Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
49/14.6T9BRG.G1
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: CASAMENTO POR CONVENIÊNCIA
TENTATIVA
REQUISITOS DO CRIME
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 04/03/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Privacidade: 1
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: JULGADO IMPROCEDENTE
Sumário: I) Comete o crime do artº 186º, nºs 1 e 2 e 3 da Lei nº 23/2007, de 4/7,em co-autoria, na forma tentada a arguida que conjuntamente com um cidadão de nacionalidade tunisina, se apresenta na Conservatória do Registo Civil, declarando verbalmente a intenção de celebrar casamento entre si e, depois de informados dos procedimementos que ao caso cabiam, apresentaram na Conservatória documentos para a organização de processo preliminar de casamento, sendo certo que a arguida e o referido tunisino, nunca tiveram intenção de contrair matrimónio, porquanto a sua real intenção era tão-só regularizar a situação de permanência do arguido, nomeadamente obter autorização de residência, uma vez que o mesmo residia em França, na qualidade de "ilegal". A arguida não atingiu o seu propósito, por motivos alheios à sua vontade, nomeadamente por a Conservatória ter desencadeado um processo preliminar de averiguações, junto do SEF.
II) É que tal conduta, ao contrário do que sustenta a arguida/recorrente, contém, ela própria, um momento de ilicitude, posto que, apesar de ainda não produzir a lesão do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora do crime de casamento por conveniência, produz já uma situação de perigo para esse bem, sendo que, de acordo com a experiência, tal conduta era de natureza a fazer esperar que se lhes seguisse a organização do processo preliminar de casamento (artºs 135º a 137º do CRC), o que apenas não veio a acontecer por razões alheias à sua vontade.
Decisão Texto Integral: Acordam na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório
1. No processo comum singular n.º/14.6T9BRG, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Braga – Instância Local – Secção Criminal – Juiz 2, realizado o julgamento, foi proferida sentença a 12 de Outubro de 2016, depositada na mesma data, com o dispositivo seguinte:
«Pelo exposto, julgo a acção penal provada e, em consequência:
A) Condeno a arguida L. F. como co-autora material de um crime de casamento por conveniência, previsto e punido pelos artsº 186º, nº 1 e 3 da Lei nº 23/2007, de 04/07 e artº 23º do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão, substituída, ao abrigo do artº 58º, nº 1 do Código Penal, por 180 (cento e oitenta) horas de trabalho a favor da comunidade, nos termos do plano de trabalho que vier a ser elaborado pela DGRS e que, uma vez homologado, fará parte integrante da presente decisão.
B) É a arguida responsável pelas custas do processo, com 3 (três) UC de taxa de justiça, sem prejuízo do apoio judiciário concedido – artº 513º, nº 1 do CPP e tabela III do RCP.
Deposite – artº 372º, nº 5 do CPP.
Após trânsito:
- Remeta boletim ao registo criminal – artº 6º, al. a) da Lei nº 37/2015, de 05/05.
- Comunique a sentença à DGRS, nos termos e para os efeitos do preceituado no artº 496º, nº 3 do CPP.»
2. Inconformada com a decisão, recorreu a arguida, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«1.º - Não resulta provado que o arguida e o Sr. C... tivessem elabora um qualquer plano para através do casamento este último obter título de residência em Portugal.
2.º - Aliás, como se disse, os mesmo estava era com desconhecimento relativamente aos tramites legais, desconhecendo até a possibilidade de ser passada uma procuração.
3.º - Também não resulta provado que os pretensos nubentes “…depois de informados dos procedimentos que ao caso cabiam, apresentaram na conservatória documentos para a organização de processo preliminar de casamento”. Isto porque, os nubentes NÃO contactaram a conservatória para peir informações previamente, na primeira vez que lá foram, levaram documentos.
4.º - Se o tivessem feito, já saberiam, porventura, da possibilidade de o SR. C... passar uma procuração.
5.º - Ficou ainda provado que, a declaração feita por L. F.e C... não tem qualquer valor, quer, nos termos do Código do registo civil, artigos 135.º e seguintes, que exige a forma escrita, quer porque resulta da prova testemunhal que os pretensos nubentes após serem conformados s documentos juntos da embaixada é que seriam chamados para iniciarem o processo com a declaração para casamento.
6.º - A procuração apresentada não faz parte de uma qualquer plano de casamento de conveniência, não fosse a sugestão da funcionária e testemunha M. D. e os pretensos nubentes não teriam conhecimento da possibilidade de o fazer.
7.º - Ao contrário do que consta do facto provado n.º 3, a comunicação da conservatória do registo civil ao SEF foi obrigatória, resultado de orientações superiores, apenas pelo facto de estar em causa um nubente estrangeiro,
E não, por causa de ter sido passada uma procuração pelo Sr. C..., isto é,
8.º - Mesmo que que não tivesse existido a outorga de tal procuração, a conservatória iria sempre solicitar parecer ao SEF.
9.º - Contrariamente ao vertido no ponto 4 da matéria de facto dada como provada, NÂO ficou provado que a arguida e C... apenas tivessem a intenção de com o casamento conseguirem título de residência para o nubente Túnisino.
10.º - E, não é o facto de o Sr. C... se encontrar ilegal que prova a intenção de se contrair um casamento de conveniência.
11.º - Nos mesmos termos, não resulta provado o ponto 5 da matéria de facto dada como provada.
12.º - Pois, nada se provou se, existiu algum plano para a celebração de um casamento de conveniência.
13.º - Também não resulta NADA provado que a arguida soubesse que uma celebração de casamento para um dos nubentes, por essa via, adquirir título de residência é uma conduta proibida e punida por lei.
14.º - E muito menos se provou que o Sr. C... desconhecia a filho mais novo da Sra. L. F., arguida.
15.º - E, acrescente-se que, deveria ter sido provado que, apesar de o Sr. V. C. constar como pai do R... no resgisto civil, o mesmo não é de facto o pai do menor, conforme resulta claro do depoimento prestado pelo mesmo.
16.º - Na verdade, ao contrário do que consta da motivação da matéria de facto de douta sentença da qual se recorre,
17.º - De depoimento da testemunha J. B., resulta que o processo foi enviada para o SEF por uma obrigação que decorre de orientações superiores e que,
18.º - As averiguações feitas pela conservatória nada têm que ver com indícios de casamento de conveniência, mas sim, com a aferição da legalidade dos documentos do nubente estrangeiro.

19.º - Quanto ao depoimento da testemunha S. T., resulta apenas que o Sr. Chahreddiene se encontrava em situação ilegal, mas tal NÃO prova e elaboração de um plano para contrair casamento de conveniência.
20.º - Quanto a V. C., da motivação decorrente do seu depoimento não resulta qualquer indício de que a sra. L. F.tivesse elabora um qualquer plano, não prova a tentativa de casamento de conveniência.
21.º - Do depoimento da testemunha D. B., também não resulta nada que possa sequer indiciar uma tentativa de casamento de conveniência.
22.º - Não resulta provado que houve uma tentativa de casamento para que o Sr. C... obtivesse um título de residência por essa via.
23.º - O facto de o cidadão Tunisino estar ilegal não prova que tivesse elaborado um plano para através do casamento por fim a tal situação.
24.º - E diga-se, as regras da experiência comum não ditam que pelo facto de estando cidadão estrangeiro estar ilegal em espaço europeu e a nubente ter sido mãe recentemente, não sendo o nubente estrangeiro o pai, o casamento entre ambos é forçosamente um casamento de conveniência.
25.º - E insistimos, os amigos da Arguida não têm que ter conhecimento da sua vida pessoal e, tal desconhecimento, não significa que a arguida não pretendesse casar de facto, pelo correto motivo.
26.º - Em segundo, porque, ao contrário do vertido da douta sentença recorrida, os atos praticados pela Arguida não se configuram como atos de execução, mas sim como atos preparatórios.
27.º - De facto, a entrega de documentos, não tendo existido a abertura de processo preliminar de Publicações, nem sequer, a declaração expressa para casamento, nos termos dos artigos 135 e ss., do Còdigo do registo Civil, não configuram, por si só, atos de execução.
28.º - O começo da execução de um crime de tentativa de casamento de conveniência tem lugar com a declaração para casamento e subsequente processo preliminar de publicações.
29.º - De facto, para que existam atos de execução, como ensinam, MANUEL SIMAS SANTOS e MMANUEL LEAL-HENRIQUES (Código Penal anotado, artigos 1.º a 69.º, Vol I,4 Ed. Rei dos Livros, 2014, p. 311) é necessário que “exista a verificação de começo de execução, sendo, segundo os mesmo autores, “…actos de execução do crime aqueles imediatamente anteriores à conduta que se amolda ao verbo do tipo”.
30.º - Ora, a entrega de documentos situa-se em momento muito enterior à celebração de casamento.
31.º - Nestes termos, deve o presente recurso ser julgado procedente por provado, considerando-se não provados os factos enunciados nos pontos 1- ; 2- ; 3- ; 4- ; 5- ; 6- e 8-. da matéria de facto dada como provada e , em consequência ser a Arguida Absolvida.
Sem prescindir,
32.º - Deve a entrega de documentos ser considerada como um ato preparatório, dos termos do artigo 21, do Código Penal, logo, não punível, e, nestes termos ser revogada e sentença recorrida, absolvendo a arguida, da pratica de quaisquer crime e pagamento de quaisquer custas.

NESTES TERMOS, concedendo provimento ao presente recurso e revogando a Douta Sentença Impugnada, farão Vossas excelênncias a Habitual
JUSTIÇA»
3. O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela manutenção do julgado.
4. Nesta instância, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que se refere o artigo 416.º do Código de Processo Penal( - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem. ), emitiu parecer no sentido de que deverá ser negado provimento ao recurso.
5. Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, a arguida reiterou a posição anteriormente assumida na motivação de recurso.
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.

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II - FUNDAMENTAÇÃO
1. A sentença recorrida
1.1. Na sentença proferida na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
«1- No dia 23 de Janeiro de 2014, a arguida L. F. e o cidadão de nacionalidade Tunisina, C..., em comunhão de esforços e vontades e na execução de um plano previamente delineado, a que ambos aderiram, apresentaram-se na Conservatória do Registo Civil de Braga, declarando verbalmente a intenção de celebrar casamento entre si e, depois de informados dos procedimentos que ao caso cabiam, apresentaram na Conservatória documentos para a organização de processo preliminar de casamento.
2- Para execução do referido plano, que a arguida L. F.e o referido C… delinearam, apresentaram na Conservatória, entre outros documentos, uma procuração, emitida em 07/01/2014, para C... casar, através de terceira pessoa (E. M.), tendo ambos alegado residir na Rua L…, Braga.
3- Atenta a nacionalidade Tunisina do referido C..., bem como o facto de ter passado procuração para outra pessoa, a irmã da arguida L. F., concretizar o casamento, a Conservatória do Registo Civil de Braga, deu início ao processo preliminar de averiguações junto do SEF de Braga, com intuito de avaliar das reais intenções dos pretensos nubentes.
4- Todavia, nunca a arguida e C… tiveram intenção de efectivamente contrair matrimónio entre si, constituir família e passar a viver como cônjuges, porquanto a real intenção da arguida e de C... era tão-só regularizar a situação de permanência do arguido C... na Europa, nomeadamente obter autorização de residência, uma vez que o mesmo residia em França, na qualidade de “ilegal”.
5- A arguida, em comunhão de esforços e vontades com o mencionado cidadão tunisino, actuou da forma descrita, com vista a C… conseguir entrar e permanecer em território europeu e obter autorização de residência, o que não conseguiram, por motivos alheios à sua vontade, nomeadamente por a Conservatória ter desencadeado um processo preliminar de averiguações, junto do SEF (Serviço de Estrangeiros e Fronteiras).
6- A arguida sabia que a sua conduta era proibida e punida por lei.
7- C... esteve algumas vezes em Portugal, instalado no Hotel Basic, em Braga.
8- C... desconhecia a existência do filho mais novo da arguida L. F., nascido em 21/08/2013, filho de V. S..
9- A arguida é solteira, tem dois filhos menores a seu cargo.
10- À data dos factos, a arguida trabalhava no …, Lda, em Braga, auferindo cerca de €537,59 mensais.
11- Trabalha actualmente como costureira, em Braga.
12- A arguida não possui antecedentes criminais.»
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1.2. Quanto a factos não provados consta da sentença recorrida (transcrição):
«- A Conservatória do Registo Civil de Braga chegou a dar início ao processo preliminar de casamento.
- A arguida L. F.e C... se conheceram em Junho de 2012, em Cannes, França, através do irmão da arguida L. F., N. J..
- Desde Junho de 2012 até meados do ano de 2014, C... contactou algumas vezes com a arguida L. F., nas vezes que se deslocou a Portugal.»
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1.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):
«O Tribunal baseou a sua convicção no conjunto da prova produzida em audiência, à luz do princípio da livre apreciação da prova consagrado no artº 127º do Código de Processo Penal e na estrita observância do princípio da legalidade, do princípio da presunção de inocência que vigora em direito penal, designadamente:
- Participação, de fls 2 e 25.
- Procuração de fls 6 e 7, data de 07/01/2014;
- Documentos de fls 8-9;
- Documento de fls 10, tratando-se de certificado de capacidade matrimonial, emitido, a pedido de C..., em 02/01/2014.
- Cópia do passaporte de C... de fls 11-13.
- Assento de nascimento de M. M. (filha da arguida), de fls 14;
- Assento de nascimento de R... (filho da arguida), de fls 15;
- Documentos de fls 26-37, dos quais se destacam, entre o mais, os documentos de fls 18-21, quanto à actividade profissional da arguida L. F., à data dos factos, conjugados com as remunerações declaradas na Segurança Social de fls 78-82.
- Certidão de fls 56-102 (processo de averiguações junto do SEF), destacando-se a informação prestada pelo Hotel Basic, em Braga, de fls 57 a 59 e consultas de boletins de alojamento de fls 73-76; documentos de fls 60-62, quanto à situação ilegal de C...;
- Documentos de fls 93-94, relativos a V. C..
- Informação do SEF de fls 96/161, quanto à situação de permanência ilegal em França, de C....
- Doc.s de fls 125-126;
- Certificado de registo criminal da arguida, de fls 331.
- Declarações prestadas pela arguida, em sede de identificação, quanto à actual situação profissional.
- No mais, a arguida não prestou declarações em audiência, remetendo-se ao silêncio, no uso do direito que a lei lhe confere.
- A testemunha J. B., Conservadora do Registo Civil de Braga, explicou, de forma precisa e isenta, a forma como os factos foram despoletados, com a presença na Conservatória, num primeiro dia, dos dois pretensos nubentes, alegando urgência no casamento, a análise dos documentos entregues, nessa sequência, nomeadamente a procuração apresentada, dias depois já apenas pela arguida L. F.(já não ele); e as diligências junto da Embaixada e os procedimentos encetados pessoalmente junto do SEF para averiguação preliminar dos factos, dadas as suspeitas suscitadas no atendimento pessoal, conjugada a prova documental, bem assim dada a situação de estrangeiro do nubente masculino, pelas razões que explicou em audiência.
Realçou a declarante que o pedido verbalmente efectuado, ocorreu em Janeiro de 2014 e em Setembro, o SEF informou a Conservatória da existência de indícios criminais, pelo que a Conservatória não chegou a dar início ao Processo Preliminar de Casamento.
- A testemunha S. T., inspectora do SEF, que instruiu o processo de averiguações, desencadeado pelo pedido da Conservatória, aludiu às diligências de investigação encetadas, nomeadamente à constatação da situação ilegal do cidadão estrangeiro (nem em Portugal, nem na Europa), na forma documentada nos autos; às diligências junto do Hotel onde o mesmo esteve alojado, que se mostram também devidamente documentadas nos autos, não tendo a declarante qualquer outro conhecimento directo, com relevância para o apuramento dos factos em apreço nos autos.
- A testemunha V. C., reconhecendo manter uma forte relação de amizade com a arguida e com a família desta, desde 2005, sustentou ter apenas assumido a paternidade do filho da arguida, R..., para que a mesma pudesse trazer o filho do hospital (alegação inverosímil, desde logo considerando o teor da certidão de nascimento da filha mais velha, de fls 14, que não tem paternidade averbada); assegura que nunca conheceu à arguida qualquer relacionamento amoroso ou, muito menos, qualquer propósito de casamento da mesma, nomeadamente com qualquer cidadão estrangeiro, nunca a viu com o cidadão tunisino e nunca lhe disse que pretendia casar.
- As testemunhas M. E. e N. T., irmãos da arguida, não prestaram declarações, no uso do direito que a lei lhe confere.
- A testemunha M. D., funcionária da Conservatória que atendeu pessoalmente “o casal”, na sua primeira deslocação à conservatória, explicou que os mesmos entregaram, logo nesse momento os documentos necessários para abrir o processo preliminar, mas como os informou que era preciso analisar os documentos e foi referido que o nubente tinha que ir para o estrangeiro, foi depois entregue uma procuração, documentada nos autos, para o efeito, entregue no próprio dia, ou no dia seguinte. Sabe que a arguida L. F.compareceu depois, mais uma ou duas vezes na Conservatória (uma das vezes acompanhada do irmão), sendo atendida pela Senhora Conservadora.
- Do conjunto da prova produzida, entendemos que não existem dúvidas quanto aos factos acima dados como provados.
- Com efeito, concatenada a prova documental existente no processo, com os depoimentos prestados pelas testemunhas M. D. e J. P., não existem dúvidas que a arguida, acompanhada, num primeiro momento, pelo cidadão tunisino, se apresentou na Conservatória, manifestando ambos intenção de contraírem casamento entre si, praticando todos os actos necessários à instauração do processo preliminar de casamento, entregando para tanto os documentos necessários, nomeadamente, para além do mais, uma procuração emitida já no dia 07/01/2014, bem assim o certificado de capacidade matrimonial, emitido em 02/01/2014, pela embaixada da República Tunisina, a pedido de C... (fls 6-7 e 10).
- Não existe também dúvida, face à prova documental e depoimento da inspectora do SEF, S. T., que o pretenso nubente tunisino, se encontrava em situação irregular no espaço europeu e que era sua intenção nele permanecer.
- Este contexto, conjugado ainda com as regras da experiência comum – nomeadamente a permanência irregular daquele cidadão no espaço europeu; bem assim o facto de a arguida ter sido tido, em data recente, um filho, que aquele cidadão desconhecia, filho de terceira pessoa – não existem dúvidas também, que, nem a arguida, nem o cidadão tunisino tinham qualquer propósito de firmar casamento entre si, situação quem nem mesmo, V. C., amigo íntimo da arguida e pai registado de seu filho R..., tinha qualquer conhecimento, tratando-se pois manifestamente de expediente para que aquele cidadão tunisino conseguisse título de permanência no espaço europeu.
- Quanto ao apurado elemento subjectivo teve o tribunal em conta a natureza dos factos apurados, sendo a ilicitude dos mesmos do conhecimento geral da comunidade, revelando a arguida, com a sua prática, ânimo e vontade de os praticar, sabendo que a tal conduta era proibida.»

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2. Apreciando
Como é sabido, o âmbito do recurso é dado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respectiva motivação, sem prejuízo das questões que sejam de conhecimento oficioso.
Assim, atenta a conformação das conclusões formuladas, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência:
- impugnação da matéria de facto;
- enquadramento jurídico-penal dos factos.

2.1. Da impugnação da matéria de facto
Nos termos do disposto no artigo 428.º os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
Uma vez que no caso em apreço houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º 3 e 431.º, b), ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação da recorrente.
É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, no que se convencionou chamar de “revista alargada”, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, nºs 3, 4 e 6.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos àquela para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento( - Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Anotado, 10ª edição, pág. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recurso em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e segs.).
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do art. 412.º.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa( - Cfr. Acórdãos do STJ de 14/3/2007, de 23/5/2007 e de 3/7/2008, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.).
Justamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deve expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, o seguinte:
«Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º).
Estabelece ainda o n.º 4 do artigo 412.º que, havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º)( - Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, o Supremo Tribunal de Justiça veio fixar jurisprudência no sentido de bastar, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas – Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/2012, de 8/3, publicado no DR, I Série, de 18/4/2012.).
Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no artigo 127.º, ou seja, fora as excepções relativas a prova legal, assenta na livre convicção do julgador e nas regras da experiência, não podendo também esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá e o julgamento da Relação não permite.
Como se entendido, a reapreciação, com base em meios de prova com força probatória não vinculativa, da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto deverá ser feita com o cuidado e ponderação necessárias, face aos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova.
São inúmeros os factores relevantes na apreciação da credibilidade do teor de um depoimento que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto directo com os depoentes na audiência.
Embora a reapreciação da matéria de facto, no que ao Tribunal da Relação se refere, esteja igualmente subordinada ao princípio da livre apreciação da prova e sem limitação (à excepção da prova vinculada) no processo de formação da sua convicção, deverá ela ter em conta que dos referidos princípios decorrem aspectos de relevância indiscutível (reacções do próprio depoente ou de outros, hesitações, pausas, gestos, expressões) na valoração dos depoimentos pessoais que melhor são perceptíveis pela 1ª instância.
À Relação caberá, sem esquecer tais limitações, analisar o processo de formação da convicção do julgador, apreciando, com base na prova gravada e demais elementos de prova constantes dos autos, se as respostas dadas apresentam erro evidenciável e/ou se têm suporte razoável nas provas e nas regras da lógica, experiência e conhecimento comuns, não bastando, para eventual alteração, diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova testemunhal produzida.
Assim, se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”, sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõe uma outra convicção.
A demonstração desta imposição recai sobre o recorrente que deve relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado( - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3ª edição, pág. 1122, nota 9.).
Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.
Tudo isto vem para se dizer que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado( - Cfr. Acórdãos do STJ de 23/4/2009 e de 29/10/2009, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.).
O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão( - Cfr. Acórdãos do STJ de 15/7/2009, de 10/3/2010 e de 25/3/2010, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.).
Expostas estas breves considerações sobre o sentido e alcance da impugnação ampla da matéria de facto, assim como sobre os ónus impostos à recorrente, passemos à análise do caso concreto.
A recorrente manifesta discordância sobre a matéria de facto por considerar que foram incorrectamente julgados os pontos 1, 2, 3, 4, 5, 6 e 8 da matéria de facto provada.
Para tanto, alega, em suma, que apenas ficou provado que o Sr. C... estava em situação ilegal em Portugal e em França e que entregaram documentos na conservatória porque quereriam casar mas, devido a procedimentos próprios da conservatória, não lhes foi permitido iniciarem o processo preliminar de casamento, nem sequer lhes foi possível efetuar uma declaração para casamento.
Analisando a motivação e as conclusões do recurso constata-se que a recorrente não alega que a descrição que a sentença recorrida faz do conteúdo dos depoimentos das testemunhas, assim como a análise que faz da prova documental, não corresponde ao que, na realidade, disseram as testemunhas, nem ao que consta daquela prova documental.
O que a recorrente faz é coisa totalmente diferente.
A recorrente transcreve partes selecionadas dos depoimentos das testemunhas e procede à sua análise da prova documental para, a partir de tais elementos, conferir à prova produzida uma outra leitura, substituindo a sua própria convicção à convicção do tribunal a quo, concluindo pela sua absolvição, sem apontar em concreto um erro de julgamento, fazendo o ataque à decisão da matéria de facto pela via da credibilidade que o tribunal deu a estes meios de prova, o que se afigura irrelevante em termos de impugnação da matéria de facto.
Ao contrário do que por vezes se pensa, o recurso da matéria de facto não tem por finalidade, nem pode ser confundido, com a realização de um “novo julgamento” fundado numa nova convicção mas apenas apreciar a razoabilidade da convicção formada pelo tribunal recorrido em relação aos concretos pontos de facto que o recorrente entende incorrectamente julgados, com base na avaliação das provas que considera imporem uma decisão diversa.
Na verdade, “a censura quanto à forma de formação da convicção do tribunal não pode assentar, de forma simplista, no ataque da fase final da formação de tal convicção, isto é, na valoração da prova; tal censura terá de assentar na violação de qualquer dos passos para a formação de tal convicção, designadamente porque não existem os dados objectivos que se apontam na motivação ou porque se violaram os princípios para a aquisição desses dados objectivos ou porque não houve liberdade de formação da convicção.
Doutra forma seria uma inversão da posição das personagens do processo, como seja a de substituir a convicção de quem tem de julgar pela convicção dos que esperam a decisão”( - Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 198/2004, de 24/3/2004, DR, II Série, n.º 129, de 2/6/2004.).
No mesmo sentido se pronuncia a jurisprudência dos tribunais superiores: “Quando a atribuição de credibilidade a uma fonte de prova pelo julgador se basear numa opção assente na imediação e na oralidade, o tribunal de recurso só a poderá criticar se ficar demonstrado que essa opção é inadmissível face às regras da experiência comum”( - Cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 6/3/2002, CJ, Ano XXVII, Tomo II, pág. 44; No mesmo sentido, Acórdãos da Relação do Porto de 19/6/2002, 4/2/2004 e 16/11/2005, in www.dgsi.pt/jtrp. ).
Consequentemente, a crítica à convicção do tribunal a quo sustentada na livre apreciação da prova e nas regras da experiência não pode ter sucesso se se alicerçar apenas na diferente convicção do recorrente sobre a prova produzida.
Na verdade, o julgador é livre, ao apreciar as provas, embora tal apreciação seja “vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório e às normas da experiência comum, da lógica, regras de natureza científica que se devem incluir no âmbito do direito probatório”( - Prof. Cavaleiro Ferreira, Curso de Processo Penal, 1º volume, pág. 211.).
Como resulta da motivação de facto supra transcrita, o tribunal a quo formou a sua convicção, quanto aos factos dados como provados, com base no conjunto da prova produzida e examinada em audiência, analisada criticamente e segundo as regras da experiência comum, salientando a decisão recorrida que «concatenada a prova documental existente no processo, com os depoimentos prestados pelas testemunhas M. D. e J. P., não existem dúvidas que a arguida, acompanhada, num primeiro momento, pelo cidadão tunisino, se apresentou na Conservatória, manifestando ambos intenção de contraírem casamento entre si, praticando todos os actos necessários à instauração do processo preliminar de casamento, entregando para tanto os documentos necessários, nomeadamente, para além do mais, uma procuração emitida já no dia 07/01/2014, bem assim o certificado de capacidade matrimonial, emitido em 02/01/2014, pela embaixada da República Tunisina, a pedido de C... Bouzommita (fls 6-7 e 10)».
Salienta também a decisão recorrida que «não existe também dúvida, face à prova documental e depoimento da inspectora do SEF, S. T., que o pretenso nubente tunisino, se encontrava em situação irregular no espaço europeu e que era sua intenção nele permanecer.».
Assim, ponderou a decisão recorrida que «este contexto, conjugado ainda com as regras da experiência comum – nomeadamente a permanência irregular daquele cidadão no espaço europeu; bem assim o facto de a arguida ter sido tido, em data recente, um filho, que aquele cidadão desconhecia, filho de terceira pessoa – permite concluir que «nem a arguida, nem o cidadão tunisino tinham qualquer propósito de firmar casamento entre si, situação quem nem mesmo a testemunha V. C., amigo íntimo da arguida e pai registado de seu filho R..., tinha qualquer conhecimento, tratando-se pois manifestamente de expediente para que aquele cidadão tunisino conseguisse título de permanência no espaço europeu.».
Por último, quanto ao apurado elemento subjectivo, salienta a decisão recorrida que o tribunal a quo teve em conta a natureza dos factos apurados, sendo a ilicitude dos mesmos do conhecimento geral da comunidade, revelando a arguida, com a sua prática, ânimo e vontade de os praticar, sabendo que a tal conduta era proibida.
Ora, quer a permanência irregular daquele cidadão tunisino no espaço europeu, quer o facto de a arguida ter tido, em data recente, um filho, que aquele cidadão desconhecia, filho de terceira pessoa, quer a circunstância daquele cidadão tunisino ter apresentado uma procuração concedendo poderes a outra pessoa para concretizar o casamento (a própria irmã da arguida), constituem indícios de que estamos perante um casamento de conveniência pelo que é razoável a conclusão extraída pelo tribunal a quo de que nem a arguida, nem o cidadão tunisino tinham qualquer propósito de firmar casamento entre si, tanto mais que a testemunha V. C., amigo íntimo da arguida e pai registado de seu filho R..., assegurou que nunca conheceu à arguida qualquer relacionamento amoroso ou, muito menos, qualquer propósito de casamento, nomeadamente com qualquer cidadão estrangeiro, nunca a viu com o cidadão tunisino e nunca lhe disse que pretendia casar.
Afirmar, como faz a recorrente, que os pretensos nubentes desconheciam a possibilidade de passar uma procuração é pretender negar o que é evidenciado pela procuração de fls. 6 e 7, emitida pelo referido cidadão de nacionalidade tunisina em 7/01/2014, ou seja, em data muito anterior à deslocação à Conservatória do Registo Civil de Braga, a qual teve lugar em 23/01/2014.
Assim, ao contrário do que alega a recorrente, os pretensos nubentes sabiam da possibilidade de ser passada uma procuração, tanto assim que, em 23/01/2014, na execução de um plano previamente delineado, entregaram aquela procuração, emitida em 7/1/2014, na qual C... conferia poderes especiais a E. M. (irmã da arguida) para processo e celebração do casamento civil dele, outorgante, com L. F., ora arguida.
A factualidade provada, rectius, os pontos de facto provados impugnados pela recorrente, mostram-se, pois, plenamente suportados pela prova produzida e valorada na audiência de julgamento, dando corpo a uma versão plausível dos acontecimentos e sem que se mostre violada uma qualquer regra da experiência comum.
Acerca das alegadas incongruências ou contradições dos depoimentos saliente-se que a função do julgador não é a de encontrar o máximo denominador comum entre os diversos depoimentos, isto é, para que algum facto seja considerado provado não é necessário que todas as testemunhas o relatem de forma coincidente, nem tão pouco tem o julgador que aceitar ou recusar cada um dos depoimentos na globalidade, cabendo-lhe, antes, a tarefa de dilucidar, em cada um deles, o que lhe merece crédito.
Um testemunho não é necessariamente infalível nem necessariamente erróneo, como salienta Carrington da Costa, advertindo para que «todo aquele que tem a árdua função de julgar, fuja à natural tendência para considerar a concordância dos testemunhos como prova da sua veracidade», devendo antes ter-se sempre bem presente as palavras de Bacon: «os testemunhos não se contam, pesam-se»( - Psicologia do Testemunho, in Scientia Juridica, p.337.).
A circunstância de um depoimento ou declaração conter imprecisões ou incongruências não justifica que o juiz ponha em causa a credibilidade de quem o presta pois seria fácil a vida dos juízes se a lei estabelecesse que um depoimento ou declaração seria afastado sempre que nele fosse detectada qualquer contradição.
Como já ensinava Enrico Altavilla, “o interrogatório como qualquer testemunho está sujeito à crítica do juiz, que poderá considerá-lo todo verdadeiro ou todo falso, mas poderá também aceitar como verdadeiras certas partes e negar crédito a outras”( - Psicologia Judiciária, volume II, 3ª edição, página 12.).
Os juízes não se limitam a aceitar ou a recusar os depoimentos na sua globalidade, antes lhes cabe uma tarefa mais árdua que é a precisamente a de conseguir descobrir, em cada um deles, a parte que lhes merece crédito, recorrendo, para o efeito, às regras da experiência da vida e das coisas aferidas por critérios de razoabilidade.
Sabe-se que inúmeros factores contribuem para a falibilidade do testemunho humano mas este continua a ser um dos fundamentais meios de prova em processo penal.
Como narração de factos percebidos através dos sentidos, é normal que os testemunhos contenham imprecisões decorrentes de deficiências dos próprios sentidos. Os testemunhos prestados de modo não coincidente não serão forçosamente “falsos”, pois mostra a experiência que será antes a concertação de versões enganadoras que mais facilmente dará lugar a descrições de factos perfeitamente análogas e coincidentes entre si, assim não sucedendo nos depoimentos mais espontâneos e verdadeiros.
A decisão do tribunal a quo encontra-se devidamente fundamentada, expondo de forma clara e segura as razões que fundamentam a sua opção, justificando os motivos que levaram a dar credibilidade à versão resultante dos depoimentos das testemunhas conjugados com a prova documental junta aos autos, permitindo aos sujeitos processuais e a este tribunal de recurso proceder ao exame do processo lógico ou racional que subjaz à convicção do julgador.
Através da motivação da decisão da matéria de facto constante da sentença recorrida fica-se ciente do percurso efectuado pela Sra. Juiz a quo onde seguramente a racionalidade se impõe mas onde a livre convicção se afirma com apelo ao que a imediação e a oralidade, e só elas, conseguem conceber, espelhando aquela decisão o confronto crítico das versões dos factos, explicitando o resultado desse confronto e justificando a convicção formada quanto à matéria em causa de forma lógica e de acordo com as regras da experiência comum.
Assim, não se evidenciando qualquer afrontamento às regras da experiência comum, ou qualquer apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, fundada em juízos ilógicos ou arbitrários, de todo insustentáveis, nenhuma censura pode merecer o juízo valorativo acolhido em 1ª instância.
Improcede, portanto, a questão da impugnação ampla da matéria de facto.

2.2. Do enquadramento jurídico-penal dos factos
Sustenta a recorrente que apenas se verificaram actos preparatórios (e não actos de execução) do crime de casamento de conveniência já que a entrega de documentos, não tendo existido a abertura de processo preliminar de publicações, nem sequer, a declaração expressa para casamento, nos termos dos artigos 135.º e ss., do Código do Registo Civil, não configuram, por si só, atos de execução.
Nos termos do disposto no artigo 186.º, n.º 1 da Lei n.º 23/2007, de 04/07, comete o crime de casamento por conveniência «quem contrair casamento ou viver em união de facto com o único objectivo de proporcionar a obtenção ou de obter um visto, uma autorização de residência ou um “cartão azul UE” ou defraudar a legislação vigente em matéria de aquisição de nacionalidade», sendo a tentativa punível nos termos do n.º 3 do artigo e dos artigos 23.º, n.º 2 e 73.º do Código Penal.
De acordo com o disposto no artigo 22.º, n.º 1 do Código Penal «há tentativa quando o agente praticar actos de execução de um crime que decidiu cometer, sem que este chegue a consumar-se», acrescentando o n.º 2 do preceito que são actos de execução os que preencherem um elemento constitutivo de um tipo de crime [alínea a)], os que forem idóneos a produzir o resultado típico [alínea b)] ou os que, segundo a experiência comum e salvo circunstâncias imprevisíveis, forem de natureza a fazer esperar que se lhes sigam actos das espécies indicadas nas alíneas anteriores [alínea c)].
Quando a realização do crime envolve uma pluralidade de pessoas (pelo menos duas), cada uma delas é co-autora, se tomar parte directa na sua execução, por acordo, ou actuar juntamente com outro ou outros.
Tratar-se-á de uma forma de comparticipação na realização do facto típico.
A co-autoria pressupõe uma execução conjunta, traduzida numa participação directa do co-autor, ou seja, numa participação co-decisiva, em que o seu contributo seja tido como essencial ou determinante para a produção do facto (teoria do domínio funcional do facto) mas não é imprescindível que o co-autor realize todos os elementos do tipo.
Basta que a sua participação seja decisiva para a produção do facto na sua totalidade, encaixando-se a sua parcela de actividade na dos restantes co-autores, de modo a, ajustadamente e conforme combinado entre eles, se chegar à realização do facto típico ilícito.
Daí que a cada um dos intervenientes seja imputada a parcela de actividade dos restantes, como se se tratasse de acção própria( - Jescheck, Tratado de Derecho Penal, Tradução, Comares Editorial, 2002, pág. 731.).
Dito de outro modo, na comparticipação criminosa sob a forma de co-autoria são requisitos essenciais: uma decisão conjunta, tendo em vista a obtenção de um determinado resultado, e uma execução conjunta da decisão.
Na execução do crime em co-autoria, não é indispensável que cada um dos agentes intervenha em todos os actos de execução, bastando que a actuação de cada um, embora parcial, seja elemento componente do todo e indispensável à produção do resultado( - Figueiredo Dias, Sumários de Direito Penal, Coimbra, 1976, pág. 56 e seguintes; Acórdão do STJ de 27/5/2009, Proc. n.º 58/07.1PRLSB.S1 - 3.ª Secção, in Sumários de Acórdãos do STJ, Secções Criminais, Número 137, p. 38.).
Basta que o comparticipante contribua com a sua acção, conjugada com a dos outros, para a realização típica do evento qualificado como crime, ainda que não tenha participação em todos os actos que fazem parte daquele processo de realização.
Por outro lado, o acordo não pressupõe a participação de todos os co-autores na elaboração do projecto comum, não necessita de ser expresso, podendo ser o simples acordo tácito, e nem sequer de ser anterior ao início do contributo do co-autor.
No caso em apreço ficou provado que, no dia 23 de Janeiro de 2014, a arguida e o cidadão de nacionalidade tunisina, C..., em comunhão de esforços e vontades e na execução de um plano previamente delineado, a que ambos aderiram, apresentaram-se na Conservatória do Registo Civil de Braga, declarando verbalmente a intenção de celebrar casamento entre si e, depois de informados dos procedimentos que ao caso cabiam, apresentaram na Conservatória documentos para a organização de processo preliminar de casamento.
Mais se provou que, na execução do referido plano, apresentaram na Conservatória, entre outros documentos, uma procuração, emitida em 07/01/2014, para C... Bouzommita casar, através de terceira pessoa (E. M.), tendo ambos alegado residir na Rua L…, Braga.
Provou-se ainda que a arguida e C... nunca tiveram intenção de efectivamente contrair matrimónio entre si, constituir família e passar a viver como cônjuges, porque a real intenção da arguida e de C... era tão-só regularizar a situação de permanência de C... na Europa, nomeadamente obter autorização de residência, uma vez que o mesmo residia em França, na qualidade de “ilegal” e que a arguida, em comunhão de esforços e vontades com o mencionado cidadão tunisino, actuou da forma descrita, com vista a C… conseguir entrar e permanecer em território europeu e obter autorização de residência, o que só não conseguiram por motivos alheios à sua vontade.
Em face da matéria de facto provada dir-se-á que os actos praticados pela arguida e pelo referido cidadão de nacionalidade tunisina, ao apresentarem-se na Conservatória do Registo Civil de Braga, declarando verbalmente a intenção de celebrar casamento entre si e, depois de informados dos procedimentos que ao caso cabiam, apresentando na Conservatória documentos para a organização de processo preliminar de casamento, contém já, eles próprios, um momento de ilicitude, posto que, apesar de ainda não produzirem a lesão do bem jurídico tutelado pela norma incriminadora do crime de casamento de conveniência, produzem já uma situação de perigo para esse bem, sendo que, de acordo com a experiência comum, tais actos eram de natureza a fazer esperar que se lhes seguisse a organização do processo preliminar de casamento (artigos 135.º a 137.º do Código do Registo Civil), o que apenas não veio a suceder por razões alheias à sua vontade.
A este respeito, para correcta interpretação da alínea c) do n.º 2 do artigo 22.º do Código Penal, Figueiredo Dias fala da exigência cumulativa de uma dupla conexão: de uma conexão de perigo e de uma conexão típica ou, se preferirmos – o que é o mesmo mas dá melhor a compreender a íntima relação que deve ser exigida entre as duas conexões, o seu carácter cumulativo, bem como ainda o seu estreito parentesco com a ideia essencial das teorias matérias objectivas – de uma conexão de perigo típico.
Assim, tais actos devem reputar-se como actos de execução porque entre eles e a realização típica se verifica, segundo o lapso temporal mas também de acordo com o sentido, uma conexão de perigo, isto é, uma relação de iminente implicação, a que acresce uma conexão típica porque tais actos penetram já no âmbito de protecção do tipo de crime em causa( - Figueiredo Dias, Direito Penal, Parte Geral, Tomo I, 2ª edição, página 705 e segs.).
A arguida praticou, portanto, actos de execução do crime de casamento de conveniência, que decidiu cometer conjuntamente com o referido cidadão de nacionalidade tunisina, o qual apenas por razões alheias à sua vontade, ou do seu comparticipante, não se consumou.
Por conseguinte, a arguida constituiu-se co-autora de um crime de casamento por conveniência, na forma tentada, previsto e punido pelas disposições conjugadas do artigo 186.º, nºs 1 e 3 da Lei n.º 23/2007, de 04/07, com referência aos artigos 22.º, n.º 2, c), 23.º e 73.º, a) e b) todos do Código Penal, tal como bem entendeu o tribunal a quo pelo que nenhuma censura merece a decisão recorrida.
Improcede, portanto, esta questão.
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III – DISPOSITIVO
Pelo exposto, acordam os juízes desta Relação em julgar improcedente o recurso interposto pela arguida L. F. e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
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Custas pela recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 3 (três) UC.
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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)
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Guimarães, 3 de Abril de 2017