Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | JOÃO LEE FERREIRA | ||
Descritores: | ERRO SOBRE A ILICITUDE CARTA DE CONDUÇÃO VEÍCULO CICLOMOTOR ALTERAÇÃO REGIME LEGALIDADE | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 11/05/2012 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | JULGADO PROCEDENTE | ||
Sumário: | I- O erro sobre a ilicitude excluirá o dolo do tipo sempre que determine uma falta do conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito. O erro será censurável, ou não, consoante ele próprio seja, revelador e concretizador de uma personalidade indiferente perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela conduta do agente. II) - Um homem “normal”, dotado de uma recta consciência ética e social não sentiria a obrigação de se informar periodicamente junto das autoridades rodoviárias sobre eventual alteração do regime da habilitação de condução de velocípedes com motor e de ciclomotores, tanto mais que a sua licença de condução não tinha qualquer prazo de validade. III) - Assim, não se pode de forma alguma dizer que a falta de esclarecimento e de conhecimento da alteração dos requisitos necessários à condução daquele tipo de veículo se tenha ficado a dever a uma qualquer qualidade desvaliosa e juridico-penalmente relevante da personalidade do agente, a uma indiferença perante o bem jurídico protegido pela norma ou que seja consequência de uma omissão do cuidado exigível. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os juízes do Tribunal da Relação de Guimarães,
1. No processo comum nº 253/11.9GACBT, por sentença proferida em 16 de Maio de 2012, a Mmª juíza do Tribunal Judicial de Celorico de Basto condenou o arguido José C..., pelo cometimento em autoria material de um crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido no art.º 3.º n.º 1 do Decreto-Lei nº n.º 2/98, de 3 de Janeiro, na pena de setenta dias de multa à razão diária de € 5.50. 2. Inconformado, o arguido interpôs recurso pugnando pela revogação da decisão. A Exmª procuradora-adjunta em representação do Ministério Público no Tribunal Judicial de Celorico de Basto, apresentou resposta, concluindo que o recurso não merece provimento. 3. Neste Tribunal da Relação, o Ex.mo Procurador-Geral-Adjunto teve vista do processo e emitiu parecer fundamentado, no sentido da procedência do recurso, revogando-se a sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que, excluindo a qualificação do erro como censurável, decrete a absolvição do arguido (cfr. fls. 153 a 157). Recolhidos os vistos e realizada a conferência, cumpre apreciar e decidir. 4. Como é dado assente, o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. No seu recurso, o arguido formulou as seguintes conclusões (transcrição): “I- O arguido não praticou o crime que lhe é imputado, e pelo qual foi condenado; 5. Na sentença consta a seguinte fundamentação da decisão em matéria de facto (transcrição) : “Factos provados: 6. A questão colocada nos presentes autos pelo recorrente consiste fundamentalmente em saber se, ao conduzir o ciclomotor sem ser titular de documento válido de licença, o arguido agiu sob deficiente representação da realidade ou ignorância que não lhe é censurável. Na apreciação exarada na sentença recorrida a matéria fáctica provada enquadra-se na previsão do artigo 17.º do Código Penal, configurando-se um erro censurável sobre a ilicitude, porquanto se demonstra que o arguido estava convencido de que com o título que possuía (licença de velocípedes) não estava a cometer qualquer crime, sendo que esse convencimento resultava de um erro censurável sobre o regime penal da condução de veículo. Ao invés, na concepção do arguido recorrente e do Ministério Público nesta Relação, os mesmos factos provados demonstram a ocorrência de um erro, mas não censurável. Com evidente relevância para a discussão deste problema, nota-se na sentença um lapso que interessa esclarecer. Com efeito, consta no ponto 4 do elenco dos factos provados que “o arguido obteve e era portador de licença de condução de velocípedes n.º 4.994, datada de 1988”. Possivelmente influenciada pelo teor deste ponto, na referência ao licenciamento de condução do (simples) velocípede, a Exmª juíza escreveu em sede de enquadramento jurídico o seguinte: “ora, no caso dos autos a licença que o arguido detinha nunca poderia ser trocada por outra (emitida pelo mesmo organismo) que o habilitasse a conduzir aquele ciclomotor, pois para a condução de velocípedes (bicicletas, mas não ciclomotores), deixou de ser necessária a titularidade de qualquer licença de condução. Daí que a proibição legal não exigisse o conhecimento ou a informação necessária à troca desse título, precisamente porque, com essa troca, o arguido não ficava habilitado a conduzir o ciclomotor dos autos”. Da motivação da convicção do tribunal quanto à decisão em matéria de facto, resulta que a Exmª juíza julgou provado o circunstancialismo do ponto 4 com base no documento constante dos autos a fls. 11 e esse documento, emitido pela Câmara Municipal de Celorico de Basto com o n.º 4.994, datado de 1988, como aí consta, consiste numa licença de condução de velocípedes com motor. Impõe-se por isso concretizar que o arguido foi titular de licença de condução de velocípedes com motor, devendo de seguida notar-se a evolução do regime legal: nos termos do artigo 47º do Decreto-Lei nº 209/98, de 15 de Julho, os titulares de licença de condução de velocípedes com motor estavam habilitados a conduzir ciclomotores, podendo requerer a troca da licença de velocípedes com motor por licença de condução de ciclomotor, na Câmara Municipal da sua área de residência, durante o prazo de um ano a contar da entrada em vigor do diploma, “Artigo 47.º - Troca de licença de velocípede com motor 1 - Durante o prazo de um ano a contar da entrada em vigor do presente diploma, os titulares de licença de condução de velocípedes com motor estão habilitados a conduzir ciclomotores. 2 - Durante o prazo referido no número anterior, podem os titulares de licença de condução de velocípedes com motor requerer, na câmara municipal da área da sua residência, a troca daquele título por licença de condução de ciclomotor. 3 - O requerimento a que se refere o número anterior deve ser instruído com fotocópia do bilhete de identidade do requerente e o correspondente atestado médico. 4 - Os serviços competentes das câmaras municipais que procedam à troca de títulos a que se refere o n.º 2 devem ficar com a licença de condução de velocípede com motor de que o requerente era titular e arquivá-la no respectivo processo.”. Por força do artigo 4.º do Decreto-Lei nº 315/99, de 11 de Agosto, esse prazo foi depois prorrogado até ao dia 30 de Junho de 2000. Ou seja, o arguido esteve habilitado a conduzir o referido veículo até 30 de Junho de 2000 e na realidade, em tempo, a lei permitiu a simples “troca”, pela Câmara Municipal, do documento que o arguido detinha por uma licença de condução de ciclomotores. Na ocasião da fiscalização, o arguido não se encontrava habilitado legalmente para a condução do ciclomotor, por não ter renovado a licença. Sucede, porém, tal como provado, que José Guilherme Teixeira Canedo estava convencido que a dita licença de velocípedes de que era portador era válida e o habilitava a conduzir ciclomotores, desconhecendo que não podia conduzir o referido veículo com o título de que era portador e que o devia ter trocado por outro .” Assim como, tal como consta da sentença recorrida, não se provou que o arguido soubesse que não era titular de habilitação legal para conduzir o ciclomotor ou que a sua conduta fosse proibida e punida por lei. O enquadramento jurídico-penal do circunstancialismo exposto remete-nos para o problema do erro sobre a ilicitude. Previsto no artigo 17º do Código Penal, que estabelece: “1. Age sem culpa quem actuar sem consciência da ilicitude do facto, se o erro não lhe for censurável. 2. Se o erro lhe for censurável, o agente é punido com a pena aplicável ao crime doloso respectivo, a qual pode ser especialmente atenuada." A doutrina considera a estrutura do dolo da factualidade típica, ou dolo do tipo, envolvendo necessariamente duas vertentes: o elemento intelectual ou cognoscitivo, que consiste no conhecimento pelo agente de todos os elementos ou circunstâncias que integram o tipo legal, e o elemento volitivo ou emocional, onde se inclui a vontade de adoptar a conduta, o querer adoptar a conduta, não obstante aquele conhecimento, mesmo tendo previsto o resultado criminoso como consequência necessária ou como consequência possível dessa conduta. É assim necessário, para que o dolo se afirme, que o agente conheça e represente correctamente ou tenha consciência das circunstâncias do facto que preenche um tipo de ilícito objectivo. Com a consequência de que sempre que o agente represente erradamente, ou não represente, um qualquer dos elementos típicos objectivos, o dolo terá de ser afastado. Na sua obra “O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal”, de 1969, o Professor Figueiredo Dias definiu o critério dos limites de não censurabilidade da falta da consciência da ilicitude, enfatizando a natureza da relação que se pode estabelecer entre o erro ou engano que se exprime no facto, e a personalidade da pessoa que erra ou se engana, escrevendo o seguinte : “ A - Se lograr comprovar-se que a falta de consciência de ilicitude ficou a dever-se, directa e imediatamente, a uma qualidade desvaliosa e juridico-penalmente relevante da personalidade do agente, aquela deverá sem mais considerar-se censurável. B. Se, pelo contrário, não se logrou tal comprovação, a falta de consciência da ilicitude deverá continuar a reputar-se censurável, salvo se se verificar a manutenção no agente, apesar daquela falta, de uma consciência ético-jurídica, fundada em uma atitude de fidelidade ou correspondência a exigências ou pontos de vista de valor juridicamente relevante. Dias, J. Figueiredo, O Problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal, 4ª edição, 1995, Coimbra Editora, § 17, V, maxime p. 328 a 364. O mesmo Autor, em Direito Penal - Parte Geral”, escreveu que “o erro excluirá o dolo (a nível do tipo) sempre que determine uma falta do conhecimento necessário a uma correcta orientação da consciência ética do agente para o desvalor do ilícito; Por outras palavras (…) estamos perante uma deficiência da própria consciência ética do agente, que lhe não permite apreender correctamente os valores jurídico-penais e que por isso, quando censurável, revela uma atitude de contrariedade ou indiferença perante o dever-ser jurídico-penal e conforma paradigmaticamente o tipo específico da culpa dolosa.” Dias, J. Figueiredo, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, 2007, Coimbra Editora, pag. 544 e 545. Numa perspectiva não muito distante, Taipa de Carvalho entende que “o erro sobre a ilicitude será censurável, ou não, consoante ele próprio seja, revelador e concretizador de uma personalidade (de uma atitude ética pessoal jurídica) indiferente perante o dever-ser jurídico-penal, i.é, perante o bem jurídico lesado ou posto em perigo pela conduta do agente. Sendo revelador dessa atitude ético-pessoal de indiferença, o agente responderá por crime doloso; não o sendo (caso de condutas cuja licitude ainda não está sedimentada na consciência ético-social – o que é possível sobretudo nos direitos penais especiais ou direito penal secundário), afirmar-se-á a exclusão da culpa e, portanto não haverá responsabilidade penal” Carvalho, A. Taipa de, Direito Penal, Parte Geral, 2ª edição, 2008, Coimbra Editora, p. 480 a 486 e Direito Penal Parte Geral, II, Teoria Geral do Crime, 2006, Universidade Católica, Porto, p. 321 a 331.. . No entendimento de Cavaleiro Ferreira, censurável será o erro “invencível”. Nesta ordem de ideias, só uma consciência certa e segura da licitude permite a atenuação da culpa. A questão limita-se assim a saber se naquela situação concreta, o agente tinha a obrigação de suspeitar se aquele acto era realmente ilícito ou licito e, em consequência disso, deveria informar-se e verificar se assim era ou não Ferreira, M. Cavaleiro de, Lições de Direito Penal, I, Editorial Verbo, 1985, p. 220 a 222. . Na situação concreta em apreço nos presentes autos, cumpre notar em primeiro lugar que por força de uma alteração de regime legal, se modificou a designação jurídica de um grande número de veículos de duas rodas, dotados de um motor auxiliar de reduzida potencia, até aí qualificados como de velocípedes com motor para a categoria de ciclomotores. O arguido era titular de um documento que o habilitava a conduzir velocípedes com motor e, por erro ou engano, estava convencido que para ele, que tinha aquela “licença” há tantos anos, era permitido pela lei conduzir aquele mesmo veículo, agora na categoria dos “ciclomotores”. Ao que se sabe, embora se trate de um tipo de veículo muito vulgar no nosso país e de uso generalizado, não houve qualquer acção de informação pelas autoridades, designadamente nos meios de comunicação social, sobre a alteração do regime legal e as obrigações daí decorrentes. Sendo assim de concluir que um homem “normal”, dotado de uma recta consciência ética e social não sentiria a obrigação de se informar periodicamente junto das autoridades rodoviárias, tanto mais que a licença de condução não tinha qualquer prazo de validade, ou seja, valia para conduzir o “seu” veículo por tempo indeterminado. Assim como se terá de admitir como razoável que a ignorância ou falsa representação quanto a tal alteração se tenha mantido ao longo destes últimos tempos. Assim sendo, tendo ainda em conta a disseminação e vulgaridade daquele concreto tipo de veículo, não se pode de forma alguma dizer que a falta de esclarecimento e de conhecimento da alteração dos requisitos necessários à condução daquele tipo de veículo se tenha ficado a dever a uma qualquer qualidade desvaliosa e juridico-penalmente relevante da personalidade do agente, a uma indiferença perante o bem jurídico protegido pela norma ou que seja consequência de uma omissão do cuidado exigível. Em conclusão, neste caso concreto, o arguido actuou convicto da legalidade da sua condução, sem que seja censurável a ignorância ou má representação da realidade, pelo que agiu sem consciência da ilicitude da sua conduta e, por isso, sem culpa (art 17º nº 1, do Código Penal). Termos em que se impõe a absolvição do arguido do crime de condução de veículo sem habilitação legal de que vinha acusado. 7. Pelos fundamentos expostos, acordam os juízes deste Tribunal da Relação de Guimarães em julgar procedente o recurso interposto pelo arguido e, em consequência, revogando a sentença recorrida, absolvem José C... do cometimento do crime de condução de veículo sem habilitação legal, previsto e punido no art.º 3.º n.º 1 do Decreto-Lei nº n.º 2/98, de 3 de Janeiro. Sem tributação. Guimarães, 5 de Novembro de 2012. |