Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
240/11.7TBVRM.G1
Relator: ANABELA TEIREIRO
Descritores: CONTRATO DE ADESÃO
CLÁUSULA
CONHECIMENTO OFICIOSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 02/25/2016
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 2ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário: I--Compete à Relação (e à 1.ª instância) decidir as questões de conhecimento oficioso, após cumprimento do princípio do contraditório, como são as que se prendem com a existência, num contrato de adesão, de cláusulas abusivas, por forma a restabelecer a igualdade real entre os contraentes.
II—Segundo a orientação do Tribunal de Justiça da União Europeia existe um risco, não negligenciável, de que, nomeadamente por ignorância, o consumidor não invoque o carácter abusivo da cláusula que lhe é oposta, razão pela qual o juiz nacional está obrigado a proceder oficiosamente a essa avaliação, desde que disponha dos elementos de facto e de direito para esse efeito.
III—Os segurados/aderentes num contrato de seguro associado a contrato de mútuo concedido para aquisição de habitação própria, frequentemente imposto pela instituição bancária mutuante, pretendem acautelar a hipótese de perder, por invalidez, a sua capacidade de ganho e consequentemente, a sua habitação, por incumprimento das obrigações emergentes do contrato de mútuo.
IV—A exigência acrescida de recurso à assistência permanente de uma terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente para considerar o segurado em estado de invalidez absoluta e definitiva quando, em consequência de doença ou acidente, fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer actividade remunerada, constitui uma cláusula-surpresa, contrária ao princípio da boa-fé.
V—Essa condição adicional introduz um significativo desequilíbrio contratual entre as partes, por colocar o consumidor/aderente do contrato de seguro associado ao contrato de mútuo numa posição em que, ao invés de prevenir uma situação de eventual impossibilidade de obter rendimentos do trabalho e de consequente incumprimento do contrato de mútuo, deixa-o numa situação como se não existisse esse contrato de seguro, apesar de ter procedido ao pagamento dos prémios devidos.
Decisão Texto Integral: Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães
I—RELATÓRIO
Fernando A e mulher Maria C, residentes no lugar de Sanguinhedo, Cx.13, freguesia e concelho de Vieira do Minho, intentaram a presente acção declarativa, sob a forma de processo ordinário, contra “Companhia de Seguros T, S.A.”, com sede na Avenida da Liberdade, 242, Lisboa.
Alegam que associado a um contrato de mútuo com hipoteca celebraram com a ré um contrato de seguro do ramo de vida, sendo os autores as pessoas seguras e tomadora ou beneficiaria o Banco I, S.A.. O seguro destinava-se a garantir o pagamento do capital máximo em divida, em cada anuidade, no caso de morte, invalidez total e perante, por acidente ou invalidez absoluta e definitiva, por doença, ocorrida às pessoas segura, segundo as condições da apólice. No mês de Julho de 2006 foi diagnosticada ao Autor a doença de sarcoidose e diabetes iatrogénica pela corticoterapia, havendo necessidade de insulinoterapia, com alterações radiológicas pulmonares e insuficiência respiratória hipoxémica com necessidade de oxigenoterapia, que lhe afectou os pulmões e que lhe determinou uma incapacidade para o exercício da sua profissão de pedreiro, e para todas as actividades profissionais que exijam esforço físico, sendo tais sequelas irreversíveis. Desde a data em que lhe foi diagnosticada tal doença, cessou o Autor a sua actividade profissional de pedreiro, profissão que vinha exercendo desde sempre nunca tendo exercido qualquer outra. O Centro Regional de Saúde Pública do Norte declarou, em 18/03/2008, a Incapacidade Permanente Global de 64% por decisão de Junta Médica de Avaliação de Incapacidade Multiuso.
Nesta conformidade, deveria a Ré assumir perante o Banco I, S.A o pagamento do capital mutuado aos autores, na parte que ainda estivesse em divida, sendo certo é que se recusou a assumir tal responsabilidade.
Concluem pedindo a procedência da presente acção e por via dela, condenar a ré:
a) A pagar ao Banco I, S.A, a parte do capital mutuado que ainda estiver em divida na data da liquidação, o que nesta data ascende ao montante de € 30.438,3 7 (Trinta mil quatrocentos e trinta e oito Euros e trinta e sete cêntimos);
b) Restituir aos Demandantes a quantia que se vier a apurar até à instauração da presente acção, resultante de penhora do vencimento da Demandante mulher, no âmbito de Execução instaurada pelo Banco I, S.A e referida em 27°,28°,29° e 30° deste libelo;
c) Restituir aos Demandantes o montante que se vier a liquidar a partir da data da instauração da presente acção, correspondente aos valores que estes venham a pagar em virtude de prosseguimento de penhora sobre o vencimento da Demandante mulher, no âmbito daqueles autos de Execução.
A Ré contestou, alegando em síntese que o contrato de seguro do ramo vida celebrado com os autores foi valida, licita e eficazmente resolvido, por falta de pagamento dos respectivos prémios de seguro, o que implica a extinção dos respectivos efeitos. Mais impugnou a matéria de facto alegada na petição inicial porquanto o autor marido mantém a capacidade para exercer actividade remunerada e encontra-se em condições de executar por si próprio os actos ordinários da vida corrente. Conclui pedindo a improcedência da acção.
Na resposta, os Autores reiteram os factos alegados na petição inicial.
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Proferiu-se sentença que julgou a ação totalmente improcedente e absolveu a ré dos pedidos.
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Inconformados com a sentença, os Autores interpuseram recurso, terminando com as seguintes conclusões, que se resumem:
-Sucede que, atenta a matéria de facto provada e não provada, entendeu o Tribunal a quo na Sentença em crise que em virtude da doença de que padece, o Recorrente marido, não está na obrigação de recorrer a assistência permanente de uma terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente;
-Atentou o Tribunal a quo em saber se as consequências da doença padecidas pelo autor marido se enquadram no âmbito da invalidez permanente prevista no ponto 7.1 das condições especiais da apólice, e atenta a factualidade demonstrada, o Tribunal a quo respondeu negativamente a tal questão.
-Na opinião do Tribunal a quo, face ao ponto 7.1 das condições especiais, considerado em estado de invalidez absoluta e definitiva quando, por consequência de doença, fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer actividade remunerada e na obrigação de recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente.
--Por um lado, resultou provado que aquando da celebração do contrato referido em 2) e 3) dos factos provados, os Recorrentes/Autores ficaram cientes que, em caso de invalidez total ou permanente para o exercício da profissão habitual ou qualquer outra profissão por motivos de doença tinham direito a accionar as coberturas do seguro.
--Por outro lado, não resultou provado que na data da celebração do contrato descrito em 2. e 3. dos factos provados foi entregue aos Autores um exemplar das respectivas condições particulares, gerais e especiais.
--Tal como não resultou provado que foi entregue aos Recorrentes, na altura da celebração do contrato, nota informativa sobre as condições particulares, gerais e especiais da qual constava, de forma expressa, a indicação das coberturas do contrato de seguro:
--Igualmente, não resultou provado que foi concedido aos Recorrentes um período de tempo razoável para a leitura e compreensão da nota informativa e das condições particulares, gerais e especiais:
--Identicamente, não resultou provado que na data da celebração do contrato, a Ré se colocou à disposição dos Recorrentes para prestar os esclarecimentos necessários à efectiva compreensão das condições particulares, gerais e especiais:
--Analogamente, não resultou provado que os Recorrentes não solicitaram a prestação de quaisquer esclarecimentos adicionais:
--Resultou da factualidade descrita que a Ré não comunicou, aos Recorrentes, aquando da celebracão do contrato, que uma das condicões para assumir a responsabilidade, garantida na apólice, seria tratar-se de invalidez absoluta e definitiva para o trabalho, implicando a necessidade do auxílio de terceira pessoa ao segurado, in casu, Recorrente marido, para fazer face às necessidades da vida diária:
--Conforme estipula o artigo 1°, 3, do Decreto-Lei n.º 446/85, na redacção do Decreto-Lei n.º 249/99, recaía sobre a Ré o ónus da comunicação e negociação prévia dessas condições contratuais, e não ficou provado que o comunicou e era à Ré que cabia provar que comunicou e certificou os Recorrentes dessas cláusulas e de que os mesmos ficaram cientes delas e as aceitaram, o gue não a Ré não logrou provar;
--Como resulta dos art.5° e 6° do RJCCG, uma vez que a Ré não logrou provar que procedeu à comunicação aos Recorrentes, com integral esclarecimento deste do que se referiu antes, integrando-se o contrato dos autos num contrato-tipo, não pode a Ré opor, aos Recorrentes, que as condições para assumir a responsabilidade, garantida na apólice, era a verificação de invalidez total e permanente para o trabalho e a necessidade de auxílio de terceira pessoa, sendo tal matéria de conhecimento oficioso pelo tribunal, independentemente de alegacão pelas partes;
--Deve ser excluída do contrato ou declarada nula a parte da cláusula constante do ponto 7.1 das Condições Especiais da Apólice, com o seguinte teor: «...e na obrigação de recorrer, à assistência permanente de uma terceira pessoa, para efectuar os actos ordinários da vida corrente»,
--A apólice foi elaborada previamente pela Ré, sem qualquer discussão limitando-se os Recorrentes a assinar o contrato, sem que lhe fosse dada a conhecer essa disposição;
--Está assente que os Recorrentes celebraram com a Ré um contrato de seguro do ramo vida, sendo os Autores as pessoas seguras e tomadora ou beneficiário o Banco I, S.A. pelo prazo de trinta anos e tanto basta para que ao contrato seja aplicável o regime das cláusulas contratuais gerais;
--De acordo com o artigo 5°, n.º 1, do aludido regime previsto no Decreto-Lei n.º 446/85, as cláusulas contratuais gerais devem ser comunicadas na íntegra aos aderentes que se limitem a subscrevê-Ias ou a aceitá-las;
--Estatui o seu n.º 2 que a comunicação deve ser realizada de modo adequado e com a antecedência necessária para que, tendo em conta a importância do contrato e a extensão e complexidade das cláusulas, se torne possível o seu conhecimento completo e efectivo por quem use de comum diligência, «Ex vi» do n.º 3 do mesmo artigo, o ónus da prova da comunicação adequada e efectiva cabe ao contratante que submeta a outrem as cláusulas contratuais gerais;
--In casu, a Ré não fez essa prova, estando apenas assente que os Recorrentes celebraram o contrato de seguro. (ponto 2 dos factos provados);
--Por força do artigo 8° do mesmo regime, consideram-se excluídas dos contratos singulares, entre outras:
a) As cláusulas que não tenham sido comunicadas nos termos do artigo 5°;
b) As cláusulas comunicadas com violação do dever de informação, de modo que não seja de esperar o seu conhecimento efectivo. (Sublinhado nosso);
--Não tendo a Ré demonstrado que foi dado a conhecer aos Recorrentes o teor das cláusulas, em termos de os mesmos ficarem cientes da sua exacta significação, importa concluir que falta de todo a comunicação adequada e efectiva exigida pela lei, o que implica a exclusão dessa estipulação;
--No caso dos autos, patenteia-se a impossibilidade da integração de harmonia com a vontade de ambas as partes, sendo certo que, à partida, não havia qualquer ponto omisso, tão-só passando a havê-lo após a exclusão do segmento da cláusula relativa mente à qual existe desacordo;
--Assim, para integrar a estipulação que constava da parte final dessa cláusula, resta, sem perder de vista o contexto do contrato e que se trata de um negócio formal, apelar aos ditames da boa-fé e à teoria da impressão do destinatário subjacente ao artigo 236° do Cód. Civil;
--In casu, se quando contratou, os Recorrentes tivessem sido informados de que só poderiam accionar o seguro na hipótese de a sua situação de invalidez ser de tal ordem que necessitasse do apoio de uma terceira pessoa, mas nunca no caso de ficar totalmente privado da capacidade de ganho, é mais que provável que ele não aceitasse essa cláusula, pelo facto de o seguro deixar de cumprir uma das finalidades essenciais por si intencionadas;
-- Deve considerar-se excluído o segmento da cláusula constante do ponto 7.1 das Condições Especiais do seguro, com o seguinte teor: « ... e na obrigação de recorrer à assistência permanente de terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente» (negrito nosso);
--E integra-se a parte restante dessa cláusula, do seguinte modo: «A pessoa segura é considerada em estado de invalidez absoluta e definitiva quando, em consequência de doença, fique total e definitivamente incapacitada de exercer a sua profissão e qualquer outra que a sua formação profissional e seu nível cultural permitissem desempenhar»;
--Excluído o identificado segmento final da cláusula em referência e integrada esta do modo que ficou exarado antecedentemente, impõe-se a procedência da acção;
--Deve ser considerado nulo o segmento o segmento da cláusula constante do ponto 7.1 das Condições Especiais do seguro, com o já supra mencionado e que ora reiteramos: « ... e na obrigação de recorrer à assistência permanente de terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente» (Negrito nosso);
--A Ré não alcançou, provar que na data da celebração do contrato entregou aos Recorrentes um exemplar das respectivas condições particulares, gerais e especiais e/ou que entregou, nessa altura, nota informativa sobre as condições particulares, gerais e especiais da qual constava, de forma expressa, a indicação das coberturas do contrato de seguro, e/ou que a estes foi concedido um período de tempo razoável para a leitura e compreensão da nota informativa e das condições particulares, gerais e especiais e/ou que a Ré se colocou à disposição dos Recorrentes para prestar os esclarecimentos necessários à efectiva compreensão das condições particulares, gerais e especiais:
--Mesmo que, os Recorrentes quisessem ou pudessem ler e tomar real e efectivo conhecimento das cláusulas que subscreveram, tal não era possível uma vez que a Ré não lhes entregou, no acto de assinatura do contrato, um exemplar do mesmo para que o pudessem ler e analisar e não lhes foi dada a oportunidade de lerem e entenderem o seu significado, impunha-se que, a Ré tivesse entregue, aos Recorrentes, um exemplar do contrato e lhes tivesse prestado os pertinentes esclarecimentos, antes de o assinarem;
--Para além de estar vedado ao Recorrente marido o exercício da sua profissão (pedreiro), também não pode exercer qualquer outra que a sua formacão profissional e seu nível cultural permitissem desempenhar. (Vide pontos 22 ., 25 ., 26. e 27. do elenco de factos provados);
--Essa situacão implica a perda total e irreversível da sua capacidade de ganho, patenteando-se o risco que o seguro visava prevenir e verificado o risco, a Ré deveria, imediatamente, assumir perante a mutuante o pagamento do capital mutuado ao autor,na parte que ainda estivesse em dívida;
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A Ré contra-alegou, formulando as seguintes conclusões:
1--Na petição inicial os recorrentes não invocaram as questões suscitadas nas conclusões B) a E), P) a T), U), X), Z), M), CC), DD), FF) e GG) a JJ).
2--As questões suscitadas nas conclusões B) a E), P) a T), U), X), Z), AA), CC), DO), FF) e GG) a JJ) não foram apreciadas na sentença recorrida.
3--As questões suscitadas nas conclusões B) a E), P) a T), U), X), Z), AA), CC), DO), FF) e GG) a JJ) constituem questões novas que extravasam o âmbito e o objeto do presente recurso.
4.É inadmissível a apreciação e decisão das questões novas suscitadas nas conclusões B) a E), P) a T), U), X), Z), M), CC), DO), FF) e GG) a JJ).
5- Na petição inicial os recorrentes não invocaram a falta de informação e de comunicação do artigo 7.1 das condições especiais do seguro de vida referido nos autos.
6-Improcede o pedido de exclusão do artigo 7.1 das condições especiais do seguro de vida referido nos autos.
7--Os recorrentes subscreveram a proposta respeitante ao contrato de seguro do ramo vida titulado pela apólice n.º 53/517/169402.
8--A recorrida aceitou em 01/07/1998 a celebração do referido contrato de seguro do ramo vida.
9--O referido contrato de seguro do ramo vida submetia-se às respetivas condições particulares, gerais e especiais.
10-Consta do artigo 4° das condições particulares do contrato de seguro do ramo vida titulado pela apólice n.º 53/517/169402 que:
" Este seguro garante durante o prazo de amortização do empréstimo, e no máximo até aos 70 anos de idade para a cobertura de morte ou até aos 65 anos de idade par a cobertura de invalidez, o pagamento do capital em divida, no momento em que ocorra uma das seguintes situações:
d) Morte do Segurado / Pessoa Segura por doença ou acidente;
e) Invalidez absoluta e definitiva do Segurado / Pessoa Segura por doença
f) Invalidez total e permanente do Segurado / Pessoa Segura por acidente '',
11--O recorrente não sofreu qualquer acidente.
12--Não se verificam os pressupostos da cobertura de invalidez total e permanente.
13--Consta do artigo 7.1 das condições especiais do contrato de seguro do ramo vida titulado pela apólice n.º 53/517/169402 que:
"Para efeito deste seguro complementar qualquer segurado/pessoa segura é considerado em estado de invalidez absoluta e definitiva quando por consequência de doença ou acidente fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer atividade remunerada e na obrigação de recorrer á assistência permanente de uma terceira pessoa para efetuar os atos ordinários da vida corrente.
Não é de forma alguma prova conclusiva para o funcionamento desta cobertura a concessão de reforma por invalidez ou a classificação como "grande inválido" atribuídas pela segurança social ou por qualquer outro regime facultativo ou obrigatório que a substitua ou complemente".
14--O recorrente mantém capacidade para, por si próprio, tomar as suas refeições, para se vestir e despir, para cuidar da sua higiene e para se deslocar no interior da sua residência.
15--Não se verificam os pressupostos da cobertura de invalidez absoluta e definitiva.
16--A recorrida não se encontra, pois, obrigada ao pagamento do capital seguro emergente do seguro de vida titulado pela apólice n.º 53/517/169402.
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Por determinação deste Tribunal da Relação foram as partes notificadas para se pronunciarem, querendo, sobre a eventual questão do carácter abusivo da cláusula em apreciação.
Pronunciaram-se os recorrentes reafirmando, em resumo, a nulidade do segmento da cláusula que se refere à obrigação de recorrer à assistência permanente de terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente por implicar um grave desequilíbrio em desfavor dos recorrentes.
A recorrida defendeu, em síntese, que o dever de informar incumbia ao Banco Espírito Santo, tomador do seguro, e por não ser nula, nem absolutamente ou relativamente proibida, não existe fundamento para a exclusão da cláusula 7.1 de seguro de vida.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
II—Delimitação do Objecto do Recurso
As questões a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso, são as seguintes :
--Da validade do segmento inserto na cláusula do ponto 7.1 das condições especiais de seguro que faz depender a cobertura do sinistro da necessidade do segurado recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efetuar os atos ordinários da vida corrente.
--Da falta de comunicação e negociação dessa cláusula.
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III—FUNDAMENTAÇÃO (factos elencados na sentença)
1. Por escritura pública celebrada no dia 24/09/1998 junto do Cartório Notarial de Vieira do Minho, os Autores celebraram com o Banco I, S.A., com sede na Avenida Fontes Pereira de Melo, n.o27, em Lisboa, um contrato de mútuo com hipoteca para aquisição de habitação própria e permanente, no valor de € 7.000.000$00 (€34.915,85), no regime de crédito bonificado.
2. Associado a esse contrato, os Autores celebraram com a Ré um contrato de seguro do ramo vida, sendo os Autores as pessoas seguras e tomadora ou beneficiário o Banco I, S.A., pelo prazo de trinta anos (360 meses).
3. O Seguro destinava-se a garantir o pagamento do capital máximo em divida, em cada anuidade, no caso de morte, invalidez total e permanente, por acidente ou invalidez absoluta e definitiva, por doença, ocorrida à pessoa segura, segundo as condições da apólice n.º 53/517/169402, constante de fls, 33 e seguintes, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
4. No artigo 9.1 das condições gerais do contrato de seguro referido em B) e C) consta o seguinte: "O não pagamento do prémio dentro dos 30 dias posteriores ao seu vencimento concede à seguradora nos termos legais a faculdade de após pré-aviso em carta registada com pelo menos 8 dias de antecedência proceder à anulação do certificado individual".
5. No artigo 4.° das condições particulares do contrato de seguro referido em B) e C) consta o seguinte: "Art.4.º -GARANTIAS Este seguro garante durante o prazo de amortização do empréstimo e no máximo até aos 70 anos de idade para a cobertura de Morte, ou até aos 65 anos para a cobertura de Invalidez, o pagamento do capital em divida, no momento em que ocorra uma das seguintes situações: a) Morte do Segurado/Pessoa Segura por Doenças ou Acidente; b) Invalidez Absoluta e Definitiva do Segurado/Pessoa Segura por Doença; c) Invalidez Total e Permanente do Segurado/Pessoa Segura, por Acidente.".
6. No artigo 2.2 das Condições Especiais do mencionado contrato, sob a epígrafe "Definição de Invalidez Total e Permanente (ITP)", consta o seguinte: "O Segurado/Pessoa Segura é considerado em estado de Incapacidade Total sempre que, em consequência de uma Doença ou Acidente, se encontre totalmente incapaz de exercer a sua profissão ou qualquer outra actividade lucrativa de acordo com os seus conhecimentos e aptidões."
7. No artigo 7.1 das Condições Especiais do mencionado contrato, sob a epígrafe "Seguro Complementar de Invalidez Absoluta e Definitiva", consta o seguinte: "Para efeito deste seguro complementar qualquer segurado/pessoa segura é considerado em estado de invalidez absoluta e definitiva quando por consequência de doença ou acidente fique total e definitivamente incapaz de exercer qualquer actividade remunerada e na obrigação de recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente. Não é de forma alguma prova conclusiva para o funcionamento desta cobertura a concessão de reforma por invalidez ou a classificação como «grande inválido» atribuídas pela segurança social ou por qualquer outro regime facultativo ou obrigatório que a substitua ou complemente".
8. O Centro Regional de Saúde Pública do Norte declarou, em 18/03/2008, a Incapacidade Permanente Global de 64% do Autor marido por decisão de Junta Médica de Avaliação de Incapacidade Multiuso.
9. Essa Incapacidade foi confirmada pela mesma entidade, em 26/10/2010, por decisão de Junta Médica de Avaliação de Incapacidade Multiuso.
10. Em virtude do circunstancialismo descrito em 8) e 9) foi atribuída ao Autor marido uma pensão por invalidez que, actualmente, se cifra em €246,36/mês.
11. Aquando da celebração do contrato referido em 2) e 3) os Autores ficaram cientes que, em caso de invalidez total ou permanente para o exercício da profissão habitual ou qualquer outra profissão por motivos de doença tinham direito a accionar as coberturas do seguro.
12. Em virtude do circunstancialismo descrito em 8) a 11), os Autores accionaram o seguro, requerendo à Ré que esta assumisse perante o Banco I, S.A. o pagamento do capital mutuado, na parte que ainda estivesse em dívida, recusando-se aquela a assumir tal responsabilidade.
13. Com fundamento no incumprimento do contrato mencionado em 1), o Banco I, S.A. instaurou contra os aqui Autores a execução comum para pagamento de quantia certa que corre termos neste Tribunal sob o n.º 47/09.1 TBVRM.
14. No âmbito de tais autos de Execução o capital mutuado vem sendo amortizado por meio de penhora efectuada ao vencimento que a aqui Autora mulher aufere junto da Santa Casa da Misericórdia de Vieira do Minho.
15. A patrona dos Autores enviou à Ré a carta que consta de fls. 50, datada de 23.05.2012, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
16. Em resposta à missiva mencionada na alínea anterior a Ré enviou à patrona dos Autores a carta que consta de fls. 31, datada de 26.05.2011, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais, acompanhada de cópia da proposta de subscrição e respectivas condições particulares, gerais e especiais do contrato mencionado em 2) e 3).
17. Foi ajustado que os prémios de seguro emergentes do contrato mencionado em 2) e 3) teriam periodicidade mensal.
18. Os Autores não pagaram até ao presente momento os seguintes prémios de seguro relativos ao contrato mencionado em 2) e 3), i) € 16,50, vencido em 01.02.2010; ii) € 16,45, vencido em 01.03.2010; iii) € 16,40, vencido em 01.04.2010; iv) € 16,34, vencido em 01.05.2010; v) € 16,29, vencido em 01.06.2010; vi) € 16,23, vencido em 01.07.2010.
19. A Ré enviou aos Autores a carta de fls. 115, por estes recebida, cujo teor se dá aqui por integralmente reproduzido para todos os efeitos legais.
20. O Autor marido mantém capacidade para, por si próprio, tomar as suas refeições, para se vestir e despir, para cuidar da sua higiene e para se deslocar no interior da sua residência.
21. No mês de Julho do ano 2006 foi diagnosticada ao Autor marido a doença de sarcoidose e diabetes iatrogénica pela corticoterapia, com alterações radiológicas pulmonares e insuficiência respiratória hipoxémica.
22. Doença que lhe determinou uma incapacidade para o exercício da sua profissão de pedreiro.
23. Assim como para todas as actividades profissionais que exijam esforço físico.
24. Sendo tais sequelas irreversíveis.
25. Desde a data em que lhe foi diagnosticada tal doença, o Autor marido cessou a sua actividade profissional de pedreiro.
26. Profissão que vinha exercendo desde sempre nunca tendo exercido qualquer outra.
27. De acordo com o seu índice cultural, o Autor marido nenhuma profissão sabe exercer para além daquela que desempenhava.
28. Os Autores cumpriram os pagamentos do contrato mencionado em 1) até final do ano de 2006.
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IV—DIREITO
Os Autores/recorrentes celebraram, em 24/09/1998, com o Banco I, S.A., um contrato de mútuo com hipoteca para aquisição de habitação própria.
Por tal motivo, celebraram ainda com a Ré um contrato de seguro do ramo vida, sendo os Autores as pessoas seguras, e tomador ou beneficiário o referido mutuante, Banco I, S.A., pelo prazo de trinta anos (360 meses).
O seguro destinava-se a garantir o pagamento do capital máximo em dívida, em cada anuidade, no caso de morte, invalidez total e permanente, por acidente ou invalidez absoluta e definitiva, por doença, ocorrida à pessoa segura, segundo as condições da apólice n.º 53/517/169402.
Perante este quadro factual e alegações recursórias, a qualificação do contrato como sendo um contrato de seguro de grupo contributivo, do ramo vida (Dec-Lei n.º 176/95 de 26/07) merece a concordância das partes.
Nas palavras de Luis Poças trata-se de um contrato de seguro de vida de adesão obrigatória, imposto por uma entidade financeira para garantia de uma dívida, em que essa entidade figura como tomadora do seguro de grupo e beneficiária em caso de morte do aderente (pessoa segura).
E acrescenta , com interesse, que a particularidade desse contrato resulta de cada adesão ter uma relativa autonomia perante as demais e conferir ao aderente uma posição de parte no contrato, atribuindo-lhe direitos e deveres perante o segurador e o tomador do seguro.
Também não suscita qualquer controvérsia o enquadramento deste contrato nos contratos de adesão por conter claúsulas elaboradas sem prévia negociação individual, o que corresponde à orientação dominante da doutrina e da jurisprudência sobre a matéria-cfr. art. 1.º do Dec.-Lei n.º 446/85 de 25.10. alterado pelos Dec.-Leis n.ºs 220/95 de 31.10 e 249/99 de 07.07.
O Dec.-Lei n.º 446/85 é um diploma que atravessa, longitudinalmente, todo o ordenamento jurídico português, aplicável a todo o tipo de negócio em cujos contratos se incluam cláusulas contratuais gerais, só cedendo perante os casos previstos no seu artigo 3.º.
Portanto, o diploma não se aplica a cláusulas típicas aprovadas pelo legislador (al. a)), que resultem de tratados ou convenções internacionais vigentes em Portugal (al. b)), a contratos submetidos a normas de direito público (al. c)), a actos do direito da família ou do direito das sucessões (al. d)) e a cláusulas de instrumentos de regulamentação colectiva de trabalho (al. e)).
Os Recorrentes invocaram a nulidade de uma determinada cláusula do contrato de seguro alegando que não foram devidamente informados e esclarecidos pela Ré.
Esta questão relativa à falta de comunicação e/ou de informação sobre as cláusulas do contrato de seguro foi suscitada pelos Recorrentes na petição, razão pela qual não assiste razão à Recorrida quando afirma que a Relação não pode conhecer da mesma.
Compete à Relação (e à 1.ª instância) decidir as questões de conhecimento oficioso como são as que se prendem com a existência, no contrato, de cláusulas abusivas.
Em obediência ao princípio do contraditório, igualmente consagrado no artigo 47.º da Carta dos Direitos Fundamentais da União Europeia, este Tribunal da Relação concedeu às partes a possibilidade de se pronunciarem sobre o eventual carácter abusivo da cláusula cuja aplicação é questionada neste processo.
O citado Dec.-Lei n.º 220/95 de 31.08 transpôs, para a ordem jurídica interna, a Directiva 93/13/CEE relativa às cláusulas abusivas nos contratos celebrados com os consumidores, sem reproduzir textualmente o seu art. 3.º, n.º 1.
De acordo com o artigo 6.º da Directiva os Estados-membros estipularão que, nas condições fixadas pelos respectivos direitos nacionais, as cláusulas abusivas não vinculem o consumidor.
Ora, como salienta o TJUE (Tribunal de Justiça da União Europeia) este objectivo não poderá ser atingido se os aderentes se virem na obrigação de suscitar, eles mesmos, ao tribunal o carácter abusivo dessas cláusulas.
Acrescentando, com pertinência, que existe um risco, não negligenciável, de que, nomeadamente por ignorância, o consumidor não invoque o carácter abusivo da cláusula que lhe é oposta.
Conclui o TJUE, no referido aresto, que a tutela garantida aos consumidores pela directiva implica que o juiz nacional possa apreciar oficiosamente o carácter abusivo de uma cláusula do contrato que lhe seja submetida para apreciação.
Num aresto mais recente e fazendo apelo à anterior jurisprudência sobre estas questões, o TJUE reafirmou que o artigo 6.º, n.º 1 da directiva configura uma disposição imperativa que tende a substituir o equilíbrio formal que o contrato estabelece entre os direitos e as obrigações dos cocontratantes por um equilíbrio real, de molde a restabelecer a igualdade entre eles.
E à luz dessas considerações, sublinhou que o juiz nacional é obrigado a apreciar oficiosamente o carácter abusivo de uma cláusula contratual, examinando a questão, desde que disponha dos elementos de direito e de facto necessários para esse efeito. (sublinhado nosso)

Importa relembrar, por ser relevante, que o contrato de seguro em apreciação se encontra associado ao contrato de mútuo com hipoteca que os Autores celebraram com o “Banco I, S.A.” para aquisição de habitação própria.
Este seguro destina-se a garantir, durante o prazo de amortização do empréstimo, o pagamento do capital em dívida no momento em que ocorra morte do segurado por doença ou acidente, invalidez absoluta e definitiva do segurado por doença e invalidez total e permanente do segurado por acidente—cfr. artigo 4.º das condições particulares da apólice.
O capital seguro seria pago ao beneficiário designado que, neste caso, foi o “Banco I, S.A.”-cfr. documento de fls. 32.
A acção foi julgada improcedente uma vez que não ficou provado o segundo requisito previsto nas condições especiais (ponto 7.1) para o Autor ser considerado em estado de invalidez absoluta e definitiva, ou seja, ter o Autor necessidade de recorrer a assistência permanente de uma terceira pessoa para efectuar os actos ordináriso da vida corrente.
Nos termos do artigo 15.º do referido Dec.-Lei n.º 446/85 de 25.10 “São proibidas as cláusulas contratuais gerais contrárias à boa fé”.
Este princípio geral é concretizado pelo artigo 16.º que invoca especialmente a confiança suscitada nas partes e o objectivo que visavam atingir negocialmente.
Segundo Almeno de Sá o eixo fulcral do sistema é constituído pelo princípio da boa fé, surgindo as listas de cláusulas proibidas como simples concretização, de valor meramente exemplificativo, da intencionalidade valorativa nesse princípio pressuposta.
O TJUE tem reiteradamente afirmado que impende sobre os Estados-Membros a obrigação de alcançarem o resultado previsto nas diretivas bem como o dever de tomarem todas as medidas gerais ou especiais adequadas para assegurar o cumprimento dessa obrigação, a qual se impõe a todas as autoridades dos Estados Membros, incluindo, às autoridades jurisdicionais através do princípio de interpretação conforme, garantindo a plena eficácia do direito da união, quando se pronuncia sobre o litígio que lhe é submetido.
Nesta conformidade, a lei interna deve ser interpretada em conformidade com o espírito e objectivos proclamados pelo legislador europeu que se traduz, no caso concreto, em assegurar uma efectiva protecção do aderente/consumidor.
Porém, a avaliação do carácter abusivo das cláusulas não incide nem sobre a definição do objecto principal do contrato nem sobre a adequação entre o preço e a remuneração, por um lado, e os bens ou serviços a fornecer em contrapartida, por outro, desde que essas cláusulas se encontrem redigidas de maneira clara e compreensível—cfr. art. 4.º, n.º 2 da Directiva 93/13/CEE.
Não estando em causa a segunda hipótese ali prevista, cumpre saber se a cláusula, objecto de análise, incide sobre a definição do objecto principal do contrato, caso em que seria excluída dessa avaliação.
No Acórdão Kásler (C-26/13), o TJUE precisou a noção de cláusulas que definem o objecto principal do contrato como sendo aquelas que fixam as prestações essenciais e que, como tais, o caracterizam.
Ora, as prestações essenciais que caracterizam este contrato de seguro consistem, do lado da seguradora, no pagamento ao banco beneficiário do capital mutuado no caso de ocorrência de um risco (morte ou incapacidade absoluta/total em resultado de doença ou acidente do segurado) e a prestação, por parte dos segurados, de um prémio com carácter periódico.
Na jurisprudência do TJUE a operação de seguro caracteriza-se pelo facto de o segurador, mediante o pagamento prévio de um prémio pelo segurado, se comprometer a fornecer a este último, em caso de realização do risco coberto, a prestação acordada no momento da celebração do contrato.
A obrigação de recorrer à assistência permanente de terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente não constitui, em face das definições apontadas, uma característica essencial do contrato de seguro mas apenas uma condição específica e meramente acessória a que ficou sujeito o pagamento do capital mutuado.
Por outras palavras, o contrato de seguro não perderia a sua fisionomia negocial, os seus traços fundamentais, sem aquela obrigação de recurso à assistência de terceira pessoa.
Na verdade, o risco que este contrato de seguro acautela é a incapacidade definitiva e permanente do segurado em consequência de acidente ou doença, situação que o impede de exercer uma actividade remunerada e de naturalmente satisfazer o compromisso assumido no contrato de mútuo.
Aqui chegados, podemos concluir que a Relação pode e deve proceder à avaliação dessa condição, submetendo-a aos filtros legais que resultam da aplicação do Dec.-Lei n.º 446/85 de 25.10 sobre cláusulas contratuais gerais, interpretado à luz da Directiva n.º 93/13/CEE de 05.04.1993 e da jurisprudência do TJUE.
Nos termos do artigo 3.º, n.º 1 da mencionada Directiva uma cláusula contratual que não tenha sido objecto de negociação individual é considerada abusiva quando, a despeito da exigência da boa fé, der origem a um desequilíbrio significativo em detrimento do consumidor, entre os direitos e obrigações das partes decorrentes do contrato.
Sobre os conceitos de boa fé e de desequilíbrio significativo, assume relevância o Acórdão Aziz do TJUE de 14/03/2013 (C-415/11).
Assim, o conceito de desequilíbrio significativo deve ser apreciado pelo juiz nacional através de uma análise das regras nacionais aplicáveis na falta de acordo entre as partes, para avaliar, se e em que medida, o contrato coloca o consumidor numa situação menos favorável de que a prevista no direito nacional.
E para apurar se o desequilíbrio foi criado a despeito da boa fé, o tribunal deverá verificar se o profissional, ao tratar de forma leal e equitativa o consumidor, podia razoavelmente esperar que ele aceitaria essa cláusula, na sequência de uma negociação individual.
No Acórdão Kásler (C-26/13), o TJUE desenvolveu aquele conceito esclarecendo que um desequilíbrio significativo pode resultar simplesmente de uma lesão suficientemente grave da situação jurídica na qual o consumidor, enquanto parte no contrato em causa, é colocado, por força das disposições nacionais aplicáveis, seja ela sob a forma de uma restrição do conteúdo dos direitos que, segundo essas disposições, para ele resultam desse contrato, ou de um entrave ao exercício dos mesmos ou ainda do facto de lhe ser imposta uma obrigação suplementar, não prevista pelas regras nacionais.
Revisitando a ordem jurídica interna, resulta que o legislador, na jurisdição laboral ou civil, não exige, para integração no conceito de incapacidade total e definitiva, a necessidade de recurso permanente a terceira pessoa para executar os actos normais da vida corrente.
Aliás, essa exigência relativa à vida quotidiana é completamente alheia ao risco principal que se pretende assegurar com a celebração, por um declaratário médio, de um seguro destinado ao pagamento das obrigações decorrentes do contrato de mútuo, que o mutuário, por se encontrar impedido de trabalhar, por razões de saúde, não consegue honrar.
Neste mesmo sentido, o Tribunal da Relação do Porto sustentou, em caso semelhante, que a carência de rendimentos resultante de uma situação de invalidez absoluta e definitiva está associada a uma impossibilidade de os angariar pelo trabalho e não à impossibilidade de praticar os actos correntes como vestir, comer, deslocar-se.
Acresce que a Ré Seguradora não podia razoavelmente esperar que os Autores incluiriam essa cláusula no contrato, na sequência de uma negociação individual, pois isso equivalia a aceitar a desrazoável hipótese de ficarem desprotegidos na maioria das situações de invalidez, considerada grave, em resultado da qual ficassem impossibilitados de trabalhar.
A intencionalidade dos contraentes de um contrato de seguro associado a contrato de mútuo concedido para aquisição de habitação própria consiste, pelo contrário, e como sublinham os Recorrentes, em prevenir a hipótese de perder, por invalidez, a sua capacidade de ganho e consequentemente, a sua habitação.
Por conseguinte, esta denominada cláusula-surpresa, por não ser normal a sua inclusão num contrato, previamente negociado entre contraentes, com aquela finalidade de precisamente assegurar o cumprimento do contrato de mútuo, é manifestamente contrária ao princípio da boa-fé objectiva.
O desequilíbrio contratual entre as partes é significativo, por colocar o consumidor/aderente do contrato de seguro associado ao contrato de mútuo numa posição em que, ao invés de prevenir uma situação de eventual impossibilidade de obter rendimentos do trabalho e de consequente incumprimento do contrato de mútuo, deixa-o numa situação como se não existisse esse contrato de seguro, apesar de ter procedido ao pagamento dos prémios devidos.
A jurisprudência dos tribunais superiores, em casos similares, tem considerado que essa cláusula é contrária à boa-fé, e por isso, reveste carácter abusivo.
Nesta linha argumentativa, o Supremo Tribunal de Justiça declarou nulo, por ser abusivo, o referido segmento ao concluir que num contrato de seguro, que cobre os riscos de morte e de invalidez permanente do segurado que contraiu um empréstimo bancário para adquirir um imóvel—efectuando tal seguro por imposição do mutuante—é desproporcional à caracterização do estado de invalidez permanente que o mesmo seguro visa prevenir, a exigência cumulativa de um grau de incapacidade permanente igual ou supeior a 75% com a impossibilidade de subsistência funcional sem o apoio permanente de terceira pessoa.(negrito nosso)
Neste Tribunal da Relação de Guimarães já foram proferidos pelo menos dois arestos sobre casos iguais ao presente, nos quais se perfilhou o entendimento do Supremo Tribunal de Justiça.

No artigo 2.2 das Condições Especiais do mencionado contrato de seguro, sob a epígrafe "Definição de Invalidez Total e Permanente (ITP)", consta o seguinte: "O Segurado/Pessoa Segura é considerado em estado de Incapacidade Total sempre que, em consequência de uma Doença ou Acidente, se encontre totalmente incapaz de exercer a sua profissão ou qualquer outra actividade lucrativa de acordo com os seus conhecimentos e aptidões.".
Ficou provado que no mês de Julho do ano 2006 foi diagnosticada ao Autor a doença de sarcoidose e diabetes iatrogénica pela corticoterapia, com alterações radiológicas pulmonares e insuficiência respiratória hipoxémica.
Esta doença determinou-lhe uma incapacidade para o exercício da sua profissão de pedreiro assim como para todas as actividades profissionais que exijam esforço físico, sendo tais sequelas irreversíveis.
Desde a data em que lhe foi diagnosticada tal doença, o Autor cessou a sua actividade profissional de pedreiro, profissão que vinha exercendo desde sempre nunca tendo exercido qualquer outra.
De acordo com o seu índice cultural o Autor marido nenhuma profissão sabe exercer para além daquela que desempenhava.
Perante este quadro factual, verificou-se o risco que, através do contrato de seguro, quer os Autores quer o Banco mutuante, quiseram que ficasse assegurado com o pagamento do capital em dívida.
Com a procedência da acção mediante a aplicação das cláusulas contratuais do seguro, sem o referido segmento, que não vincula os Autores por ser de carácter abusivo, deve a Ré proceder ao pagamento a que ficou vinculada ao beneficiário, ficando prejudicada a questão da falta de informação ou comunicação àqueles.
*
V—DECISÃO
Pelo exposto, acordam os Juízes que constituem este Tribunal da Relação em julgar procedente o recurso, e em consequência, decide-se :
--declarar nula, por ser abusiva, a cláusula do artigo 7.1 das Condições Especiais do mencionado contrato de seguro, apenas na parte que exige a obrigação de recorrer à assistência permanente de uma terceira pessoa para efectuar os actos ordinários da vida corrente.
--condenar a Ré a pagar ao “Banco I, S.A”, a parte do capital mutuado que ainda estiver em dívida na data da liquidação, o que na data em que foi interposta a acção ascendia ao montante de €30.438,3 7 (trinta mil quatrocentos e trinta e oito Euros e trinta e sete cêntimos);
--condenar a Ré a restituir aos Autores a quantia que se vier a apurar até à instauração da presente acção, resultante de penhora do vencimento da Autora, no âmbito de Execução instaurada pelo Banco I, S.A, identificada nos autos;
--condenar a Ré a restituir aos Autores o montante que se vier a liquidar a partir da data da instauração da presente acção, correspondente aos valores que estes venham a pagar em virtude de prosseguimento de penhora sobre o vencimentoda Autora, no âmbito daqueles autos de Execução.
Custas, em ambas as instâncias, a cargo da Ré.
Notifique e registe.

(Processado e revisto com recurso a meios informáticos)
Guimarães, 25 de Fevereiro de 2016
(Anabela Andrade Miranda Tenreiro)
(Francisca Micaela Fonseca da Mota Vieira)
(António Figueiredo de Almeida)

1 O Dever de Declaração Inicial do Risco no Contrato de Seguro, Teses Almedina, 2013, pág. 636.
2 v. ob. cit., pág. 637.
3 Cfr. Acórdão do Trib. Rel. Lisboa de 03.12.1998, Direitos do Consumidor, Colectânea de Jusrisprudência, Deco, 2003, pág. 107.
4 Neste sentido, v. Ac. Rel.Porto de 27/02/2014 confirmado pelo Ac. STJ de 18/09/2014 disponíveis em www.dgsi.pt.
5 Cfr. neste sentido Ac. do TJUE (C-472/11) disponível in curia.europa.eu
6 Cfr. Ac. de 27.06.2000 (processo C-240/98) disponível in curia.europa.eu
7 Cfr. Ac. de 21.02.2013 (processo C-472/11) disponível in curia.europa.eu
8 v. Cláusulas Contratuais Gerais e Directiva sobre Cláusulas Abusivas, Almedina, 1999, pág. 31.
9 v. Ac. Pfeiffer de 05.10.2004 (C-397/01) e Ac. Impact de 15.04.2008 (C-268/00) disponíveis in curia.europa.eu.
10 v. ainda Acórdão do TJUE C-96/14 in curia.europa.eu.
11 v. entre outros, Ac. CPP (C-349/96) e Ac. Skandia (C-240/99) disponíveis em curia.europa.eu.
12 v. Acórdão de 02.12.2010 in www.dgsi.pt.
13 Cfr. autores citados por Jorge Morais Carvalho, Manual do Direito do Consumo, 2016, Almedina, pág. 104, nota 263
14 Cfr. Acórdão de 07/10/2010 e ainda os Acórdãos de 24.04.2014 e de 18.09.2014 (que confirmou o Acórdão do Tr. da Relação do Porto de 27.02.2014) disponíveis em www.dgsi.pt.
15 Cfr Acórdãos de 31.05.2011 e de 19.03.2013 disponíveis em www.dgsi.pt.