Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3840/17.8T8VCT-L.G1
Relator: MARIA JOÃO MATOS
Descritores: CASO JULGADO FORMAL
DECISÃO QUE REAFIRMA A ANTERIOR
INADMISSIBILIDADE DE RECURSO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/11/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I. O despacho inicial do relator, que admita tabelarmente um recurso de apelação interposto, não faz caso julgado, permitindo depois a sua alteração posterior, em sede de acórdão, proferido pelo colectivo de juízes de que faça parte.

II. A sentença ou despacho que haja recaído unicamente sobre a relação processual e que não seja mais susceptível de recurso ordinário ou de reclamação fica a ter força obrigatória dentro do processo (caso julgado formal), impedindo que o mesmo tribunal, na mesma acção, possa alterar a decisão proferida.

III. Tendo sido proferidas decisões no processo de insolvência, transitadas em julgado, ordenando a tomada de posse de um prédio misto (cujo direito de propriedade a 75% do mesmo foi apreendido no dito processo), se necessário com recurso à força pública, o despacho posterior a ordenar a sua desocupação é meramente reafirmativo de idêntico comando (de desocupação do imóvel).

IV. O recurso pretendido interpor de decisão que apenas reafirma outra, prévia, já transitada em julgado, sem adução de inéditos e supervenientes fundamentos (de facto e de direito) para a sindicância da decisão posterior, é inadmissível.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães

I - RELATÓRIO

1.1. Decisão impugnada
1.1.1.  Em 06 de Dezembro de 2017, no processo n.º 3840/17.... (do Juízo de Comércio de ...) foi proferida sentença declarando a insolvência de AA, residente no lugar ..., ..., ... e ..., ... (que se apresentara à mesma).

1.1.2. Em 15 de Janeiro de 2018, no Apenso A (de Apreensão de Bens), o Administrador da Insolvência procedeu ao arrolamento de um imóvel, com a seguinte descrição:
«(…)
VERBA N.º 1
75/100 do prédio misto, denominado Quinta ..., Campo ..., ... ou ..., Campo ... e ..., composto por casa de dois pavimentos, cortes e lagar com 300 m2, logradouro com 1306 m2, quinteiro, rossios e terreno de lavradio, com 10643 m2, a confrontar a norte, sul e nascente, caminho público e poente, herdeiros de BB, sito em ..., inscrito na matriz predial urbana sob o artigo ...0, inscrito na matriz predial rústica sob o artigo ...0, inscrito na matriz predial rústica sob os artigos ...81, ...83 e ...85, da União das freguesias ..., do Concelho ..., descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o nº ...05 da freguesia ..., com os valores patrimoniais de:

Artigo Urbano ...0, Valor patrimonial de____________________________€ 41.468,88

Artigo Rústico ...81, Valor patrimonial de__________________________€ 65,34

Artigo Rústico ...83, Valor patrimonial de__________________________€ 187,25

Artigo Rústico ...85, Valor patrimonial de__________________________€ 88,89
(…)»

1.1.3. O prédio misto apreendido nos autos de insolvência era propriedade, na proporção de 75%, do Insolvente (AA) e, na proporção de 25%, de CC e marido, DD, residentes na Rua ..., ....

1.1.4. CC faleceu no dia ../../2017, no estado de casada com DD; e sucederam-lhe como únicos herdeiros o viúvo (DD) e a única filha do casal, EE.

1.1.5. Em 13 de Setembro de 2019, no Apenso D (de Liquidação), foi proferido despacho a autorizar a venda da totalidade do prédio misto apreendido nos autos de insolvência, com a consequente repartição do produto da venda, na proporção devida, nele e no processo executivo n.º 21655/07.... (onde eram iniciais executados FF e marido, DD).

1.1.6. Entre ../../2020 e ../../2020, no Apenso D (de Liquidação), decorreu a venda através de leilão electrónico do prédio misto apreendido nos autos de insolvência, resultando um registo de oferta no valor de € 115.000,00, valor inferior ao valor mínimo de venda (€ 123.500,00), importando, por isso, ouvir o credor hipotecário para saber se ele o aceitaria.

1.1.7.  Em ../../2020, no Apenso D (de Liquidação), EE requereu que se sustasse «em tempo útil o identificado leilão electrónico», alegando nomeadamente que «o prédio posto à venda em leilão electrónico não é NA SUA TOTALIDADE propriedade do Insolvente», pelo que a parte que não pertence a este «não podia ter sido apreendida para a massa da Insolvência», nem «poderia estar a ser objecto de venda em leilão electrónico», o que apenas poderia acontecer depois do «Sr. Administrador de Insolvência (…) ter procedido à competente separação de bens».

1.1.8.  Em 03 de Março de 2020, no Apenso E (Restituição e separação de bens), EE e GG, intentaram uma acção para separação e restituição de bens, nos termos dos art.ºs 141.º e 146.º do CIRE, contra Massa Insolvente de AA, contra AA e contra todos os Credores da Massa Insolvente, pedindo que «os Réus fossem condenados na separação e restituição aos Autores de vinte e cinco por cento do prédio misto» apreendido nos autos de insolvência.

1.1.8.1. Em 07 de Novembro de 2021, no Apenso E (Restituição e separação de bens), foi proferida sentença, julgando verificada a excepção dilatória de falta de interesse em agir dos Autores e absolvendo os Réus da instância, lendo-se nomeadamente na mesma:
«(…)
Ora, resulta claro e evidente que os Autores nestes autos pretendem a separação e
restituição de parte do prédio misto supra id. que não foi efectivamente apreendida, logo não têm nesta sede interesse em agir.
Pelo exposto, verificada a excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir dos Autores, decide-se, em consequência, pela absolvição dos Réus da respectiva instância.
(…)»

1.1.8.2. EE, no Apenso E (Restituição e separação de bens), interpôs recurso da sentença proferida no mesmo.

1.1.8.3. Em 17 de Fevereiro de 2022, no Apenso E (Restituição e separação de bens), foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Guimarães, julgando a apelação improcedente e confirmando a sentença recorrida.

1.1.9. Em 09 de Março de 2020, no Apenso D (de Liquidação), foi proferido despacho indeferindo a suspensão das operações de liquidação do activo, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Requerimento de 27.02.2020 [...12], pronúncias do Banco 1... e AI:
Por despacho datado de 13/09/2019, decidiu este Tribunal autorizar a venda da totalidade do imóvel id. nos autos – pese embora tenha sido apenas apreendida a quota-parte de que a insolvente é titular – com a consequente repartição do produto da venda na proporção que é legítima, ficando, assim, salvaguardado o direito dos herdeiros de CC.
Entretanto, promovida a venda através de leilão electrónico, decorrido entre os dias ../../2020 e ../../2020, do mesmo resultou um registo de oferta no valor de 115.000,00€, valor esse que, apesar de ser inferior ao valor mínimo de venda (123.500,000€), deverá ser colocado à consideração do credor hipotecário, tendo em conta que o tempo a que se arrasta efectivamente a presente liquidação do activo.
Ora, a predita diligência de venda, para além de pública, foi comunicada aos presentes autos, aos quais os intervenientes acidentais têm acesso.
Atento o exposto, não se vislumbram pois razões para manter a suspensão das operações de liquidação do activo, assim se determinando que a mesma prossiga os ulteriores trâmites.
(…)»

1.1.10. Em 30 de Março de 2020, no Apenso D (de Liquidação), foi proferido despacho a ordenar o prosseguimento das diligências de liquidação do activo, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Requerimento de 27.03.2020 [...32]:
Notifique-se o Sr. Administrador, dando conta de que poderá/deverá prosseguir com as diligências com vista à liquidação do activo.
(…)»

1.1.11. Em 06 de Junho de 2020, no Apenso D (de Liquidação), sob prévio requerimento do Administrador da Insolvência nesse sentido, foi proferido despacho a autorizar o recurso à força pública para tomada de posse do prédio misto apreendido, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Requerimento de 03.07.2020 [...17]:
Autoriza-se o Sr. Administrador ao recurso às autoridades policiais para efeitos de tomada de posse do imóvel em sujeito.
(…)»

1.1.11.1. EE, no Apenso D (de Liquidação), interpôs recurso «da douta decisão proferida nos autos de processo acima identificado, que no referido despacho proferiu decisão de autorizar o sr. administrador ao recurso as autoridades policiais para tomada de posse do imóvel, objecto de separação e restituição de bens em acção instaurada e propriedade da ora recorrente e seu pai na percentagem de vinte e cinco por cento, encontrando-se o mesmo na posse de ambos e sendo casa de habitação do herdeiro DD».

1.1.11.2. Em 31 de Agosto de 2020, no Apenso D (de Liquidação), foi proferido despacho, não admitindo o recurso interposto por EE (do despacho que admitira o recurso à força pública para tomada de posse do prédio misto apreendido nos autos), lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Uma vez que o despacho em crise se limita a conceder autorização para que o Sr. AI recorra à autoridade policial, confirmando a decisão (entretanto transitada em julgado) datada de 30.03.2020, com vista à prossecução das diligências de liquidação do activo, sendo por isso entendido como um despacho de mero expediente ou, pelo menos, proferido no uso de um poder discricionário do juiz, não é legalmente admissível o respectivo recurso em face do disposto no artigo 630º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, assim não se admitindo o recurso ora interposto por EE.---
Custas do incidente a cargo da recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 1 UC.---
(…)»

1.1.11.3. Tendo EE reclamado da não admissão do recurso por si pretendido interpor, em 12 de Outubro de 2020, no Apenso H (Reclamação - art.º 643 CPC), foi proferida decisão sumária no Tribunal da Relação de Guimarães, indeferindo a sua reclamação; e tendo aquela reclamado desta para a conferência, em 02 de Dezembro de 2020, no mesmo Apenso H (Reclamação - art.º 643 CPC), foi proferido acórdão, confirmado a prévia decisão sumária.

1.1.11.4. Tendo EE interposto recurso de revista do prévio acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, em 23 de Março de 2021, no Apenso H (Reclamação - art.º 643 CPC), foi proferido acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça, julgando «findo o recurso interposto por EE, por não haver que conhecer do seu objecto».

1.1.11.5. Tendo EE pretendido interpor para o Tribunal Constitucional do prévio acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, por decisão de 06 de Maio de 2021, no Apenso H (Reclamação - art.º 643 CPC), não foi o mesmo admitido.

1.1.12. Em 16 de Julho de 2020, no Apenso F (Verificação ulterior de créditos/outros direitos), HH, afirmando-se «como gestor de negócios desde 2014 da vinha implantada no imóvel acima descrito», e GG, afirmando-se «na qualidade de comodatário e de beneficiário da promessa de transmissão que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, imóvel acima descrito», intentaram uma acção contra Massa Insolvente de AA, contra AA e contra todos os Credores da Massa Insolvente, pedindo que fosse «declarado o direito de retenção» deles próprios «sobre o prédio misto» apreendido nos autos de insolvência.

1.1.12.1. Em 31 de Janeiro de 2022, no Apenso F (Verificação ulterior de créditos/outros direitos), foi proferida sentença, julgando a acção totalmente improcedente e absolvendo os Réus do pedido.

1.1.12.2. HH, no Apenso F (Verificação ulterior de créditos/outros direitos), interpôs recurso da sentença nele proferida; e foi proferido despacho, no mesmo Apenso F (Verificação ulterior de créditos/outros direitos), a admitir o seu recurso.

1.1.12.3. Em 22 de Setembro de 2022, no Apenso F (Verificação ulterior de créditos/outros direitos), foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Guimarães, julgando improcedente a apelação e confirmando a sentença recorrida.

1.1.13. Em 21 de Agosto de 2020, no Apenso D (de Liquidação), foi proferido despacho reiterando a ordem para a tomada de posse do prédio misto apreendido, por forma a lograr a sua integral desocupação e posterior entrega ao comprador, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
De acordo com a previsão do n.º 7 do artigo 6-A da Lei n.º 16/2020, de 29 de maio, “nos casos em que os atos a realizar em sede de processo executivo ou de insolvência referentes a vendas e entregas judiciais de imóveis sejam suscetíveis de causar prejuízo à subsistência do executado ou do declarado insolvente, este pode requerer a suspensão da sua prática, desde que essa suspensão não cause prejuízo grave à subsistência do exequente ou um prejuízo irreparável, devendo o tribunal decidir o incidente no prazo de 10 dias, ouvidas as partes.”
Ora, in casu, nada foi requerido pelo insolvente – que não habita o imóvel em questão – quanto à suspensão da diligência de tomada de posse do imóvel.
Por outro lado, da informação prestada nos autos resulta que EE, advogada em causa própria, se opôs à concretização da diligência de tomada de posse uma vez que o seu pai, herdeiro da comproprietária do imóvel apreendido, DD – nessa qualidade tendo sido requerida a sua habilitação no processo executivo então em curso (processo n.º 610/10....) – se encontra acamado.
Sucede que o Tribunal ordenara já o prosseguimento das diligências de liquidação do ativo, por despacho datado de 09/03/2020, notificado a todos os intervenientes, nenhum tendo recorrido ou reclamado, e entretanto reiterado por despacho de 30/03/2020, tendo ambos os despachos já transitado em julgado.---
Entretanto, ainda, até à data agendada para a diligência de tomada de posse (que se encontrou agendada para o dia 30/07/2020), e pese embora DD se encontre devidamente representado nestes autos, nada requereu nesse sentido, resultando inclusive a sua residência na Rua ..., ... .... Da mesma forma, no processo executivo n.º 610/10.... em que DD também se encontra representado, nada requereu, sendo a morada que consta daqueles autos sita naquela mesma morada em ..., resultando a mesma aliás como coincidente com o seu domicílio fiscal [cf. consulta à DGSI entretanto junta aos autos].
Acresce que, pese embora o alegado pela filha daquele interveniente, não cuidou esta de juntar qualquer prova relativa ao estado de saúde do seu pai, DD.
Por tudo o exposto, entende o Tribunal não se mostrar demonstrado que o alegado (e não comprovado) estado de saúde ou subsistência do interveniente DD seja passível de ser afetado pelas diligências de tomada e imóvel do imóvel apreendido nestes autos [prédio misto descrito na Conservatória de Registo Predial ... sob o n.º ...19 da freguesia ... e inscrito na matriz com o Artigo Urbano ...0 e artigos rústicos ...81, ...83 e ...85 da referida freguesia], termos em que se indefere a pretensão deduzida por EE e se determina que Sr. Administrador diligencie pela marcação de nova data para proceder à tomada de posse do referido imóvel, assegurando a sua integral desocupação, para posterior entrega ao comprador.
(…)»

1.1.13.1. EE, no Apenso D (de Liquidação), interpôs recurso «da douta decisão proferida nos autos de processo acima identificado, que no referido despacho proferiu decisão de autorizar o sr. administrador de insolvência a diligenciar no sentido da tomada de posse do imóvel, objecto de acção de separação e restituição de bens, em acção instaurada e propriedade da ora recorrente e seu pai na proporção de vinte e cinco por cento, encontrando-se o mesmo na posse de ambos e sendo casa de habitação do herdeiro/proprietário DD.
(…)
Acresce que qualquer diligência de entrega do imóvel, causa aos também proprietários, possuidores, comodatário e detentores de direito de retenção avultados prejuízos devido à cultura existente no imóvel (…).
(…)»

1.1.13.2. Em 22 de Setembro de 2020, no Apenso D (de Liquidação), foi proferido despacho admitindo o recurso interposto.

1.1.13.3. Em 16 de Novembro de 2020, no Apenso D (de Liquidação), foi proferida decisão sumária no Tribunal da Relação de Guimarães, abstendo-se de conhecer do objecto do recurso, por falta de conclusões; e tendo aquela reclamado desta para a conferência, em 21 de Janeiro de 2021, no mesmo Apenso D (de Liquidação), foi proferido acórdão, confirmado a prévia decisão sumária.

1.1.13.4. Tendo EE interposto recurso de revista do prévio acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães, em 22 de Setembro de 2021, no Apenso D (de Liquidação), foi proferido acórdão pelo Supremo Tribunal de Justiça, julgando improcedente a revista.

1.1.13.5. Tendo EE interposto recurso para o Tribunal Constitucional do prévio acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, por decisão sumária de 22 de Fevereiro de 2022, no Apenso D (de Liquidação), foi decidido não conhecer do objecto do recurso; e tendo aquela reclamado desta para a conferência, em 28 de Abril de 2022, no mesmo Apenso D (de Liquidação), foi proferido acórdão, confirmando a prévia decisão sumária.

1.1.14. Em 16 de Março de 2023, no Apenso D (de Liquidação), «a Requerente EE, na qualidade de mandatária de GG e requerente no processo supra referido», veio requerer «a junção aos autos de documento e a consequente suspensão de qualquer diligência no sentido de prosseguimento com as operações de liquidação do activo, nos termos ordenados nos autos, conforme pretende o Sr. Administrador de insolvência, por ter sido interposta acção declarativa constitutiva de contrato promessa, pelo requerente e Autor relativa ao imóvel objecto deste processo, conforme documento que se junta em anexo, por se encontrarem direitos e obrigações a ser exercidos. Pondo em causa o principio do contraditório e outros direitos constitucionais».

1.1.15. Em 20 de Março de 2023, no Apenso D (de Liquidação), foi proferido despacho concedendo a EE uma prorrogação de prazo impetrada por ela para junção de documentos (nomeadamente, cópia integral da petição inicial da acção relativa à execução específica de contrato-promessa que invocara) e determinando a não suspensão da liquidação do activo, lendo-se nomeadamente no mesmo:

«(…)
Requerimento de 16.03.2023 [...72]:
Concede-se a prorrogação de prazo requerida, advertindo-se porém a requerente que o prazo ora concedido não importa a suspensão da liquidação em curso.
Notifique, dando igualmente conhecimento ao AI, este com vista a dar andamento às diligências de liquidação.
(…)»

1.1.15.1. EE, no Apenso D (de Liquidação), interpôs recurso do despacho de 20 de Março de 2023 (que não suspendera a liquidação do activo), alegando nomeadamente:
«(…)
19. O insolvente e promitente vendedor e o promitente comprador e requerente, dos presentes autos, celebraram um contrato-promessa, muito tempo antes do processo e consequente declaração de insolvência,
20.Nesse contrato promessa houve tradição da coisa, nomeadamente a entrega do imóvel (nomeadamente entrega de chaves) tendo a posse do referido imóvel desde essa data o promitente comprador e ora requerente,
21. Também neste contrato promessa houve pagamento do preço, pelo promitente comprador ao promitente vendedor,
22. Tendo desde essa data, da realização do contrato, o promitente comprador e os seus familiares passado a habitar o mencionado imóvel,
23. Assim como, desde essa data que o promitente comprador passou a usar o referido imóvel de forma privada e com vista a satisfazer as suas necessidades pessoais e familiares,
(…)»

1.1.15.2. Em 16 de Maio de 2023, no Apenso D (de Liquidação), foi proferido despacho não admitindo o recurso pretendido interpor por EE, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
Uma vez que o despacho em crise se limita a conceder uma prorrogação de prazo (que favorece aliás a própria recorrente) e a fazer uma mera advertência, sendo por isso entendido como um despacho de mero expediente ou, pelo menos, proferido no uso de um poder discricionário do juiz, não é legalmente admissível o respectivo recurso em face do disposto no artigo 630º, nº 1 do Cód. Proc. Civil, assim, não se admitindo o recurso ora interposto por EE.
(…)»

1.1.15.3. Tendo EE reclamado da não admissão do recurso por si pretendido interpor, em 01 de Julho de 2023, no Apenso J (Reclamação - art.º 643 CPC) foi proferida decisão sumária no Tribunal da Relação de Guimarães, indeferindo a sua reclamação; e tendo aquela reclamado desta para a conferência, foi proferido acórdão em 14 de Setembro de 2023, no mesmo Apenso J (Reclamação - art.º 643 CPC), confirmado a não admissão do recurso.

1.1.16. Em 01 de Abril de 2023, no Apenso D (de Liquidação), «EE, na qualidade de mandatária de GG e requerente no processo supra referido, vêm exercer o Direito de Retenção» sobre o «Prédio misto: Quinta ..., Campo ..., ... ou ..., Campo ... e ..., inscrito na antiga matriz predial sob os artigos ...9 Urbano e ...75, ...76 e ...77 rústico da referida freguesia e actualmente inscritos no artigo ...0 urbano, ...81, ...83 e ...85 da U. F. ... e descrito na competente Conservatória de Registo Predial ..., freguesia ... sob a ficha nº ...05».
Alegou, nomeadamente que o direito de retenção invocado «foi conferido pelo contrato promessa realizado pelo ora insolvente, como promitente-vendedor e pelo o também ora requerente como promitente comprador, relativamente ao referido imóvel».

1.1.17. Em 16 de Maio de 2023 no Apenso D (de Liquidação), foi proferido despacho, indeferindo o reclamado reconhecimento do direito de retenção invocado, lendo-se nomeadamente no mesmo:

«(…)
Requerimento de 01.04.2023 [...12]:
Arguindo os Requerentes a existência de um crédito alegadamente fundado em contrato-promessa de compra e venda celebrado com o devedor e relativo a imóvel entretanto apreendido para a massa insolvente, crédito aquele relativamente ao qual reclamam ainda existir um direito de retenção, o meio próprio para o exercício da respectiva pretensão, por via judicial, é a proposição de ação de verificação ulterior de créditos, nos termos previstos no art.º 146.º do CIRE, por apenso aos autos da insolvência, e dentro dos prazos ali previstos.
Pelo exposto, concluindo-se não ser este o meio próprio para o exercício da pretensão deduzida, vai a mesma liminarmente indeferida.
Custas pelos Requerentes, fixando-se a taxa de justiça em 3 UCs.
(…)»

1.1.17.1. EE, no Apenso D (de Liquidação), interpôs recurso do despacho de 16 de Maio de 2023 (que não reconhecera o direito de retenção invocado); e por despacho proferido no mesmo Apenso D (de Liquidação), foi admitido o seu recurso.

1.1.17.2. Em 19 de Dezembro de 2023, no Apenso K (Recurso em separado), foi proferido acórdão pelo Tribunal da Relação de Guimarães, julgando improcedente o recurso de apelação interposto e confirmando o despacho de 16 de Maio de 2023.

1.1.18. Em 24 de Outubro de 2023, no Apenso D (de Liquidação), o Administrador da Insolvência veio informar sobre o estado da liquidação, lendo-se nomeadamente na sua informação:
«(…)
II, Administrador da insolvência nomeado nos autos à margem identificados, vem informar que pretende diligenciar pela aceitação da proposta no valor de 115.000,00€, apreciada favoravelmente pelo credor hipotecário – cfr. requerimento junto em 16/03/2020.
No entanto, a escritura pública de compra e venda só poderá ser realizada mediante a desocupação do imóvel, pelo que o signatário requer a V/ Exa. Se digne proferir despacho que ordene a referida desocupação e, caso assim seja entendido pelo tribunal, oficiar os serviços da Segurança Social e da Câmara Municipal com vista ao realojamento da pessoa que está a habitar imóvel, nos termos do disposto no art.º 86l .º do CPC, aplicável por força do art.º 17º do CIRE.
(…)»

1.1.19. Em 28 de Outubro de 2023, no Apenso D (de Liquidação), foi proferido despacho, ordenando a desocupação do prédio misto apreendido nos autos de insolvência, lendo-se nomeadamente no mesmo:
«(…)
INFORMAÇÃOTRIMESTRAL
Visto.
Ordena-se a desocupação do imóvel apreendido nos autos, determinando-se que se oficiem os serviços da Segurança Social e da Câmara Municipal com vista ao realojamento da pessoa que ali se encontra a habitar, nos termos do disposto no art.º 86l.º do CPC, aplicável por força do art.º 17.º do CIRE.
(…)»
*
1.2. Recurso
1.2.1. Fundamentos
Inconformada com esta decisão, a Requerente (EE) interpôs o presente recurso de apelação, pedindo que fosse julgado procedente e se revogasse o despacho recorrido (por forma a ficar sem efeito a desocupação do imóvel).

Concluiu as suas alegações da seguinte forma (aqui se reproduzindo as respectivas conclusões ipsis verbis, com excepção da concreta grafia utilizada e de manifestos e involuntários erros e/ou gralhas de redacção):

A - O douto despacho não valorou e considerou erradamente a suspensão dos prazos dos tribunais.

B - O imóvel em causa está na posse de dois comproprietários e seus possuidores e ainda de mais dois possuidores,

C - Sendo este facto do conhecimento de todos os intervenientes, inclusivamente nos autos acima referidos,

D - Pelo que os direitos dos cidadãos tem de ser respeitados e a Lei cumprida.
 
E - O imóvel em questão, além de não ser propriedade exclusiva do insolvente, existem comproprietários,

F - Nomeadamente, um deles é a pessoa que no despacho se quer realojar por ali se encontrar a habitar,

G - Pretendendo a douta decisão recorrida esquecer a sua verdadeira condição de proprietário e possuidor do imóvel,

H - Assim como também existem possuidores com posse legalmente estabelecida pelo próprio insolvente, AA,

I - Mediante contratos celebrados entre as partes, nomeadamente o possuidor GG e o insolvente AA,

J - Onde foram estabelecidos e transmitidos direitos e garantias, nomeadamente a posse do imóvel,

K - Assim como existem recursos interpostos para Tribunal superior, a aguardar decisão no presente processo,

L - E sobre os quais se encontra a aguardar decisão,

M - Mas, contrariamente à Lei e a protecção dos direitos, a douta decisão decidiu pela desocupação do imóvel, sem considerar os direitos e garantias existentes, nomeadamente em contratos e acção proposta em Tribunal,

N - Pondo em causa o Direito e a Lei,

O - Concretamente a existência de um contrato promessa, o qual é objecto no momento de uma acção de execução especifica que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, com o número 5741/23....,

P - Sendo esse contrato promessa, celebrado nos termos do artigo 410º do C.C., entre o Insolvente, AA e o Possuidor GG,

Q - E constando do seu clausulado que o Sr. AA se obrigou a celebrar o contrato definitivo, e deu a posse e domínio do referido imóvel, objecto desta acção e contrato promessa, ao Sr. GG, na data de celebração do contrato.
 
R - Assim como houve tradição material do referido imóvel, que se concretizou pela entrega das chaves, e foi efectuada ao promitente-comprador e actual possuidor, GG, na data de celebração do referido contrato promessa.

S - Também no referido contrato promessa foi atribuída eficácia real ao mencionado contrato, mediante declaração expressa, e à qual as partes se vincularam, nos termos do artigo 413º do Código Civil.

T -  O direito do Autor vem amparado na Lei Civil em especial em seu Art.830º e segts do C.C., que assim dispõe expressamente, no próprio contrato promessa elaborado entre o aqui Possuidor e Insolvente, a faculdade de execução específica no contrato promessa de imóveis.

U - As partes submeteram a promessa ao regime da execução específica e porque a tal não se opõe a natureza da obrigação assumida pelo Insolvente, assiste ao Autor e aqui Possuidor o direito a obter sentença que produza os efeitos da declaração negocial daqueles, nos termos do disposto no art. 830º do Código Civil, face ao incumprimento existente.

V - Perante o incumprimento da obrigação pelo aqui Insolvente, o aqui Possuidor tem direito que o tribunal profira sentença que produza efeitos que o insolvente devia cumprir, ou seja, o cumprimento do contrato promessa,

X - Pois, o promitente comprador de uma promessa com eficácia real goza do direito com maior proteção, podendo fazer valer o seu direito potestativo de aquisição em relação a qualquer terceiro e em qualquer contexto.

Y - Afigura-se primordial e correto acolher este entendimento, pois estão em causa DIREITOS.

Z - Acresce referir que quer o possuidor GG, quer os comproprietários EE e DD tem a posse do imóvel há vários anos,

AA - A qual não pode ser alvo de turbação.

BB - Mas, e apesar de tudo o referido, HH E EE, na qualidade de cônjuge e descendente de executado no processo supra referido de liquidação/insolvência, manifestaram no presente processo a sua intenção de exercer o seu direito de remição do imóvel constante dos autos.

CC - Mas apesar de todos os factos e DIREITOS acima mencionados, a decisão aqui recorrida, decide pela desocupação do imóvel dos possuidores e proprietários também do imóvel em causa,

DD - Ficando todos os DIREITOS EXISTENTES desprotegidos e a LEI sem cumprir, concretamente a posse do imóvel,

EE - No nosso entender indevidamente devido ao acima referido, NOMEADAMENTE A TENTATIVA DE TURBAÇAO DA POSSE EXISTENTE DO IMÓVEL, aos possuidores.
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1.2.2. Contra-alegações

Não foram apresentadas quaisquer contra-alegações.
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II - QUESTÕES QUE IMPORTA DECIDIR

2.1. Objecto do recurso - EM GERAL

O objecto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação do recorrente (art.ºs 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, ambos do CPC), não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso (art.º 608.º, n.º 2, in fine, aplicável ex vi do art.º 663.º, n.º 2, in fine, ambos do CPC) [1].
Não pode igualmente este Tribunal conhecer de questões novas (que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida) [2], uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais (destinando-se, por natureza, à sua reapreciação/reponderação e consequente alteração e/ou revogação, e não a um novo reexame da causa).
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2.2. QUESTÕES CONCRETAS a apreciar

2.2.1. Identificação das questões
Mercê do exposto, e do recurso de apelação interposto pela Requerente (EE) uma única questão foi submetida à apreciação deste Tribunal ad quem:

· Questão Única - Fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação do Direito, ao ordenar a desocupação do prédio misto apreendido nos autos (nomeadamente, por desse modo violar os direitos de comproprietários e de compossuidores do mesmo), devendo ser alterada a decisão proferida (nomeadamente, dando-se sem efeito a desocupação do imóvel) ?
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2.2.2. Questão prévia - Admissibilidade do recurso (face à irrecorribilidade do despacho sindicado)
2.2.2.1. Regime legal

Lê-se no art.º 641.º do CPC que, findo «os prazos concedidos às partes» para alegarem e contra-alegarem, «o juiz aprecia os requerimentos apresentados, pronuncia-se sobre as nulidades arguidas e os pedidos de reforma, ordenando a subida do recurso, se a tal nada obstar» (n.º 1); e o «requerimento [de interposição de recurso] é indeferido quando» se «entenda que a decisão não admite recurso» (n.º 2).
Logo, compete ao juiz a quo emitir despacho sobre o requerimento de interposição de recurso, nomeadamente conhecendo, ainda que de forma oficiosa, as questões ligadas à sua admissibilidade, onde se inclui a recorribilidade da decisão impugnada.

Mais se lê, no n.º 5 do art.º 641º citado, que a «decisão que admita o recurso, fixe a sua espécie e determine o efeito que lhe compete não vincula o tribunal superior».
Compreende-se, por isso, que se leia, no art.º 652.º, n.º 1, al. b), do CPC, que o juiz [do tribunal ad quem] a quem o processo for distribuído fica a ser o relator, incumbindo-lhe deferir todos os termos do recurso até final, designadamente verificar «se alguma circunstância obsta ao conhecimento do recurso».

Logo, a «decisão de admissão do recurso não é definitiva, tal como não são definitivas as decisões a fixar a espécie do recurso e a determinar o efeito que lhe compete. Tais decisões não são susceptíveis de impugnação por recurso, mas o tribunal ad quem pode decidir não conhecer do recurso, (…) ou alterar o efeito, uma vez que não está vinculado pela decisão do tribunal a quo» (José Lebre de Freitas e Armindo Ribeiro Mendes, Código de Processo Civil Anotado, Volume 3.º, Tomo I, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, pág. 69).
Com efeito, é pacífico na doutrina e na jurisprudência, que a «apreciação genérica e tabelar de aspectos formais relacionados com a admissibilidade ou com o regime do recurso não produz efeitos de caso julgado formal, não precludindo a possibilidade de posterior pronúncia de sentido diverso, seja por iniciativa do próprio ralator, seja por sugestão dos adjuntos.
Por exemplo, o facto de o relator ter declarado na intervenção liminar que não se verificavam obstáculos à admissibilidade do recurso não impede que posteriormente se inverta o sentido da decisão, concluindo que obsta ao prosseguimento do recurso o facto de a acção ter um valor inferior ao da alçada do tribunal ou de o recorrente não ter a posição de vencido» (António Santos Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, Almedina, Julho de 2013, pág. 187 ) [3].
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2.2.2.2. Caso concreto (subsunção do Direito aplicável)
Concretizando, tendo a Requerente (EE) interposto recurso do despacho proferido em 25 de Outubro de 2023 pelo Tribunal a quo (ordenando a desocupação do prédio misto apreendido nos autos de insolvência), em 17 de Junho de 2024 foi proferido despacho pela Relatora  neste Tribunal da Relação de Guimarães, admitindo tabelarmente o mesmo [4].
Inscritos os autos em tabela, e indo aos vistos, suscita-se agora, na conferência de juízes que constituem este Tribunal ad quem, a questão da sua inadmissibilidade, face ao trânsito em julgado de prévias decisões judiciais com o mesmo objeto da ora sindicada.

Importa então, e de forma prévia a qualquer outra, apreciar e decidir em conferência a admissibilidade, ou inadmissibilidade, do recurso interposto. 
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III - QUESTÃO PRÉVIA - (IN)ADMISSIBILIDADE DO RECURSO

3.1. Irrecorribilidade de decisão - Caso julgado
3.1.1. Recurso de decisão judicial
Lê-se no art.º 627.º, do CPC, que as «decisões judiciais podem ser impugnadas por meio de recursos» (n.º 1), nomeadamente o recurso ordinário de apelação (n.º 2).
Logo, o ponto de partida do recurso é sempre uma decisão judicial que recaiu sobre determinada(s) questão(ões), em regra posta previamente à apreciação do tribunal por uma das partes e sobre a qual a outra tenha exercido o seu direito de contraditório; e pretende-se com ele permitir que um tribunal hierarquicamente superior repondere a decisão recorrida, por forma a mantê-la, alterá-la ou revogá-la [5].
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3.1.2. Definição de caso julgado

Lê-se no art.º 619.º, n.º 1, do CPC, que, transitada «em julgado a sentença ou o despacho saneador que decida do mérito da causa, a decisão sobre a relação material controvertida fica a ter força obrigatória dentro do processo e fora dele nos limites fixados pelos artigos 580.º e 581.º, sem prejuízo do disposto nos artigos 696.º a 702.º».
Mais se lê, no art.º do 628.º, do CPC, que uma decisão judicial «considera-se transitada em julgado logo que não seja susceptível de recurso ordinário ou de reclamação».
Quando assim seja, segundo o critério da eficácia e nos termos dos art.ºs 619.º, n.º 1 e 620.º, n.º 1, ambos do CPC, terá força obrigatória: dentro do processo e fora dele, se for sentença ou despacho saneador que decida do mérito da causa, impedindo que o mesmo ou qualquer outro tribunal possa definir em termos diferentes o direito concreto aplicável à relação material litigada (caso julgado material ou substancial); ou apenas dentro do processo, se for sentença ou despacho que haja recaído unicamente sobre a relação processual, impedindo que o mesmo tribunal, na mesma acção, possa alterar a decisão proferida, mas não impedindo que, noutra ação, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes pelo mesmo tribunal ou por outro entretanto chamado a apreciar a causa (caso julgado formal).

Melhor precisando o caso julgado formal, enfatiza-se que «as decisões de forma desfrutam de força vinculativa de caso julgado apenas dentro do processo», excepto no caso previsto no n.º 1 do art. 101.º do CPC (Remédio Marques, A acção declarativa à luz do Código revisto, Coimbra Editora, pág. 646).
Logo, a questão só se levanta se existir uma primeira decisão proferida (de forma) no mesmo processo em que venha a ser proferida uma segunda com o mesmo objecto. Compreende-se, por isso, que se afirme que o caso julgado formal «só é vinculativo no próprio processo (e respectivos incidentes que correm por apenso) em que a decisão foi proferida, obstando a que o juiz possa na mesma acção, alterar a decisão proferida - mas não impede que a mesma questão processual seja decidida em outra acção, de forma diferente pelo mesmo tribunal ou por outro tribunal» (Remédio Marques, A acção declarativa à luz do Código revisto, Coimbra Editora, pág. 644) [6].
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3.1.3. Fundamento do caso julgado

O caso julgado é um instituto com raízes no direito fundamental, constitucional, intimamente ligado ao princípio do Estado de Direito Democrático, por ser uma garantia basilar dos cidadãos onde deve imperar a segurança e a certeza; é hoje um valor máximo de justiça, aliado ao princípio da separação de poderes (Miguel Pimenta de Almeida, A intangibilidade do Caso Julgado na Constituição (Brevíssima Análise), pág. 18, disponível em http://miguelpimentadealmeida.pt/wp-content/uploads/2015/06/A-INTANGIBILIDADE-DO-CASO-JULGADO-NA-CONSTITUI%C3%87%C3%83O.pdf).
«O fundamento do caso julgado reside, por um lado, no prestígio dos tribunais, o qual “seria comprometido em alto grau se mesma situação concreta uma vez definida por eles em dado sentido, pudesse depois ser validamente definida em sentido diferente” e, por outro lado, numa razão de certeza ou segurança jurídica [7], pois “sem o caso julgado estaríamos caídos numa situação de instabilidade jurídica verdadeiramente desastrosa. (…) Seria intolerável que cada um nem ao menos pudesse confiar nos direitos que uma sentença lhe reconheceu”.
“Se assim não fosse, os tribunais falhariam clamorosamente na sua função de órgãos de pacificação jurídica, de instrumentos de paz social”» (Ac. da RG, de 17.05.2018, José Flores, Processo n.º 1053/15.2T8GMR-C.G1, citando inicialmente Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 306, e depois Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, 1985, pág. 705).
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3.1.4. Efeitos do caso julgado

Do caso julgado decorrem dois efeitos essenciais (distintos, mas provenientes da mesma realidade jurídica): um negativo (excepção dilatória de caso julgado), de impossibilidade de qualquer tribunal, incluindo o que proferiu a decisão, voltar a emitir pronúncia sobre a questão decidida, isto é, impedindo que a causa seja novamente apreciada em juízo; e um positivo (força e autoridade de caso julgado), de vinculação do mesmo tribunal e, eventualmente de outros (estando em causa o caso julgado material), à decisão proferida [8].

Com efeito, e face aos art.ºs 576.º, n.º 1 e n.º 2, 577.º, al. i), 580.º e 581.º, todos do CPC, a excepção dilatória de caso julgado pressupõe o confronto de duas acções (uma delas contendo uma decisão já transitada em julgado), e a tríplice identidade entre ambas de sujeitos, de causa de pedir e de pedido [9]; e visa o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, por forma a evitar a repetição de causas.

Já a força e autoridade de caso julgado decorre de uma anterior decisão que haja sido proferida, designadamente no próprio processo, sobre a matéria em discussão, e prende-se com a sua força vinculativa; e visa o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível da segunda decisão de mérito (podendo funcionar independentemente da tríplice identidade exigida pela excepção) [10].
Lê-se, a propósito, no art.º 621.º do CPC que a «sentença constitui caso julgado nos precisos limites e termos em que julga».
Ora, a doutrina divide-se quanto aos limites objectivos do caso julgado. Assim, para uns, tais limites confinam-se à parte injuntiva da decisão, não constituindo caso julgado os fundamentos da mesma [11]; já outros, defendem que reconhecer que a decisão está abrangida pelo caso julgado não significa que ela valha, com esse valor, por si mesma e independente dos respectivos fundamentos, pois que o caso julgado incide sobre a decisão como conclusão de certos fundamentos e atinge esses fundamentos enquanto pressupostos daquela decisão [12].
Reconhece-se que a posição actualmente predominante é favorável a uma mitigação do referido conceito restritivo de caso julgado, no sentido de, considerando embora o caso julgado restrito à parte dispositiva do julgamento, alargar a sua força obrigatória à resolução das questões que a sentença tenha tido necessidade de resolver como premissa da conclusão firmada [13].
Deste modo, e aderindo a este último entendimento, ainda que os limites objectivos do caso julgado se restrinjam à parte dispositiva da sentença, sem tornar extensiva a sua eficácia a todos os motivos objectivos da mesma, deve alargar-se a respectiva força obrigatória à resolução de questões preliminares que a sentença teve necessidade de resolver, como premissa da conclusão retirada: embora as premissas da decisão recorrida não revistam, por via de regra, força de caso julgado, deve reconhecer-se-lhes essa natureza, quer quando a parte decisória se referir a elas, de modo expresso, quer quando constituam antecedente lógico necessário e imprescindível da decisão final.
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Concluindo, enquanto que a excepção dilatória do caso julgado pressupõe uma identidade entre relações jurídicas (sendo a mesma relação - perfeitamente individualizada nos seus aspectos subjectivos e objectivos - objecto de sucessiva e repetida apreciação jurisdicional), a autoridade do caso julgado pressupõe uma prejudicialidade entre objectos processuais («julgada, em termos definitivos, certa matéria numa acção que correu termos entre determinadas partes, a decisão sobre o objecto desta primeira causa, sobre essa precisa questio judicata, impõe-se necessariamente em todas as outras acções que venham a correr termos entre as mesmas partes - incidindo sobre um objecto diverso, mas cuja apreciação dependa decisivamente do objecto previamente julgado, perspectivado como verdadeira relação condicionante ou prejudicial da relação material controvertida na segunda acção», conforme Ac. do STJ, de 24.04.2013, Lopes do Rego, Processo n.º 7770/07.3TBVFR.P1.S1).
Dito de outro modo, «pela excepção visa-se o efeito negativo da inadmissibilidade da segunda acção, constituindo-se o caso julgado em obstáculo a nova decisão de mérito», enquanto que «a autoridade do caso julgado tem antes o efeito positivo de impor a primeira decisão, como pressuposto indiscutível de segunda decisão de mérito. (…) Este efeito positivo assente numa relação de prejudicialidade: o objecto da primeira decisão constitui questão prejudicial na segunda acção, como pressuposto necessário da decisão de mérito que nesta há-de ser proferida» (Lebre de Freitas, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, pág. 354, com bold apócrifo) [14].
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3.2. Caso concreto (subsunção ao Direito aplicável)
3.2.1. Tomada de posse (desocupação) do prédio misto apreendido
Concretizando, verifica-se que, tendo em 06 de Dezembro de 2017 sido proferida sentença a declarar a insolvência de AA, em 15 de Janeiro de 2018 foi apreendido o seu direito a «75/100 do prédio misto [15], denominado Quinta ..., Campo ..., ... ou ..., Campo ... e ...», composto por «casa de dois pavimentos, cortes e lagar», «logradouro», «quinteiro, rossios e terreno de lavradio».
Mais se verifica que, pertencendo o dito prédio rústico, na proporção de 75%, ao Insolvente (AA), a remanescente proporção de 25% pertence actualmente a DD e a EE (esta última exclusivamente na qualidade de herdeira de CC, sua mãe, que foi casada com aquele primeiro, seu pai).
Verifica-se ainda que, tendo em 13 de Setembro de 2019 sido autorizada a venda da totalidade do prédio misto em causa, e decorrendo a mesma por leilão eletrónico realizado entre ../../2020 e ../../2020, foram sendo sucessivamente apresentados por EE requerimentos no sentido da suspensão das operações de liquidação do activo.
Por fim, verifica-se que os ditos requerimentos foram sendo sucessivamente indeferidos por despachos judiciais que expressamente ordenaram a desocupação do imóvel, se necessário com recurso à força pública, despachos esses já transitados em julgado (nomeadamente, por contínua improcedência da sindicância que mereceram por parte da Requerente).
Foi, nomeadamente, o caso dos despachos proferidos em: 09 de Março de 2020 (que indeferiu a suspensão da venda por leilão electrónico e ordenou o prosseguimento das operações de liquidação do activo); 30 de Março de 2020 (que ordenou o prosseguimento das diligências de liquidação do activo);  06 de Junho de 2020 (que autorizou o recurso à força pública para tomada de posse do prédio misto apreendido); e 21 de Agosto de 2020 (que  reiterou a ordem para a tomada de posse do prédio misto apreendido, por forma a lograr a sua integral desocupação e posterior entrega ao comprador).

Logo, quando em 28 de Outubro de 2023 foi proferido o despacho agora sob recurso, ordenando «a desocupação imóvel apreendido nos autos» (bold apócrifo), reiterou o mesmo, tão só e apenas, o que já antes - e expressamente - se decidira nos autos.
Conclui-se, assim, que estando o prévio juízo (de tomada de posse do prédio misto em causa, se necessário com recurso à força pública) já transitado em julgado, qualquer outro meramente reafirmativo de idêntico comando (de desocupação do imóvel) é, por força da lei, insindicável.
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3.2.2. Fundamentos invocados no recurso para obstacular à tomada de posse do prédio misto apreendido
Precisa-se, ainda, que ao juízo exposto não obsta a consideração de quaisquer inéditos e supervenientes fundamentos (de facto e de Direito) que tivessem sido alegados pela Requerente (EE) previamente à sua prolação, como de resto os aduzidos no seu recurso clara e expressivamente demonstram (por meramente reproduzirem os que, ao longo dos autos, já foram considerados e afastados nos despachos elencados em «I - RELATÓRIO»).
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3.2.2.1. Ofensa ao direito de compropriedade
Concretizando, verifica-se que a Requerente (EE) começa por estribar o seu recurso na alegação de que o «imóvel em questão, além de não é propriedade exclusivamente do insolvente, existem comproprietários», sendo que nomeadamente «um deles é a pessoa que no despacho se quer realojar por ali se encontrar a habitar».
Estaria, assim, em causa (com a prolação do despacho recorrido) uma violação do direito de propriedade.
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Dir-se-á, antes de mais, que apresentando a Requerente (EE) o recurso em nome próprio e expressamente «na qualidade de requerente» (bold apócrifo), apenas poderá estar em causa o seu próprio direito de compropriedade (enquanto herdeira da anterior comproprietária, CC, sua mãe), já que para qualquer outro lhe falece legitimidade para o recurso (uma vez que, simultaneamente, não o interpôs em nome de outrem, nomeadamente na qualidade de mandatária forense respectiva).
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Prosseguindo, dir-se-á que, em momento anterior dos autos, e reiteradamente, a Requerente (EE) invocou este mesmo fundamento para obstar à tomada de posse e desocupação forçada do prédio misto apreendido, tendo visto em qualquer dessas ocasiões soçobrar a sua pretensão.
Com efeito, logo em ../../2020, no Apenso D (de Liquidação), requereu que se sustasse «em tempo útil o identificado leilão electrónico», alegando que «o prédio posto à venda em leilão electrónico não é NA SUA TOTALIDADE propriedade do Insolvente», pelo que a parte que não pertence a este «não podia ter sido apreendida para a massa da Insolvência», nem «poderia estar a ser objecto de venda em leilão electrónico», o que apenas poderia acontecer depois do «Sr. Administrador de Insolvência (…) ter procedido à competente separação de bens».

De forma conforme, em 03 de Março de 2020, no Apenso E (Restituição e separação de bens), juntamente com GG, intentou uma acção para separação e restituição de bens, nos termos dos art.ºs 141.º e 146.º do CIRE, contra Massa Insolvente de AA, contra AA e contra todos os Credores da Massa Insolvente, pedindo que «os Réus fossem condenados na separação e restituição aos Autores da vinte e cinco por cento do prédio misto» apreendido nos autos de insolvência.

Ora, logo em 09 de Março de 2020, no Apenso D (de Liquidação), foi proferido despacho indeferindo a suspensão das operações de liquidação do activo, considerando expressamente que «por despacho datado de 13/09/2019, decidiu este Tribunal autorizar a venda da totalidade do imóvel id. nos autos - pese embora tenha sido apenas apreendida a quota-parte de que a insolvente é titular - com a consequente repartição do produto da venda na proporção que é legítima, ficando, assim, salvaguardado o direito dos herdeiros de CC».
Por outro lado, na acção proposta pela Requerente (EE) e por GG, para separação e restituição de bens, ajuizando-se que nos autos de insolvência apenas tinha sito apreendido o direito do Insolvente a 75% do prédio misto em causa, deixando intocado o direito de terceiros aos remanescentes  25% do dito prédio, julgou-se procedente a excepção dilatória inominada de falta de interesse em agir dos nela Autores; e esta sentença foi depois confirmada pelo Tribunal da Relação de Guimarães, face à  improcedência do recurso de apelação dela interposto pela Requerente (EE).

Logo, encontra-se já assente nos autos, por decisão transitada em julgado, que o direito de propriedade a 25% do prédio misto em causa (nomeadamente, aquele que assiste à Requerente) não obsta à sua desocupação e entrega ao respectivo adquirente.
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3.2.2.2. Ofensa da posse
Concretizando novamente, verifica-se que a Requerente (EE) estribou ainda o seu recurso na alegação de que o «imóvel em causa está na posse de dois comproprietários e possuidores do imóvel e ainda de mais dois possuidores»; e explicou que «a douta decisão recorrida» esqueceu a «verdadeira condição de proprietário e possuidor do imóvel» de quem nele se encontra a habitar, dos «possuidores com posse legalmente estabelecida pelo próprio insolvente, AA», mediante «contratos celebrados entre as partes, nomeadamente o possuidor GG e o insolvente AA», onde «foram estabelecidos e transmitidos direitos e garantias, nomeadamente a posse do imóvel», e ainda dela própria.
Concluiu, de forma conforme, que «quer o Possuidor GG, quer os comproprietários EE e DD tem a posse do imóvel há vários anos», a «qual não pode ser alvo de turbação».

Estaria, assim, em causa (com a prolação do despacho recorrido) uma simultânea violação da posse.
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Reitera-se, a propósito, que atenta a forma como a Requerente (EE) apresentou o seu recurso, apenas lhe assiste legitimidade para a defesa da posse exercida por ela própria sobre o prédio misto em causa (e não também de qualquer outra pertença de distinta pessoa, nomeadamente de seu pai, DD, ou de GG).
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Prosseguindo, dir-se-á que em momento anterior dos autos a Requerente (EE), podendo e devendo fazê-lo, nunca concretizou, para além do seu direito de compropriedade, qual o distinto título de posse que deteria sobre o dito prédio misto, concretização que igualmente deixou omissa no seu recurso actual (sendo que, ainda que aqui e assim não fosse, não poderia o inédito título de posse revelado ser aqui conhecido, por consubstanciar questão nova).
Logo, desconhece-se nos autos, por falta de alegação própria (oportuna e concretizada), qual a posse (para além do normativo conceito, inoperacional para este efeito) própria da Requerente (EE) que pudesse ter sido violada com o despacho agora recorrido, que necessariamente não a considerou (à semelhança, aliás, dos prévios a ordenar a mesma tomada de posse e desocupação do prédio misto em causa).

Em abono deste juízo consideram-se ainda as diversas decisões judiciais que indeferiram a tutela da posse alegada por terceiros sobre o prédio misto em causa (todas elas já transitadas em julgado), nomeadamente por: DD (pai da Requerente); e por GG e HH.
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Com efeito, e quanto à tutela da posse alegada por DD, tendo em 06 de Junho de 2020, no Apenso D (de Liquidação), sido proferido despacho a autorizar o recurso à força pública para tomada de posse do prédio misto apreendido, a Requerente (EE) interpôs recurso do mesmo, alegando encontrar-se o prédio «na posse de ambos [dela e do pai] e sendo casa de habitação do herdeiro DD».
Tendo a admissão do seu recurso sido indeferida por despacho de 31 de Agosto de 2020 (precisamente por se considerar que a decisão recorrida apenas reafirmava prévias, já transitadas em julgado), foi a reclamação apresentada pela Requerente (EE) sucessivamente indeferida na segunda instância e no Supremo Tribunal de Justiça.

Logo, encontra-se já assente nos autos, por decisão transitada em julgado, que a alegada posse dos comproprietários de 25% do prédio misto em causa (nomeadamente, do pai da Requerente) não obsta à sua desocupação e entrega ao respectivo adquirente.
*
Vieram depois, 16 de Julho de 2020, no Apenso F (Verificação ulterior de créditos/outros direitos), HH, afirmando-se «como gestor de negócios desde 2014 da vinha implantada no imóvel acima descrito», e GG, afirmando-se «na qualidade de comodatário e de beneficiário da promessa de transmissão que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, imóvel acima descrito», a intentar uma acção contra Massa Insolvente de AA, contra AA e contra todos os Credores da Massa Insolvente, pedindo que fosse «declarado o direito de retenção» deles próprios «sobre o prédio misto» apreendido nos autos de insolvência, precisamente na sua qualidade de possuidores.
Contudo, a mesma acção foi julgada totalmente improcedente (absolvendo-se os Réus do pedido), quer na primeira, quer na segunda instância.
 
Logo, encontra-se já assente nos autos, por autoridade de caso julgado, que inexiste qualquer posse de HH e de GG sobre o prédio misto em causa que obste à sua desocupação e entrega ao respectivo adquirente.
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Não obstante o referido, e se dúvidas ainda existissem sobre o entendimento aqui exposto, seriam as mesmas dissipadas em momento posterior dos autos, quer quanto à alegada ofensa da posse dos comproprietários, quer dos pretensos (mas não reconhecidos) comodatário e promitente-comprador do prédio misto em causa.
Com efeito, tendo em 21 de Agosto de 2020, no Apenso D (de Liquidação), sido proferido despacho reiterando a ordem para a tomada de posse do prédio misto apreendido, por forma a lograr a sua integral desocupação e posterior entrega ao comprador, a Requerente (EE) interpôs recurso do mesmo.
Reiterou para o efeito que «o referido despacho proferiu decisão de autorizar o sr. administrador de insolvência a diligenciar no sentido da tomada de posse do imóvel, objecto de acção de separação e restituição de bens, em acção instaurada e propriedade da ora recorrente e seu pai na proporção de vinte e cinco por cento, encontrando-se o mesmo na posse de ambos e sendo casa de habitação do herdeiro/proprietário DD»; e que «qualquer diligência de entrega do imóvel, causa aos também proprietários, possuidores, comodatário e detentores de direito de retenção avultados prejuízos devido à cultura existente no imóvel».
Ora, viria a ser recusado o conhecimento do dito recurso pelo Tribunal da Relação de Guimarães, por falta de conclusões, o que foi confirmado no recurso de revista depois por ela interposto do acórdão que assim o decidiu.

Logo, e mais uma vez, ficou assente nos autos, por decisão transitada em julgado, que a dita posse dos comproprietários de 25% do prédio misto em causa (nomeadamente, da Requerente e do seu pai) e de quaisquer outros terceiros (nomeadamente, de HH e de GG) não obstava à sua desocupação e entrega ao respectivo adquirente.
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Ainda assim, e então enquanto mandatária forense de GG, veio a Requerente (EE) invocar o seu pretenso direito de retenção sobre o prédio misto em causa, nomeadamente mercê da sua qualidade de respectivo promitente-comprovador, beneficiado com a entrega do imóvel.
Fê-lo por requerimento de 01 de Abril de 2023, no Apenso D (de Liquidação), alegando que o direito de retenção invocado «foi conferido pelo contrato promessa realizado pelo ora insolvente, como promitente-vendedor e pelo o também ora requerente como promitente comprador, relativamente ao referido imóvel».
Contudo, em 16 de Maio de 2023, no Apenso D (de Liquidação), foi proferido despacho, indeferindo o reclamado reconhecimento do direito de retenção invocado, por o «meio próprio para o exercício da respectiva pretensão, por via judicial», ser «a proposição de ação de verificação ulterior de créditos, nos termos previstos no art.º 146.º do CIRE, por apenso aos autos da insolvência, e dentro dos prazos ali previstos».
Tendo sido interposto recurso desta decisão, foi o mesmo julgado improcedente por acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães.

Logo, não ficou assente nos autos qualquer posse de GG, enquanto promitente-comprador do prédio misto neles apreendido, que obstasse à sua desocupação e entrega ao respectivo adquirente, antes se afirmando a insusceptibilidade processual de a mesma ser aqui reconhecida para aquele pretendido efeito.
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Concluindo, não alega a Requerente (EE), de forma inédita e superveniente, qualquer posse própria (para a qual exclusivamente possui legitimidade) ou alheia (para a qual lhe falece a dita legitimidade), e ainda não apreciada nos autos, que obstasse à desocupação e entrega ao respectivo adquirente do prédio misto neles apreendido.
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3.2.2.3. Ofensa do efeito útil a obter em acção de execução específica de contrato-promessa de compra e venda
Concretizando uma vez mais, verifica-se que a Requerente (EE) estribou ainda o seu recurso na «existência de um contrato promessa, o qual é objecto no momento de uma acção de execução especifica que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Lisboa, com o numero 5741/23....», tendo o dito contrato promessa sido celebrado «entre o Insolvente, AA e o Possuidor GG», tendo havido «tradição material do referido imóvel, que se concretizou pela entrega das chaves», e tendo-lhe ainda sido «atribuída eficácia real».

Pareceria, assim, estar em causa (com a prolação do despacho recorrido) a violação da posse de GG ou de uma devida suspensão da instância (de liquidação do activo) por pendência de causa prejudicial.
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Contudo, mais uma vez se afirma que, atenta a forma como apresentou o seu recurso, à Requerente (EE) não assiste legitimidade para a defesa dos direitos que a GG alegadamente advêm da celebração do invocado contrato promessa de compra e venda, nomeadamente da sua pretendida execução específica.
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Dir-se-á, ainda, que o despacho ora recorrido não se pronunciou sobre os efeitos nos autos de insolvência de qualquer acção de execução específica de contrato-promessa de compra e venda, nomeadamente da que terá sido intentada por GG.
Logo, a sua sindicância com esse fundamento extravasa o objeto da decisão proferida.
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3.2.2.4. Ofensa do direito de remição
Concretizando uma derradeira vez, verifica-se que a Requerente (EE) estribou por fim o seu recurso na alegação de que, «apesar de tudo o referido HH E EE, na qualidade de cônjuge e descendente de executado no processo supra referido de liquidação/insolvência, manifestaram no presente processo a sua intenção de exercer o seu direito de remição do imóvel constante dos autos».

Pareceria, assim, estar em causa (com a prolação do despacho recorrido) uma violação do direito de remição que lhes assistisse.
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Contudo, o despacho ora recorrido não se pronunciou sobre a existência, ou não existência, de qualquer direito de remissão, nomeadamente do que assista à Requerente (EE).
Logo, a sua sindicância com esse fundamento extravasa o objeto da decisão proferida.
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Dir-se-á ainda que já foi sobejamente (e há muito) afirmado nos autos, e correctamente, que: «Quanto às considerações tecidas acerca do direito de remição, ressalva-se que o exercício deste direito exige a verificação do prossuposto da adjudicação ou venda – vide artigo 842º do CPC», o «que não aconteceu ainda», pelo que à «descendente do insolvente não foi vedado qualquer acesso ao exercício dos seus direitos, nomeadamente o de remir, porquanto o imóvel não foi ainda adjudicado», competindo ao Administrador da Insolvência «a notificação desta logo que aquele pressuposto se verifique» (requerimento do mesmo, no Apenso D, de 14 de Outubro de 2019, com bold apócrifo); e «o (pretendido) direito de remição exige, para o respectivo exercício, a verificação do prossuposto da adjudicação ou venda (cfr. art.º 842º do CPC), o que nos presentes autos não teve ainda lugar, só então competindo notificação para o efeito» (despacho, no Apenso D, de .05 de Novembro de 2019).
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Deverá, assim, concluir-se em conformidade, considerando que o recurso interposto pela Requerente (EE) é legalmente inadmissível, quer porque o despacho sindicado reitera apenas prévias decisões judiciais já transitadas em julgado, quer porque todos os fundamentos do recurso para os quais a Requerente tinha legitimidade para invocar foram já objecto de prévias decisões judiciais transitadas em julgado.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, e nos termos das disposições legais citadas, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em não admitir o recurso de apelação interposto pela Requerente (EE), por o despacho do Tribunal a quo proferido em 25 de Outubro de 2023 (dele objecto) ser irrecorrível, ao reiterar apenas prévias decisões judiciais já transitadas em julgado, sem adução pela Recorrente de inéditos e supervenientes fundamentos (de facto e de direito) para a sua sindicância.
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Custas do incidente pela Recorrente (art.º 527.º, n.º 1, do CPC), fixando-se as mesmas no máximo, face ao necessário conhecimento dos autos por ela própria e à dilação que a sua reiterada e infundada actuação recursória tem importado para o seu normal processamento.
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Guimarães, 11 de Julho de 2024.

O presente acórdão é assinado electronicamente pelos respectivos

Relatora - Maria João Marques Pinto de Matos;
1.º Adjunto - Gonçalo Oliveira Magalhães;
2.ª Adjunta - Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade.



[1] «Trata-se, aliás, de um entendimento sedimentado no nosso direito processual civil e, mesmo na ausência de lei expressa, defendido, durante a vigência do Código de Seabra, pelo Prof. Alberto dos Reis (in Código do Processo Civil Anotado, Vol. V, pág. 359) e, mais tarde, perante a redação do art. 690º, do CPC de 1961, pelo Cons. Rodrigues Bastos, in Notas ao Código de Processo Civil, Vol. III, 1972, pág. 299» (Ac. do STJ, de 08.02.2018, Maria do Rosário Morgado, Processo n.º 765/13.0TBESP.L1.S1, nota 1 - in www.dgsi.pt, como todos os demais citados sem indicação de origem). 
[2] Neste sentido, numa jurisprudência constante, Ac. da RG, de 07.10.2021, Vera Sottomayor, Processo n.º 886/19.5T8BRG.G1, onde se lê que questão nova, «apenas suscitada em sede de recurso, não pode ser conhecida por este Tribunal de 2ª instância, já que os recursos destinam-se à apreciação de questões já levantadas e decididas no processo e não a provocar decisões sobre questões que não foram nem submetidas ao contraditório nem decididas pelo tribunal recorrido».
[3] Na mesma obra e local, encontra-se indicação extensa de jurisprudência e doutrina conformes com o entendimento exposto, que se diz «unânime».
[4] Lê-se ipsis verbis no despacho em causa:
«(…)
Recurso(s) próprio(s), tempestivo(s) e admitido(s) com o modo de subida e com o efeito legalmente estabelecidos (art.º 652.º, n.º 1, al. a), a contrario, do CPC).
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Nada obsta a que dele(s) se conheça (art.º 652.º, n.º 1, al. b), do CPC).
(…)»
[5] O recurso ordinário é, no nosso sistema, um recurso de reponderação (sistema da cassação) e não de reexame (sistema da substituição), uma vez que o tribunal superior é chamado, não a apreciar de novo inteiramente a questão e a julgá-la como se fosse a primeira, mas sim a controlar a correcção da decisão proferida pelo tribunal recorrido, com os elementos averiguados por este último.
[6] No mesmo sentido, Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, pág. 704, onde se lê que «o caso julgado formal tem força obrigatória apenas dentro do processo, obstando a que o Juiz possa na mesma acção, alterar a decisão proferida, mas não impedindo que, noutra acção, a mesma questão processual concreta seja decidida em termos diferentes pelo mesmo Tribunal ou por outro entretanto chamado a apreciar a causa».
[7] O art.º 2502.º do CC de Seabra, de 1867, afirmava cristalinamente que o caso julgado é o facto ou o direito, tornado certo por sentença de que não há recurso.
O art.º 580º, n.º 2 do CPC dispõe hoje no mesmo sentido, quando afirma que tanto «a excepção da litispendência como a do caso julgado têm por fim evitar que o tribunal seja colocado na alternativa de contradizer ou de reproduzir uma decisão anterior».
[8] Neste sentido, Prof. Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume III, Coimbra Editora, págs. 92-93.
[9] Precisa-se, porém, a propósito da identidade de pedidos, que estes devem ser entendidos, não como a mera formulação de um qualquer efeito jurídico, mas como a composição prática do interesse pretendido satisfazer pela parte.
Neste sentido:
. Ac. da RC, de 06.09.2011, Judite Pires, Processo n.º 816/09.2TBAGD.C1 - onde se lê que a «identidade dos pedidos é perspectivada em função da posição das partes quanto à relação material: existe tal identidade sempre que ocorra coincidência nos efeitos jurídicos pretendidos, do ponto de vista da tutela jurisdicional reclamada e do conteúdo e objecto do direito reclamado, sem que seja de exigir uma adequação integral das pretensões, nem sequer do ponto de vista quantitativo. Existe identidade de causa de pedir quando as pretensões formuladas em ambas as acções emergem de facto jurídico genético do direito reclamado comum a ambas».
. Ac. do STJ, de 05.12.2017, Pedro Lima Gonçalves, Processo n.º 1565/15.8T8VFR-A.P1.S1 - onde se lê que a «identidade de pedido (...) é avaliada em função da posição das partes quanto à relação material, podendo considerar-se que existe tal identidade sempre que ocorra coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional - implícita ou explícita - pretendida pelo autor, no conteúdo e objeto do direito a tutelar e nos efeitos jurídicos pretendidos. Ocorre identidade de pedidos - que a par da identidade da causa de pedir e das partes, constitui fundamento da exceção de caso julgado - se o autor, numa e noutra ação, pretende obter o mesmo efeito útil».
[10] No mesmo sentido, José Lebre de Freitas, A. Montalvão Machado e Rui Pinto, Código de Processo Civil Anotado, Volume 2.º, 2.ª edição, Coimbra Editora, 2008, págs. 713 e 714, onde nomeadamente se lê que, seja «qual for o seu conteúdo, a sentença produz, no processo em que é proferida, o efeito de caso julgado formal, não podendo mais ser modificada (…). Mas, quando constitui uma decisão de mérito (“decisão sore a relação material controvertida”), a sentença produz também, fora do processo, o efeito de caso julgado material: a conformação das situações jurídicas substantivas por ela reconhecidas como constituídas impõe-se, com referência à data da sentença, nos planos substantivo e processual (…), distinguindo-se, neste, o efeito negativo da inadmissibilidade duma segunda acção (proibição de repetição: excepção de caso julgado) e o efeito positivo da constituição da decisão proferida em pressuposto indiscutível de outras decisões de mérito (proibição de contradição: autoridade de caso julgado)».
Ainda Miguel Teixeira de Sousa, «O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material», BMJ, n.º 325, pág. 49, onde se lê - com bold apócrifo - que «a excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior», enquanto que «quando vigora como autoridade e caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior».
[11] Neste sentido: Castro Mendes, Direito Processual Civil, III Volume, AAFDL, 1980, pág. 282-283; Antunes Varela, J. Miguel Bezerra e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª edição, Coimbra Editora, Limitada, pág. 695; Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1976, pág. 334; e Anselmo de Castro, Lições de Processo Civil, Volume I, Almedina, 1970, pág. 363.
[12] Neste outro sentido, Teixeira de Sousa, Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex - Edições Jurídicas, 1997, pág. 578.
[13] Neste sentido predominante, Rodrigues Bastos, Notas ao Código de Processo Civil, III, Almedina, págs. 200 e 201.
[14] No mesmo sentido: 
. na doutrina - Miguel Teixeira de Sousa, «O Objecto da Sentença e o Caso Julgado Material», BMJ, n.º 325, pág. 49, onde se lê (com bold apócrifo) que «a excepção de caso julgado visa evitar que o órgão jurisdicional duplicando as decisões sobre idêntico objecto processual, contrarie na decisão posterior o sentido da decisão anterior ou repita na decisão posterior o conteúdo da decisão anterior», enquanto que «quando vigora como autoridade e caso julgado, o caso julgado material manifesta-se no seu aspecto positivo de proibição de contradição da decisão transitada: a autoridade de caso julgado é o comando de acção, a proibição de omissão respeitante à vinculação subjectiva à repetição do processo subsequente do conteúdo da decisão anterior e à não contradição no processo posterior do conteúdo da decisão anterior».
. na jurisprudência - Ac. da RG, de 07.08.2014, Jorge Teixeira, Processo n.º 600/14TBFLG.G1, onde se lê:
« - Quando o objeto processual anterior é condição para a apreciação do objeto processual posterior, o caso julgado da decisão anterior releva como autoridade de caso julgado material no processo subsequente;
- Quando a apreciação do objeto processualmente antecedente é repetido no objeto processual subsequente, o caso julgado da decisão anterior releva como exceção de caso julgado no processo posterior.
Ou seja, a diversidade entre os objetos adjetivos torna prevalecente um efeito vinculativo, a autoridade de caso julgado material, e a identidade entre os objetos processuais torna preponderante um efeito impeditivo, a exceção do caso julgado.
Aquela diversidade e esta identidade são os critérios para o estabelecimento da distinção entre o efeito vinculativo, a vinculação dos sujeitos à repetição e à não contradição da decisão transitada, e o efeito impeditivo, o impedimento dos sujeitos à repetição e à contradição da decisão transitada: a vinculação das partes à decisão transitada em processo subsequente com distinto objeto é assegurada pela vinculação à repetição e à não contradição do ato decisório e o impedimento à reapreciação do ato decisório transitado em processo subsequente com idêntico objeto é garantido pelo impedimento dos sujeitos à contradição e à repetição da decisão.
A delimitação entre as duas figuras pode estabelecer-se, grosso modo, da seguinte forma:
- Se no processo subsequente, nada de novo há a decidir relativamente ao decidido no processo precedente (os objetos de ambos os processos coincidem integralmente, nenhuma franja tendo deixado de ser jurisdicionalmente valorada), verifica-se a exceção de caso julgado;
- Se pelo contrário, o objeto do processo precedente não abarca esgotantemente o objeto do processo subsequente, e neste existe extensão não abrangida no objeto do processo precedente (e por isso não jurisdicionalmente valorada e, logo, não decidida), ocorrendo porém uma relação de dependência ou prejudicialidade entre os dois distintos objetos, verifica-se a autoridade do caso julgado.
Basilar se demonstra então esclarecer, em cada caso concreto, se ocorre diversidade entre os objetos adjetivos das ações (precedente e subsequente) ou antes se se verifica identidade entre os objetos processuais delas, impondo-se, assim, a prévia determinação do conceito de objeto do processo».
[15] Pese embora o que tenha sido apreendido nos autos tenha sido o direito a 75% de um prédio misto, pertença do Insolvente (AA), por mera facilidade de linguagem foi sendo referido ao longo dos mesmos (principal e apensos) que neles foi apreendido o prédio misto pertença dele, sem qualquer influência na realidade material e jurídica efectivamente em causa.