, não era razoável que II ou FF acordassem no tema da água sem um qualquer documento escrito ou garantia. XVIII. Neste sentido, leiam-se os depoimentos que se transcrevem: [00:24:04] Mandatário das Autoras (Dr. HH): Uma coisa é aproveitar para a casa, enfim, outra coisa é dar a água, porque se me diz que é tão importante, e já vi que o seu marido, enfim, será aquele documento, há um desenho, creio que uma planta. Ele era muito organizado. [00:24:20] CC: Sim. Muito organizado. Mas era ele que tratava de tudo. Quer se dizer, eu só... agora, isto deu-me muito trabalho, porque é assim, eu ia com ele ao fim de semana, íamos falando, mas ele é que estava dentro de tudo, ele e a minha sogra, está-me a entender? Eu ia acompanhando, mas pormenores, confiar, era ele que tratava, está a entender? [00:24:48] Mandatário das Autoras (Dr. HH): O seu marido era licenciado? [00:24:50] CC: Era engenheiro mecânico. [00:24:52] Mandatário das Autoras (Dr. HH): Olhe, o que eu lhe pergunto é estamos a falar da Sra. FF, que tinha uma escritura que está, não sei se conhece a escritura de partilha, mas aquilo está muito bem descrito. [00:25:03] CC: E está. [00:25:04] Mandatário das Autoras (Dr. HH): Está tudo muito bem descrito. E, então, passado uns anos, uma pessoa que é assim tão reta, enfim, e autónoma, como diz, e eu não coloco isso em causa. O seu marido, que me parece também uma pessoa extremamente organizada, fez uma planta, e fazem esta situação que para vocês era muitíssimo importante, era uma condição para avançarem para aquela casa, sem um documento, sem uma escritura, sem nada? [00:25:34] CC: [inaudível], porque ninguém pôs problemas. [00:25:36] Mandatário das Autoras (Dr. HH): Ninguém pôs problemas. [00:25:38] CC: Ninguém pôs problemas nessa altura. (…) [00:19:02] Mandatário das Autoras (Dr. HH): Não gostava da nora. Olhe, e vamos imaginar, conhecendo do que sabe da sua mãe, se ela tivesse, efetivamente, dado, dito ao KK, “ó KK, isto aqui, a água, isto fica para ti”? [00:19:16] AA: Teria dito. A minha mãe teria exigido, o que fazia, que ela fazia muito isso. Ela sempre que fazia alguma coisa, quando vendeu um destaque para o padre, não me lembro do nome, lá a um padre ao lado, que comprou um bocado de terreno, ela tinha um advogado, ia consultar o advogado, como é que fazia, como é que não fazia. [00:19:45] Mandatário das Autoras (Dr. HH): E o seu irmão? Daquilo que conhece, ele seria também uma pessoa, enfim, que ficaria satisfeito com um aperto de mão e está feito? Ou se tivessem, efetivamente, feito este negócio, a suposta doação da água, teria exigido ir a um advogado ou o que fosse? [00:20:06] AA: Sim, sim. Dizia assim: “não, então tem que ser, tem que pôr alguma coisa escrita”. (…) [00:08:30] Mandatário das Autoras (Dr. HH): E o que eu lhe pergunto é: daquilo que conhece a D. FF, ela era uma pessoa, enfim, de alguma forma, autónoma, que tinha conhecimentos sobre o que é uma escritura, como é que se fazem as coisas? Que tipo de pessoa é que era? Isto é, se ela quisesse fazer algum negócio, ela, enfim, seria um apertozinho de mão? Seria uma coisa de boca? Como é que nos podia descrever? [00:08:54] LL: Nunca. A D. FF era uma pessoa, primeiro, sabia bem aquilo que queria fazer. Depois, há uma coisa que ela, regra geral, fazia. Até uma simples padaria, que ela tinha integrada na casa, onde tinha de se fazer um contrato de exploração lá com uma pessoa da aldeia, ela sempre, antes de fazer o que quer que seja, ia ao advogado. Sempre. Ia a um advogado. Em ..., era o Dr. MM, que eu conheço bem. Sou da zona de .... De Braga, já não sei quem era, porque ela tinha dois advogados. E, por isso, ela sabia muito bem como, digamos, queria segurança nas coisas. Qualquer negócio, ela queria segurança nas coisas. [00:09:42] Mandatário das Autoras (Dr. HH): Olhe, e seguindo também o mesmo raciocínio, mas desta feita, em relação ao Sr. KK. Tinha, enfim, conhecia-o melhor? Ele também, como é que ele seria? Admitindo que ele tivesse feito, enfim, que fosse assim tão importante, ele quisesse garantir que a água fosse para ele, do que conhece dele, ele ficaria satisfeito com uma palavra da D. FF? [00:10:13] LL: Não. [00:10:15] Mandatário das Autoras (Dr. HH): Porque é que diz isso? [00:10:17] LL: O KK era muito rigoroso, era muito cuidadoso. E procurava sempre, e neste caso, obviamente, porque tinha muitos irmãos, na eventualidade da mãe ir à frente, até para salvaguarda dele. Ele quereria, penso eu, quase de certeza, ter um documento comprovativo de que aquilo tinha sido uma oferta. XIX. Considerando o supra exposto, resultará das regras da experiência que – contrariamente ao referido no Aresto recorrido – caso fosse verdade que a FF tivesse abdicado ou não tivesse levantado qualquer objeção, haveria, com certeza, prova inequívoca, nomeadamente, documental. Pois como se defenderia II se o prédio ...33 fosse alienado por FF? XX. A explicação mais razoável e plausível, à luz das regras da experiência, é, na realidade a das Recorrentes: o II reconstruiu a mina e tubagem para os terrenos, tal como reconstruiu a casa que lhe foi doada, porque tinha já direito a metade da água e tinha expetativa, como todos tinham até há bem pouco tempo (2021), de ser ele (neste caso representado pelos seus filhos aqui RR.) a herdar/adquirir o terreno contíguo, pertencente na altura à mãe FF, que tem direito à outra metade da água. XXI. Até porque o próprio perito referiu que a água seria suficiente para ambos os terrenos: [00:00:57] Mandatário das Autoras (Dr. HH): Seria, enfim, exequível ela ser utilizada a dois tanques? [00:01:04] NN: Ser dividida? Sim, provavelmente que sim. [00:01:07] Mandatário das Autoras (Dr. HH): O fluxo parecia com aquela... [00:01:09] NN: Sim, o caudal é bom. [00:01:13] Mandatário das Autoras (Dr. HH): É bom? [00:01:12] NN: É bom. XXII. A tudo se somam as explicações apresentadas por GG, AA e LL, vertidas nas transcrições acima referenciadas em que estes interpretam de forma coerente e plausível o sucedido. XXIII. E os depoimentos daqueles acabam por corresponder ao que os próprios Réus referem nos seus depoimentos, que confirmam que, goradas as hipóteses de acordo na partilha, a questão da água da nascente sub judice passou logo ser considerada com um problema a resolver. XXIV. Tal verifica-se no depoimento do Réu DD: [00:07:54] Meritíssimo Juiz: Já agora, o senhor esteve presente nas reuniões que houve a propósito das partilhas? [00:08:03] DD: Sim. Sou parte interessada. [00:08:06] Meritíssimo Juiz: Pronto. E não foi discutido nada sobre águas, nessa altura? O seu tio GG não... [00:08:14] DD: Discutiu-se muitas vezes várias coisas. A única vez que se abordou o tema das águas foi numa última reunião que nós fizemos, quando as coisas chegaram a tal ponto que já não conseguíamos reunir, na última reunião, o meu tio OO já estava de pé, para ir embora, e a minha tia PP ainda disse assim “ah, depois ainda há de se ver a questão das águas”. Isso foi na última reunião que foi falado. E a minha irmã fazia atas de todas as reuniões. Somos pessoas metódicas. Estava tudo, e nunca foi falado nas várias reuniões que tivemos. E tivemos muitas reuniões. E abordámos muitos assuntos. XXV. Bem como se a Recorrida EE: [00:02:48] EE: Não. Em todas as reuniões nunca se falou da água, até à última em que se fez, em que o meu tio, de facto, se levantou para abandonar a reunião. [00:02:56] Mandatário dos Réus (Dr. QQ): E porque é que ele se levantou para abandonar a reunião, porquê? [00:02:59] EE: Por não haver consenso nos quinhões. [00:03:02] Mandatário dos Réus (Dr. QQ): Ah, não havia consenso nos quinhões. [00:03:04] EE: Pronto. E aí a minha tia PP disse, assim ela resolveu falar, “ainda se há de ver a questão das águas”. [00:03:13] Mandatário dos Réus (Dr. QQ): Pronto. E ainda se há de ver a questão da água. E isso, vocês tomaram isso como? [00:03:20] EE: A reunião acabou aí. Já tinha acabado e acabou aí. Por isso, nunca mais voltámos a falar. XXVI. Acresce que o insigne Tribunal a quo atribui uma excecional relevância às “opiniões” – pois não passam disso mesmo – dos trabalhadores que alegam ter estado na reconstrução da casa dos Recorridos. XXVII. Até porque, na contestação apresentada pelos Recorridos, não existe qualquer referência ao acompanhamento da FF de quaisquer obras; nem se percebe o impacto na Decisão do facto de RR “pensar que o falecido não estava a agir sobre o que era seu” pois, na verdade, metade da água era efetivamente sua! Qual a estranheza ou relevo? XXVIII. E se realmente a Sra. FF acompanhou efetivamente a obra – que segundo os Recorridos não pagou -, não seria mais razoável, à luz das regras da experiência, que tivesse acompanhado a obra porque tinha efetivo interesse de a construção ficasse bem feita para continuar a poder beneficiar o respetivo prédio? Naturalmente que sim. E, não obstante afirmarem os Recorridos que ela acompanhava as obras – o que não se aceita – tal não significa que tivesse havido por parte dela a aceitação que o prédio dela deixaria de poder beneficiar da água. Recorde-se que o tanque dos Recorridos, no exterior, continuava a ter água que poderia passar para o terreno da FF. XXIX. Acresce que, quanto ao segmento do facto provado 34) A falecida FF incentivou o filho II a comprar a casa e o Campo ... à irmã CC”, apenas resulta do art.º 15 da contestação e não existe qualquer elemento probatório que o sustente, sendo aliás contraditório com o facto provado 23) da Sentença: o terreno 331 foi doado e não comprado e só depois da doação é que verificaram que não haveria água. XXX. Atento o exposto, a douta Sentença deverá ser revogada o facto provado 33) a ter a seguinte redação:“33) Procedeu, outrossim, à recuperação da casa do ... que é a verba 1 da citada escritura de 1956 e à limpeza e recuperação da mina (com a configuração constante do documento n.º 1 junto a ../../2024) que abastece o tanque do Campo ..., de tal modo que, em 10.06.1994, a água do Campo da ... voltou a cair no Campo ..., hoje dos RR., na sua totalidade.”, passando ainda o facto provado 34) para os não provados. XXXI. De igual modo, pela mesma fundamentação supra descrita, é inequívoco que o facto provado 36) também deve passar para os factos não provados. XXXII. Se realmente FF tivesse abdicado do que quer que fosse, nomeadamente da metade da água que pertencia ao respetivo terreno, realmente, à luz das regras da experiência, tal seria expressamente documentado ou referido nas diversas reuniões familiares. XXXIII. Quanto aos factos provados 35), 37), 44), 45), 46), e 47), para a respetiva alteração/revogação, deveremos começar por considerar novamente os argumentos já expendidos antes, que por simples economia processual não repetem, podendo ser efetuada uma análise conjunta da prova, atenta a relação direta entre os mesmos, que justifica uma resposta diferente da vertida na douta Sentença. XXXIV. Antes de mais atente-se que o facto provado 35) está relacionado ao facto 34), cuja alteração para os factos não provados foi já peticionada. Assim, caso seja procedente, como se pretende, e o facto provado 34) passe para os factos não provados da Sentença, o facto provado 35), ficará já prejudicado e deverá passar, consequentemente para os factos não provados. XXXV. O Tribunal a quo parte do pressuposto de que se a Recorrente ou os restantes intervenientes visitaram a casa dos Recorridos, então têm conhecimento de absolutamente tudo o que lá se passa, nomeadamente o que sucedia nas canalizações da água existente naquele prédio. Tal resulta absolutamente implausível. XXXVI. Como se facilmente se apreende, considerando o teor dos factos provados em questão, 34) e 35), o facto da Autora visitar a casa dos Recorridos não significa que tenha tido conhecimento de que a água estivesse a ser utilizada totalmente por estes ou que a mãe FF tivesse abdicado do que quer que fosse, ou que não fosse possível, como é, reconduzir a água novamente para o prédio ...33. Como pode ser credível que, numa qualquer visita o irmão II tenha comunicado à irmã: “Olha a mãe deu-me, em detrimento dos restantes irmãos, a totalidade da água que vem da nascente. Isto é tudo meu! E se algum dos outros herdar o terreno 333, vocês não terão direito a absolutamente água nenhuma!!!???” XXXVII. Recorde-se que o prédio ...31 tinha já direito a metade da água pelo que nem a existência da mesma poderia causa estranheza a quem quer que fosse; até porque os prédios ...31 e ...33 estavam a ser fabricados, desde há muitas décadas, pelo mesmo caseiro, da maneira que lhe aprouvesse, a título gratuito. XXXVIII. Nomeadamente GG só teve conhecimento de que não corria água no prédio ...33 após a morte de sua mãe FF e em relação à herdeira BB – interveniente principal –, nada é alegado. XXXIX. Além de que, os pontos 35) e 37) dos factos provados são até contraditórios em relação ao putativo momento em que GG teria tido conhecimento do alegado curso da água… afinal GG inteirou-se do estado dos terrenos após o falecimento da mãe FF e passa a ter conhecimento do sucedido antes dessa data? Cerca de 15 anos antes? XL. A verdade é que os AA. não tinham conhecimento desse facto, nem se preocuparam com o facto de a água não cair no tanque do prédio ...33, tal como sucedeu com a Sra. FF, porque era o mesmo caseiro que fabricava ambos os prédios, não havia necessidade da água correr especificamente para o tanque sito no prédio ...33, e, a final, a preocupação era ainda menor, porque era expectável que os RR. adjudicassem, em partilhas, referido prédio, por ser contíguo àquele que são já proprietários. XLI. Veja-se que o facto de haver ou não caixa repartidora, visível ou não, não significa que não pudesse haver outro mecanismo que levasse metade da água até ao tanque existente no prédio ...33. Aliás, segundo KK, a água poderá voltar a correr no tanque existente no prédio ...33, caso seja alterado o mecanismo que descreveu em julgamento, tal como antes transcrito. XLII. É paradigmático o, salvo devido respeito que é muito, erro de julgamento quando é referido na douta Sentença: “Coligidos estes elementos objectivos, a versão trazida pelos réus afigura-se, à luz das regras da experiência, bastante plausível. Aliás, não se vislumbra como o falecido marido e pai dos réus tenha realizado esta empreitada senão na posição de dono da água em exclusivo. Afinal, o dinheiro investido por este seria para depois beneficiar outros?” Estranha a Tribunal a quo que o falecido marido e pai dos réus realize uma obra quando dela vai beneficiar diretamente pois era já proprietário de 50% da água! XLIII. Mas não estranha o insigne Tribunal que a Sra. FF, com poucos recursos, doasse ou desse a água a que tinha direito sem receber rigorosamente nada, nem passasse a escrito tal situação! Não se percebe a motivação do Tribunal que trata de forma absolutamente distinta a avaliação que faz da prova! XLIV. Para o Tribunal de 1ª Instância, II não pode, ao favorecer-se a si próprio, beneficiar terceiros! Mas FF sim, abrindo esta mão da água sem qualquer contrapartida, pode beneficiar os Recorridos em detrimento de si própria e dos restantes herdeiros! XLV. Em conclusão, deverá ser revogada a douta Sentença e deverão ser julgados não provados os seguintes factos: “35) Esta situação foi conhecida durante a década de 90 pela autora AA, e foi conhecida por GG, pelo menos, em 2009. (…) 44) E faz sem oposição de ninguém, designadamente da mãe FF que assistiu a todo o aproveitamento que vem de se referenciar e com a sua aprovação e, após a morte desta, sem oposição dos AA., até à carta enviada aos RR. em 2021. 45) De forma pacífica e à vista de toda a gente. (…) 46) E na convicção de exercerem um direito e domínio pleno sobre a água do Campo da ....” XLVI. Já quanto aos factos provados 37) e 47), deverão passar a ter a seguinte redação: 37) A água sempre correu desde Junho de 1994 em exclusividade para o tanque no prédio dos RR. (…) 47) Com a morte do II ocorrida em 1998, sucederam-lhe a viúva JJ e os filhos DD e EE, que sempre utilizaram a água como o pai e marido fazia.” (sic Sentença) XLVII. Alterada a matéria de facto dada como provada, resulta inequívoco que a aplicação do direito deverá ser distinta, devendo ser, antes de mais, o pedido reconvencional. XLVIII. Não se verificam assim os requisitos invocados para a usucapião invocada pelos Recorridos, pois não existiu qualquer inversão do título da posse, nem a mesmo foi pública, antes sim oculta. XLIX. Na verdade, as servidões não aparentes não podem ser constituídas por usucapião – art.ºs 1293.º e 1548.º do Cód. Civil. Por não haver nestas servidões sinais visíveis e permanentes, elas podem estar a ser exercidas na ignorância do dono do prédio serviente e tal ignorância obsta à usucapião. L. Conforme supra exposto, II não realizou qualquer trabalho que revelasse a recondução da totalidade da água ao seu prédio, que fosse externamente visível, tendo em vista a recondução da totalidade da água à moradia e tanque dos RR., com exclusão do prédio ...33. LI. De todo modo, entre junho de 1994, momento considerado para na Sentença recorrida para identificar o momento em que a II terá passado a utilizar em exclusivo a água, e o falecimento de FF, ../../2009, não decorreram 15 anos. Pelo que nunca os Recorridos poderão ter adquirido um direito de servidão sobre a totalidade da água que nasce no Campo da .... LII. Até porque, caso assim não se entendesse, tal direito nunca poderia ser reconhecido nos presentes autos porque o pedido reconvencional dos Recorridos é o seguinte: “Termos em que e nos mais, de direito, aplicáveis, deve a presente acção ser julgada improcedente, por não provada, e procedente, por provado, o pedido reconvencional, declarando-se que os RR. reconvintes são proprietários e legítimos possuidores da água que nasce no Campo da ... e que aflui ao tanque no Campo ... dos RR. é propriedade exclusiva destes, porque adquirida pela prescrição aquisitiva de usucapião;” (sic contestação) (com destaque nosso) LIII. Ora, como bem refere o Aresto recorrido: “Todavia, ao contrário do alegado pelos réus, não adquiriram o direito de propriedade da água da ....” Para decidir, a final: “c) Declarar que, a favor do prédio mencionado no ponto 2 dos factos provados, está constituído um direito de servidão sobre a totalidade da água que nasce no Campo da ... e que aflui ao tanque no Campo ... dos réus;” (sic Sentença) LIV. Todavia, tal como aparentemente explicam os trabalhadores que fizeram a restauração da casa, a água que aflui ao Campo ..., ... são apenas “sobras”, pois a água foi abusivamente reconduzida para a casa – e quanto a esta água nada é pedido pelos Recorridos. LV. Portanto, por estas duas ordens de razão, o pedido e Decisão são diversos sendo assim a Sentença nula, nos termos do art.º 615.º, nº 1, al. e), do Código de Processo Civil, devendo, em qualquer dos casos, o pedido reconvencional dos Recorridos ser julgado improcedente, também por não ter sido provado. LVI. Concluindo-se assim que deverá ordenar-se a manutenção e utilização da água nos termos definidos na escritura de partilha de 1956. LVII. Devendo os Recorridos condenados a: A) Reconhecerem que ao prédio ...33 pertence metade da água que nasce no Campo da ..., nos termos da escritura de 1956; c) reconhecerem os Recorridos que a onerar o prédio destes está constituída servidão de aqueduto com vista a captar a água do Campo da ..., encaminhá-la e conduzi-la, através do canal subterrâneo existente no mesmo prédio, para o prédio dos AA.; D. serem condenados solidariamente os Réus a repor no prédio dos AA. metade da água que nasce no Campo da ..., mediante reparação e reativação da caixa repartidora e canalização subterrânea, que em tempos existiu no prédio, nos termos da escritura de 1956, e a efetuarem todas as obras necessárias, suportando todos os custos com materiais e mão de obra, concedendo-lhe prazo para o efeito não superior a 60 dias e estabelecendo-se uma sanção pecuniária compulsória de montante não inferior a € 50,00 por cada dia de atraso na reposição da água; F) Condenarem-se os Réus a absterem-se no futuro, de impedirem ou colocarem quaisquer entraves ou embaraços à fruição da água do campo da ... e da água dos consortes, em benefício do prédio dos AA., sob pena do pagamento de uma sanção pecuniária compulsória de montante não inferior a € 50,00, por cada dia de não cumprimento de tal obrigação. LVIII. A Sentença recorrida violou, além do mais, as normas citadas e avaliação da prova produzida, pelo que deverá nessa medida ser revogada nos termos e pelos fundamentos alegados. Os réus apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso. Colhidos os vistos legais, cumpre decidir. * II. DELIMITAÇÃO DO OBJECTO DO RECURSO: O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente, ressalvadas as questões que sejam do conhecimento oficioso do tribunal (artigos 635º, n.º 4 e 639º, n.º 1 do NCPC). No caso vertente, as questões a decidir que ressaltam das conclusões recursórias são as seguintes: - Se houve erro na apreciação da prova e na subsunção jurídica dos factos, sendo este consequência daquele; - Se a sentença recorrida enferma da nulidade prevista no artigo 615º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil, porque o Senhor Juiz a quo condenou as AA/Reconvindas em objecto diverso do pedido formulado em via reconvencional. * III. FUNDAMENTOS:Os factos Na primeira instância foi dada como provada a seguinte factualidade: 1) O prédio rústico descrito na ... Conservatória de Registo Predial ..., sob o número ...03 e inscrito na matriz predial rústica da União das Freguesias ... (...) sob o número ...33, integra a herança de FF, da qual os AA., conjuntamente com BB e os 2º e 3º RR., são os únicos herdeiros. 2) Os RR. são proprietários do prédio rústico descrito na ... Conservatória de Registo Predial ..., sob o número ...22 e inscrito na matriz predial rústica da União das Freguesias ... (...) sob o número ...31. 3) Estes prédios são entre si confinantes. 4) Em ../../1951, faleceu SS e, em ../../1953, faleceu CC, viúva daquele. 5) Sucederam-lhe os seus 7 filhos, entre os quais, as irmãs CC e FF. 6) FF, entretanto falecida, é mãe da A. AA e avó dos 2º e 3º RR. 7) Por escritura pública de 27/01/1956, na Cartório do Notário TT, na cidade ..., procedeu-se à partilha por óbito de SS e CC. 8) Em tal partilha, outorgaram como interessadas as acima referenciadas CC e FF. 9) Em resultado desta partilha, foi adjudicado a CC, entre outras verbas, a verba n.º 2, prédio designado por “Campo ...”, de lavradio e ..., sito no lugar ..., da freguesia ..., com quatro dias de água de segunda a quarta-feira, a utilizar segundo usos e costumes, descrito na Conservatória do Registo Predial ... no livro B=setenta a folhas ..., sob o número ..., e inscrito na matriz rústica sob o artigo quatrocentos e quarenta e quatro, ou seja, o prédio identificado no ponto 2. 10) Pela mesma escritura, foram adjudicados à interessada FF: A verba n.º 3, prédio também denominado “Campo ...”, de lavradio e ..., sito no lugar ..., freguesia ..., com três dias de água, às sextas, sábados e domingos, a utilizar segundo os usos e costumes, descrito na Conservatória do Registo Predial ..., no livro B=setenta, a folhas ..., sob o número ..., e inscrito na matriz rústica sob ...10 o artigo quatrocentos quarenta e cinco; A verba n.º 9 do inventário, prédio rústico outrora prédio misto, terra de lavradio no lugar ..., freguesia ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... no livro B=quarenta e sete a folhas oitenta e quatro, sob o número ... e inscrito na matriz sob o artigo .... 11) Pela referida escritura, ficou a pertencer ao prédio adjudicado a FF, supra mencionado como verba n.º 3, metade da água com nascente no Campo da .... 12) O prédio adjudicado a CC foi onerado com servidão de aqueduto a favor do prédio adjudicado a FF, para colocação de canalização destinada à condução de tal água. 13) Ficou a constar da própria escritura que seria construído um tanque no prédio adjudicado a FF, no prazo de um ano, e que os respectivos custos seriam suportados em partes iguais por CC e FF, assim como os custos da canalização destinada à condução da água. 14) No decurso do ano que sucedeu à escritura, foi efectivamente construído um tanque no prédio adjudicado a FF, cujos custos foram suportados em partes iguais por CC e FF. 15) A água com nascente no Campo da ..., que aquela data já era reconduzida na sua totalidade a um tanque existente no prédio adjudicado a CC, passou a ser distribuída em tal prédio em duas metades iguais, mediante construção e activação de uma caixa repartidora. 16) Foi instalada canalização subterrânea de alimentação ao tanque construído no prédio de FF. 17) Assim, por via da referida canalização, metade da água do Campo da ... passou a ser conduzida ao tanque construído no prédio de FF. 18) A água do Campo da ... foi activada no tanque de FF ainda no ano de 1956. 19) FF, por intermédio dos seus caseiros, usou a água do campo da ..., destinando-a à rega e lima, até uma data não concretamente apurada, mas, no máximo, até meados da década de 80. 20) Usando, com igual finalidade, até uma data não concretamente apurada, mas sempre antes de 2000, a água de rega e lima do Ribeiro ..., às sextas, sábados e domingos. 21) FF, teve 4 filhos: GG e AA – esta última aqui A. e GG legal representante da também aqui A. “UU”; BB – aqui interveniente principal. 22) II, entretanto falecido, que foi casado com a R. CC e que teve dois filhos, os aqui RR. DD e EE. 23) CC, viúva e sem filhos, por escritura pública de 26/05/1992, lavrada no ... Cartório Notarial ..., a fls. 56, do livro ...9-E, doou o prédio rústico com a matriz ...31-R, que agora pertence aos RR., a seu sobrinho II. 24) II faleceu no dia ../../1998, sucedendo-lhe a viúva CC e os seus filhos DD e EE, todos, aqui, RR. 25) Por sua vez, FF faleceu em ../../2009, no estado de viúva, sucedendo-lhe os seus filhos CC, GG, AA. 26) E os netos DD e EE, em direito de representação do pai II, pré-falecido. 27) Em 26/10/2018, o quinhão hereditário de GG foi adjudicado à 1.ª A. “EMP02...”. 28) Os AA., por correio registado, no dia 26-3-2021, interpelaram os RR. à reposição da água do Campo da ... e, bem assim, à reposição da água dos consortes no prédio dominante, nos termos da escritura de 1956. 29) O prédio descrito na escritura de partilha de 27/01/1956 como verba nº 3 e o prédio descrito no ponto 1 coincidem, dado que o artigo 333 surgiu aquando da reorganização das freguesias – para União de Freguesias ... e ... -, que teve origem no anterior 185, da freguesia ..., resultando este da junção, efectuada pela Autoridade Tributária, em 1985, dos artigos 445 e 386. 30) Em Maio de 1992, aquando da doação do Campo ... ao sobrinho II, o prédio era um monte de vegetação bravia. 31) Anos antes da doação ao II, a água deixou de correr no tanque dos RR. e tanque no prédio da herança. 32) Com a assinalada aquisição em 1992, o sobrinho II procedeu à limpeza de ambos os prédios com o incentivo da mãe FF. 33) Procedeu, outrossim, à recuperação da casa do ... que é a verba 1 da citada escritura de 1956 e à limpeza e recuperação da mina (com a configuração constante do documento n.º 1 junto a ../../2024) que abastece o tanque do Campo ..., de tal modo que, em 10.06.1994, a água do Campo da ... voltou a cair no Campo ..., hoje dos RR., na sua totalidade, abdicando a mãe FF de aproveitar aquela água. 34) A falecida FF incentivou o filho II a comprar a casa e o Campo ... à irmã CC e que, com as reabilitações efectuadas, aproveitasse a água da ... na sua totalidade no tanque de que era dono, abdicando do uso da água a que tinha direito pela escritura de 1956. 35) Esta situação foi conhecida durante a década de 90 pela autora AA, e foi conhecida por GG, pelo menos, em 2009. 36) Durante os anos que se seguiram, até à morte da FF ocorrida em 2009, nunca a FF levantou qualquer objecção pelo facto da água ser aproveitada, em exclusivo, por parte dos RR. 37) A água sempre correu desde Junho de 1994 em exclusividade para o tanque no prédio dos RR., por vontade do II e da FF, o que é do conhecimento dos AA. 38) Ambos os prédios são banhados, a poente, pelo Ribeiro ..., cujo leito sofreu alterações em razão da falta de limpeza. 39) O que então chegou a ser um prado, é hoje um charco porquanto a água do VV fica represada. 40) Sendo o prado à data da escritura regado e limado (água de rega e lima) há dezenas de anos não tem sido aproveitada por nenhum dos interessados. 41) A partir de Junho de 1994, o II com a limpeza e recuperação da mina, passou a aproveitar em exclusivo a água do campo da ... para o tanque no seu prédio, hoje dos RR., e daí abastecendo a casa reabilitada que é composta por casa de habitação, torre, varandão, eira e coberto. 42) E é com a água do Campo da ... que enche o tanque interior e a piscina bem como lava os espaços com todos os gastos inerentes. 43) Talqualmente na rega das árvores de fruto que possui no Campo ... ao redor do tanque e nas curiosidades que ali cultivam, como batata, cebola, ervilhas, pencas, tirando todo o proveito da água da .... 44) E faz sem oposição de ninguém, designadamente da mãe FF que assistiu a todo o aproveitamento que vem de se referenciar e com a sua aprovação e, após a morte desta, sem oposição dos AA., até à carta enviada aos RR. em 2021. 45) De forma pacífica e à vista de toda a gente. 46) E na convicção de exercerem um direito e domínio pleno sobre a água do Campo da .... 47) Com a morte do II ocorrida em 1998, sucederam-lhe a viúva JJ e os filhos DD e EE, que sempre utilizaram a água como o pai e marido fazia, na convicção de que exercem um direito próprio e exclusivo. Inversamente, foi dado como não provado o seguinte circunstancialismo fáctico: a) No decurso de tal acção de demarcação 6059/17.... e mediante inspecção judicial ao local, foi possível aos AA. constatar que a metade da água com nascente no Campo da ..., pertencente ao prédio ...33, continuava a ser direccionada ao prédio dos RR. (331), com elevado caudal, 24 horas por dia, ininterruptamente, sem porém ser encaminhada ao prédio ...33. b) Verificou-se, em concreto, que a caixa repartidora que em tempos existiu no prédio ...31 tinha sido completamente removida e que a canalização subterrânea de servidão ao prédio ...33 se encontrava parcialmente destruída. c) Do mesmo modo, constatou-se que tinha sido modificado o percurso do leito da água dos consortes e que tal água tinha sido desviada para o prédio dos RR., onde foi construída uma “charca” para uso exclusivo de tal prédio. d) Ao longo dos últimos anos, os RR. têm fruído, em proveito próprio, da totalidade de toda a água dos consortes. e) A água do Campo da ... proveniente da dita caixa repartidora caiu no prédio de FF até ao ano 1994/95. f) Desde 2000, o caseiro procede à rega de ambos os prédios com a água que abastece o tanque dos RR., proveniente do Campo da ..., como se de um só prédio se tratasse. g) Ou seja, do tanque existente no prédio dos RR., as águas são aproveitadas, sem qualquer limitação ou restrição, para rega de lima de ambos os prédios. h) O leito Ribeiro ... sofreu alterações por a falecida FF ter autorizado a descarga de terra e todo o tipo de entulho no prédio de que era dona junto à estrada e ao VV. * O direitoSustentam as recorrentes que houve erro na apreciação da prova e na subsunção jurídica dos factos, sendo este consequência daquele, e bem assim que a sentença recorrida é nula, por ter condenado em objecto diverso do pedido formulado em via reconvencional. Uma vez que os vícios formais da sentença precedem, logicamente, os vícios substanciais, já que aqueles decorrem de um “erro de actividade” e estes de um “erro de julgamento”[1], inverteremos a ordem pela qual as questões foram colocadas e, em consequência, conheceremos primeiro da invocada nulidade por condenação ultra ou extra petitum, prevista no artigo 615º, n.º 1, alínea e), do Código de Processo Civil. Dispõe esse normativo que “É nula a sentença quando: (…) e) o juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido”. Como ensinava o Professor Alberto dos Reis[2], a nulidade por condenação ilegal “representa a sanção do preceito formulado no n.º 1 do art.º 661º”, equivalente ao n.º 1 do artigo 609º do Código de Processo Civil em vigor, segundo o qual “A sentença não pode condenar em quantidade superior ou em objeto diverso do que se pedir”, explicitando que “aos limites da actividade de conhecimento (…) acrescem os limites do poder de condenação (…). O juiz não pode conhecer, em regra, senão das questões suscitadas pelas partes; na decisão que proferir sobre essas questões, não pode ultrapassar, nem em quantidade, nem em qualidade, os limites constantes do pedido formulado pelas partes”. Ainda sobre este vício, pode ler-se no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 19/06/2019 (proc. n.º 22392/16.0T8PRT.P1.S1), relatado por Oliveira Abreu e disponível, tal como os demais adiante citados, no endereço www.dgsi.pt, que o mesmo “colhe o seu fundamento no princípio dispositivo que atribui às partes a iniciativa e o impulso processual, e no princípio do contraditório, segundo o qual o Tribunal não pode resolver o conflito de interesses que a demanda pressupõe sem que a resolução lhe seja pedida por uma das partes e a outra seja chamada para se opor”. No caso que nos ocupa, a impetrada nulidade da sentença radicaria na circunstância de ter sido reconhecido um direito de servidão constituído em benefício do prédio dos réus, denominado “Campo ...”, sobre a totalidade da água que nasce no “Campo da ...”, quando aqueles tinham pedido o reconhecimento do direito de propriedade sobre essa mesma água. No despacho proferido ao abrigo do disposto n.º 1 do artigo 617º do Código de Processo Civil, omitido aquando da admissão do recurso e que exarou após a baixa dos autos para esse efeito, o julgador da 1ª instância indeferiu a arguição da nulidade, argumentando que os réus “incorreram numa errada qualificação jurídica (…), peticionando algo mais do que o seu direito” e que “o tribunal não pode condenar ultra ou extra petitum (…) mas pode condenar em menos, quantitativamente ou qualitativamente”. Vejamos. Nas autorizadas palavras de Pires de Lima e Antunes Varela[3], “O direito à água nascida em prédio alheio, conforme o título da sua constituição, pode ser um direito ao uso pleno da água, sem qualquer limitação, e pode ser apenas o direito de a aproveitar noutro prédio, com as limitações inerentes, por conseguinte, às necessidades deste”, acrescentando que “No primeiro caso, a figura constituída é a da propriedade da água; no segundo, é a da servidão”. No mesmo sentido, acentuando o diferente conteúdo e extensão dos dois indicados direitos reais, Mário Tavarela Lobo[4] sustenta que “Se o terceiro adquirente pode fruir ou dispor livremente da água, nascida em prédio alheio e desintegrada da propriedade superficiária, aliená-la ou captá-la subterraneamente, usá-la neste ou naquele prédio, para este ou aquele fim, constituiu-se um direito de propriedade”. Inversamente, “Constituir-se-á um direito de servidão se o aproveitamento de uma nascente existente num prédio (serviente) é concedido a terceiro em benefício de um seu prédio (dominante) e para as necessidades deste”. Noutra formulação, agora extraída da jurisprudência, concretamente do acórdão desta Relação de 12/10/2017 (proc. n.º 912/14.4TJVNF.G1), relatado por Eva Almeida, sintetizou-se, com inegável clareza, que “Juridicamente e no tocante a águas podem configurar-se as seguintes situações: - Se o titular do direito à água puder captá-la num prédio e dela dispor livremente, alineando-a ou usando-a, sem subordinação ou vínculo de utilização exclusiva num prédio determinado, seu ou alheio, existirá um amplo direito de propriedade sobre a água; - Se o direito à água estiver limitado ao seu uso em determinado prédio ou prédios, estaremos perante um mais limitado direito de servidão”. De qualquer modo, ambos podem constituir-se por usucapião, desde que esta seja “acompanhada de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio” (artigo 1390º, números 1 e 2, do Código Civil). Assim delimitado o conteúdo e a extensão dos dois ajuizados direitos, afigura-se-nos, na esteira do decidido pela 1ª instância, que, estando pedido o reconhecimento do mais amplo, adquirido por usucapião, não há violação do princípio do dispositivo se for reconhecido o mais limitado, por via da mesma forma de aquisição originária. De resto, como lucidamente se ponderou no acórdão desta Relação de 29/10/2020 (proc. n.º 413/19.4T8CHV.G1), relatado por Ana Cristina Duarte, citando Abrantes Geraldes e outros[5], “a prática judiciária revelou situações cuja resolução implicou alguma atenuação da rigidez” da regra em causa, “admitindo-se, designadamente, a reconfiguração jurídica do específico efeito peticionado pelo autor (Acórdão do STJ de 07/04/2016, aí citado: “é lícito ao tribunal, através de uma requalificação ou reconfiguração normativa do pedido, atribuir ao autor, por uma via jurídica não coincidente com a que estava subjacente à pretensão material deduzida, o bem jurídico que ele pretendia obter)”. Cumpre ainda salientar que o que os réus verdadeiramente pretendem é que se reconheça que, acrescendo à metade da água que afluía ao seu prédio, proveniente da nascente situada no “Campo da ...”, adquiriram por usucapião o direito ao aproveitamento da outra metade da água da mesma nascente que ficou a “pertencer” ao prédio adjudicado a FF[6] (e que integra a herança aberta por óbito desta) na escritura pública de partilha outorgada em ../../1956. Trata-se, portanto, do mesmo direito, pacificamente reconhecido como sendo de servidão (artigos 5º, 7º e 20º da contestação), que se encontrava estabelecido em benefício do prédio, denominado “...”, de cuja divisão/desmembramento resultaram aqueles dois prédios. Improcede, pois, a invocada nulidade. Prosseguindo. Sustentam as recorrentes que se mostra mal julgada a matéria vertida nos pontos 19, 33, 34, 35, 36, 37, 44, 45, 46 e 47 do elenco dos factos provados, devendo transitar para o elenco dos factos não provados a vertida nos pontos 34, 35, 36, 44, 45 e 46 e alterar-se a redacção dos restantes, nos seguintes termos: - Ponto 19: “FF, por intermédio dos seus caseiros, usou a água do Campo da ..., destinando-a à rega e lima, até uma data não concretamente apurada”; - Ponto 33: “Procedeu, outrossim, à recuperação da casa do ... que é a verba n.º 1 da citada escritura de 1956 e à limpeza e recuperação da mina (com a configuração constante do documento n.º 1 junto a ../../2024) que abastece o tanque do Campo ..., de tal modo que, em 10.06.1994, a água do Campo da ... voltou a cair no Campo ..., hoje dos RR, na sua totalidade” - Ponto 37: “A água sempre correu desde Junho de 1994 em exclusividade para o tanque no prédio dos RR”; - Ponto 47: “Com a morte do II ocorrida em 1998, sucederam-lhe a viúva JJ e os filhos DD e EE, que sempre utilizaram a água como o pai e marido fazia”. A impugnação da decisão sobre a matéria de facto é admitida pelo artigo 640º, n.º 1 do Código de Processo Civil, segundo o qual o recorrente deve obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição, os pontos de facto que considera incorrectamente julgados, os concretos meios de prova, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão diversa e a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre essas questões de facto. Por sua vez, estatui o n.º 1 do artigo 662º do mesmo diploma legal que “A Relação deve alterar a decisão proferida sobre a matéria de facto, se os factos tidos como assentes, a prova produzida ou um documento superveniente impuserem decisão diversa”. Incumbe à Relação, como se pode ler no acórdão deste Tribunal de 7/4/2016, “enquanto tribunal de segunda instância, reapreciar, não só se a convicção do tribunal a quo tem suporte razoável naquilo que a gravação da prova e os outros elementos constantes dos autos revelam, mas também avaliar e valorar (de acordo com o princípio da livre convicção) toda a prova produzida nos autos em termos de formar a sua própria convicção relativamente aos concretos pontos da matéria de facto objecto de impugnação, modificando a decisão de facto se, relativamente aos mesmos, tiver formado uma convicção segura da existência de erro de julgamento na matéria de facto”. Apesar disso, não se pode olvidar que o juiz da 1ª instância, perante o qual a prova é produzida, está em posição privilegiada para a avaliar, surpreendendo no comportamento das testemunhas elementos relevantes para aferir da espontaneidade e credibilidade dos depoimentos que frequentemente não transparecem da gravação. No caso vertente, os recorrentes cumpriram satisfatoriamente o ónus de impugnação da matéria de facto, fundamentando a sua discordância quanto à decisão dos mencionados pontos de facto nas declarações de parte prestadas pela autora AA, nas declarações/depoimento de parte prestados pelo legal representante da autora “EMP01... Unipessoal, Lda”, GG, e pelos réus, CC, DD e EE, nos esclarecimentos prestados em audiência de julgamento pelo perito NN e, finalmente, no depoimento da testemunha LL. O Senhor Juiz a quo fundamentou a sua decisão sobre a matéria de facto nos seguintes termos: “(…) Indicação e exame crítico das provas Pontos 1 a 13 e 21 a 29: encontravam-se assentes, resultaram unânimes do julgamento e encontram total respaldo nas certidões juntas aos autos. Pontos 14 a 20: uma vez que estes factos são relativos desde logo a 1956, não se produziu prova testemunhal sobre alguns destes factos. No entanto, é possível lançar mão dos elementos objectivos constantes dos autos e analisá-los à luz das regras do bom senso. Senão vejamos: Como se explicará melhor infra, a mina (a nascente de água) existia em 1992/94. Contudo, a água não era conduzida para os dois prédios. E isto porque esta estrutura estava ao abandono (referimo-nos à canalização e demais mecanismos). Se assim é, pensamos que se pode concluir que a mesma foi construída nos termos referidos na escritura. E se construíram, então a água teria uso (afinal, e como iremos desenvolver melhor infra, estamos a falar de uma canalização bastante extensa e que percorre diversos prédios: não teriam realizado um investimento destes para nada). Mutatis mutandis quanto à água de consortes que seria usada em tempos. Quanto a esta, porém, não se apurou, de todo, quando os proprietários da mesma deixaram de a usar, mas sempre antes de 2000 face às declarações do caseiro WW. Todavia, face ao que se verá melhor infra, estando a estrutura da água da ... ao abandono, a água não era, de todo, conduzida até aos prédios em causa (para melhor compreensão, o prédio dos réus doravante designar-se-á de prédio ...31 e o prédio da herança o prédio ...33). E se estes dois prédios estavam ao abandono, e face ao estado em que se encontravam os canos, é possível concluir que, no máximo, a água foi conduzida para o prédio ...31 e daí para o prédio ...33 até meados da década de 80. Pensamos até que esta data se nos afigura demasiado cautelosa. Pontos 30 a 34 e 36, 37 e 41 a 47: ao intentarem a presente acção, os autores apenas se socorrem da escritura de 1956. E não lograram produzir qualquer outro tipo de prova. Senão vejamos: Em declarações de parte, GG, gerente da sociedade autora, limitou-se a explicar o que consta da escritura de 1956. Por outro lado, sem ter assistido a nada, referiu que, após a doação do prédio ...31, o irmão fez obras e demoliu aquilo e que é nessa sequência que, em 1994, deixou de correr água para o prédio ...33. Porém, repita-se: não viu nada. Por outro lado, sobre a conduta da mãe, disse que ela nunca falou que a água foi cortada (embora ache que a mãe nunca soube do desvio das águas). Por seu turno, disse que, em 1978, os terrenos começaram a ser fabricados conjuntamente até 87/88. Isto porque ouviu dizer a um caseiro entretanto falecido. Somente depois os dois terrenos terão ficado em pousio. Acresce que veio declarar, de forma totalmente despropositada (pois a nada assistiu) que, em 2000, a testemunha WW passou a ser caseiro dos dois terrenos em conjunto e que este usava a água do tanque do prédio ...31 (terá sido o réu DD a contar-lhe isto). Mais referiu que foi o caseiro WW quem fez a charca. Acresce que referiu que nas reuniões familiares sobre as partilhas falaram sobre as águas e que a sobrinha lhe disse que ele só tinha direito a sobras. Ora, esta frase afigura-se muito pouco verosímil pois se resultou unânime é que as águas são apenas encaminhadas para o prédio ...31. Como se facilmente depreende, trataram-se de declarações muito pouco consistentes no sentido de persuadir o que quer que seja, baseando-se, essencialmente, em ouvir dizer e em suposições. Por fim, GG formulou duas respostas que fragilizam a sua versão: primeiro, admitiu que o apontamento/mapa junto aos autos, a ../../2024, é da autoria do seu falecido irmão. Segundo, referiu que a denominada caixa repartidora estava ao alto, sendo bastante visível. Ora, na réplica os autores alegam posse oculta por parte dos réus. Já a autora AA pouco ou nada sabia, dizendo até que não vai ao local há 50 anos (em concreto, ao prédio ...33). Mostrou-se, isso sim, preocupada em esclarecer que, apesar das fotografias de família juntas com o requerimento de ../../2024, foi poucas vezes à casa do irmão e a sua mãe ainda menos. Estas declarações mostraram-se, assim, vazias e muito comprometidas. Quanto às testemunhas arroladas pelos autores, XX foi nomeado perito no processo da demarcação. E, nessa qualidade, acabaram por realizar uma escavação onde encontraram um tubo, como julgou ter encontrado o lugar onde provavelmente estaria a caixa repartidora. Apesar de, num primeiro momento, ter dito que os terrenos não estavam abandonados, acabou por declarar que o prédio ...33 não estava cultivado, e estava mais ao abandono. Já LL, marido da autora AA, também se mostrou, estranhamente, muito preocupado em dizer que só conhecia a casa dos réus intramuros. A nosso ver, tal como a sua mulher, estas estranhezas certamente se devem às supra referidas fotografias que os colocam na casa dos réus. Sem persuadir, declarou que nessas ocasiões nunca lhe falaram sobre as ditas águas. Curiosamente, disse que só em 2017 é que souberam da escritura. E, na verdade, da escritura junta aos autos depreende-se a data de Agosto de 2017 como a data da sua obtenção – cfr. f. 43, verso. Em síntese, os autores apenas têm um meio de prova favorável: a escritura de 1956. Prosseguindo. Antes de avançarmos para a análise dos demais depoimentos, considera-se relevante fazer as seguintes considerações de carácter meramente objectivo: i. Após 1956, a água da ... era conduzida para o prédio ...31, sendo que aí havia um mecanismo (denominado caixa repartidora) que desviava metade da água para o seu tanque e a outra metade para o tanque localizado no prédio ...33; ii. Nas palavras de GG, tratava-se de um mecanismo perfeitamente visível; iii. Após 1994 (na própria petição inicial alega-se esta data, embora, como se verá infra, a água não caía no prédio ...33 há mais anos), a água deixou de ser conduzida para o prédio ...33. Isto é, o tanque esvaziou; iv. Entre estes dois prédios nessa zona em questão não existia qualquer delimitação física – cfr. a sentença que foi proferida no processo de demarcação, bem como relatório pericial junto a f. 86; v. A partir de 1994, a água da ... passa a ser usada exclusivamente no prédio dos réus. E isto depois de terem sido realizadas obras de monta para conduzir a água até aí (numa das fotografias constantes do segundo relatório pode visualizar-se a distância da nascente até à casa dos réus); vi. As fotografias juntas com o requerimento, de ../../2024, demonstram a presença da falecida FF naquele local após essas obras. Perante isso, questionamo-nos: nessa altura a falecida FF não se inteirou do seu prédio? Não teve curiosidade em ver, uma vez que fosse, como estava o seu prédio?; vii. Mais a mais, as ditas fotografias de família atestam a presença da autora AA e seu marido; viii. II faleceu em 1998 e a sua mãe FF nada fez, mantendo-se inerte relativamente à água da .... Coligidos estes elementos objectivos, a versão trazida pelos réus afigura-se, à luz das regras da experiência, bastante plausível. Aliás, não se vislumbra como o falecido marido e pai dos réus tenha realizado esta empreitada senão na posição de dono da água em exclusivo. Afinal, o dinheiro investido por este seria para depois beneficiar outros? Por outro lado, esta obra não foi realizada de forma oculta. Repare-se que os trabalhos foram realizados em terrenos que não dele. Por outro lado, a sua mãe e irmã (e respectivo cunhado) foram convidadas pelo próprio após concluir as obras. Também por aqui se detecta que esta conduta não foi realizada pela calada, como soe dizer-se. Em síntese, estes elementos objectivos indiciam, de forma muito ilustrativa, a posse pública e exclusiva dos réus. Isto é, usando as palavras de ORLANDO DE CARVALHO, detectou-se uma autoridade fáctica por parte do falecido II (e réus) relativamente a toda a água do campo da ..., demonstrando-se, assim, um potis sedere [um sentar-se como dono] (este Autor, ensinava que a posse não é, mesmo residualmente, um poder de facto qualquer nem necessariamente um poder de facto no sentido estrito da expressão: de contacto físico com a coisa. Até porque a coisa pode não ser física e é evidente que, não o sendo, o poder não o é também. Além disso, não há só posse de coisas com que empiricamente contactamos. A posse existe logo que a coisa entra na nossa órbita de disponibilidade fáctica, que sobre ela podemos exercer, querendo, poderes empíricos. Heck tem, pois, razão quando define a posse como a «entrada factual de uma coisa em certa órbita de senhorio ou de interesses». Por outra via, a posse implica intencionalidade ou voluntariedade: não está na minha posse o objecto que deixaram no meu automóvel sem eu querer. Porque a posse é sempre expressão de uma autoridade fáctica, de um potis sedere («sentar-se como dono»), conforme revela a sua etimologia – ORLANDO DE CARVALHO, Direito das Coisas - Do Direito das Coisas em Geral, coord. F. Fernandes, Maria Guimarães e Maria Redinha, Coimbra editora, 2012, p. 262). Acresce que as declarações de parte da ré JJ afiguraram-se assertivas, peremptórias e verosímeis. Mais a mais, mostrou-se coerente e consistente com os elementos objectivos supra referidos. Como asseverou que estava tudo ao abandono quando adquiriram o prédio e que o mesmo (tal como o outro) não beneficiava da água da .... Por seu turno, declarou que a sua sogra cedeu esta água e que essa terá sido a condição do seu marido. Afinal, só ele é que iria despender dinheiro para a recuperar. Mostrou-se também sincera em reconhecer que GG nunca entrou na sua casa. Por seu turno, os seus filhos DD e EE prestaram depoimentos tendencialmente idênticos. Aquele referiu ainda o comprimento da mina (1,8 km) e asseverou que há muitos anos que ninguém usa a água de consortes. Já EE referiu também que o caudal era desconhecido, pelo que mal se entenderia que o falecido avançasse sozinho para esta obra com o encargo de dar metade da mesma ao outro prédio sem saber do seu caudal. Acrescem os seguintes, e também muito decisivos, depoimentos: O de WW, caseiro que foi dos réus durante cerca de 30 anos. Este confirmou que nunca utilizou água do tanque. Com excepção de uns melões que foram plantados junto ao tal ribeiro e que terão necessitado da água de consortes, nunca precisou de água a qual apenas era usada nalgumas árvores de fruto e outras culturas que rodeiam o tanque inserido no prédio ...31. Por sua vez, prestou depoimento RR que foi quem realizou as obras para o falecido II em 1992 e nos anos seguintes. Esta testemunha também confirmou que estava tudo ao abandono e em ruínas. Mais referiu que lhe despertava curiosidade o facto de existir um tanque mas que não tinha água. E descreveu como a obra da mina foi realizada e que, em nenhum momento, deixou de pensar que o falecido não estava a agir sobre o que era seu. A interpretação que fez, perante o falecido, foi que a água lhe pertencia. Por outro lado, de forma peremptória, asseverou que a falecida FF foi algumas vezes à obra e que presenciou a mesma, incluindo as relativas à água da ... e que a mesma a aprovou. Finalmente, KK, filho daquela testemunha (pessoa que é visível na fotografia junta com a contestação – ver f. 101), e que, nessa altura, já colaborava com o pai, pelo que esteve, assim, a trabalhar no local. Por isso, foi com bastante detalhe que relatou como trouxeram a água da mina para a casa dos réus. Como garantiu que a mãe do falecido II também ia lá, e que viu as obras. Mais referiu os trabalhos de limpeza e manutenção da mina (a ré viúva já o contratou duas vezes para esse efeito). De referir, por fim, que todos estes três depoimentos foram prestados, atenta a sua postura, num registo sincero, espontâneo e persuasivo. Concatenando tudo isto à luz das regras da experiência, pode concluir-se, assim, pela demonstração da tese dos réus. Ponto 35: GG reconheceu que, em 2009, ano em que a mãe faleceu, pôde constatar que a água não chegava ao tanque do prédio ...33. Quanto à autora, as fotografias colocam-na na casa dos réus, na companhia do seu marido. Atenta a descrição do mecanismo de condução da água para a própria residência (nesta parte remete-se para os depoimentos de RR e de KK), não se vislumbra como a autora não se tenha apercebido de nada. Mais, concluída a casa, afigura-se, de todo em todo, implausível que o irmão não tivesse mostrado a obra, incluindo a condução da água. Como não se afigura verosímil que os convidados não tenham visto o tanque com água nas traseiras. Pontos 38 a 40: o perito prestou esclarecimentos confirmando que na dita charca as águas estão paradas por força da enorme vegetação que detectou. Por outro lado, atento depoimento do caseiro, fácil é de concluir que as ditas águas não são aproveitadas por nenhuma das partes. Aliás, a tese trazida pelos autores na petição inicial mostra-se, um tanto ou quanto, peregrina. Afinal, a sua alegação não se coaduna com a realidade apurada. Afinal, repare-se que o tanque do prédio ...33 encontra-se sem água há cerca, pelo menos, de 40 anos. Por outro lado, os réus têm água em abundância (o perito confirmou tratar-se de um bom caudal), o caseiro não usa água e o prédio ...33 está ao abandono. Deste modo, a água de consortes para este prédio não deve ser usada, no mínimo, como a do tanque: há mais 40 anos. Neste contexto não se percebe, à luz das regras do bom senso, como é que os autores alegam que os réus os impedem de usar a água de consortes. Relativamente aos factos não provados: Alíneas a) e b): cfr. ponto 35. Alíneas c) e d): cfr. supra pontos 38 a 40. Além do mais, na perícia não se verificaram esses factos que eram imputados aos réus. Alíneas e) a g): cfr. supra pontos 30 a 34 e 36, 37 e 41 a 47. Alínea h): total ausência de prova nesse sentido. (…)” Pois bem. Ouvida integralmente a prova produzida em audiência de julgamento, conjugada com o teor dos documentos juntos aos autos e do relatório pericial apresentado, entendemos que não existe o invocado erro de julgamento da matéria de facto, porquanto a nossa convicção relativamente aos pontos de facto impugnados coincide com a formada pelo Senhor Juiz a quo, cuja fundamentação, aliás exemplar, secundamos. Destacaremos apenas alguns pontos: - Mostra-se pacificamente adquirido nos autos que, por escritura pública de partilha outorgada em ../../1956, foi repartida pelos prédios que são hoje da herança aberta por óbito de FF e dos réus, inscritos na matriz rústica da União de Freguesias ... e ... sob os artigos ...33... e ...31º, respectivamente, ambos resultantes do desmembramento de um outro prédio, denominado “...”, a água que afluía ao segundo, proveniente do “Campo da ...”; - Nos termos da referida escritura, metade dessa água ficou a “pertencer” ao prédio da herança e a outra metade ao prédio dos réus, prevendo-se ainda que, a partir deste, seria conduzida até àquele, onde afluiria a um tanque a construir, em aqueduto subterrâneo, mediante a constituição da pertinente servidão; - Esse sistema foi implementado, conforme acordado, e funcionou durante vários anos; - Na própria versão das autoras, o falecido II, na sequência da aquisição do dito artigo 331º (sendo indiferente se o adquiriu a título oneroso ou gratuito, independentemente de o negócio ter revestido a forma de uma doação) ou, após a sua morte, ocorrida em 1998, os seus herdeiros, a viúva e os filhos, ora réus, procedeu(ram), ainda em vida de FF, a obras na mina em causa e desde então a totalidade da água nascida no ...” é captada e conduzida até ao tanque existente naquele prédio, tendo deixado de afluir ao tanque existente no prédio da herança (o artigo 333º); - Muito embora sustentem que só em 2009, após a abertura da sucessão, tomaram conhecimento de que os réus se haviam “apropriado” da água pertencente ao prédio da herança, as autoras alegam, no artigo 19º da petição inicial, que a “água do Campo da ... foi activada no tanque da FF (…) e que lá caiu, pelo menos, até ao ano 1994/1995” (sublinhado nosso), antecipando, desse modo, num registo verdadeiramente profético, a alegação daqueles de que a obra em causa terá sido realizada em Junho de 1994 e, do mesmo passo, imputando a esta, implicitamente, a interrupção do abastecimento de água; - O próprio representante legal da autora “EMP01... Unipessoal, Lda”, GG, filho da FF, embora evidenciando nítido desconhecimento do que realmente se passou e limitando-se, mais do que a afirmar, a exteriorizar as suas convicções e especulações, como, aliás, verbalizou por diversas vezes, infirmou a dita versão, admitindo, em sede de declarações de parte, que, já em 1992, quando o irmão II adquiriu o artigo 331º, este e o artigo 333º estavam “em pousio” desde que o último caseiro (um tal YY) teria saído, o que situou em 1987/1988, e bem assim que, na sequência da obra realizada por aquele seu irmão, que implicou, além do mais, a colocação de “canalização nova desde o Campo da ...”, a água aí captada “voltou a cair” no tanque existente no artigo 331º, o que significa que a água já não afluía a nenhum dos ajuizados prédios antes da referida obra e que esta se destinou, precisamente, a restabelecer a circulação da água, embora em benefício apenas do prédio que é hoje dos réus; - Resulta inequivocamente do conjunto da prova produzida, nomeadamente das fotografias juntas aos autos em 19 de Abril de 2024 e dos depoimentos das testemunhas RR e seu filho, KK, que a falecida FF, não só teve conhecimento, como acompanhou a obra em causa, realizada, a solicitação do II, por aquelas duas testemunhas, mostrando-se contrário às regras da experiência comum que o tivesse feito, como argumentam as recorrentes, “porque tinha interesse” em que fosse bem executada “para continuar a beneficiar” da água, porquanto não suportou a parte que proporcionalmente lhe competiria no respectivo custo (esse facto, deveras relevante, é, pura e simplesmente, omitido na alegação das autoras) e a água jamais voltou a afluir ao tanque existente no seu prédio, mesmo depois da morte do II, ocorrida em 1998, e até ao seu próprio decesso, verificado em Janeiro de 2009, sendo certo que teve oportunidade de constatar, pessoalmente, o aproveitamento da água no prédio do filho; ao invés, a ilacção que se retira desse seu comportamento é, justamente, a que o julgador da 1ª instância retirou, a de que renunciou à água em proveito daquele seu filho, como, aliás, sustentou, denotando sinceridade, a viúva deste, a ré JJ, aquando da sua audição em declarações/depoimento de parte. Pelo exposto, por nenhuma censura merecer a decisão a esse respeito proferida pela 1ª instância, conforme com a prova produzida, mantêm-se inalterados os pontos de facto impugnados. Assim sendo, estaria, em princípio, prejudicada a apreciação do erro de direito também imputado à decisão recorrida, por ter como pressuposto a modificação factual propugnada pelas recorrentes. Todavia, no caso vertente discordamos do caminho percorrido pelo Senhor Juiz a quo em sede de subsunção jurídica dos factos, ainda que sem reflexos na decisão, sendo certo que, como prescreve expressamente o artigo 5º do Código de Processo Civil, no seu n.º 3, “O juiz não está sujeito às alegações das partes no tocante à indagação, interpretação e aplicação das regras de direito”. Explicitando. Considerou-se na decisão recorrida que a aquisição da posse da metade da água que “pertencia” ao prédio da herança por parte dos réus/reconvintes teria ocorrido por inversão do título de posse, na modalidade de oposição do detentor ao possuidor, ao abrigo dos artigos 1263º, alínea d), e 1265º, ambos do Código Civil[7]. Sucede, porém, que a inversão do título de posse pressuporia que os réus detivessem a metade da água que “pertencia” ao prédio da herança em nome da autora da sucessão[8], por um lado, e que tivessem passado a actuar como titulares do direito real correspondente à revelia desta, por outro lado. Ora, nenhuma dessas situações deflui da factualidade apurada e dada como provada. É verdade que, não obstante a divisão do prédio dominante, a servidão, por força do princípio da indivisibilidade das servidões, consagrado no artigo 1546º[9], era uma só, como inculca a circunstância de não ter sido feita nova captação no prédio onde se situa a nascente e colocado um novo rego condutor entre ele e o prédio da herança. No entanto, o caudal de água que primitivamente afluía ao prédio dominante foi repartido, já no interior deste, pelas duas parcelas que resultaram da sua divisão, pelo que, de facto, cada um dos consortes, a falecida FF e o também falecido marido e pai dos réus, era verdadeiro possuidor de metade da água. Sendo assim, não arredando categoricamente tal enquadramento[10], temos alguma dificuldade em subsumir a situação à previsão do artigo 1406º, n.º 2[11], referente à compropriedade, mas que é aplicável a outras formas de comunhão de direitos (artigo 1404º), segundo o qual “O uso da coisa comum por um dos comproprietários não constitui posse exclusiva ou posse de quota superior à dele, salvo se tiver havido inversão do título” Acresce, como já se disse, que não resulta da matéria de facto provada que o falecido II tivesse agido à revelia da FF (falecendo, por isso, a necessária contraditio), mas, pelo contrário, que esta, estando há muito interrompida a circulação da água e mostrando-se necessário proceder a obras para a recuperar, abdicou da mesma em proveito daquele, seu filho. Ora, é, precisamente, neste segmento de facto que radica a chave para a solução da causa. Com efeito, prescreve o artigo 1565º, no seu n.º 1, que “O direito de servidão compreende tudo o que é necessário para o seu uso e conservação”, acrescentando o n.º 1 do preceito subsequente que “É lícito ao proprietário do prédio dominante fazer obras no prédio serviente, dentro dos poderes que lhe são conferidos no artigo anterior, desde que não torne mais onerosa a servidão”. Por sua vez, estatui o artigo 1567º que: “1 – As obras são feitas à custa do proprietário do prédio dominante, salvo se outro regime tiver sido convencionado. 2 – Sendo diversos os prédios dominantes, todos os proprietários são obrigados a contribuir, na proporção que tiverem nas vantagens da servidão, para as despesas das obras; e só poderão subtrair-se do encargo renunciando à servidão em proveito dos outros. (…)”. Prevê-se neste normativo uma figura híbrida ou quid medium entre os direitos reais e as obrigações, as chamadas obrigações reais ou propter rem, que, na definição proposta por Antunes Varela[12], são aquelas que são impostas “em atenção a certa coisa, a quem for titular desta”. Mas, como imediatamente a seguir adverte o mesmo Autor, porque “a obrigação existe por causa da res, ao devedor é algumas vezes concedida a faculdade de libertar-se do vínculo obrigacional, renunciando ao seu direito real (…)”. Não se trata, porém, como esclarece noutro lugar[13], “da renúncia abdicativa, puro acto unilateral de abandono, mas da renúncia translativa, feita em proveito dos outros (…) e, por isso mesmo, sujeita à aceitação dos beneficiários”. É essa a realidade que, cristalinamente, transparece dos factos provados. A falecida FF, que há muito deixara de cultivar o seu prédio e vira interrompido o abastecimento de água ao tanque nele existente, proveniente da nascente situada no Campo da ..., renunciou à água em proveito do filho, eximindo-se, desse modo, à obrigação de contribuir para as despesas das obras de limpeza e recuperação da mina, integralmente custeadas por aquele (deduzindo-se do comportamento do II, globalmente considerado, que aceitou a renúncia, nos termos do artigo 217º). Objectar-se-á que a renúncia, por versar sobre um direito imobiliário, deveria constar de escritura pública, sob pena de nulidade, nos termos do artigo 220º. E, efectivamente, a generalidade da doutrina e da jurisprudência defende que a renúncia abdicativa, prevista no artigo 1569º, n.º 1, alínea d), como causa de extinção das servidões, deve obedecer àquela forma, mormente na sequência da entrada em vigor do DL 116/2008, de 04 de Julho e, sendo expressa, como é o caso, mesmo no âmbito de vigência do DL 47619, de 31 de Março de 1967 e do Código do Notariado aprovado pelo DL 207/95, de 14 de Agosto – nesse sentido Meneses Cordeiro, “Direitos Reais”, 1979, Edições Lex, páginas 547 e 548, e o acórdão desta Relação de 21/04/2016 (proc. n.º 405/06.3TBMDL-G1), relatado por Helena Melo[14]. Sucede, porém, que a renúncia em apreço, como já se assinalou, não determinou a extinção ou, sequer, a modificação da servidão, quer quanto ao seu objecto[15], quer quanto ao seu conteúdo, mas apenas, em desvio ao princípio consagrado no artigo 1545º, a sua separação de uma das parcelas que resultou da divisão do prédio dominante, continuando por inteiro a ser usada por intermédio da outra parcela. Sendo assim, afigura-se-nos que esta concreta modalidade não estava sujeita a forma solene, nomeadamente porque não corresponde a nenhum dos actos que, de acordo com o artigo 89º, alínea a), do DL 47619, de 31 de Março de 1967, então em vigor, deviam ser celebrados por escritura pública, a saber os que importassem o reconhecimento, constituição, aquisição, modificação ou extinção do direito de servidão sobre coisas imóveis. De qualquer modo, a eventual invalidade da renúncia, como acto translativo do direito real em que teve origem a posse dos réus, não impedia que estes adquirissem por usucapião, como inequivocamente adquiriram face à factualidade dada como provada, a parte da água que “pertencia” ao prédio da herança, influindo apenas, elevando-o, no prazo a considerar para o efeito (artigo 1296º)[16], prazo esse (15 anos) que se completou em Junho de 2009 (sendo indiferente que entretanto tenha ocorrido a morte da FF), portanto muito antes da interpelação feita pelas autoras aos réus (ponto 28 do elenco dos factos provados), que continuaram a posse iniciada pelo seu falecido marido e pai (artigo 1255º). Como lapidarmente se escreveu no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 30/05/2019, proferido no processo n.º 916/18.8T8STB.E1.S2 e relatado por Rosa Ribeiro Coelho, “A usucapião é uma forma de aquisição originária que surge “ex novo” na titularidade do sujeito, unicamente em função da posse exercida por certo período temporal, sendo, por isso, absolutamente autónoma e independente de eventuais vícios que afetem o ato ou negócio gerador da posse”. Impõe-se, por conseguinte, julgar improcedente o recurso e confirmar a sentença recorrida, embora com fundamentação não inteiramente coincidente. De acordo com a regra geral inscrita no artigo 527º do Código de Processo Civil, as recorrentes, como parte vencida, são responsáveis pelo pagamento das custas. * IV. DECISÃO:Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação e, em consequência, confirmar a sentença recorrida. Custas pelas recorrentes. Guimarães, 09 de Janeiro de 2025 João Peres Coelho Relator Rosália Cunha 1ª Adjunta Susana Raquel Sousa Pereira 2ª Adjunta [1]Alberto dos Reis, “Código de Processo Civil Anotado”, volume V, páginas 124 e 125, onde se ponderou que “o magistrado comete erro de juízo ou de julgamento quando decide mal a questão que lhe é submetida, ou porque interpreta e aplica erradamente a lei, ou porque aprecia erradamente os factos; comete erro de actividade quando, na elaboração da sentença, infringe as regras que disciplinam o exercício do seu poder jurisdicional”. [2] Obra citada, volume V, página 146. [3] “Código Civil Anotado”, 2ª edição, volume III, página 305. [4] “Manual do Direito das Águas”, volume II, páginas 35 e 36. [5] “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, Almedina, pág. 728. [6] Estabelecido a favor de um prédio, o direito à água configura-se, manifestamente, como uma servidão, que é, por definição, um encargo imposto a um prédio em benefício de outro, e não como um direito de propriedade, decorrente da desintegração da água da propriedade superficiária e de que o respectivo titular pode dispor livremente, sem vinculação a um determinado prédio. [7] Diploma a que pertencerão os restantes preceitos citados sem indicação de origem. [8] Como escreve Menezes Leitão, em “Direitos Reais”, 5ª edição, página 129 “A inversão do título de posse consiste na passagem de uma situação de detenção (posse em nome alheio) a uma situação de verdadeira posse”, acrescentando que “Em relação ao possuidor primitivo, a inversão do título da posse traduz-se num esbulho da coisa” e, já a propósito da inversão do título de posse por oposição do detentor ao possuidor, que esta ocorre quando “o detentor pratica actos que contradizem a situação de estar a possuir em nome alheio, opondo-se assim à posse daquele em cujo nome possuía”. [9] Como sustentam Pires de Lima e Antunes Varela no seu “Código Civil Anotado”, volume III, 2ª edição, página 624, o que o ajuizado preceito “pretende no fundo dizer é que a divisão dos prédios, seja do prédio dominante, seja do prédio serviente, não pode atribuir a cada parcela direitos mais amplos ou impor maiores encargos do que os que lhe correspondiam antes da divisão”, pelo que “Tudo se passa, em relação ao objecto e ao exercício da servidão, como se não tivesse havido divisão”. [10] Mormente atendendo a que, como salienta Menezes Leitão (obra citada na nota 8, página 356), “A indivisibilidade das servidões implica que as mesmas não sejam susceptíveis de ser repartidas por partes, incidindo sobre a totalidade do prédio serviente e não sobre uma parte deste, e sendo sempre exercidas por intermédio de todo o prédio dominante e não apenas sobre uma sua parte. O uso da servidão pode ser limitado, como sucede se se delimitar a área do terreno sobre que se faz a passagem e os dias e hora a que esta pode ocorrer, mas ocorre sempre o exercício in totu da servidão e não apenas de uma sua parte”. [11] Por não se verificar, no caso concreto, o uso integral da coisa por ambos os contitulares, integrando posse em nome alheio a exercida por cada um deles em relação à parte que excedia a sua quota. [12] “Das Obrigações em Geral”, volume 1, 5ª edição, página 194. [13] “Código Civil Anotado”, Pires de Lima e Antunes Varela, volume III, 2ª edição, página 668. [14] Em sentido contrário, embora minoritário, defendeu-se no acórdão desta Relação de 01/03/2018, proferido no processo n.º 343/11.8TBCMN.G1 e em que foi relator Pedro Damião e Cunha, citando Norman Mascarenhas, em “Constituição e Extinção das Servidões Prediais”, Livraria Cruz, Braga, 1982, página 17 e seguintes, que “O actual Código Civil deixou de a considerar um negócio formal, o que significa que pode ser provada por qualquer meio”. [15] Na medida em que, como observa Menezes Leitão (obra citada na nota 8, página 229), “em relação às servidões prediais (…) devido à sua indivisibilidade, o direito não é afectado, mesmo que o prédio sobre que incidem seja dividido (…)”. [16] A invalidade formal do acto translativo da coisa implica apenas que a posse que dele deriva seja não titulada e que o possuidor actual só possa invocar a sua própria posse e não também a dos seus antecessores. |