Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | FERNANDO CHAVES | ||
Descritores: | DIREITO CONTRA-ORDENACIONAL CASSAÇÃO DO TÍTULO DE CONDUÇÃO PERDA TOTAL DE PONTOS IRRECORRIBILIDADE PARA A RELAÇÃO | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 06/18/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Meio Processual: | RECURSO CONTRA-ORDENACIONAL | ||
Decisão: | REJEIÇÃO DO RECURSO | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
Sumário: | I - No direito das contra-ordenações vigora o princípio da irrecorribilidade das decisões, só sendo recorríveis as decisões cuja impugnação esteja expressamente prevista, o que significa, quanto ao recurso das decisões judiciais proferidas em 1ª instância para o Tribunal da Relação, que o mesmo só é admissível nos casos expressamente previstos na lei, ou seja, no artigo 73.º do RGCOC. II – Não é recorrível a sentença que aprecia o recurso de impugnação judicial da decisão administrativa que determinou a cassação do título de condução, nos termos da alínea c) do n.º 4 e do n.º 10 do artigo 148.º do Código da Estrada. III – A admissibilidade do recurso com o fundamento (excepcional ou extraordinário) constante do n.º 2 do artigo 73.º do RGCOC depende de requerimento prévio em que sejam alegados factos demonstrativos da manifesta necessidade de melhorar a aplicação do direito ou promover a uniformidade da jurisprudência. | ||
Decisão Texto Integral: | I – Relatório 1. No âmbito do processo administrativo de cassação do título de condução com o n.º ...1/2023, por decisão do Presidente da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, proferida em 25.08.2023, foi determinada a cassação do título de condução n.º ...45 de que é titular o arguido AA. 2. Inconformado com a decisão administrativa, o arguido interpôs recurso de impugnação judicial, o qual, por sentença proferida em 12.02.2024, foi julgado improcedente, mantendo-se a decisão administrativa nos seus precisos termos. 3. Inconformado com esta decisão, o arguido dela interpôs recurso, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição): «I - Entende o recorrente ser merecedor do benefício concedido pela Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto, que estabelece um perdão de penas e uma amnistia de infracções por ocasião da realização em Portugal das Jornadas Mundiais da Juventude. II - Configurando a cassação da carta de condução uma sanção acessória que implica a perda definitiva do título de condução e a interdição de fazer novo exame de condução durante dois anos, III - Encontra-se a situação relatada enquadrada na alínea a) do n.º 2 do artigo 2.º e no artigo 5.º do referido diploma legal, independentemente da idade do agente à data dos respectivos factos. IV - Perdão esse cuja aplicação ao caso em concreto, desde já, se requer. Sem prescindir, V - Não pode o recorrente conformar-se com a confirmação da decisão de cassação da sua carta de condução, uma vez que este já foi devidamente punido e sancionado por todos os seus erros cometidos no passado, VI - Liquidando todas as coimas e multas em que foi condenado pela prática de uma contra-ordenação e de dois crimes de condução de veículo em estado de embriaguez e cumprindo, escrupulosamente as penas acessórias de inibição de condução por um período global de dezoito meses. VII - O recorrente deixou de consumir qualquer tipo de bebida alcoólica desde ../../2022, o que revela uma firme intenção de mudança e de iniciar uma nova fase da sua vida. VIII - O recorrente tem noção de que a sua conduta rodoviária pretérita não foi a mais correcta, mas entende que, ao invés de se ver penalizado com uma sanção de cassação da carta de condução, impedindo-o de adquirir um novo título pelo período de dois anos, esta deveria ter sido especialmente atenuada ou até mesmo revogada. IX - Nas circunstâncias de tempo e lugar reportadas na decisão, que respeitam aos factos ocorridos no âmbito do processo contra-ordenacional e nos dois processos crime que estiveram na génese do presente processo de cassação, a condução levada a cabo pelo recorrente não provocou qualquer acidente ou danos a terceiros, sendo este um condutor experiente, sem qualquer historial de acidentes rodoviários. X - O recorrente está perfeitamente ciente do desvalor da sua conduta pretérita e firmemente empenhado em não tornar a prevaricar. XI - Crê o recorrente que seria merecedor do benefício da atenuação especial do período durante o qual está inibido de adquirir novo título de condução, atento o período temporal de dezoito meses em que esteve sem poder conduzir. XII - O recorrente agiu com mera negligência, confessou sempre os seus erros e já foi punidos por eles. XIII - O recorrente é um cidadão idóneo, zeloso e cumpridor das normais regras de boa conduta. XIV - Sobrevém, ainda, a necessidade absolutamente vital que o recorrente tem de conservar a sua carta de condução. XV - O recorrente trabalha como chapeiro e pintor na área da reparação de automóveis, funções que exerce de segunda-feira a sábado. XVI - O recorrente vive dos valores que aufere e que nem sempre atingem o valor do salário mínimo nacional, constituindo o garante do seu agregado familiar, composto por si e pela sua companheira, actualmente desempregada. XVII - Possui dois filhos ainda dependente economicamente, fruto de anteriores relacionamentos, que ajuda mensalmente com o pagamento de quantias variáveis. XVIII - É essencial para o recorrente conservar a sua carta de condução, uma vez que a sua oficina se localiza na freguesia ... e reside na freguesia ..., em ..., XIX - Para o cumprimento diário das obrigações profissionais a que está adstrito a utilização da viatura é imprescindível, XX - Não só para se deslocar diariamente entre o seu domicílio e a sua oficina, localizada a cerca de 6 km de distância, mas também para se dirigir a casa dos clientes e às diversas sucatas, a que se adicionam as suas necessidades pessoais, bem como as do seu agregado familiar. XXI - Caso se veja inibido de conduzir, tal situação fará perigar o desenvolvimento da sua profissão e o concomitante bem-estar do seu agregado familiar, pelo que requer-se a V/ Exa. se digne conceder-lhe uma atenuação especial da sanção acessória de cassação da carta de condução. Sem prescindir, XXII - A decisão de confirmação da cassação da carta de condução comunicada ao recorrente, impossibilitando-o de conduzir e de tirar novamente a carta por um período de mais dois anos, afigura-se legalmente inadmissível e inconstitucional. XXIII - A aplicação da cassação do título e interdição da concessão do título de condução de veículo com motor, também prevista no artigo 101.º do Código Penal não pode ser aplicada cumulativamente com a sanção acessória de inibição de conduzir a que o recorrente foi já sujeito, conforme resulta do n.º 7 do artigo 69.º do Código Penal, existindo, portanto, um concurso aparente ou concurso de normas. XXIV - Tendo já sido aplicada a norma do artigo 69.º do Código Penal, não pode agora o recorrente ser objecto de cassação do título de condução e interdição da concessão do título de condução, que na prática tem o mesmo conteúdo da pena prevista no artigo 101.º do Código Penal, XXV - Uma vez que ambas impõem o mesmo comportamento ao arguido, a saber, a proibição de conduzir, afetando os seus direitos de circulação rodoviária, pelo que ambas têm o mesmo conteúdo pragmático e funcional. XXVI - A decisão de cassação do título de condução e o impedimento de obtenção de novo título pelo período de dois anos, e, cumulativamente, a sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor que já lhe foi aplicada, prevista no artigo 69.º do mesmo diploma, viola a norma prevista no n.º 7 do referido artigo 69.º do Código Penal. XXVII - Se assim não se entender, sempre se mostrariam verificados os pressupostos necessários para ser decretada uma redução do período para obter novo título de condução, ou, pelo menos, um desconto do período de dezoito meses já cumprido anteriormente pelo arguido. XXVIII - A aplicação ao recorrente da decisão de cassação da carta e do impedimento de obter novo título pelo período de dois anos configura uma nova aplicação da pena acessória de proibição de conduzir pelo período de dois anos, a somar à pena que já cumpriu de dezoito meses, exatamente pelos mesmos factos, o que configura uma violação do princípio ne bis in idem. XXIX - A interpretação do artigo 148.º n.º 2 do Código da Estrada, aplicado juntamente com a alínea c) do n.º 4 e com os n.ºs 10 e 11 do mesmo artigo é inconstitucional por violação do n.º 5 do artigo 29.º da C.R.P., do n.º 4 do artigo 30.º e do artigo 18.º n.º 2 da C.R.P. XXX - Tal como já foi referido em vários acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra, a disposição do n.º 1 do artigo 134.º do Código da Estrada não pode ser interpretada no sentido de permitir uma dupla sanção. XXXI - Perante um comportamento que configura contraordenação e, simultaneamente, é constitutivo de crime, esgotando a prática do crime a ilicitude da contraordenação, a sanção acessória de inibição de conduzir a aplicar deve ser decretada com base no artigo 69.º do Código Penal, sob pena de violação do princípio ne bis in idem. XXXII - A nossa Constituição proíbe expressamente no seu artigo 30.º, n.º 4 que o cidadão perca direitos, seja qual for a sua natureza, como efeito necessário de uma pena. XXXIII - E o efeito necessário da pena é a perda definitiva e automática do título de condução e o impedimento de conduzir veículos durante dois anos, levando o recorrente a fazer perigar a sua própria subsistência e do seu agregado familiar. XXXIV - A proibição de obter novo título de condução tem uma duração fixa de dois anos, o que entra em contradição com um dos principais princípios do direito, assente no facto de a pena dever ser graduada em função da culpa do infractor. XXXV - No caso sub iudice, estar-se-á a aplicar a mesma pena para todos indiferenciadamente e sem qualquer graduação, o que não poderá ser admissível, por violar os elementares princípios de Justiça e de Direito. XXXVI - A inibição de conduzir veículos com motor, prevista no artigo 69.º n.º 1 do Código Penal e constante da norma do artigo 148.º n.º 11 do Código da Estrada, bem como a cassação do título de condução, assume a natureza de uma verdadeira pena e está associada à prática de um crime. XXXVII - Não obstante ser acessória, está sujeita ao regime geral aplicável a qualquer pena, podendo ser suspensa na sua execução, ser substituída por uma pena alternativa ou ser especialmente atenuada ou agravada, como decorre do estabelecido no artigo 73.º, n.º 2 do Código Penal, visando as penas a proteção de bens jurídicos e a reintegração do agente na sociedade. XXXVIII - A aplicação da pena de cassação do título de condução e impedimento de obtenção de novo título pelo período de dois anos poderá, à semelhança da pena aplicável ao próprio crime, ser suspensa na execução, especialmente atenuada ou agravada e ainda ser substituída por medidas alternativas, designadamente de trabalho a favor da comunidade, o que sempre teria de ser determinado. XXXIX - O recorrente é uma pessoa séria, honesta e idónea e um trabalhador incansável, exercendo a profissão de chapeiro e pintor de automóveis e por força das suas obrigações profissionais tem de efectuar várias deslocações em viatura automóvel, sendo por todos conhecido como um condutor experiente e cauteloso, tendo carta de condução há muitos anos. XL - Quando ficou inibido de conduzir por um período total de dezoito meses, o recorrente atravessou sérias dificuldades económico-financeiras, uma vez que viu o seu volume de trabalho reduzir drasticamente, pois não podia deslocar-se para as várias sucatas, com vista a adquirir peças para reparar os veículos dos seus clientes. XLI - O recorrente é o sustento da casa e tem a seu encargo a sua companheira, que está desempregada e dois filhos de anteriores relacionamentos, que são estudantes e dependem do auxílio financeiro do arguido, XLII - A manter-se a aplicada cassação do título de condução e a impossibilidade de obtenção de novo título pelo período de dois anos, o recorrente perderá a sua única fonte de rendimento e ficará sem qualquer fonte de subsistência, bem como o seu agregado familiar. XLIII - A reintegração do recorrente ou a sua socialização, enquanto finalidades da pena acessória como assinala o artigo 40.º, n.º 1, do Código Penal, visa o respeito e a aceitação por parte do recorrente das normas jurídico-penais a fim de evitar o cometimento de novos crimes no futuro, (prevenção geral positiva). XLIV - A pena aplicada logrará atingir esse objetivo tanto mais quanto mantenha o recorrente inserido num quadro pessoal, familiar e profissional que promova o respeito pela generalidade das normas penais e, sobretudo, dos bens jurídicos que aquelas visam proteger. XLV - A decisão de cassação do título de condução e a impossibilidade de obtenção de novo título pelo período de dois anos viola, por ser excessiva, desproporcional e desigual, os fins de prevenção especial de reintegração do recorrente na sociedade, XLVI - Uma vez que o recorrente necessita da carta de condução para o exercício da sua profissão e a sua perda levará a que fique completamente sem fonte de subsistência, não sendo salvaguardada a reintegração do recorrente na sociedade, como determinam os artigos 71.º, n.º 1 e 40.º, n.º 1, ambos do Código Penal. XLVII - Ao ficar impedido de conduzir durante dois anos, a decisão sob recurso está a retirar ao recorrente o seu trabalho e o seu salário, o que terá inevitavelmente um efeito “dessocializador” a nível profissional, familiar e pessoal, o que é repudiado pelo nosso legislador penal. XLVIII - Estando em causa o direito ao trabalho do recorrente- bem jurídico lesado pela aplicação da sanção agora comunicada - a aplicação da sanção acessória de proibição de conduzir veículos com motor de qualquer categoria implicará um prejuízo real e irreversível para o arguido, tendo em conta que ficará impedido de exercer as suas obrigações profissionais, sujeitando-se a uma pena maior, mais injusta e indesejada às finalidades das punições pelas quais foi já condenado. XLIX - A decisão sob recurso, ao proibir o recorrente de conduzir durante um período de pelo menos dois anos, impossibilita o recorrente de trabalhar, pelo que é manifestamente desnecessária e desproporcional, e como tal inapta, pois elimina o direito fundamental ao trabalho, assegurado constitucionalmente nos termos dos artigos 58.º, n.º 1 e 53.º da C.R.P. L - A interpretação das supra referidas disposições do Código da Estrada, quando interpretadas no sentido de que a aplicação das sanções previstas naquelas normas não são sujeitas a suspensão, redução ou substituição, mesmo quando ponham em causa o direito ao trabalho do arguido, é, outrossim, inconstitucional, por violação dos artigos 58.º, n.º 1 e 53.º da C.R.P. LI - A decisão comunicada ao recorrente terá de ser revogada, ou suspensa na sua execução, ainda que sujeita a um regime de prova do arguido, ou a sua aplicação reduzida apenas para os dias não úteis de trabalho, LII - Sempre descontando os dias de inibição de condução que o recorrente já cumpriu, ou mesmo substituída por trabalho a favor da comunidade, a prestar aos fins de semana pelo arguido, o que já cumpre plenamente as finalidades da punição. NESTES TERMOS, em face dos motivos vindos de indicar, o recorrente apela à superior bondade de V/ Exas., no sentido de revogar a douta sentença recorrida e, em consequência, conceder o perdão da sanção acessória de cassação da carta de condução aplicada, em virtude de o mesmo preencher os condicionalismos previstos no âmbito da Lei n.º 38-A/2023 de 2 de Agosto; Se assim não se entender, Deve a sentença que confirmou a decisão de cassação da carta de condução ser revogada e em sua substituição, ser proferida decisão no sentido de suspender a decisão de cassação na sua execução, ainda que sujeita a um regime de prova do recorrente, ou a sua aplicação reduzida apenas para os dias não úteis de trabalho, sempre descontando os dias de inibição de condução que o recorrente já cumpriu, ou mesmo substituída por trabalho a favor da comunidade, a prestar aos fins de semana pelo arguido, o que já cumpre plenamente as finalidades da punição, assim se fazendo a habitual e acostumada JUSTIÇA.» 4. O Ministério Público respondeu ao recurso, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões (transcrição): «1. No âmbito do Processo de Cassação n.º ...1/2023, foi determinada a cassação da carta de condução n.º ...45, de que o aqui recorrente AA é titular. 2. Por decisão proferida a 12 de Fevereiro de 2024, o Tribunal a quo manteve a decisão administrativa nos seus precisos termos. 3. Não há lugar à aplicação do regime estabelecido na al. a) do n.º 2 do artigo 2.º e no artigo 5.º da Lei n.º 38.º-A/2023, de 2 de Agosto, porquanto a cassação da carta de condução não configura uma sanção acessória. 4. E, por esse motivo, também não há lugar a qualquer atenuação especial do período de inibição de conduzir. 5. A decisão recorrida não é ilegal, inconstitucional nem violou o princípio ne bis in idem. 6. Pois a cassação da carta de condução por efeito da perda total de pontos não constitui uma nova condenação pela prática dos mesmos factos/crimes de condução em estado de embriaguez e desobediência por que o ora recorrente foi cominado em proibição de conduzir veículos. 7. E não é de aplicação puramente automática. 8. Por outro lado, não está dependente de uma apreciação, caso a caso, por parte da Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária, de quaisquer outros requisitos, nomeadamente relacionados com a natureza das infrações praticadas, a personalidade do agente ou com a sua necessidade que o recorrente tem da sua carta de condução. 9. Motivo pelo qual a decisão recorrida não merce censura. Pelo exposto, deve a mesma ser mantida na íntegra, negando-se assim provimento ao recurso. Vossas Excelências, no entanto, decidirão como for de JUSTIÇA.» 5. Nesta Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal, emitiu parecer, afirmando, em síntese, que a decisão recorrida [que conheceu da impugnação judicial da decisão da autoridade administrativa que ordenou a cassação da carta de condução de que era titular o recorrente], não é suscetível de recurso para o Tribunal da Relação por não estar em causa qualquer das situações prevenidas nas alíneas a) a e) do artigo 73.º, n.º 1 do RGCOC, assim como também não estamos perante uma situação enquadrável no n.º 2 do artigo 73.º do RGCOC, pois nem sequer existe requerimento do requerente ou do Ministério Público, no sentido de este Tribunal da Relação dever aceitar o recurso da sentença proferida por tal se afigurar manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência, pelo que se terá de concluir pela sua irrecorribilidade, não estando este Tribunal vinculado à decisão de admissão do recurso proferida pelo Tribunal de primeira instância (cfr. arts. 414.º, nºs 2 e 3, e 420.º, n.º 1, al. b) do Cód. de Processo Penal). Concluiu dizendo que o recurso deverá ser rejeitado por a decisão em crise não ser legalmente recorrível. 6. No âmbito do disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, respondeu o arguido reafirmando a sua anterior posição e acrescentando que pretende lançar mão da faculdade ínsita no n.º 2 do artigo 73.º do RGCOC. 7. Em 29 de Abril de 2024, ao abrigo do disposto no artigo 417.º, n.º 6, alínea b) do Código de Processo Penal, foi proferida decisão sumária que rejeitou o recurso interposto pelo arguido AA por a sentença impugnada ser legalmente irrecorrível. 8. Desta decisão vem agora o arguido reclamar para a conferência, nos termos do disposto no n.º 8 do artigo 417.º do Código de Processo Penal. 9. Notificado o Ministério Público para responder, querendo, este nada disse. 10. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão. * II – Fundamentação1. A questão da irrecorribilidade da decisão Conforme se assinalou naquela decisão sumária: «O recurso é rejeitado sempre que for manifesta a sua improcedência, se verifique causa que devia ter determinado a sua não admissão nos termos do n.º 2 do artigo 414.º ou o recorrente não apresente, complete ou esclareça as conclusões formuladas e esse vício afecte a totalidade do recurso nos termos do n.º 3 do artigo 417.º – alíneas a), b) e c) do n.º 1 do artigo 420.º do Código de Processo Penal. De acordo com o n.º 2 do artigo 414.º do citado diploma, o recurso não pode ser admitido quando, além do mais, a decisão for irrecorrível. O artigo 73.º do Regime Geral das Contra-Ordenações e Coimas [doravante RGCOC] estabelece o seguinte: «1 - Pode recorrer-se para a Relação da sentença ou do despacho judicial proferidos nos termos do artigo 64.º quando: a) For aplicada ao arguido uma coima superior a (euro) 249,40; b) A condenação do arguido abranger sanções acessórias; c) O arguido for absolvido ou o processo for arquivado em casos em que a autoridade administrativa tenha aplicado uma coima superior a (euro) 249,40 ou em que tal coima tenha sido reclamada pelo Ministério Público; d) A impugnação judicial for rejeitada; e) O tribunal decidir através de despacho não obstante o recorrente se ter oposto a tal. 2 - Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência. 3 - Se a sentença ou o despacho recorrido são relativos a várias infracções ou a vários arguidos e se apenas quanto a alguma das infracções ou a algum dos arguidos se verificam os pressupostos necessários, o recurso subirá com esses limites» No direito das contra-ordenações vigora o princípio da irrecorribilidade das decisões, só sendo recorríveis as decisões cuja impugnação esteja expressamente prevista, o que significa, quanto ao recurso das decisões judiciais proferidas em 1ª instância para o Tribunal da Relação, que o mesmo só é admissível nos casos expressamente previstos na lei, ou seja, no artigo 73.º do RGCOC([1]). Está em causa a sentença que, ao apreciar o recurso de impugnação judicial do arguido, manteve a decisão administrativa, a qual, ao abrigo do estabelecido na alínea c) do n.º 4 e no n.º 10 do artigo 148.º do Código da Estrada, determinou a cassação do título de condução n.º ...45 de que é titular o arguido. A cassação do título de condução prevista no artigo 148.º do Código da Estrada não é uma pena acessória ou medida de segurança, mas antes uma consequência, legalmente prevista, da condenação em concretas penas ou sanções assessórias de proibição ou de inibição de conduzir que tenham determinado a perda total de pontos atribuídos ao respectivo titular. A cassação tem por base um juízo feito pelo legislador sobre a perda das condições exigíveis para a concessão do título de condução, designadamente por verificação de ineptidão para o exercício da condução, que implica o termo da concessão da autorização administrativa para conduzir, mas tal juízo está associado à condenação por ilícitos contraordenacionais ou criminais relativos à condução, determinantes da aplicação de sanção acessória de inibição de conduzir ou de pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados([2]). A lei (artigo 73.º do RGCOC) apenas admite recurso, para o Tribunal da Relação, da sentença que, na 1.ª instância, tiver conhecido a impugnação da decisão da autoridade administrativa verificada que seja uma das cinco situações incluídas nas alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 73.º. Por conseguinte, uma vez que não está em causa qualquer das situações previstas nas alíneas a) a e) do n.º 1 do artigo 73.º do RGCOC – aplicação de uma coima de valor superior a € 249,40; aplicação de alguma sanção acessória; absolvição do arguido ou arquivamento do processo; rejeição da impugnação judicial; decisão através de despacho apesar da oposição do recorrente –, não é admissível recurso para o Tribunal da Relação da sentença em causa por não ser caso previsto no artigo 73.º, n.º 1 do RGCOC.». Reitera-se esta afirmação. Alega o reclamante que foi impedido de lançar mão da faculdade ínsita no n.º 2 do artigo 73.º do Regime Geral das Contra-Ordenações, o qual preceitua que, para além dos casos enunciados no número 1 do artigo 73.º, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência. Mais alega que apenas lançou mão de tal mecanismo, de forma expressa, em sede de resposta ao Parecer do Digno Magistrado do Ministério Público mas tal normativo não especifica qual o momento processual idóneo para o efeito e nada na lei o impedia de o fazer apenas nessa altura. A este propósito pode ler-se no relatório daquela decisão sumária (ponto 6): «No âmbito do disposto no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal, respondeu o arguido reafirmando a sua anterior posição e acrescentando que pretende lançar mão da faculdade ínsita no n.º 2 do artigo 73.º do RGCOC, a qual postula que: Para além dos casos enunciados no número anterior, poderá a relação, a requerimento do arguido ou do Ministério Público, aceitar o recurso da sentença quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência. A este respeito diga-se, desde já, que a resposta prevista no n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal serve unicamente para responder ao Ministério Público nos casos em que este não se tenha limitado a apor o seu visto nos autos. O n.º 2 do artigo 417.º do Código de Processo Penal destina-se a concretizar, na fase processual em que está inserido, o princípio basilar do contraditório, permitindo ao arguido e aos restantes sujeitos processuais, responder ao parecer do Ministério Público proferido no visto inicial da fase do recurso, mas não tem a virtualidade de conferir a qualquer desses sujeitos um novo espaço para nova motivação do recurso ou para ampliação do objecto do que foi interposto, tal como emerge das conclusões da motivação oportunamente oferecida([3]). As conclusões da motivação é que definem, de forma definitiva, o objecto do recurso a conhecer pelo tribunal ad quem, como é jurisprudência pacífica. Significa isto que a questão nova suscitada pelo arguido na sua resposta – a admissibilidade do recurso com o fundamento (excepcional ou extraordinário) constante do n.º 2 do citado artigo 73.º do RGCOC –, não pode ser conhecida por este Tribunal da Relação na medida em que a aceitação do recurso com vista com vista à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência não foi invocada como fundamento para a admissibilidade do recurso, sendo certo, ainda, que inexiste o requerimento prévio a que alude o n.º 2 do artigo 74.º do RGCOC.». Acrescentou-se na fundamentação daquela decisão sumária o seguinte: «Como ficou dito, também não se coloca a questão da admissibilidade do recurso com o fundamento (excepcional ou extraordinário) constante do n.º 2 do artigo 73.º do RGCOC, pois este fundamento foi invocado extemporaneamente na resposta ao parecer do MP, não tendo o recorrente apresentado, junto ao recurso, antecedendo-o, requerimento prévio alegando factos demonstrativos da manifesta necessidade de melhorar a aplicação do direito ou promover a uniformidade da jurisprudência, expondo logo a fundamentação, cuja demonstração melhor é feita em sede de motivação de recurso, como exige o n.º 2 do artigo 74.º do RGCOC. Trata-se de um requisito de ordem processual por um lado e, substantivo, por outro, que se não traduz em formalidade de natureza puramente secundária ou formal, que sob o recorrente impenda, antes se conexionando com a inteligibilidade e concludência da própria pretensão atinente com a necessidade de justificar o recebimento do recurso([4]).». Ao contrário do que sustenta o recorrente, a lei especifica qual é o momento processual idóneo para lançar mão da faculdade ínsita no n.º 2 do artigo 73.º do Regime Geral das Contra-Ordenações. Conforme exige o n.º 2 do artigo 74.º do citado diploma, nos casos previstos no n.º 2 do artigo 73.º, o requerimento deve seguir junto ao recurso, antecedendo-o, o que bem se compreende, pois constitui também um requisito de ordem processual em ordem à admissibilidade do recurso com o fundamento (excepcional ou extraordinário) constante do n.º 2 do artigo 73.º do RGCOC. Como já há muito se escreveu: «O requerimento a pedir à Relação que receba o recurso em processo de contra-ordenação “quando tal se afigure manifestamente necessário à melhoria da aplicação do direito ou à promoção da uniformidade da jurisprudência” tem de acompanhar o recurso, antecedendo-o, sem o que o juiz terá de proferir despacho de não admissão.»([5]). Assim, não sofre dúvidas que o recorrente lançou mão da faculdade ínsita no n.º 2 do artigo 73.º do RGCOC extemporaneamente pelo que não se coloca a questão da admissibilidade do recurso com este fundamento (excepcional ou extraordinário). * III – DecisãoNestes termos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar improcedente a reclamação e, em consequência, rejeitar o recurso interposto pelo arguido AA por a sentença impugnada ser legalmente irrecorrível. * Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 UC, a que acresce a condenação no pagamento de importância equivalente a 4 UC nos termos do n.º 3 do artigo 420.º do Código de Processo Penal.* (O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)Guimarães, 18.06.2024 Fernando Chaves (Relator) Cristina Xavier da Fonseca (1ª Adjunta) Pedro Freitas Pinto (2º Adjunto) [1] - Cfr. Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Regime Geral das Contra-Ordenações à luz da CRP e da CEDH, edição de 2011, pág. 298. [2] - Cfr. Acórdãos do Tribunal Constitucional nºs 260/2020 e 154/2022, ambos disponíveis em www.tribunalconstitucional.pt. [3] - Cfr. Acórdão do STJ de 2/04/2004, Proc. 04P263, in www.dgsi.pt. [4] - Cfr. Acórdão da Relação do Porto de 25/01/2017, Processo n.º 17052/16.4T8PRT.P1, disponível em www.dgsi.pt/jtrp. [5] - Acórdão da Relação do Porto de 14/01/1998, Processo n.º 9710984, disponível em www.dgsi.pt/jtrp. |