Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2125/18.7T8VNF.G2
Relator: LÍGIA VENADE
Descritores: PRIVAÇÃO DE USO
VEÍCULO AUTOMÓVEL
CUMULAÇÃO DE INDEMNIZAÇÕES
DANO PATRIMONIAL
DANO NÃO PATRIMONIAL
JUÍZO EQUITATIVO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/15/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: PARCIALMENTE PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
Sumário (da relatora):

I A mera privação do uso de um bem pelo seu proprietário, ainda que desacompanhada de qualquer prejuízo patrimonial concreto, constitui um dano juridicamente ressarcível na medida em que implica a substração ao lesado de uma parte das faculdades que o direito de propriedade lhe confere, designadamente a faculdade de gozar o bem, e esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava.
II Não há impedimento à cumulação das indemnizações pelo dano patrimonial que se traduz em efetiva lesão do correspondente direito real de propriedade, e pelo dano de natureza não patrimonial que eventualmente o lesado tenha suportado, e que se traduz na sua afetação moral, desde que não sejam os mesmos factos a suportar ambas as indemnizações.
III Para o computo da indemnização por não uso, deve recorrer-se à equidade, na falta de prova de danos efetivos causados pela privação do uso do veículo –artº. 566º, nº. 3, do C.C..
IV No juízo equitativo recorre-se, além do mais, à boa fé e a juízos de razoabilidade, pelo que não se coloca nem a questão de enriquecimento ilegítimo do lesado, nem do abuso de direito.
V Nas atuais circunstâncias, um veículo automóvel é as mais das vezes um bem necessário ou pelo menos de extrema utilidade, permitindo flexibilidade nas deslocações e nos horários; provando-se que a sua danificação e falta causa tristeza, desapontamento, angústia, revolta e desgosto, afeta o seu bem estar e a qualidade de vida do lesado, pelo que tal configura um prejuízo relevante na esfera psicológica que deve ser tutelado pelo Direito para efeitos de compensação pecuniária, sendo mais que meros incómodos ou contrariedades.
VI O seu ressarcimento é feito segundo a equidade –artºs. 496º e 494º, do C.C..
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I RELATÓRIO (seguindo o elaborado em 1ª instância).

P. D. intentou a presente ação declarativa de condenação, sob a forma de processo comum, contra AUTO ELÉCTRICA X, LD.ª e Y SEGUROS, formulando os seguintes pedidos: «NESTES TERMOS E NOS MELHORES DE DIREITO, DEVE A PRESENTE ACÇÃO SER JULGADA TOTALMENTE PROCEDENTE POR PROVADA E AS RÉS SEREM CONDENADAS A INDEMNIZAR O AUTOR, NOS TERMOS DO EXPOSTO SUPRA, DO SEGUINTE MODO: A) PAGAR AO AUTOR O CUSTO ORÇAMENTADO DA REPARAÇÃO DA VIATURA IDENTIFICADA NOS AUTOS, NO VALOR DE € 8.195,85; B) PAGAR AO AUTOR A QUANTIA DE € 20,00 POR CADA DIA DE PARALISAÇÃO DO VEÍCULO IDENTIFICADO, CONTADOS DESDE 10.09.2017 (SENDO O VALOR ACTUAL DE € 3.940,00) ATÉ À EFECTIVA REPARAÇÃO E ENTREGA DA VIATURA DEVIDAMENTE REPARADA AO AUTOR; C) PAGAR AO AUTOR UMA QUANTIA NÃO INFERIOR A € 1.500,00 DE DANOS NÃO PATRIMONIAIS SOFRIDOS COM O INCUMPRIMENTO CONTRATUAL DA PRIMEIRA RÉ ACIMA EXPOSTO; SUBSIDIARIAMENTE E SE ASSIM NÃO SE ENTENDER, DEVEM AS RÉS SEREM CONDENADAS A INDEMNIZAR O AUTOR, NOS TERMOS DO EXPOSTO SUPRA, DO SEGUINTE MODO: A) REPARAR A IDENTIFICADA, ENTREGANDO A MESMA AO AUTOR DEVIDAMENTE REPARADA E A FUNCIONAR CORRECTAMENTE; B) PAGAR AO AUTOR A QUANTIA DE € 20,00 POR CADA DIA DE PARALISAÇÃO DO VEÍCULO IDENTIFICADO, CONTADOS DESDE 10.09.2017 (SENDO O VALOR ACTUAL DE € 3.940,00) ATÉ À EFECTIVA REPARAÇÃO E ENTREGA DA VIATURA DEVIDAMENTE REPARADA AO AUTOR; C) PAGAR AO AUTOR UMA QUANTIA NÃO INFERIOR A € 1.500,00 DE DANOS NÃO PATRIMONIAIS SOFRIDOS COM O INCUMPRIMENTO CONTRATUAL DA PRIMEIRA RÉ ACIMA EXPOSTO.».
Invoca o autor, para tanto e em suma, que, tendo o acordado com a primeira ré os serviços de instalação de um sistema de «GPL», no veículo automóvel de que é proprietário, a mesma veio a executá-lo de forma deficiente, originando a avaria do motor (cujo custo de reparação ascende a 8.195,85€), razão pela qual se encontra privado de usar tal veículo desde a data dessa avaria (indemnização de 20€/diários a título de privação do uso), assim como desgostoso e revoltado (compensação por danos não patrimoniais no valor de 1.500,00€).

Alega, também, que na sequência de contrato de seguro estabelecido entre as rés, titulado pela apólice n.º .......06, a segunda aceitou garantir o pagamento das indemnizações que sejam legalmente exigíveis à primeira, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados a terceiros, decorrentes de ações ou omissões relativas à montagem e/ou reparação dos componentes inerentes à utilização de GPL em veículos automóveis, razão pela qual também esta deve ser solidariamente condenada no pagamento das indemnizações peticionadas.
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Citadas, contestaram as rés e, para além de impugnarem a causa de pedir invocada pelo autor, excecionaram que o sistema foi instalado de acordo com as regras e normas que regem a atividade do mercado e segundo as instruções do fabricante, assim como que o cilindro e o pistão causais da avaria já estavam danificados antes da instalação do sistema «GPL». Pedem a absolvição do pedido.
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No exercício do direito ao contraditório, o autor impugnou a matéria de exceção invocada pelas rés, concluindo como na petição inicial.
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Foi fixado valor à ação. Foi proferido saneador. Foi dispensada a delimitação do objeto do litígio e a fixação dos temas da prova.

Realizada audiência de julgamento foi proferida sentença que decidiu nos seguintes termos:
“Pelo exposto, julgo a presente ação procedente, por provada, e, como tal, decido:
A) Condenar solidariamente as rés AUTO ELÉTRICA X, LD.ª e SEGURADORAS ..., SA no pagamento das seguintes quantias ao autor P. D.:
1. A quantia de 8.195,85€ (oito mil cento e noventa e cinco euros e oitenta e cinco cêntimos) a título de valor necessário à reparação dos danos registados no veículo automóvel;
2. A quantia diária de 20,00€ (vinte euros), contabilizada desde 10 de Setembro de 2017 e o dia em que for paga a indemnização referida em A.1), a título de privação do uso do veículo automóvel;
3. A quantia de 1.500,00€ (mil e quinhentos euros) por danos não patrimoniais.
B) Condenar solidariamente as rés AUTO ELÉTRICA X, LD.ª e SEGURADORAS ..., SA no pagamento das custas processuais da ação.”
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Inconformada, a R., atualmente W SEGUROS, S.A, apresentou recurso com alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-

“1) A ora Apelante não se pode conformar com a douta sentença, no que respeita às alíneas b) e c) da parte decisória da mesma.
2) O douto Tribunal a quo bastou-se com 5 factos dados como provados para fundamentar a condenação da ora recorrente no pagamento de uma indemnização de 1.500,00€ de danos não patrimoniais, e numa condenação de 20€ diários, que na presente data já ascende à quantia de 24.780,00€ (vinte e quatro mil setecentos e oitenta euros).
3) A recorrente não pode conformar-se com a facilidade com que o douto tribunal a quo atribuiu indemnização tal montra com base nos factos, singelos, apurados nos autos.
4) Dos factos provados supra transcritos não mais resulta que meros incómodos e aborrecimentos para o A. em consequência da privação e uso do seu veículo.
5) Não decorre dos autos que para o A., em consequência da privação de uso do veículo, tenha advindo qualquer prejuízo económico, perda de rendimento, lucro cessante, acréscimo de despesas ou outro que justifique e fundamente a atribuição de uma indemnização de tal montra que o possibilite a comprar um carro novo.
6) A atribuição da indemnização fixada nos autos confere ao A. um enriquecimento ilegítimo e injustificado, agravando excessiva e injustificadamente o devedor, a aqui Apelante.
7) Considera a ora recorrente, que de forma a se encontrar uma solução justa ao presente caso, deverão V. Exas. recorrer a um juízo de equidade e razoabilidade, atribuindo ao A. uma indemnização compensatória pela privação do uso do seu veículo, no entanto essa indemnização deverá ser balizada num período não superior a 100 dias e a uma taxa diária de 10,00€.
8) A condenação prescrita na alínea c) da parte decisória, 1.500,00€ de danos não patrimoniais, aliada à condenação da alínea b) configura uma duplicação de indemnizações pelos mesmo e único direito.
9) Ambas as indemnizações visam compensar os exactos e singulares danos sofridos pelo A.
10) A ressarcibilidade dos danos não patrimoniais encontra-se limitada pelo disposto no art. 496º do CC. segundo o qual a indemnização pelos danos não patrimoniais se encontra limitada aos danos cuja gravidade mereça a tutela do direito.
11) Os incómodos, os transtornos, desgosto e angustia do A. (foram apenas estes danos que se provaram) não reveste para o direito a gravidade que o douto tribunal a quo lhes expressou.
12) Sendo que, na modesta opinião da ora recorrente, tais danos, na sua globalidade, não podem, nem devem sob de enriquecimento do A., ser quantificado em quantia superior a 1.000,00€ e numa única condenação ao invés da dupla e ilegal condenação em que incorreu o douto tribunal a quo.”
*
O A. apresentou contra-alegações que terminam com as seguintes
-CONCLUSÕES-

A) O A. apresenta as suas Alegações de Resposta ao abrigo do disposto no art. 638.º.5 do CPC, impugnando o que a Recorrente alegou e que constitui objecto do seu Recurso, qual seja o montante diário atribuído ao A. pela privação de uso do veículo e o montante atribuído a título de danos não patrimoniais.
B) A Recorrente entendeu que o Tribunal a quo aplicou mal o montante indemnizatório a atribuir tendo em conta os factos provados na sentença., insurgindo-se contra o montante diário atribuído ao A. pela privação de uso do veículo e a título de danos não patrimoniais.
C) O valor de € 20,00 diários atribuído pela privação de uso tem suporte na jurisprudência aventada na sentença a quo, sendo atribuído segundo critérios de equidade e liberdade do julgador.
D) Devendo esse montante ser contabilizado desde o dia em que essa privação se iniciou (10 de Setembro de 2017) até ao dia que for pago o valor da reparação do veículo do mesmo A.
E) Ficou provado que a privação de uso do veículo causou ao A. uma grande perturbação da sua vida quotidiana, sendo justo e adequado o montante de € 20,00 diários para essa privação de uso que configura um dano patrimonial, tendo sido dado como provado que o A. não dispõe de qualquer outro veículo automóvel.
F) Quanto aos danos não patrimoniais, deverá manter-se a condenação da R. no valor de € 1.500,00 que a sentença decidiu.
G) Não existe repetição nenhuma de indemnizar o A. pela privação de uso e pelos danos não patrimoniais sofridos uma vez que a privação de uso é um dano de natureza patrimonial.
H) No cálculo ou determinação dos prejuízos sofridos pelo Autor deve pugnar-se pela reposição em substância da utilidade perdida pelo lesado, cabendo ao lesante (ou a sua seguradora) repor em substância a utilidade perdida pelo lesado, como se referiu, sendo um dano emergente em sede de privação de uso.
I) Tal dano imediatamente ressarcível é precisamente a indisponibilidade do bem, qualquer que fosse a actividade a que o veículo do A. estava afecto.
J) Os danos não patrimoniais são devidos pela tristeza, desapontamento, angústia, revolta e desgosto que o A. sofreu com a situação, a qual se verifica desde 2017 devendo os mesmos ser objecto de indemnização que se deverá manter no valor de € 1.500,00 decididos, o que se requer, tendo em conta que o A. não dispunha sequer de mais nenhum veículo na sua propriedade nem na sua posse.
Pede a improcedência do recurso.
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Após os vistos legais, cumpre decidir.
***

II QUESTÕES A DECIDIR.

Decorre da conjugação do disposto nos artºs. 608º, nº. 2, 609º, nº. 1, 635º, nº. 4, e 639º, do Código de Processo Civil (C.P.C.) que são as conclusões das alegações de recurso que estabelecem o thema decidendum do mesmo. Impõe-se ainda ao Tribunal ad quem apreciar as questões de conhecimento oficioso que se resultem dos autos.
Impõe-se por isso no caso concreto e face às elencadas conclusões decidir se:
-os valores indemnizatórios arbitrados nos pontos 2 e 3 da decisão devem manter-se.
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III MATÉRIA A CONSIDERAR.

A matéria a ter em conta é a que se mostra elencada na decisão sob recurso, dado que não foi impugnada.

Assim, passa a reproduzir-se a mesma.

A) FACTOS PROVADOS

(PETIÇÃO INICIAL)
1. O autor P. D. é proprietário do veículo de matrícula ZZ, correspondente a um Subaru Impreza, do ano de 2005, movido a gasolina;
2. A ré AUTO ELÉTRICA X, LD.ª é uma sociedade comercial que, entre o mais, se dedica à instalação de mecanismos de «GPL» em veículos automóveis, atividade que desenvolve a título lucrativo;
3. Em Setembro de 2017, o autor decidiu instalar, no veículo referido em 1), um mecanismo de «GPL» (Gás de Petróleo Liquefeito), de forma a obviar aos custos da gasolina;
4. O autor acordou com a ré execução do serviço referida em 3), mediante o pagamento do preço acordado de 1.292,82€;
5. No dia 08 de Setembro de 2017, o automóvel foi entregue nas instalações da ré, tendo a ré, entre os dias 08 e 09 de Setembro de 2017, instalado no automóvel o mecanismo de «GPL»;
6. No dia 09 de Setembro de 2017, a ré entregou o veículo ao autor, com a menção de que o mecanismo de «GPL» havia sido aplicado em conformidade com as normas de instalação;
7. Com a entrega referida em 6), a ré forneceu ao autor um livro de revisões do mecanismo «GPL», no qual vem explicada a mecânica do sistema instalado, as instruções de manuseamento do mesmo, bem como os espaços a serem preenchidos pela oficina de instalação e manutenção nas respetivas revisões;
8. No dia 10 de Setembro de 2017, quando o autor circulava com o veículo na via pública, o motor do automóvel avariou e o mesmo ficou imobilizado;
9. Após o referido em 8), o veículo deixou de ter resposta positiva às manobras de ignição, deitando um fumo branco de grandes dimensões quando o motor acionava e encontrando-se impossibilitada de circular;
10. O veículo foi rebocado, através dos serviços de assistência em viagem, para a oficina «Auto-...», com sede em ..., Lousada, oficina automóvel especializada em viaturas Subaru, a fim de se verificar qual a avaria impeditiva do funcionamento do veículo, local onde ainda se encontra;
11. A avaria referida em 9) teve como causa direta e necessária a má aplicação do injetor de «GPL» no cilindro n.º 1, que, pela forma inadequada como foi posicionado no cilindro, aquando da perfuração deste, passou a permitir a presença residual de «GPL» no interior do cilindro, nas comutações do sistema de «GPL» para gasolina;
12. A avaria referida em 9) teve ainda, para além da referida em 11), como causa direta e necessária, o comprimento excessivo do tubo do injetor ligado ao cilindro n.º 1, o qual passou a permitir a presença de resíduos de «GPL» no interior do cilindro, nas comutações do sistema de «GPL» para gasolina;
13. A presença de resíduos de «GPL», na sequência da comutação do sistema de «GPL» para gasolina, implicou uma diminuição do índice de octanas da massa de combustível no interior do cilindro, o que gerou uma falha de combustão, decorrente da eclosão de autoignições espontâneas no seu interior, aquando da compreensão da massa de combustível pelo pistão;
14. A falha de combustão no interior do cilindro, decorrente da eclosão de autoignições espontâneas, foi a causa direta e necessária do aumento da temperatura do interior do cilindro a níveis não suportados pela resistência dos materiais, originando o derretimento do cilindro e o seu consequente desbastamento até ao anel de contenção do óleo, assim como a danificação, por fricção, da parede lateral do pistão e da face interior do cilindro;
15. Os danos referidos em 14), tiveram como causa direta e necessária os eventos referidos em 11) a 13), ocorridos em consequência da montagem do sistema de «GPL» pela ré;
16. O motor e o sistema de combustão a gasolina do veículo não apresentavam danos antes da execução do serviço descrito em 5), achando-se o veículo a trabalhar de forma normal;
17. O autor comunicou à ré a avaria aludida de 8) e 9), no decurso do mês de Setembro de 2017, a qual, após se ter inteirado do assunto, comunicou o sucedido à ré SEGURADORAS ..., SA, no contexto do contato de seguro mencionado em 23);
18. O custo de reparação dos danos mencionados de 11) a 15) é de, pelo menos, 8.195,85€, aqui se incluindo a substituição das peças danificadas, mão-de-obra e os trabalhos adicionais necessários;
19. Desde o 10 de Setembro de 2017, o veículo está imobilizado e por reparar;
20. O autor não é proprietário de qualquer outro veículo automóvel;
21. O autor, quando necessita de se deslocar, fá-lo em veículo emprestado pelos pais ou à boleia de familiares ou amigos, o que importa transtornos para aquele e para estes;
22. A aquisição do veículo referido em 1) representou um investimento importante para o autor e havia sido por si adquirido para a satisfação das necessidades da sua vida particular e quotidiana, bem como para se deslocar para o emprego;
23. Em consequência do referido de 8) a 21), o autor sente-se triste, desapontado, angustiado, revoltado e desgostoso, pelo facto de ter o veículo parado na oficina, em virtude de não ter condições económicas para suportar o seu arranjo do mesmo e de nenhuma das rés se ter prontificado a indemnizá-lo;
24. Por contrato de seguro celebrado entre Y SEGUROS, SA e a ré AUTO-ELÉTRICA X, LD.ª , titulado pela apólice n.º .......06, a primeira aceitou garantir o pagamento das indemnizações que sejam legalmente exigíveis à segunda, pelos danos patrimoniais e não patrimoniais causados a terceiros, decorrentes de ações ou omissões relativas à montagem e/ou reparação dos componentes inerentes à utilização de GPL em automóveis, mediante o pagamento de um prémio (nas condições constantes de fls. 32 a 37 e que aqui se reproduzem);
(CONTESTAÇÃO RÉ AUTO ELÉTRICA X, LD.ª)
25. Após a instalação do sistema de «GPL», o veículo foi sujeito a inspeção técnica extraordinária em Centro de Inspeção Periódica Obrigatória, tendo sido aprovado e certificado que a instalação cumpria as prescrições técnicas impostas pela regulamentação europeia;
26. Após a inspeção, o veículo foi entregue pela ré ao autor, acompanhado do respetivo certificado de instalação e demais documentação;
27. Aquando da instalação, o veículo tinha 89.884 km e aquando da avaria apresentava 90.066 Kms, pelo que entre o primeiro e segundo momento percorreu 182 Kms, até avariar;
28. O protocolo de manutenção e instalação do sistema «GPL» obriga ao controlo do sistema de gás, ao fim de 1500 Km;
(CONTESTAÇÃO RÉ SEGURADORAS ..., SA )
29. A sociedade Y SEGUROS, SA foi incorporada, por fusão, na sociedade SEGUROS TRANQUILIDADE SA, a qual, por sua vez, alterou a sua designação para SEGURADORAS ..., SA, tendo, por via dessa fusão, adquirido todos os direitos e obrigações titulados pela Y SEGUROS, SA, entre os quais, os emergentes dos contratos de seguros celebrados por esta;
30. Após a instalação do sistema de «GPL», o veículo foi sujeito a inspeção técnica extraordinária – categoria B - em Centro de Inspeção Periódica Obrigatória, tendo sido aprovado e certificado que a instalação cumpria as prescrições técnicas impostas pela regulamentação europeia;
(ARTICULADO DE RESPOSTA À MATÉRIA DE EXCEÇÃO)
31. A inspeção obrigatória apenas verifica os certificados da instalação do sistema «GPL» e a homologação do mesmo;
32. A inspeção obrigatória não inspeciona o modo como o mesmo foi instalado na parte interior do motor e, em particular, não inspeciona o modo como os injetores são aplicados nos cilindros, não verifica o comprimento dos tubos de alimentação do «GPL», os furos efetuados para aplicação do injetor do mecanismo de «GPL», nem averigua as condições em que a combustão se ficou a processar no interno dos cilindros;
33. Os danos referidos de 8) a 14) não eram de manifestação instantânea, podendo revelar-se apenas após o veículo percorrer dezenas ou centenas de quilómetros.

B) FACTOS NÃO PROVADOS

(PETIÇÃO INICIAL)
a) A ré assumiu perante o autor a responsabilidade pela má instalação do sistema «GPL»;
b) Os danos aludidos de 11) a 15) tiveram como causa a má a calibragem e afinação do sistema de injeção de GPL, no que concerne à sua quantidade, visto ter sido montado de forma a permitir quantidades desproporcionais de GPL no motor;
c) Após a avaria do veículo, o autor passou a deslocar-se de transportes públicos;
d) Após a avaria do automóvel, o autor deixou de sair com frequência com os amigos, como fazia, para não ter de os incomodar;
(CONTESTAÇÃO RÉ AUTO ELÉTRICA X, LD.ª)
e) A ré instalou o sistema «GPL» no veículo do autor, de acordo com as regras e normas que regem a atividade deste mercado e segundo as instruções do fabricante;
f) O cilindro e do pistão causais da avaria referida em 8) mostravam-se já danificados ou desgastados antes da instalação do sistema «GPL»;
(CONTESTAÇÃO SEGURADORAS ..., SA )
g) A ré instalou o sistema «GPL» no veículo do autor, de acordo com os parâmetros fixados pelo construtor e representantes dos componentes de instalação;
h) Os danos referidos de 8) a 15) resultaram de desgaste, deficiência ou má afinação da cabeça do motor (válvulas), já existente à data em que foi montado o sistema «GPL» e decorrente do facto daquele automóvel haver sido utlizado em provas desportivas.
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IV MÉRITO DO RECURSO.

Face à delimitação objetiva do recurso há que analisar o valor fixado como indemnização relativo ao dano patrimonial -valor diário- pela privação do uso do veículo desde 10/9/2017, bem como relativo ao dano não patrimonial causado pela falta do veículo, e verificar se os mesmos factos danosos foram valorados duplamente, de forma não admissível. Ambas as indemnizações foram fixadas com recurso à equidade
O artº. 483º do C.C. estabelece que: “Aquele que, com dolo ou mera culpa, violar ilicitamente o direito de outrem, fica obrigado a indemnizar o lesado pelos danos resultantes dessa violação”.
O artº 563º do mesmo diz que: “A obrigação de indemnização só existe em relação aos danos que o lesado provavelmente não teria sofrido se não fosse a lesão”. E o artº. 562º refere que o obrigado deve reconstituir a situação que existiria, se não se tivesse verificado o evento que obriga à reparação.
Do exposto resulta que o montante da indemnização deve corresponder aos danos causados, sendo que essa indemnização visa, em primeira linha, a reconstituição da situação que existiria se não se tivesse verificado o resultado que obriga à reparação (reconstituição natural) ou, não sendo isso possível (não levar à reparação integral dos danos, ou tornar a reparação excessivamente onerosa), a indemnização deverá ser fixada em dinheiro (artº. 566º nº. 1, do C.C.). Em caso de indemnização em dinheiro, deverá atender-se à medida que o artº. 566º, nº. 2, do C.C. estabelece: a da diferença entre a situação do lesado, na data mais recente que puder ser atendida pelo tribunal e a que teria nessa data, se não existissem danos, considerando, ainda, os demais critérios que os artºs. 564º a 566º do mesmo Código determinam.
Face ao disposto no artº. 564º do C.C., o dano indemnizável compreende quer os danos emergentes (perda ou diminuição de valores já existentes no património do lesado), quer os lucros cessantes (acréscimo patrimonial que o lesado deixou de obter por causa do facto ilícito mas a que, ainda não tinha direito à data da lesão – cfr. Antunes Varela, “Das Obrigações em Geral”, vol. I, pag. 610 da 8ª edição).
São de atender quer os danos presentes quer os danos futuros (aqueles que ainda não existem à data da fixação da indemnização), mas estes, apenas se forem previsíveis; contudo se não forem determináveis a fixação da indemnização correspondente será remetida para decisão ulterior (cfr. nº. 2, do artº. 564.º do C.C.). Se não forem de todo determináveis, resta o recurso à equidade (artº. 566º, nº. 3, C.C.).
*
Seguiremos na exposição/introdução desta matéria os termos do nosso Ac. proferido em 18/2/2021, processo 4416/18.8T8BRG.G1 (www.dgsi.pt), uma vez que os contornos da questão são os mesmos.

E aí dissemos:
“António dos Santos Abrantes Geraldes na “Indemnização do Dano da Privação do Uso” aborda a questão, em particular decorrente de acidentes de viação, enunciando as diversas posições doutrinárias e jurisprudenciais que sobre a temática têm sido consideradas, numa perspetiva de contributo para a discussão, mais do que numa tentativa de encontrar uma solução única, como o próprio afirma, face à falta de resposta clara do direito positivo (pags. 6 e 7).

E destaca as posições mais relevantes nestes termos:
1) A orientação que nega a autonomia do dano decorrente da privação do uso (integrando-o no âmbito dos danos de natureza não patrimonial – vd., v.g., o Acórdão do Tribunal da Relação do Porto de 10-02-2000, in BMJ 494.º, p. 396);
2) A orientação que reconhece a autonomia do dano da privação do uso, mas que exige a prova efetiva da existência de prejuízos de ordem patrimonial (vd., neste sentido, o Acórdão do STJ de 18.11.2008, Pº 08B2732, relator PEREIRA DA SILVA; o Acórdão do STJ de 16-03-2011, Pº 3922/07.2TBVCT.G1.S1, relator MOREIRA ALVES; o Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 03-05-2011, Pº 2618/08.6TBOVR.P1; o Ac. do Tribunal da Relação de Lisboa de 06-12-2012, Processo 132/04.6TBRMR.L1-6, relatora ANABELA CALAFATE; o Ac. do TRP de 25-02-2014, relator RUI MOREIRA; o Ac. do TRP de 19-12-2012, relator IGREJA MATOS; o Acórdão do STJ de 12-01-2012, relator FERNANDO BENTO; o Acórdão do STJ de 04-05-2010, relator SEBASTIÃO PÓVOAS; o Acórdão do TRC de 02-02-2010, relator GONÇALVES FERREIRA; o Acórdão do STJ de 19-11-2009, relator HÉLDER ROQUE; o Acórdão do TRC de 08-09-2009, relator ARTUR DIAS; e o Acórdão do STJ de 06-11-2008, relator SALVADOR DA COSTA);
3) A orientação que reconhece o direito de indemnização com fundamento na simples privação do uso normal do bem.

No Ac. da Rel. de Lisboa de 11/12/2019 sintetiza-se a posição do mesmo autor relativamente aos pontos que se podem ter por assentes (embora pensado no caso da paralisação de veículos, fruto de acidentes de viação), com recurso à obra “Temas da Responsabilidade Civil”, I Vol. – Indemnização do Dano da Privação do Uso; Almedina, Coimbra, 2ª Ed., 2005, pags. 72-73; mas que consta também a pags. 53 e 54 da sua outra obra citada:

“a) Provando-se a existência de prejuízos efectivos decorrentes da imobilização de um veículo, designadamente por causa de actividades que deixaram de ser exercidas, de receitas que deixaram de ser auferidas ou de despesas acrescidas, terá o lesado o direito de indemnização de acordo com a aplicação directa da teoria da diferença, considerando não apenas os danos emergentes como ainda os lucros cessantes.
b) Tratando-se de veículo automóvel de pessoa singular ou de empresa utilizado como instrumento de trabalho ou no exercício de actividade lucrativa, a existência de um prejuízo material decorre normalmente da simples privação do uso, independentemente da utilização que, em concreto, seria dada ao veículo no período de imobilização, ainda que o veículo tenha sido substituído por outro de reserva;
c) Mesmo quando se trate de veículo em relação ao qual inexista prova de qualquer utilização lucrativa, não está afastada a ressarcibilidade dos danos, tendo em conta a mera indisponibilidade do bem, sem embargo de, quanto aos lucros cessantes, se apurar que a paralisação nenhum prejuízo relevante determinou, designadamente, por terem sido utilizadas outras alternativas menos onerosas e com semelhante comodidade, ou face à constatação de que o veículo não era habitualmente utilizado;
d) Em qualquer das situações, sem prejuízo do recurso à equidade ou mesmo à condenação genérica, a quantificação tanto dos danos emergentes como dos lucros cessantes será feita tomando em consideração todas as circunstâncias que rodearam o evento, nomeadamente a natureza, o valor ou a utilidade do veículo, os reflexos negativos na esfera do lesado ou aumento das despesas ou a redução das receitas;
e) Em todos os casos serão sempre ponderados os princípios da boa fé, tal como o modo como o responsável e o lesado agiram na resolução do caso”.

E continua esse Acórdão, dizendo que “Efectivamente, não custa compreender que a simples privação do uso seja uma causa adequada de uma modificação negativa na relação entre o lesado e o seu património, que possa servir de base à determinação da indemnização.
Como propõe o referido Autor (ob. Cit., p. 57), nos casos em que a utilização de um veículo constitua um simples meio de transporte, para a efectivação de quaisquer deslocações, mesmo de lazer, não está afastada, à partida, a ressarcibilidade do dano emergente da privação do uso do veículo, havendo, quanto aos lucros cessantes que apurar se a paralisação determinou algum ou nenhum prejuízo, pela existência de alternativas menos onerosas ou com semelhante comodidade ou caso se demonstre que o veículo – danificado – não era habitualmente utilizado.
Com efeito, “(…) o direito de propriedade integra, como um dos seus elementos fundamentais, o poder de exclusiva fruição, do mesmo modo que confere ao proprietário o direito de não usar. A opção pelo não uso ainda constitui uma manifestação dos poderes do proprietário, também afectada pela privação do bem. Neste contexto, sendo a disponibilidade material dos bens um dos principais reflexos do direito de propriedade, apenas excepcionalmente, perante um quadro factual mais complexo, será possível afirmar que a paralisação não foi causa adequada de danos significativos merecedores da ajustada indemnização” (Aut. Cit.; ob. Cit., pp. 57-58).
Em igual sentido, Luís Menezes Leitão (Direito das Obrigações, Volume I, 4.ª Edição, p. 317) refere que “o simples uso constitui uma vantagem susceptível de avaliação pecuniária, pelo que a sua privação constitui naturalmente um dano”.”
E cita jurisprudência em conformidade, designadamente os Acs. da Rel. de Lisboa de 20/12/2017, de 27/2/2014, o Ac. do STJ de 12-01-2010 (com apelo não só ao conteúdo do artº. 1305º do C.C., mas também ao artº. 62º da Constituição da República Portuguesa). E cita de seguida a jurisprudência que alinhou nesse sentido. De mencionar o Ac. desta Relação de 17/01/2013 e da Rel. do Porto de 26/9/2013 (www.dgsi.pt).

Quanto à nossa posição, e já citada a devida doutrina e jurisprudência, entendemos que a mera privação do uso de um bem pelo seu proprietário, ainda que desacompanhada de qualquer prejuízo patrimonial concreto, constitui um dano juridicamente ressarcível na medida em que implica a substração ao lesado de uma parte das faculdades que o direito de propriedade lhe confere, designadamente a faculdade de gozar o bem.
Neste sentido se pronunciou mais recentemente o Ac. de 14/12/2016 (www.dgsi.pt) que diz que que o Supremo Tribunalvem decidindo, maioritariamente, no domínio da responsabilidade civil extracontratual emergente de acidente de viação que a privação do uso de um veículo automóvel constitui um dano autónomo indemnizável na medida em que o seu dono fica impedido do exercício dos direitos de usar, fruir e dispor inerentes à propriedade, que o artigo 1305º do Código Civil lhe confere de modo pleno e exclusivo, bastando para o efeito que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava. Neste sentido, entre outros, os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 5 de Julho de 2007 (proc. nº 07B1849), de 12 de Janeiro de 2010 (proc. nº 314/06.6TBCSC.S1), de 16 de Março de 2011 (proc. 3922/07.2TBVCT.G1.S1) e de 10 de Janeiro de 2012 (proc. nº 189/04.0TBMAI.P1.S1), disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.”.
Daqui resulta que não basta a prova da privação do uso, sendo ainda necessário que o lesado alegue e demonstre, para além da impossibilidade de utilização do bem, que esta privação gerou perda de utilidades que o mesmo lhe proporcionava. Em igual sentido temos o Ac. do STJ de 27/4/2017 e o de 2/6/2009.
Este último, diz-nos: “A privação do gozo de uma coisa pelo titular do respectivo direito constitui um ilícito que o sistema jurídico prevê como fonte da obrigação de indemnizar, pois que impede o respectivo proprietário de dela dispor e fruir as utilidades próprias da sua natureza. A questão da ressarcibilidade da “privação do uso” não pode ser apreciada e resolvida em abstracto, aferida pela mera impossibilidade objectiva de utilização da coisa. Uma coisa é a privação do uso e outra, que conceptualmente não coincide necessariamente, será a privação da possibilidade de uso: - Uma pessoa só se encontra realmente privada do uso de alguma coisa, sofrendo com isso prejuízo, se realmente a pretender usar e a utilizasse caso não fosse a impossibilidade de dela dispor; não pretendendo fazê-lo, apesar de também o não poder, está-se perante a mera privação da possibilidade de uso, sem repercussão económica, que, só por si, não revela qualquer dano patrimonial indemnizável. Bastará que a realidade processual mostre que o lesado usaria normalmente a coisa, vendo frustrado esse propósito, para que o dano exista e a indemnização seja devida.”
“Temperando” posições, cremos que a análise da verificação do prejuízo patrimonial nestes casos de privação do uso tendo sempre de ser feita casuisticamente, em face do concreto circunstancialismo, nomeadamente a utilidade/destino do bem em causa, e terá ainda que ser cotejada com o ónus da prova.
Um veículo está à disposição do seu proprietário para ser usado em deslocações, sejam elas quais forem; este decide se usa ou não- só assim não será se por exemplo não tiver motor, ou poderá ser simplesmente um objeto de coleção, casos em que já não iria ser usado. O veículo destina-se a circular, logo, parece curial exigir-se que seja o lesado a provar que o usaria ou usava para o seu fim.
Pensamos também serem nesse sentido as conclusões que são retiradas na obra citada de António Santos Abrantes Geraldes “Indemnização do Dano da Privação do Uso”, pags. 54 a 56, quando diz que “Mas mesmo que nada se prove a respeito da utilização ou do destino que seria dado ao bem, os argumentos anteriormente aduzidos deverão servir para compensar monetariamente o lesado pelo período correspondente ao impedimento dos poderes de fruição ou de disposição.” E a pags. 62 “(…) A esta visão da realidade, à luz dos padrões da normalidade ou da verosimilhança, se obtempera, por vezes, que a simples privação do uso não configura a existência de um prejuízo, devendo exigir-se a prova de uma efetiva possibilidade ou vontade de realização de despesas ou de obtenção de receitas no período de privação. Ou, ainda, invoca-se que a concessão de uma indemnização ao credor, malgrado a ausência de prova de prejuízos efetivos poderia desembocar numa situação de enriquecimento sem causa.
Exigem frequentemente os tribunais aquilo que, em termos de razoabilidade, não é exigível ou não é materialmente comprovável. Ou elevam a tal nível a fasquia em matéria de formação da convicção que o ónus de prova se transfigura em prova diabólica, deixando por reconhecer situações que o sendo comum francamente admite.
Em suma, parte-se da excepção para afirmar a regra. Pretende-se que determinadas actuações ou intenções que a experiência revela serem excepcionais sirvam para integrar os comportamentos-regra. Olvida-se, além do mais, que, recaindo sobre o credor o ónus da prova da ocorrência dos danos, a lei não trata com total indiferença o devedor, onerando-o com a prova dos factos impeditivos ou com a contraprova de factos susceptíveis de gerar uma situação de dúvida (artºs. 342.º, n.º 2, e 346.º do CC).”
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No Ac. da Rel. de Lisboa de 5/3/2020 (www.dgsi.pt) traçou-se a evolução que doutrina e jurisprudência fizeram nesta matéria, com citações que disso dão conta.
Nos autos a recorrente não questiona que o dano seja indemnizável, com base na equidade, uma vez que não se provou um concreto prejuízo patrimonial decorrente da privação do uso.
O Tribunal de 1ª instância deu total provimento ao peticionado nesta sede.

Vejamos os factos que sustentam a decisão:

19. Desde o 10 de Setembro de 2017, o veículo está imobilizado e por reparar;
20. O autor não é proprietário de qualquer outro veículo automóvel;
21. O autor, quando necessita de se deslocar, fá-lo em veículo emprestado pelos pais ou à boleia de familiares ou amigos, o que importa transtornos para aquele e para estes;
22. A aquisição do veículo referido em 1) representou um investimento importante para o autor e havia sido por si adquirido para a satisfação das necessidades da sua vida particular e quotidiana, bem como para se deslocar para o emprego;
23. Em consequência do referido de 8) a 21), o autor sente-se triste, desapontado, angustiado, revoltado e desgostoso, pelo facto de ter o veículo parado na oficina, em virtude de não ter condições económicas para suportar o seu arranjo do mesmo e de nenhuma das rés se ter prontificado a indemnizá-lo;”
-o veículo tinha 89.884 km (ponto 27).

Por outro lado, consta como não provado a propósito desta matéria que:
“c) Após a avaria do veículo, o autor passou a deslocar-se de transportes públicos;
d) Após a avaria do automóvel, o autor deixou de sair com frequência com os amigos, como fazia, para não ter de os incomodar;” -o que era alegado pelo A..
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Antes de se verificar da “justeza” dos valores arbitrados, é preciso assentar que os danos configuram as duas vertentes de prejuízos –patrimoniais e não patrimoniais-, e perante isso decidir se nessas duas medidas devem ser valorados.
Relativamente à vertente patrimonial, dúvidas não há face à atual jurisprudência e doutrina, já citados, quanto à sua reparação, independentemente da prova de prejuízo efetivo -cfr. factos 19 a 21 e 22 segunda parte.
Mas face á factualidade apurada, a falta que o veículo fez ao A. também lhe provou danos na vertente pessoal –cfr. facto 23 e 22 primeira parte.
Conforme Ac. da Rel. de Lisboa de 5/3/2020 “supra” citado e com cuja posição concordamos, não há qualquer impedimento à cumulação das indemnizações. O dano patrimonial traduz-se em efetiva lesão do correspondente direito real de propriedade, e o dano de natureza não patrimonial que eventualmente o lesado tenha suportado, traduz-se na afetação moral do A..
Importante é que não sejam os mesmos factos a suportar ambas as indemnizações, situação que está salvaguardada nos autos atenta a distinta ponderação dos factos, tal como enunciamos.
No Ac. da Rel. do Porto de 16/3/2015 (www.dgsi.pt) vem tratada esta matéria, sendo estabelecida uma distinção entre o dano não patrimonial que resulta das repercussões da privação do gozo da coisa danificada na vida diária dos donos (ressarcível e cumulável com a ressarcibilidade da privação enquanto dano patrimonial ou do dano real), e o dano não patrimonial derivado do desgosto com a danificação de um veículo (sem características especiais), entendendo que este último não é indemnizável por não assumir a gravidade necessária para obter a tutela jurídica respetiva (no caso concreto).
Ultrapassou-se a posição que a indemnização situava-se apenas na esfera dos danos não patrimoniais –no citado Ac. da Rel. de Lisboa dá-se nota dessa corrente.
No caso dos autos pensamos que os factos sustentam essa gravidade que confere direito a uma compensação. Para além do que consta do ponto 23, não é para esta aferição indiferente o facto de, do ponto de vista da vida financeira do A., a aquisição do veículo ter tido relevo (cfr. a referência no ponto 22). Mais à frente retomaremos e desenvolveremos esta questão.
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Cabe então ponderar se o valor diário atribuído pela privação do veículo é justo e adequado, bem como se as mesmas características assentam no valor encontrado a título de indemnização pelo dano não patrimonial, tudo do ponto de vista do juízo equitativo.
Voltando ao mesmo, o artº. 566º, nº. 3, do C.C., que estabelece que, se não puder ser averiguado o valor exato dos danos, o tribunal julgará equitativamente dentro dos limites que tiver por provados.
Nesse sentido de se dever recorrer à equidade para fixação da indemnização por não uso podem consultar-se (www.dgsi.pt) os Ac. da Rel. de Coimbra de 6/2/2018 (“…a medida da indemnização terá que ser encontrada com recurso à equidade, pois que deve concluir-se pela existência de um dano que se traduziu na impossibilidade do lesado o utilizar nas suas deslocações diárias, profissionais e de lazer, havendo que encontrar em termos quantitativos um valor que se mostre adequado a indemnizar o lesado pela paralisação diária de um veículo que satisfaz as suas necessidades básicas diárias (…). Concluindo-se pelo dano e não sendo possível quantificá-lo em valores certos face aos factos provados, o tribunal deverá recorrer à equidade para fixar a indemnização, nos termos previstos no artigo 566º, n. 3, do Código Civil. Para este efeito pode tomar-se como ponto de referência, por exemplo, a quantia necessária para o aluguer de um bem de características semelhantes, devendo realizar-se em abstrato uma ponderação global das várias situações por forma a chegar-se a um valor concreto, nomeadamente que tal valor deve ser sempre tomado como simples referência e não em termos absolutos, que deve do mesmo ser excluída a normal taxa de lucro obtida por estas entidades por forma a evitar-se um benefício injustificado por parte do lesado, tendo-se sempre presente o uso concreto que o lesado fazia do veículo em causa.”); o Ac. da Rel. de Lisboa de 12/7/2018 (“I - A mera privação do uso do veículo configura um dano patrimonial específico e autónomo que atinge o direito de propriedade, por retirar ao proprietário lesado a possibilidade de utilizar a coisa e a capacidade de dispor materialmente dela quando e como melhor lhe aprouver. II - A lesão patrimonial decorrente da perda dessa possibilidade de utilização do veículo é passível de avaliação pecuniária, devendo recorrer-se à equidade na falta de prova de danos efetivos causados pela privação do uso do veículo.”); o Ac. desta Relação de 19.1.2017 (“…não se provando prejuízos concretos consequência da privação do uso de veículo, a indemnização por tal privação será encontrada com recurso à equidade dentro dos limites do que se tiver provado (art. 566, n.º 3, do CC), o que nos remete para uma ponderação das circunstâncias reais, e não para uma resposta em abstrato. Mesmo considerando que se trata de uma viatura de 7 lugares e que o titular, apesar de dono de outras, não as tem disponíveis, € 15 diários são suficientes para ressarcir as eventuais consequências da indisponibilidade do veículo.”). Não se aplica nestes casos a teoria da diferença (cfr. ponto VII do sumário do Ac. do STJ de 13/7/2017).
O Ac. da Rel. de Lisboa de 5/3/2020, relativamente aos critérios para a determinação do quantum ressarcitório diz. “É que este, compreensivelmente, não deve ser igual em todas as situações, pois as perdas ou prejuízos assumem necessariamente algumas variações de acordo com as várias circunstâncias. E, assim, “pode ser diversa a quantia quando o lesado apenas possua um automóvel ou quando tenha outras possibilidades, tal como pode variar de acordo com o grau de utilização que efectivamente seria dado ao veículo no período de imobilização caso não ocorresse o evento lesivo”, como não é igualmente despicienda “a quantia necessária para o aluguer de um veículo de características semelhantes às do sinistrado”, bem como “o valor real do veículo e o seu período de «vida útil»”. Por fim e como último factor de ponderação que ajudará a superar eventuais dificuldades de prova, deve igualmente considerar-se, conforme já indiciámos, a “figura da equidade como fonte de direito e como ponto de apoio do julgador na tarefa de quantificação da indemnização”, sendo que a ponderação casuística não pode nem deve igualmente deixar de considerar “os princípios da boa fé, tal como o modo como o responsável e o lesado agiram na resolução do caso (…)”.
Aqui importam as características do veículo, a sua utilização dada pelo A., não ter outro veículo, e o facto de ter passado a “depender” de família e amigos, e a comparação com casos semelhantes que levaram a decisões jurisprudenciais.
Sucede que apenas sabemos, no primeiro item, que se trata de um veículo de matrícula ZZ, correspondente a um Subaru Impreza, do ano de 2005, e que tinha 89.884 km. Sabemos também, por consulta às decisões proferidas, que os valores diários atribuídos têm oscilada e evoluído essencialmente dentro de uma margem que se situa entre os € 10,00 e os € 20,00 (cfr. Ac. desta Relação de 21/9/2017, www.dgsi.pt). Veja-se por exemplo o Ac. da Rel. do Porto de 12/4/2011, e o Ac. do STJ de 5/7/2018 em que no voto de vencido se refere que o valor mais elevado fixado, pelo que é dado a conhecer, se situa nos € 40,00 diários (salvo nesse caso concreto em que foi excedido, mas tratando-se de um veículo com características particulares e concretamente apuradas). Já no Ac. do STJ de 25/9/2018 (www.dgsi.pt), que entendeu adequado um valor diário de € 3,50, foram consideradas condições muito particulares.
A recorrente aceita o valor diário de € 10,00, o qual também se nos afigura o mais correto pois que é proporcionado e não ultrapassa os limites da justiça equitativa.
Já a alusão que se faz nas alegações de recurso à fixação de um limite de 100 dias de período de cálculo da indemnização como forma de evitar o enriquecimento ilegítimo e injustificado do A., é uma ficção sem fundamento; o efeito danoso prolonga-se desde 27/9/2017 até ao momento do pagamento da indemnização, e é esse que deve ser considerado. E o efeito danoso só cessará quanto o A. tiver possibilidade de reparar o veículo, momento que entendemos dever coincidir com aquele em que lhe é paga a indemnização determinada para o efeito, tal como decidido e não contestado no recurso. Não há qualquer enriquecimento sem causa (artº. 473º do C.C.), há uma causa para a atribuição da indemnização e tendo a mesma um carácter reparador e sendo o montante aferido equitativamente –razoável e respeitador da boa fé-, neste juízo não há qualquer “excesso”, ou abuso de direito (artº. 334º, C.C.).
Não sabemos o valor do aluguer diário de um veículo semelhante, nem o seu valor real, não foi matéria cogitada nos autos. Não importa aqui tanto o grau de culpa do lesante; mas o facto da quantia necessária para a reparação situar-se no valor apurado (pouco acima dos € 8.000,00), não obstante a recorrente ter toda a legitimidade de o questionar (bem como a sua obrigação) como fez e nomeadamente através da presente ação, também nos pode levar a ponderar que, num equilíbrio de interesses, a questão poderia ter sido resolvida pela recorrente.
Veja-se a decisão proferida pelo STJ em 5/7/2007 (www.dgsi.pt): “De qualquer modo, cremos que a quantia arbitrada – € 10,00/dia – por recurso à equidade, deverá manter-se, porquanto se mostra prudentemente fixada.” (…) “A ré recorrente reage contra esta solução, chamando a atenção para os resultados inaceitáveis a que ela conduz, no caso concreto, levando a atribuir à autora uma quantia que atingiria hoje mais de € 20.000,00, pela privação de um bem que tem um valor de mercado de € 2000,00. Porém, só de si própria se pode queixar, já que, sendo responsável pelos danos determinantes da paralisação do veículo, não promoveu, como lhe competia, a reparação da viatura, de modo a eliminar o dano da privação do seu uso, que a autora vem suportando desde a data do acidente, ocorrido em 28.03.2001. Não o fez ... sibi imputat – devendo, agora, suportar as consequências desvantajosas decorrentes do seu incumprimento. O que vem de ser referido, quanto à fixação do quantum indemnizatório relativamente ao dano em causa, deixando já perceber a resposta a dar a essa questão, tal como vem colocada no recurso subordinado da autora, impõe que, de imediato, se passe à análise da matéria da 1ª conclusão da alegação desse recurso, antecipando-se, por razões de método, o seu conhecimento. Entende a autora que a indemnização diária pela paralisação da sua viatura deve ser fixada, não nos € 10,00 fixados pela Relação, mas em € 25,00, por ser tal veículo indispensável para as suas deslocações, e rondar os 25/30 euros o valor diário a pagar por um carro de aluguer. A sua pretensão carece, porém, de fundamento. O montante da indemnização – é dizer, o valor do dano – não pode ser reportado ao valor diário do aluguer de um veículo automóvel, tanto mais que a autora alegou, mas não logrou provar, que utilizava diariamente o seu veículo nas suas deslocações, nem tão pouco que reclamou da ré a disponibilização de um veículo alternativo, nem ainda que, perante a inércia da ré, teve de alugar veículos alternativos. Apenas conseguiu provar que ficou privada do uso do VX, sendo certo que essa situação ainda persiste. Não está, assim, minimamente provado que o valor do dano seja equivalente ao custo do aluguer de um veículo alternativo; e, por outro lado, e face às considerações acima expressas, a pronúncia, de acordo com a equidade, emitida pela Relação, confirmatória da dimanada da 1ª instância, não deve ser censurada pelo Supremo.”
Note-se que ainda que se ponderasse o valor do veículo, seria o valor de um veículo novo –cfr. Acs. desta Relação de 7/11/2019, de 5/12/2019, e do STJ de 13/7/2017 (www.dgsi.pt).
Note-se ainda que neste caso os danos não patrimoniais serão autonomamente considerados, daí se justificar o valor diário menos elevado que o encontrado pela 1ª instância.
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Quanto a estes danos não patrimoniais, consistem nos prejuízos (dor física, desgosto moral, complexos de ordem estética) que, sendo insusceptíveis de avaliação pecuniária, porque atingem bens que não integram o património do lesado, como a saúde no seu sentido mais lato, o bem-estar, liberdade, a honra, apenas podem ser compensados com a obrigação pecuniária imposta ao agente que funciona como uma “satisfação”.
Mais uma vez, é com recurso à equidade que os mesmos devem ser reparados –cfr. artºs. 496º e 494º; C.C..
Conforme Antunes Varela (“Das Obrigações em Geral”, Vol. I, 6ª Edição, pags. 599 a 600, nota 4), o montante da indemnização deve ser proporcionado à gravidade do dano, devendo ter-se em conta na sua fixação todas as regras da prudência, de bom senso prático, de justa medida das coisas, de criteriosa ponderação das realidades da vida. Apela-se ao bom senso do julgador, ao sentido de equilíbrio e ao princípio da proporcionalidade. Norteiam o julgador razões de conveniência, de oportunidade, de justiça concreta em que a equidade se baseia.

No Ac. do STJ de 05/07/2007 (www.dgsi.pt) foram elencados 5 critérios ou ponderações a aplicar na avaliação dos danos não patrimoniais (embora pensados para outras matérias), assim enunciados:
Primeiro: Definitivamente ultrapassado o tempo das indemnizações insignificantes, excessivamente baixas, verifica-se que os tribunais estão hoje sensibilizados para a quantificação credível dos danos não patrimoniais – credível para o lesado e credível para a sociedade, respeitando a dignidade e o primado dos valores do ser, como acon­tece com a integridade física e a saúde, que o Estado garante a todos os cidadãos (art.ºs 9º, b), e 25º, nº 1, da Constituição; cfr, neste exacto sentido, o acórdão deste Tribunal de 20.2.01- Revista nº 204/01-6ª); e este “movimento” contra indemnizações meramente simbólicas não deixa de estar relacionado muito directamente, além do mais, com o aumento continuado e regular dos prémios de seguro que tem ocorrido no nosso país por imposição das directivas comunitárias, aumento esse cujo objectivo fulcral (pelo menos no âmbito do seguro obrigatório de responsabilidade civil por acidentes de viação) não é o de garantir às companhias seguradoras lucros desproporcionados, mas antes o de, em primeira linha, assegurar aos lesados indemnizações adequadas.
Segundo: As indemnizações adequadas passam com cada vez maior frequência por uma valorização mais acentuada dos bens da personalidade física, espiritual e moral atingidos pelo facto danoso, bens estes que, incindivelmente ligados à afirmação pessoal, social e profissional do indivíduo, “valem” hoje mais do que ontem; e assim, à medida que com o progresso económico e social e a globalização crescem e se tornam mais próximos toda a sorte de riscos – riscos de acidentes os mais diversos, mas também, concomitantemente, riscos de lesão do núcleo de direitos que integram o último reduto da liberdade individual, - os tribunais tendem a interpretar extensivamente as normas que tutelam os direitos de personalidade, particularmente a do art.º 70º do Código Civil.
Terceiro: É necessário, em todo o caso, agir cautelosamente; e o Supremo Tribunal, nesta matéria, tem uma responsabilidade acrescida, dada a função que lhe está cometida de contribuir para a uniformização da jurisprudência; não é conveniente, por isso, alterar de forma brusca os critérios de valoração dos prejuízos; não deve perder-se de vista a realidade económica e social do país; e é vantajoso que o trajecto no sentido duma progressiva actualização das indemnizações se faça de forma gra­dual, sem rupturas e sem desconsiderar (muito pelo contrário) as decisões precedentes acerca de casos seme­lhantes. Isto porque os tribunais não podem nem devem contribuir para alimentar a noção de que neste domínio as coisas são mais ou menos aleatórias, vogando ao sabor do acaso ou do arbítrio judicial. A justiça tem ínsita a ideia de proporção, de medida, de adequação, de relativa previsibilidade; é tudo isto que no seu conjunto origina o sentimento de segurança, componente essencial duma sociedade assente em bases sólidas (ma das quais é justamente a do primado do direito). Ora, de certo modo os tribunais são os primeiros responsáveis e sobretudo os principais garantes da afirmação de tais valores: cabe-lhes contrariar com firmeza a ideia de que os factos danosos geradores de responsabilidade civil, muitas vezes tragédias pessoais e familiares de enorme dimensão material e moral, possam ser transformados em negócios altamente rendosos para pessoas menos escrupulosas.
Quarto: A indemnização prevista no art.º 496º, nº 1, do CC, mais do que uma indemnização, é uma verdadeira compensação: segundo a lei, o objectivo que lhe preside é o de proporcionar ao lesado a fruição de vantagens e utilidades que contrabalancem os males sofridos e não o de o recolocar “matematicamente” na situação em que estaria se o facto danoso não tivesse ocorrido; a reparação dos prejuízos, precisamente porque são de natureza moral (e, nessa exacta medida, irreparáveis, é uma reparação indirecta).
Quinto: Os componentes mais importantes do dano não patrimonial, de harmonia com a síntese feita num acórdão deste Tribunal de 15.1.02 (Revª 4048/01-2ª) são os seguintes: o “dano estético” - que simboliza o prejuízo anátomo-funcional associado às deformidades e aleijões que resistiram ao processo de tratamento e recuperação da vítima; o “prejuízo de afirmação social” - dano indiferenciado que respeita à inserção social do lesado, nas suas variadas vertentes (familiar, profissional, sexual, afectiva, recreativa, cultural, cívica); o prejuízo da “saúde geral e da longevidade” - em que avultam o dano da dor e o défice de bem estar, e que valoriza os danos irreversíveis na saúde e bem estar da vítima e o corte na expectativa de vida; e o “pretium juventutis” - que realça a especificidade da frustração do viver em pleno a chamada primavera da vida; e o “pretium doloris” - que sintetiza as dores físicas e morais sofridas no período de doença e de incapacidade temporária.”
O Ac. do STJ de 23/10/2008 (www.dgsi.pt), refere que nos parâmetros gerais a ter em conta merecem ser destacados: “…a progressiva melhoria da situação económica individual e global (mesmo considerando a crise sócio-económica que hoje grassa), a nossa inserção no espaço político, jurídico, social e económico mais alargado correspondente á União Europeia, o maior relevo que vem sendo dado aos direitos de natureza pessoal, tais como o direito á integridade física e á qualidade de vida, sem se esquecer que o contínuo aumento dos prémios de seguro se leve também repercutir no aumento das indemnizações”.
Ora, parece-nos que nos dias que correm um veículo automóvel não pode ser visto como um luxo, é as mais das vezes um bem necessário ou pelo menos de extrema utilidade, permitindo flexibilidade nas deslocações e nos horários. E, por isso, nos dias de hoje, além da falta que faz a quem se esforçou para o adquirir, causando a sua danificação e falta tristeza, desapontamento, angústia, revolta e desgosto, afetando o seu bem estar e qualidade de vida, tal configura um prejuízo relevante na esfera psicológica que deve ser tutelado pelo Direito, sendo mais que meros incómodos ou contrariedades ou transtornos (e só estes não justificando a indemnização por danos não patrimoniais).
A avaliação da respectiva gravidade tem – e deve - aferir-se de acordo com um critério objectivo e não à luz de factores subjectivos (Antunes Varela, “Obrigações em Geral”, I, 9ª edição, pag. 628). Constitui orientação jurisprudencial consolidada que as simples contrariedades ou incómodos apresentam um nível de gravidade objectiva insuficiente para os efeitos do nº. 1 do artº. 496º do C.C..
E cumpre destrinçar aqueles que se situam ao nível das contrariedades e incómodos irrelevantes para efeitos indemnizatórios dos que se apresentam num patamar de gravidade superior e suficiente para merecer compensação: sendo certo que se deve considerar dano grave não apenas aquele que é exorbitante ou excepcional, mas também o que sai da mediania, ultrapassando, pois, as fronteiras da banalidade –Ac. da Rel. de Lisboa de 3/12/2020 (www.dgsi.pt).
E relativamente aos danos não patrimoniais, tendo em conta que não se provou a globalidade da factualidade apresentada pelo A., cremos que o valor indemnizatório deve ficar aquém daquilo que peticionava, situando-se antes nos € 700,00, mais uma vez ponderadas as circunstâncias e as decisões jurisprudenciais –e situando nesse âmbito da ponderação-, deste modo ainda assim se atingindo a sua efetiva vertente compensatória. Cfr. a título de exemplo o Ac. da Rel. de Coimbra de 6/10/2009 (www.dgsi.pt) –muito embora neste caso apenas se tivesse em conta a vertente não patrimonial (numa das teses referidas mas que não acompanhamos).
Em suma, o recurso deve proceder parcialmente em face dos valores equitativos mais baixos que este Tribunal julga conformes, alterando-se os pontos 2 e 3 da alínea A) da parte condenatória em conformidade.
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V DISPOSITIVO.

Pelo exposto, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso parcialmente procedente e, em consequência, dar provimento parcial à apelação, condenando as R.R. a pagar ao A. (2) a quantia diária de 10,00€ (dez euros), contabilizada desde 10 de Setembro de 2017 e o dia em que for paga a indemnização referida em A.1 da sentença), a título de privação do uso do veículo automóvel; (3) a quantia de 700,00€ (setecentos euros) por danos não patrimoniais, no mais se mantendo a sentença recorrida.
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Custas da ação e do recurso na proporção do decaimento (artº. 527º, nºs. 1 e 2, do C.P.C.).
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Guimarães, 15 de junho de 2021.

Os Juízes Desembargadores

Relator: Lígia Paula Ferreira Sousa Santos Venade
1º Adjunto: Jorge dos Santos
2º Adjunto: Maria da Conceição Bucho
(A presente peça processual tem assinaturas eletrónicas)