Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | ALDA CASIMIRO | ||
Descritores: | CRIME DE PERSEGUIÇÃO REQUISITOS ACTUAÇÃO DOLOSA | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 06/05/2017 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Privacidade: | 1 | ||
Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | NEGADO PROVIMENTO | ||
Sumário: | Comete o ilícito do artº 154º-A, nº 1 do CP, com dolo directo o arguido que, de forma reiterada, contactava telefonicamente a ofendida, a horas diversas, perturbando quer o seu desempenho profissional, quer o seu descanso; deslocava-se ao seu local de trabalho, procurando encontrar-se com ela; entregava quase diariamente no local de trabalho de ofendida cartas e sacas de papel com embrulhos dentro para serem entregues àquela; deslocava-se, com frequência, à residência da ofendida, ora para colocar bilhetes no pára-brisas do seu automóvel, ora aguardando a sua chegada, quer à porta da entrada do prédio, quer à porta da garagem, ora, então, rondando-a, para controlar a sua rotina diária; agindo com o propósito de provocar à ofendida medo e prejudicar e limitar os seus movimentos, bem sabendo que desse modo a lesava na sua liberdade pessoal, como pretendeu e conseguiu. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, Relatório No âmbito do processo comum (intervenção do Tribunal Singular) nº 332/16.6PB VCT que corre termos no Juízo Local Criminal de Viana do Castelo (J1), Comarca de Viana do Castelo, foi o arguido, M. S., casado, desempregado, nascido a ..~..-.., em …, Ponte da Barca, filho de J. M. e de M. J. e residente na Rua …, Lote.., …, absolvido da prática do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152º, nºs 1, al. a), 2 e 4 do Cód. Penal, pelo qual vinha acusado; e, condenado, como autor material de um crime de perseguição, p. e p. pelo art.154º -A, nº 1 do Cód. Penal, na pena de 1 ano e 3 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e com regime de prova assente em plano de reinserção social. * Sem se conformar com a decisão, o arguido interpôs o presente recurso em que pede a revogação da sentença e onde formula as conclusões que se transcrevem: 1-. O crime p. e p. pelo artigo 154º-A, nº 1 do Código Penal para se verificar exige uma actuação dolosa do agente no sentido de atuar com intenção de realizar o crime em causa. 2- Da motivação da decisão de facto, resulta que o envio das cartas pelo arguido à ofendida, ainda sua mulher, “se destinavam apenas a resolver situações relativas ao casal e à casa que têm em comum e onde ela habita, sendo a sua escrita inofensiva”. 3- Da matéria de facto provada e não provada resulta que o teor das cartas nem sempre foi possível perceber, mas não resulta desse teor qualquer ofensa, ameaça ou qualquer imputação de factos que culpabilizassem a ofendida, sendo ainda certo que algumas das cartas entregues eram cartas de terceiros dirigidas à ofendida. 4- Sendo a ofendida, ainda casada com o arguido, quem assegura “todos os encargos com a manutenção da habitação…, nomeadamente o pagamento dos consumos de energia eléctrica, água, TV/telefone, entre outros…” – cf. Ponto 32 dos factos provados – é razoável que o Recorrente entrasse em contacto através das cartas com a ofendida para se inteirar dessas questões e pagamentos. 5- O arguido quando envia as cartas está convencido que age correctamente e que não incomoda ninguém, apenas pretendendo resolver as situações relativas ao casal e à casa que têm em comum, não tendo qualquer intenção de provocar medo ou inquietação ou de prejudicar a liberdade de autodeterminação da ofendida. 6- Não está demonstrado que o arguido agisse com dolo nos termos do disposto no artigo 14º do Código Penal e faltando este elemento subjectivo do tipo de crime definido no artigo 154º-A, nº 1 do Código Penal, não poderia ter sido condenado. 7- Um cidadão médio, colocando-se na situação do arguido, desconhece que o envio de cartas possa constituir um crime. 8- Ora a censurabilidade de uma conduta é de afastar se e quando se trata de proibições cuja ilicitude material não esteja devidamente sedimentada na consciência ético social. 9- Age sem dolo, quem desconhece a proibição legal cujo conhecimento for razoavelmente indispensável: não tendo o arguido consciência da ilicitude dos atos que praticou, fica excluído o dolo da sua atuação nos termos do disposto no artigo 16º do Código Penal, e logo não poderia ter sido condenado pela prática do crime de perseguição p. e p. no artigo 154º-A, nº 1 do Código Penal. 10- Não foi assim feita a melhor interpretação e aplicação do disposto nos artigos 14º, 16º e 154º-A, nº 1 do Código Penal, devendo esta decisão ser reapreciada por este Venerando Tribunal e substituída por outra que observe os preceitos que se mostram violados. * A Magistrada do Ministério Público junto da primeira instância contra-alegou, pugnando pela improcedência do recurso e a confirmação da sentença, ainda que sem apresentar conclusões. * Nesta Relação, o Digno Procurador-Geral Adjunto emitiu douto Parecer no sentido da improcedência do recurso e da manutenção do decidido. Efectuado o exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos à conferência, cumprindo agora apreciar e decidir. * * * Fundamentação Na sentença recorrida deram-se como provados os seguintes factos: 1- O arguido casou com a ofendida M. F. no dia 3 de Outubro de 1981; 2- Deste casamento nasceram dois filhos: R. M., no dia ..de Outubro de …, e M. R., no dia .. de … de ….; 3- Durante o período em que viveram sob o mesmo tecto, o casal fixou a sua residência na Rua …, Lote.., nesta cidade e comarca; 4- No dia 7 de Julho de 2011, a hora não indicada, a ofendida abandonou definitivamente o lar conjugal; 5- Julgando que este afastamento faria com que o arguido a deixasse de procurar, há cerca de dois anos para cá, este passou a contactar telefonicamente a ofendida, a horas diversas, perturbando quer o seu desempenho profissional, quer o seu descanso; 6- Como esta ignorava as suas chamadas, o arguido passou a deslocar-se ao seu local de trabalho, na … de V…, sita na…, nº.., nesta cidade e comarca, para conversar com a mesma; 7- A ofendida rejeitou sempre o contacto com o arguido, o que o motivou a passar a entregar quase diariamente à segurança-porteira desta Loja, H. C., cartas e sacas de papel com embrulhos dentro; 8- A ofendida, inicialmente, leu algumas dessas cartas; 9- Desde o final do ano de 2015, em data que não se logrou apurar, o arguido passou também a deslocar-se ao local de trabalho da ofendida, durante o período de almoço e à hora de saída, pelas 17h, na ânsia de se encontrar com a mesma; 10- Com receio do que lhe pudesse fazer, a ofendida, perante a presença assídua do arguido no seu local de trabalho, deixou de almoçar fora e de andar só, na rua; 11- O arguido passou também a deslocar-se, com frequência, à residência da ofendida, sita na Rua …, nº…, , em …, nesta comarca, ora para colocar bilhetes no pára-brisas do seu veículo automóvel, ora aguardando a sua chegada, quer à porta da entrada do prédio, quer à porta da garagem, ora, então, rondando-a, para controlar a sua rotina diária; 12- No dia 2 de Abril de 2016, pelas 18.50h., quando a ofendida regressava a casa na companhia da sua filha M., foi surpreendida pelo arguido que aguardava a sua chegada junto à porta da garagem; 13- Como esta o ignorou, o arguido dirigiu-se às gateiras da garagem e chamou a sua filha, motivando ambas, com medo do que este lhes pudesse fazer, a refugiar-se em casa; 14- No dia 15 de Abril de 2016, pelas 19.30h., a ofendida deslocou-se na companhia da sua amiga A. P. ao ginásio; 15- Pelas 20.30h., quando regressou a casa, na companhia desta testemunha, a ofendida avistou o arguido, que aguardava a sua chegada junto à porta da garagem da sua residência; 16- O arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, ciente que a sua conduta era proibida e punida por lei; 17- Com o propósito, reiterado de, através das condutas supra descritas, perpetradas na pessoa da ofendida M. F., sua ainda mulher, lhe provocar medo e a prejudicar e limitar nos seus movimentos, bem sabendo que desse modo a lesava na sua liberdade pessoal, como pretendeu e conseguiu; 18- O arguido não tem antecedentes criminais; 19- O arguido apresenta traços sugestivos de personalidade obsessiva; 20- O arguido é o segundo descendente de uma fratria de cinco elementos; o pai foi sempre uma figura ausente do quotidiano do agregado que constituiu, passando longos períodos de tempo embarcado; a mãe, por sua vez, era proprietária de uma pequena mercearia, que servia as freguesias vizinhas (o agregado residia em …, em …); 21- No decurso da infância, o arguido e os irmãos estiveram expostos a evidentes situações de maus tratos físicos e sobretudo psicológicos, desencadeados pelo quadro de doença mental (esquizofrenia) que afetava a mãe, levando-a em períodos de crise mais severos a agredir fisicamente os filhos e a expô-los a situações de risco; chegou a cumprir penas de prisão efetiva, ainda que por curtos períodos de tempo, pelos desacatos que provocava; acabaria por falecer em …; 22- Era a irmã mais velha do arguido, embora à data ainda uma criança, quem procurava ajuda junto dos vizinhos, com o intuito de internar a mãe numa unidade hospitalar e era ela quem cuidava dos irmãos e da mercearia, sem contar sequer com o apoio da família alargada ou do próprio pai; 23- Após o falecimento da mãe, foi também esta irmã quem assumiu o processo de crescimento e educativo dos irmãos, levando-os para junto de si, na altura em que casou e fixou residência em Braga; não obstante as dificuldades com que se deparou, esta irmã do arguido conseguiu, com o apoio de professores e pessoas amigas, concluir um curso superior, iniciando um percurso de docente do ensino secundário; 24- O arguido, assim que concluiu o 1º ciclo, foi de imediato levado pelo pai para Lisboa, onde este lhe arranjou trabalho num café, deixando-o sozinho, num quarto arrendado, completamente desenraizado da família e das suas referências sociocomunitárias; o arguido insistiu pelo regresso a casa, mas o pai não o permitiu; 25- Foi depois trabalhar para a …, tendo andado embarcado entre o ano de … e …, altura em que foi cumprir o Serviço Militar para …; 26- Entre o ano de 1975 e 1981 andou ….., pertença de uma companhia americana, onde exercia funções indiferenciadas; 27- Seguidamente, o arguido e dois dos seus irmãos estabeleceram uma sociedade abrindo um café e gelataria em …, a qual viriam a encerrar em …., por dificuldades económicas; a partir dessa data, o arguido ainda chegou a desenvolver uma atividade, como profissional liberal, no setor da ,,, , a qual também não se revestiu de grande sucesso; 28- Seguiu-se um longo período de convalescença, em que o arguido ficou imobilizado na sequência de uma queda que sofreu, causando-lhe a fratura dos dois membros inferiores, não voltando a trabalhar; 29- O arguido constituiu família no ano de 1981, altura em que contraiu matrimónio com a ofendida; desta união nasceram os dois filhos do casal; viveram sempre autonomizados, fixando inicialmente residência em … (a esposa é oriunda do ..) e posteriormente em … – …, pouco tempo depois de o arguido ter aberto o …; a esposa era já funcionária da …, tendo conseguido transferência para …; 30- No decurso da vida em comum, a ofendida assumiu a subsistência do agregado, uma vez que o arguido canalizava os rendimentos que auferia para o exercício da sua actividade profissional e mesmo nessa área precisava, por vezes, do apoio económico da esposa; 31- Desde que ocorreu a separação conjugal, o arguido mantém residência na casa de morada de família; trata-se de uma moradia, independente, construída de raiz, apresentando excelentes condições habitacionais; nos primeiros tempos da separação e até a ofendida reunir as condições necessárias para os acolher, os filhos (o filho tem 32 anos, solteiro, frequência do ensino universitário, desempregado e a filha tem 23 anos e está a frequentar o 3º ano do curso superior de criminologia) ficaram a residir com o pai; ainda mantiveram durante mais algum tempo o contacto e o apoio ao pai, mas acabaram por se afastar, na sequência da intensificação do quadro de desestabilização emocional do arguido; 32- O arguido não exerce qualquer atividade profissional há cerca de cinco anos, pelo que não dispõe de qualquer rendimento fixo mensal; todos os encargos com a manutenção da habitação continuam a ser assegurados pela ofendida, nomeadamente o pagamento dos consumos de energia elétrica, água, TV/telefone, entre outros; entretanto, deixou de o apoiar ao nível da alimentação, o que fez ainda durante algum tempo após a separação; 33- Para a sua subsistência, o arguido recorre ao apoio de conhecidos, que lhe emprestam dinheiro consoante as suas necessidades e recorre também à irmã mais velha; não aceita a possibilidade de recorrer à intervenção das estruturas sociais competentes, ou mesmo inscrever-se no Centro de Emprego, numa tentativa de obter trabalho; refere que tem sempre a possibilidade de emigrar, nomeadamente para a Itália, onde tem um casal amigo; 34- No que concerne às interações sociais, o arguido manteve-se isolado no período que se seguiu à separação conjugal, não estabelecendo qualquer interação com os vizinhos; mais recentemente, já é visto no exterior da habitação, ocupando-se com o arranjo e manutenção do jardim da casa e começa a comunicar ajustadamente com os mais próximos, quando o abordam; no entanto, o arguido menciona um vasto leque de pessoas conhecidas, que considera terem um papel social de relevo para fundamentar a estima que merece por parte de pessoas socialmente reconhecidas; 35- Por parte da família de origem, a irmã mais velha continua a ser o esteio dos irmãos; a situação do arguido merece-lhe particular preocupação uma vez que existe um historial de doença mental na família, com concretização de suicídio, como foi o caso, não há muito tempo, de uma das irmãs do arguido; a irmã mais nova tem também problemas do foro mental, com registo de internamentos hospitalares e o outro irmão terá também um quadro depressivo acentuado; 36- No meio social não existem sentimentos de animosidade ou de rejeição para com o arguido, mantendo níveis de interação adequados; 37- O arguido formou a sua personalidade num contexto familiar disfuncional, em que o pai foi sempre uma figura ausente e desvinculada das suas responsabilidades parentais e a mãe, pelo quadro de doença mental que a afetava, colocou os filhos perante situações de maus tratos físicos e psicológicos; 38- Logo após ter concluído o 1º ciclo, foi levado pelo pai para Lisboa, onde este lhe obteve trabalho num café e o deixou sozinho, não autorizando o seu regresso a casa; nos anos que se seguiram e com exceção do período em que cumpriu o serviço militar, o arguido andou embarcado, primeiro através da marinha mercante e depois num navio de cruzeiro; 39- O arguido demonstra através do seu discurso estar preso a um passado no qual reunia as condições que sabe serem ajustadas a um padrão de vida estável e socialmente reconhecido, não transportando para o presente a necessidade de reorganizar o seu estilo de vida; 40- O arguido é considerado pelas pessoas das suas relações como educado, respeitador, organizado e bem comportado. Na sentença recorrida deram-se como não provados os seguintes factos: - Não provado que o relacionamento do casal sempre se tenha pautado pela conflitualidade devido ao temperamento agressivo do arguido; - Não provado que desde o início do casamento, sempre que a ofendida contrariasse a vontade do arguido, este a apodasse de “maluca” e lhe dissesse, para a humilhar, “Tu não prestas, não vales nada. Vocês são uma família de merda, vêm dos bairros, não prestam para nada” e que era uma má mãe; - Não provado que, na sequência de tais episódios, o arguido lhe desse empurrões, lhe puxasse o cabelo e lhe desferisse socos e pontapés, causando-lhe dor; - Não provado que a ofendida nunca tenha participado estes episódios, nem recebido tratamento médico por vergonha e por acalentar a esperança de que o arguido mudasse o seu comportamento; - Não provado que, em data e hora não apurada, na presença dos seus filhos, o arguido tenha iniciado uma discussão com a ofendida na sequência da qual lhe tenha dado um empurrão, com força, que a tenha feito embater com a face numa porta e lhe tenha causado um hematoma no olho direito; - Não provado que, na sequência deste episódio, a ofendida não tenha recebido tratamento hospitalar, tenha ficado com o olho direito negro e que tal marca tenha sido observada pelos seus filhos, Ricardo e Mariana; - Não provado que no ano de 1999, em data e hora não apurada, a ofendida, cansada do comportamento do arguido, tenha resolvido abandonar o lar conjugal com os seus filhos; - Não provado que, quando tentava entrar no seu veículo automóvel, tenha sido surpreendida pelo arguido, que este a tenha agarrado pela mão esquerda, lhe tenha puxado com força o dedo polegar e lhe tenha causado dor e um grande hematoma; - Não provado que, na sequência deste episódio - que tenha sido o mesmo presenciado novamente pelos seus filhos -, a ofendida tenha recebido tratamento hospitalar; - Não provado que nessa noite, a ofendida tenha pernoitado na casa de uma cunhada, irmã do arguido, entretanto falecida, tenha este, ao tomar conhecimento disso, se deslocado à sua residência e iniciado uma discussão e que tenha motivado o acolhimento numa …; - Não provado que a ofendida tenha permanecido na companhia dos seus filhos na Casa Abrigo durante uma semana; - Não provado que finda a mesma, perante a promessa do arguido em mudar o seu comportamento, a ofendida e os seus filhos tenham regressado ao lar e, pouco tempo depois, este o tenha retomado, agindo do modo supra descrito; - Não provado que o abandono referido em 4. tenha ocorrido no dia 8 do mês ali também referido; - Não provado que o conteúdo das cartas referidas em 7. e 8. culpabilizasse a ofendida pelo insucesso do seu casamento e a descrevesse como uma má mãe; - Não provado que o arguido tenha passado igualmente a perseguir a ofendida pelas ruas e a frequentar o supermercado e outros locais onde aquela habitualmente se desloca; - Não provado que uma semana depois dos factos referidos em 14. e 15., quando a ofendida chegava a casa na companhia desta testemunha, provinda do ginásio, ambas tenham avistado o arguido que aguardava a sua chegada, desta feita, à porta da entrada da sua residência; - Não provado que o arguido tenha agido com o propósito, reiterado de, através das condutas supra descritas, concretizadas em agressões e insultos, perpetradas na pessoa da ofendida M. F., sua ainda mulher, a molestar física e, sobretudo, psicologicamente, bem sabendo que desse modo a lesava na sua saúde física e mental, que o tenha pretendido e conseguido, e não se tenha coibido até de o fazer na presença dos seus filhos R. M. e M. R.; E a sentença recorrida motivou como segue a decisão sobre a matéria de facto: Para formar a sua convicção relativamente aos factos provados e não provados baseou-se o tribunal, para além do correlacionamento de toda a prova produzida: - no teor e análise dos documentos, incluindo cartas, exame pericial e relatório social juntos, designadamente, de fls.102 a 107, 176, 187 a 192, 238 a 241 e 247 e s. destes autos, e dos cinco anexos, de todos se destacando as cartas dirigidas pelo arguido à ofendida e juntas em audiência (sendo estas inúmeras – com um volume correspondente a um saco do “Ikea” cheio, no qual foram apresentadas, e que compõem agora os 5 volumes anexos), analisadas que foram, quer pelo seu número, quer pelo que foi possível perceber do seu teor, todo ele manuscrito, em várias cores, no verso de outras folhas e/ou correspondência; - no teor das declarações do arguido, o qual, no essencial, negou a ocorrência dos factos alegados; adiantou, no entanto, a sua versão e perspectiva de alguns deles, nomeadamente, referindo que as cartas – que admitiu ter entregado no local de trabalho da ofendida – se destinavam apenas a resolver situações relativas ao casal e à casa que tem em comum e onde ele habita, sendo a sua escrita inofensiva; referiu que há mais de 3 anos que não fala com a ofendida; admitiu que ia ao local de trabalho da ofendida de 15 em 15 dias ou semanalmente, mas apenas para entregar coisas e resolver as ditas situações; depois referiu que desconhecia que não pudesse mandar cartas à ofendida, que teria bastado que a mesma lhe dissesse que não queria que ele não mandaria mais nenhuma; deu ainda conta de alguns aspectos da sua actual situação pessoal e económica; e, - no teor dos depoimentos das testemunhas inquiridas, sendo que: - H. P., segurança/porteira na … (local de trabalho da ofendida) contou o que sabia, referindo que o arguido começou a entregar cartas, na portaria, para a ofendida, em meados de 2014, mostrando-se calmo e educado; disse que o mesmo inicialmente ia lá uma vez por semana e depois chegou a ir três vezes por semana, tendo deixado de o fazer apenas no dia 26-9-2016; depois desta data foram ainda entregues “sacos de prendas” para a ofendida no dia 12-10-16 e na semana anterior (à data da inquirição), mas através de outras pessoas; referiu que a ofendida deixou até de sair para ir almoçar fora desde meados de 2015, altura em que as entregas das cartas e embrulhos pelo arguido passaram a ser mais frequentes; disse que vê o arguido passar na…, de forma normal, mas que tem como estranha, já que o mesmo passa sempre à mesma hora, entre as 12.00h. e as 12.30h.; deu ainda conta de que a ofendida é uma pessoa discreta, que um dia, ao sair do trabalho, se assustou com o arguido e voltou para trás, que a mesma até deixou de ir tomar café fora e que, ao sair do trabalho, perguntava-lhe sempre se o podia fazer; - M. F., esposa do arguido, deu conta da insistência do arguido, das cartas e abordagens do mesmo, referindo que, a partir de 2014, ele começou a abordá-la no local de trabalho, lhe fazia sucessivos telefonemas, com “delírios do passado”, lhe começou a mandar 2/3 cartas por semana, com uma grafia estranha e um discurso delirante, tendo-o ela avisado que não queria contactos com ele, o que lhe disse várias vezes, até porque já antes se tinha queixado dele; referiu que ainda assume ela todos os encargos da casa onde o arguido habita; disse que o arguido lhe mandava também embrulhos, com roupas dela e dos filhos que ficaram em casa e que ninguém pediu, mas que serviam apenas de desculpa; deu conta de como se sente intimidada e deixou de fazer de tudo, saindo do trabalho e indo para casa, inibida e perturbada, sentindo-se coagida pelo arguido que lhe “controla os passos”; descreveu os episódios ocorridos quando estava acompanhada pela filha e pela sua amiga A., respectivamente; descreveu o arguido como pessoa altamente perturbada, que não quer ir ao médico, adiantando não querer ela “pôr-se a jeito”; - R. P., filho de arguido e ofendida, mostrou-se muito agastado com o pai, referindo ser o mesmo agressivo e desequilibrado, estar doente e precisar de ajuda; disse que já viu o pai a rondar a casa da mãe e a deixar papelinhos no carro dele, sendo que se não percebe o que o mesmo escreve, falando apenas de coisas do passado, de há 30 anos atrás; aludiu ainda ao facto de a mãe não poder sair à rua; - M. P., filha de arguido e ofendida, aludiu às perseguições e cartas do pai à mãe, das idas ao trabalho desta e dos telefonemas; disse que a mãe tem medo do pai, que esta apenas se desloca de casa ao trabalho e vice-versa, aludindo ao episódio em que esteve ela presente e ao medo com que a mãe ficou então, motivando a chamada da polícia; referiu que o pai não tem conversas normais, mas apenas sobre o passado e a família; - L. R., irmã da ofendida, mencionou o estado de medo da irmã, como esta lhe telefona a chorar, desesperada, com medo constante de andar na rua e da instabilidade do arguido; - M. F., amigo do arguido, nenhum conhecimento directo demonstrou ter sobre os factos ou as rotinas do arguido; atestou o seu habitual bom comportamento; - A. A., amigo do arguido, deu conta dos encontros esporádicos que foi tendo com o arguido de há cerca de 20 anos a esta parte – incluindo como chegou ele a contactar com a ofendida, a pedido do arguido -, nada mais de concreto sabendo; caracterizou vagamente o arguido e atestou o seu habitual bom comportamento; e, - A. C., pessoa conhecida do arguido, também nada de concreto sabia, referindo não privar com o arguido, apesar de ser este visita regular do seu escritório de contabilidade, rematando que o mesmo precisa de ajuda. Da conjugação destes elementos probatórios foi possível apurar apenas e com um mínimo de segurança os factos supra dados como provados, sendo que, quanto aos não apurados, ficou o tribunal sem prova minimamente consistente e credível que os pudesse alicerçar e levar a concluir pela sua eventual ocorrência. Assim, do confronto entre as declarações de arguido e ofendida, conjugadas com o teor das ditas cartas (e demais documentos e relatórios juntos) e dos depoimentos das indicadas testemunhas, tudo analisado segundo as regras de experiência comum e do “normal” acontecer, teve o tribunal como segura a ocorrência dos factos que apurou, incluindo a insistência e obsessão do arguido na perseguição da ofendida e no envio (por entrega em mão, no local de trabalho desta, o que desde logo implica também a sua própria deslocação àquele) de cartas (cujo número, só por si, já é revelador da insistência e obsessão daquele, não se limitando apenas à mera entrega de correspondência dirigida por terceiros à ofendida, como decorre do confronto entre as poucas cartas juntas – como as de fls.247 e s. – e todas as demais manuscritas pelo arguido e juntas nos cinco anexos, por vezes até acompanhadas de fotografias antigas, do casal ou outras) à mesma, sendo que, quer esta, quer os filhos do casal referem ter o arguido apenas conversas sobre o passado (passado este a que está “preso”, como se refere no relatório social a fls.192), sem normalidade e que incutem medo na ofendida. A isto acresce que, o próprio discurso do arguido, não obstante educado, se revelou ser de facto repetitivo, circular, muito focalizado, obsessivo, traços que também foram constatados no exame pericial a que foi sujeito (cfr. fls. 238 a 241). E, tudo isto conjugado, associado à circunstância de que a ofendida desde há muito evita o contacto com o arguido, o que este até confirmou referindo que há mais de 3 anos que não fala pessoalmente com ela, ficou o tribunal esclarecido quanto ao contexto da ocorrência dos factos, incluindo que o arguido sabia e estava perfeitamente ciente (não obstante verbalize o contrário) de que a ofendida não mais queria contactar com ele, nem ser por ele importunada, o que o arguido, mesmo assim, fez e continuou a fazer, sabendo que não devia fazê-lo, durante todo o tempo em que, mormente, foi aparecendo no local de trabalho e residência daquela e lhe foi entregando as inúmeras cartas manuscritas juntas. E, quanto aos não provados, como já se aludiu, baseou-se o tribunal na ausência de prova credível que os pudesse suportar. * * * Apreciando… De acordo com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário das Secções do STJ de 19.10.1995 (in D.R., série I-A, de 28.12.1995), o âmbito do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extrai da respectiva motivação, sem prejuízo, contudo, das questões de conhecimento oficioso. Assim, em questão está o enquadramento jurídico da conduta do recorrente e a existência de uma causa de erro sobre a proibição. * O recorrente começa por alegar que não põe em causa a matéria de facto provada, mas apenas o seu enquadramento jurídico. Começa por dizer que o tipo de crime por que foi condenado é doloso e ele agiu sem dolo. Sobre o enquadramento jurídico dos factos provados disse o Tribunal recorrido: Assim sendo e sem necessidade de maiores considerações, conclui-se não estar preenchida pela conduta apurada do arguido a tipicidade objectiva e subjectiva do crime de violência doméstica, p. e p. pelo art.152º, nºs.1, al.a) e 2 do C.P., pelo qual vinha acusado, pelo que se impõe a sua absolvição. No entanto, não podemos deixar de apreciar aqui, embora de outro prisma, as apuradas e efectivas circunstâncias factuais descritas supra, designadamente, de 5. a 7. e de 9. a 15.. Tais factos objectivos, aliados à forma consciente e livre como o arguido os praticou (cfr. supra 16. e 17.), levam a concluir que os mesmos são susceptíveis de configurar o preenchimento da tipicidade do crime de perseguição do art.154º-A, nº.1 do C.P.. Mas vejamos. Em conformidade com o disposto no art.154º-A, nº.1 do C.P. (aditado pela L.nº.83/15, de 5-8, com início de vigência a 5-9-15), comete o crime de perseguição: “Quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, direta ou indiretamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal.” Trata-se de crime novo na nossa ordem jurídica, sendo as condutas susceptíveis de o preencher vulgarmente conhecidas - já antes de tal criminalização específica - como “stalking”. Na exposição de motivos do projecto de lei nº.647/XII (sendo que a proposta de redacção no mesmo constante corresponde à do supra cit. art.) escreveu-se que: “A perseguição - ou stalking - é um padrão de comportamentos persistentes, que se traduz em formas diversas de comunicação, contacto, vigilância e monitorização de uma pessoa-alvo. Estes comportamentos podem consistir em ações rotineiras e aparentemente inofensivas (como oferecer presentes, telefonar insistentemente) ou em ações inequivocamente intimidatórias (por exemplo, perseguição, mensagens ameaçadoras). Pela sua persistência e contexto de ocorrência, este padrão de conduta pode escalar em frequência e severidade o que, muitas vezes, afeta o bem-estar das vítimas, que são sobretudo mulheres e jovens. A perseguição consiste na vitimação de alguém que é alvo, por parte de outrem (o assediante), de um interesse e atenção continuados e indesejados (vigilância, perseguição), os quais são suscetíveis de gerar ansiedade e medo na pessoa-alvo.” Como refere também Nuno Miguel Lima da Luz, a fls.6, da sua tese/dissertação de mestrado (disponível in http://repositorio.ucp.pt): “O stalking pode definir-se como uma forma de violência relacional. Segundo a maioria da legislação norte-americana, o crime consiste num padrão intencional de perseguição repetida ou indesejada que uma “pessoa razoável” consideraria ameaçadora ou indutora de medo. Já a legislação australiana define o stalking como “perseguir uma pessoa, permanecer no exterior da sua residência ou em locais por ela frequentados, entrar ou interferir na sua propriedade, oferecer-lhe material ofensivo, mantê-la sob vigilância, ou agir de um modo que se poderia esperar com razoabilidade que fosse susceptível de criar stress ou medo na vítima.” Pode-se caracterizar também por uma série de comportamentos padronizados que consistem num assédio permanente, nomeadamente através de tentativas de comunicação com a vítima, vigilância, perseguição, etc. Embora estes comportamentos possam ser considerados corriqueiros se os isolarmos do contexto do stalking, as condutas que integram o seu tipo objectivo podem ser bastante intimidatórios pela persistência com que são praticadas, causando um enorme desconforto na vítima e atentando claramente à reserva da vida privada.” E escreveu-se no Ac. R.P., de 11-3-15 (in www.dgsi.pt), a propósito de stalking (ainda que antes da criminalização autónoma da conduta), que o mesmo se caracteriza como “(…) uma perseguição prolongada no tempo, insistente e obsessiva, causadora de angústia e temor, com frequência motivada pela recusa em aceitar o fim de um relacionamento (…)”. Assim, este novo tipo de crime, agora previsto no art.154º-A, nº.1 já supra transcrito, tem como seus elementos constitutivos: - objectivamente, a acção do agente, consubstanciada na perseguição ou assédio da vítima, por qualquer meio, directo ou indirecto; a adequação da acção a provocar naquela medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação; e a reiteração da acção; e, - subjectivamente, o dolo, em qualquer das modalidades referidas no art.14º do C.P., constituído pelo conhecimento dos elementos objectivos do tipo e pela vontade de agir por forma a preenchê-los. Ora, tendo presente a referida disposição legal e os elencados elementos típicos, temos que aqueles apurados factos são susceptíveis de configurar o apontado ilícito. Na verdade, analisando os factos apurados e descritos de 5. a 7. e de 9. a 17., verificamos que o arguido nas descritas circunstâncias actuou por forma adequada a provocar medo e a prejudicar a liberdade de movimentos e determinação da ofendida, através das deslocações persistentes ao seu local de trabalho e residência e da entrega quase diária de cartas à mesma dirigidas, assim a perseguindo de forma reiterada, persistente, insistente e obsessiva, o que fez de forma deliberada e consciente, com o propósito de lesar a sua liberdade pessoal, como conseguiu. Assim, verifica-se que as condutas do arguido preenchem efectivamente o tipo de crime do art.154º-A, nº.1 cit., sendo-lhe assim imputada a prática do mesmo, a título de dolo directo (cfr. art.14º, nº.1 do C.P.). A isto acresce que os autos encerram todos os necessários pressupostos de validade e regularidade processuais que permitem apreciar a conduta do arguido à luz de tal disposição legal (cfr. o nº.5 do art. 154º-A do C.P. e o declarado a fls.19). Nos termos do nº 1 do art. 154º-A, do Cód. Penal, comete o crime de perseguição: “quem, de modo reiterado, perseguir ou assediar outra pessoa, por qualquer meio, directa ou indirectamente, de forma adequada a provocar-lhe medo ou inquietação ou a prejudicar a sua liberdade de determinação, é punido com pena de prisão até 3 anos ou pena de multa, se pena mais grave não lhe couber por força de outra disposição legal”. Alega o recorrente que não agiu com dolo, mas não pôs em causa a matéria de facto provada. Ora ficou assente que o recorrente, de forma reiterada, contactava telefonicamente a ofendida, a horas diversas, perturbando quer o seu desempenho profissional, quer o seu descanso; deslocava-se ao seu local de trabalho, procurando encontrar-se com ela; entregava quase diariamente no local de trabalho da ofendida cartas e sacas de papel com embrulhos dentro para serem entregues àquela; deslocava-se, com frequência, à residência da ofendida, ora para colocar bilhetes no pára-brisas do seu veículo automóvel, ora aguardando a sua chegada, quer à porta da entrada do prédio, quer à porta da garagem, ora, então, rondando-a, para controlar a sua rotina diária. E também ficou assente que através das condutas supra descritas, o recorrente agiu com o propósito de provocar à ofendida medo e prejudicar e limitar os seus movimentos, bem sabendo que desse modo a lesava na sua liberdade pessoal, como pretendeu e conseguiu. Mostra-se, assim, que o dolo na actuação do recorrente ficou provado. E ficou provado o dolo directo, tal como previsto no nº 1 do art. 14º do Cód. Penal, atento que o recorrente previu e quis o resultado da conduta. Diga-se, também, que considerando o tipo de condutas (variadas) e a sua reiteração ao longo do tempo, considerando que ainda se provou que a ofendida “fugia” do recorrente e evitava qualquer contacto com ele, não podia o recorrente deixar de se aperceber que incomodava a ofendida e que esta mudava rotinas para o evitar, pelo que a insistência inusitada só podia querer significar que o recorrente queria continuar a provocar-lhe medo e limitar os seus movimentos – ou pelo menos, ainda que não fosse isso que se provou, sempre teria agido com dolo necessário, ciente que provocava medo e limitava os movimentos da ofendida e aceitando estas consequências da sua conduta, pois que não parou. Mais alega o recorrente que não teve consciência da ilicitude dos actos que praticou, estando excluído o dolo da sua actuação nos termos do disposto no art. 16º do Cód. Penal. Refere que um cidadão médio desconhece que o envio de cartas possa constituir um crime e que a censurabilidade de uma conduta é de afastar quando estamos perante proibições cuja ilicitude material não esteja devidamente sedimentada na consciência ético social. Estatui o nº 1 do art. 16º do Cód. Penal que “o erro sobre elementos de facto ou de direito de um tipo de crime, ou sobre proibições cujo conhecimento for razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo”. O tipo de crime em questão é novo no nosso ordenamento jurídico. Efectivamente, o crime de perseguição previsto no art. 154º-A do Cód. Penal foi introduzido pela Lei 83/15, de 5.08, tendo entrado em vigor a 5.09.2015. Ensina o Prof. Figueiredo Dias (Direito Penal, 2ª ed., Coimbra Editora, p. 363), a propósito do nº 1 do art. 16º do Cód. Penal que «na esmagadora maioria dos casos o elemento intelectual do dolo do tipo será configurado através da exigência de conhecimento de todos os supostos do facto e do decurso do acontecimento. Excepcionalmente, porém, à afirmação do dolo do tipo torna-se ainda indispensável que o agente tenha actuado com conhecimento da proibição legal. Isto sucede sempre que o tipo de ilícito objectivo abarca condutas cuja relevância axiológica é tão pouco significativa que o ilícito é primariamente constituído não só ou mesmo nem tanto pela matéria proibida, quanto também pela proibição legal. Nestes casos, com efeito, seria contrária à experiência e à realidade da vida a afirmação de que já o conhecimento da factualidade típica e do decurso do acontecimento orientam suficientemente a consciência ética do agente para o desvalor do ilícito. (…) Queremos sim significar que a pequena ou insignificativa relevância axiológica da acção faz com que o facto, no conjunto dos seus elementos, não suscite imediatamente um problema de desvalor ligado ao dever-ser jurídico; e que portanto o substrato da valoração da ilicitude não é aqui constituído apenas pela conduta como tal, antes por esta acrescida de um elemento novo: a proibição legal. Por isso o desconhecimento desta proibição impede o conhecimento total do substrato da valoração e determina uma insuficiente orientação da consciência ética do agente para o problema da ilicitude. Por isso, em suma, neste campo o conhecimento da proibição é requerido para afirmação do dolo “do tipo”, sem que por isso ele deixe de ser um dolo “natural”, um dolo do “facto” (complexo)». Cumprirá referir, antes de mais, que o arguido/recorrente não se limitou a enviar cartas à ofendida, telefonava-lhe, esperava-a, deixava-lhe bilhetes no pára- brisas, enfim, limitava-lhe efectivamente a liberdade, sabendo que ela não queria encontrar-se com ele nem falar com ele. Todavia, dado o facto de estarmos perante um ilícito recentemente tipificado entre nós, poderia discutir-se se a relevância axiológica da acção é, de facto, pequena ou insignificativa. Adiantamos desde já que a perseguição efectuada, não só reiterada (como exigida pelo tipo) mas sobretudo feita por várias formas, não pode ser considerada como tendo uma relevância axiológica pequena ou insignificativa, não cabendo, por isso, no erro sobre proibições a que alude o nº 1 do art. 16º do Cód. Penal. De qualquer forma, ficou provado que “o arguido agiu de forma livre, deliberada e conscientemente, ciente que a sua conduta era proibida e punida por lei”, e não tendo sido colocada em causa a matéria de facto provada, a questão está desde logo resolvida. * * * Decisão Pelo exposto, acordam em negar provimento ao recurso e confirmam a sentença recorrida. Custas pelo recorrente, fixando a taxa de justiça em quatro (4) UCs. Guimarães, 5.06.2017 (processado e revisto pela relatora) (Alda Tomé Casimiro) (Paula Maria Roberto) |