Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | PAULO CORREIA SERAFIM | ||
Descritores: | NOTIFICAÇÃO DA ACUSAÇÃO IRREGULARIDADE SUPRIMENTO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 01/28/2025 | ||
Votação: | MAIORIA COM * VOT VENC | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
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Sumário: | I – Decretada aquando do saneamento do processo, nos termos do art. 311º, nº1, do Código de Processo Penal, irregularidade processual decorrente de ilegal notificação da acusação pública à arguida, a reparação dessa invalidade deve ser efetuada pelos serviços judiciais do tribunal mediante determinação do juiz para o efeito vertida no respetivo despacho. II – A solução contrária afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público, consagrados nos arts. 32º, nº5 e 219º, nº2, da Constituição da República Portuguesa. III – Ao Ministério Público está atribuída a direção da fase de inquérito enquanto o titular ou dominus da fase de julgamento é o juiz de julgamento e, portanto, é a este que cabe dirigir esta fase processual praticando todos os atos necessários ao bom andamento dos autos e, a final, à boa decisão da causa e descoberta da verdade material, que não prescinde do assegurar das garantias de defesa do arguido, como seja a possibilidade de exercício efetivo do direito ao contraditório, nomeadamente por dedução de contestação à acusação contra ele dirigida. IV – Neste contexto, não é legítima a “ordem” emitida por um juiz a fim de ser cumprida no âmbito do inquérito por um sujeito processual (MP) que não deve obediência institucional ou hierárquica a tal imposição. V – Não compete exclusivamente ao MP proceder ao ato de notificação da acusação, porquanto, a partir do momento que deduz o libelo acusatório mostra-se encerrada a fase de inquérito, cujo termo não fica legalmente dependente da concretização da sua notificação (cf. disposições conjugadas dos arts. 276º, nº1, e 283º, nº1, ambos do CPP). VI – No momento em que o juiz, ao abrigo do disposto no art. 311º, não recebe a acusação, o processo não está num “limbo” entre a fase de inquérito e a fase de julgamento, encontrando-se já nesta posterior fase, sendo que o tribunal que preside a esta tem poderes legais para determinar o suprimento da irregularidade decorrente da inválida notificação da acusação à arguida, mediante o encetar de novas diligências tendentes a essa perfectibilizada notificação. VI - Nos termos do art. 123º, nº1, do CPP, a irregularidade só gera a invalidade dos atos subsequentes que não possam ser aproveitados, e entre estes não se inclui, impreterivelmente, a distribuição do processo para julgamento, uma vez que tal ato se pode manter, caso a arguida, notificada que seja da acusação, não utilize a faculdade de requerer a abertura de instrução. Somente no caso deste direito legal ser exercido pela arguida é que os autos terão de retroceder à fase de instrução, presidida pela Juiz de Instrução e já não por outra entidade com independência e autonomia funcional face à magistratura judicial. VII – A prevalecer a tese de que a irregularidade em apreço só pode ser reparada pela autoridade judiciária que praticou o ato, ou seja, pelo Ministério Público, com retorno do processo ao ponto onde foi cometido o ato imperfeito, pode-se gerar uma situação de insolúvel entrave processual, com inadmissível prejuízo para a celeridade e, reflexamente, para o direito do arguido de ver o direito definido em tempo razoável, bastando para tanto que o MP titular do inquérito não se predisponha a acatar a orientação do juiz de julgamento, por entender que a notificação foi validamente efetuada ou, então, determinar recorrentemente a realização da notificação em termos que não asseguram a sua legalidade. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes desta Secção Criminal do Tribunal da Relação de Guimarães: I – Relatório: I.1 - No âmbito do Processo Comum nº 1239/21...., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga – Juízo Local Criminal de Guimarães - Juiz ..., pelo Exma. Juíza, no dia 04.07.2024, foi proferido despacho com o seguinte teor (cf. certidão para instrução do recurso com referência ...41): “--- Questão Prévia: --- --- O Ministério Público deduziu acusação pública contra a arguida AA em 23.01.2024 – cfr fls. 84. --- --- Tal acusação pública foi notificada à arguida AA através de notificação por via postal simples com prova de depósito (cfr. fls. 86 e 88), sendo que a arguido prestou TIR em 12.01.2023 a fls. 76. --- --- Do referido TIR prestado pela arguida, a fls. 76, consta como morada indicada para efeitos de notificação mediante via postal simples a “Estabelecimento Prisional ... (feminino), Rua ... ...”. E a notificação, por via postal simples com prova de depósito, da acusação deduzida, foi dirigida para a morada “Rua ..., ...., ..., ...” (cfr. fls. 86). Isto é, numa morada diferente. --- --- Ora, --- --- Nos termos do art.º 277.º n.º 4 alínea a) do CPP, ex vi do n.º 5 do art.º 283.º do mesmo diploma legal que as comunicações, designadamente do despacho de acusação, efectuam-se por notificação mediante contacto pessoal ou via postal registada ao assistente e ao arguido, excepto se estes tiverem indicado um local determinado para efeitos de notificação por via postal simples, nos termos dos n.ºs 5 e 6 do artigo 145.º, do n.º 2 e da alínea c) do n.º 3 do artigo 196.º, e não tenham entretanto indicado uma outra, através de requerimento entregue ou remetido por via postal registada à secretaria onde os autos se encontrarem a correr nesse momento. --- --- Nos termos do art.º 113.º n.º 10 do CPP “As notificações do arguido, do assistente e das partes civis podem ser feitas ao respetivo defensor ou advogado, ressalvando-se as notificações respeitantes à acusação, à decisão instrutória, à contestação, à designação de dia para julgamento e à sentença, bem como as relativas à aplicação de medidas de coação e de garantia patrimonial e à dedução do pedido de indemnização civil, as quais, porém, devem igualmente ser notificadas ao advogado ou defensor nomeado, sendo que, neste caso, o prazo para a prática de ato processual subsequente conta-se a partir da data da notificação efetuada em último lugar.”. --- --- Também de acordo com o art.º 277.º n.º 3, ex vi do 283.º, n.º 5 do CPP, ambos do CPP, a acusação deve ser notificada ao arguido e respectivo defensor ou advogado. --- --- Compulsados os autos, constata-se, como se disse, que a notificação da acusação foi endereçada para uma morada diferente (vide fls. 86) daquela que a mesma indicou quando prestou termo de identidade e residência (cf. fls. 76), levando, por isso, à conclusão de que a notificação que lhe foi efectuada não tem qualquer valor e/ou eficácia, pelo que só podemos considerar que a arguida não se mostra notificada da acusação deduzida pelo Ministério Público. --- --- O art.º 283.º n.º 5 do CPP apenas permite o prosseguimento dos autos quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes, o que não é o caso. --- --- Estabelece o art.º 123.º do CPP que “qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado (n.º 1). Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.” (n.º 2). --- --- A forma incorrecta da notificação da acusação à arguida constitui uma irregularidade susceptível de afectar o valor dos actos praticados em momento subsequente, na medida em poderá privar a arguida de requerer a abertura da instrução, se for esse o seu propósito ou de exercer outros direitos inerentes à fase processual em que se encontrava o processo. Neste sentido o Acórdão da Relação de Guimarães, de 19.10.2015, que diz entre o mais que “não prevendo os artigos 119º e 120º do Código de Processo Penal, a forma incorrecta como foi realizada a comunicação da acusação ao arguido/recorrente, como uma nulidade, estamos perante uma irregularidade a seguir o regime e os efeitos impostos pelo artigo 123º, do Código de Processo Penal.”. --- --- Tal irregularidade pode ser conhecida no despacho a que alude o art.º 311.º do CPP, e tem de ser reparada pela autoridade competente para a prática do acto, ou seja, pelo Ministério Público, visto o retorno do processo ao ponto onde foi praticado o ato imperfeito - Ac. da RP de 20/02/2008, proferido no processo n.º 0840059, pela relatora Maria Elisa Marques; Ac. da RL de 27/01/1998, proferido no processo n.º 0054405, pelo relator Granja da Fonseca, ambos in www.dgsi.pt. --- --- Para além disso, tal irregularidade tem de ser reparada pela autoridade competente para a prática do acto, ou seja, pelo Ministério Público, visto o retorno do processo ao ponto onde foi praticado o acto imperfeito – vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20.02.2008, processo n.º 0840059; ou ainda Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27.01.1998, processo n.º 0054405, in www.dgsi.pt. --- --- Não desconhecendo o entendimento também sufragado pela jurisprudência, sobretudo baseado na autonomia do Ministério Público, de que deve ser o tribunal de julgamento a sanar a irregularidade em causa, não podemos deixar de acompanhar de perto a fundamentação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23.02.2023, processo n.º 169/20.8IDSTB.L1-9 (www.dgsi.pt), que elenca as seguintes razões pelos quais é legítimo ao juiz do julgamento devolver o processo ao Ministério Público para, querendo, proceder à sanação da omissão de notificação: “Primeiro porque a competência para a notificação da acusação é do Ministério Público, como se afere do disposto no art.º 283º, n.º 5, 1ª parte, do CPP. Segundo porque o legislador só admitiu o envio do processo para a fase de julgamento sem que a fase das notificações da acusação esteja completa “quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes” (art.º 283º, n.º 5, 2ª parte, do CPP), o que supõe a existência de procedimentos de notificação idóneos a cumprir com a sua função, o que não foi manifestamente o caso nos autos. Na decorrência, o legislador só previu a possibilidade de a notificação da acusação ser realizada na fase de julgamento na situação excecional prevista no art.º 336º, n.º 3, do CPP. Terceiro, porque a invalidade do procedimento de notificação da acusação, mesmo se qualificada como uma irregularidade de conhecimento oficioso, acarreta a invalidade dos actos a jusante (dos termos subsequentes), nomeadamente do ato de distribuição do processo para julgamento (art.º 123º, n.º 1, do CPP). Quarto, porque, não tendo sido recebida a acusação no âmbito do art.º 311º, do CPP, o processo está num limbo entre a fase de inquérito e a de julgamento”. --- --- E ainda do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27.04.2023, processo n.º 1155/21.6PFSXL.L1-9 (www.dgsi.pt), cujo sumário é o seguinte: “I. O envio, por parte do Ministério Público, para notificação de uma acusação a um arguido acusado, de uma carta simples (com prova de depósito) para uma morada incompleta face à constante do TIR prestado, e que teve como consequência a sua devolução com a indicação de “endereço insuficiente”, não tem a virtualidade de cumprir com os efeitos processuais e substantivos a que a carta se destinava. II. Tal notificação terá de ser julgada irregular, invalidade que é de conhecimento oficioso, por afetar o valor do ato e conter um enorme potencial de violação dos mais básicos direitos de defesa do arguido (art.º 123º, n.º 2, do CPP), sendo equiparada nos seus efeitos a uma nulidade insanável. III. Essa irregularidade da notificação da acusação pode e deve ser conhecida pelo juiz do julgamento aquando do cumprimento do disposto no art.º 311º, do CPP, na vertente do saneamento do processo, por obstar à apreciação do mérito da causa. IV. Em tal situação o juiz pode ordenar a devolução dos autos aos Serviços do Ministério Público para, querendo, proceder à correção do vício, dado que a competência legal para essa notificação é atribuída ao Ministério Público, o processo só deve ser remetido para julgamento quando a fase das notificações da acusação estiver completa (sem prejuízo do caso excecional previsto no art.º 283º, n.º 5, 2ª parte do CPP), o processo continua num limbo entre a fase de inquérito e a de julgamento e não é indiferente para um arguido ser notificado da acusação num momento em que o processo está em fase de inquérito ou em fase de julgamento. V. Essa devolução do processo não viola os poderes de autonomia e de independência do Ministério Público. VI. A defesa da estrutura acusatória do processo penal e da autonomia do Ministério Público não se pode confundir com a aceitação da desoneração de competências processuais que a este competem, em desrespeito do estrito ritual processual penal, não podendo aceitar-se como normal, no sentido de “normalizar ou banalizar”, a remessa de inquéritos para a fase de julgamento sem o regular cumprimento da fase das notificações da acusação, apesar da ilegalidade dessa prática, com os prejuízos que acarreta para os sujeitos processuais, em particular para os arguidos.”. (sublinhado nosso). --- --- Pelo exposto, decide-se conhecer da apontada irregularidade e, em consequência, determina-se a remessa do processo aos Serviços do Ministério Público, com vista ao seu suprimento, dando-se a competente baixa na distribuição.” I.2 - Inconformado com tal decisão, dela veio o Ministério Público interpor o presente recurso, que contém motivação e culmina com as seguintes conclusões e petitório (cf. certidão para instrução do recurso com referência ...41): “1.ª) Nos presentes autos, o Ministério Público deduziu acusação contra a arguida AA em 23/1/2024. 2.ª) A arguida prestou TIR a fls. 76, tendo indicado para efeitos de notificação o E.P. ..., sito na Rua ... ..., pelo que, em nosso entender, a sua notificação deveria ter observado o disposto no artigo 114.º, n.º 1, do Código de Processo Penal. 3.ª) Todavia, conforme resulta de fls. 86 e 88, a acusação foi notificada à arguida AA através de via postal simples, com prova de depósito, para a seguinte morada: “Rua ..., ..., ..., ... ...”. 4.ª) Os autos foram remetidos à distribuição, para julgamento, sendo que, no despacho de saneamento do processo e como questão prévia, o Tribunal a quo proferiu em 4/7/2024 a seguinte decisão (síntese): “--- Compulsados os autos, constata-se, como se disse, que a notificação da acusação foi endereçada para uma morada diferente (vide fls. 86) daquela que a mesma indicou quando prestou termo de identidade e residência (cf. fls. 76), levando, por isso, à conclusão de que a notificação que lhe foi efectuada não tem qualquer valor e/ou eficácia, pelo que só podemos considerar que a arguida não se mostra notificada da acusação deduzida pelo Ministério Público. --- --- O art.º 283.º n.º 5 do CPP apenas permite o prosseguimento dos autos quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes, o que não é o caso. --- --- Estabelece o art.º 123.º do CPP que “qualquer irregularidade do processo só determina a invalidade do acto a que se refere e dos termos subsequentes que possa afectar quando tiver sido arguida pelos interessados no próprio acto ou, se a este não tiverem assistido, nos três dias seguintes a contar daquele em que tiverem sido notificados para qualquer termo do processo ou intervindo em algum acto nele praticado (n.º 1). Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afectar o valor do acto praticado.” (n.º 2). - -- --- A forma incorrecta da notificação da acusação à arguida constitui uma irregularidade susceptível de afectar o valor dos actos praticados em momento subsequente, na medida em poderá privar a arguida de requerer a abertura da instrução, se for esse o seu propósito ou de exercer outros direitos inerentes à fase processual em que se encontrava o processo. Neste sentido o Acórdão da Relação de Guimarães, de 19.10.2015, que diz entre o mais que “não prevendo os artigos 119º e 120º do Código de Processo Penal, a forma incorrecta como foi realizada a comunicação da acusação ao arguido/recorrente, como uma nulidade, estamos perante uma irregularidade a seguir o regime e os efeitos impostos pelo artigo 123º, do Código de Processo Penal.”. --- --- Tal irregularidade pode ser conhecida no despacho a que alude o art.º 311.º do CPP, e tem de ser reparada pela autoridade competente para a prática do acto, ou seja, pelo Ministério Público, visto o retorno do processo ao ponto onde foi praticado o ato imperfeito - Ac. da RP de 20/02/2008, proferido no processo n.º 0840059, pela relatora Maria Elisa Marques; Ac. da RL de 27/01/1998, proferido no processo n.º 0054405, pelo relator Granja da Fonseca, ambos in www.dgsi.pt. --- --- Para além disso, tal irregularidade tem de ser reparada pela autoridade competente para a prática do acto, ou seja, pelo Ministério Público, visto o retorno do processo ao ponto onde foi praticado o acto imperfeito – vide Acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 20.02.2008, processo n.º 0840059; ou ainda Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27.01.1998, processo n.º 0054405, in www.dgsi.pt. --- --- Não desconhecendo o entendimento também sufragado pela jurisprudência, sobretudo baseado na autonomia do Ministério Público, de que deve ser o tribunal de julgamento a sanar a irregularidade em causa, não podemos deixar de acompanhar de perto a fundamentação do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 23.02.2023, processo n.º 169/20.8IDSTB.L1-9 (www.dgsi.pt), que elenca as seguintes razões pelos quais é legítimo ao juiz do julgamento devolver o processo ao Ministério Público para, querendo, proceder à sanação da omissão de notificação: “Primeiro porque a competência para a notificação da acusação é do Ministério Público, como se afere do disposto no art.º 283º, n.º 5, 1ª parte, do CPP. Segundo porque o legislador só admitiu o envio do processo para a fase de julgamento sem que a fase das notificações da acusação esteja completa “quando os procedimentos de notificação se tenham revelado ineficazes” (art.º 283º, n.º 5, 2ª parte, do CPP), o que supõe a existência de procedimentos de notificação idóneos a cumprir com a sua função, o que não foi manifestamente o caso nos autos. Na decorrência, o legislador só previu a possibilidade de a notificação da acusação ser realizada na fase de julgamento na situação excecional prevista no art.º 336º, n.º 3, do CPP. Terceiro, porque a invalidade do procedimento de notificação da acusação, mesmo se qualificada como uma irregularidade de conhecimento oficioso, acarreta a invalidade dos actos a jusante (dos termos subsequentes), nomeadamente do ato de distribuição do processo para julgamento (art.º 123º, n.º 1, do CPP). Quarto, porque, não tendo sido recebida a acusação no âmbito do art.º 311º, do CPP, o processo está num limbo entre a fase de inquérito e a de julgamento”. --- --- E ainda do Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 27.04.2023, processo n.º 1155/21.6PFSXL.L1-9 (www.dgsi.pt), cujo sumário é o seguinte: “I. O envio, por parte do Ministério Público, para notificação de uma acusação a um arguido acusado, de uma carta simples (com prova de depósito) para uma morada incompleta face à constante do TIR prestado, e que teve como consequência a sua devolução com a indicação de “endereço insuficiente”, não tem a virtualidade de cumprir com os efeitos processuais e substantivos a que a carta se destinava. II. Tal notificação terá de ser julgada irregular, invalidade que é de conhecimento oficioso, por afetar o valor do ato e conter um enorme potencial de violação dos mais básicos direitos de defesa do arguido (art.º 123º, n.º 2, do CPP), sendo equiparada nos seus efeitos a uma nulidade insanável. III. Essa irregularidade da notificação da acusação pode e deve ser conhecida pelo juiz do julgamento aquando do cumprimento do disposto no art.º 311º, do CPP, na vertente do saneamento do processo, por obstar à apreciação do mérito da causa. IV. Em tal situação o juiz pode ordenar a devolução dos autos aos Serviços do Ministério Público para, querendo, proceder à correção do vício, dado que a competência legal para essa notificação é atribuída ao Ministério Público, o processo só deve ser remetido para julgamento quando a fase das notificações da acusação estiver completa (sem prejuízo do caso excecional previsto no art.º 283º, n.º 5, 2ª parte do CPP), o processo continua num limbo entre a fase de inquérito e a de julgamento e não é indiferente para um arguido ser notificado da acusação num momento em que o processo está em fase de inquérito ou em fase de julgamento. V. Essa devolução do processo não viola os poderes de autonomia e de independência do Ministério Público. VI. A defesa da estrutura acusatória do processo penal e da autonomia do Ministério Público não se pode confundir com a aceitação da desoneração de competências processuais que a este competem, em desrespeito do estrito ritual processual penal, não podendo aceitar-se como normal, no sentido de “normalizar ou banalizar”, a remessa de inquéritos para a fase de julgamento sem o regular cumprimento da fase das notificações da acusação, apesar da ilegalidade dessa prática, com os prejuízos que acarreta para os sujeitos processuais, em particular para os arguidos.”. (sublinhado nosso). --- --- Pelo exposto, decide-se conhecer da apontada irregularidade e, em consequência, determina-se a remessa do processo aos Serviços do Ministério Público, com vista ao seu suprimento, dando-se a competente baixa na distribuição. --- --- Notifique.” 5.ª) Aceita-se que o juiz de julgamento pode conhecer oficiosamente a irregularidade da notificação do despacho de acusação e ordenar a sua reparação, ao abrigo do disposto no artigo 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, uma vez que tal omissão pode vir a afetar a validade de todos os atos processuais posteriores. 6.ª) Porém, a reparação da irregularidade deve ser levada a cabo pela própria secção judicial, não sendo legalmente admissível ordenar a devolução/remessa dos autos ao Ministério Público para esse fim, sob pena de violação dos princípios do acusatório, da independência e da autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz. 7.ª) A jurisprudência é maioritária neste sentido, destacando-se a título meramente exemplificativo a seguinte: - a Decisão Sumária proferida em 6/5/2024 no Tribunal da Relação de Guimarães no Processo n.º 1694/21.9T9GMR-B, mas não publicada, onde se fez constar o seguinte: “[…] Uma vez declarado inválido, o ato irregular deverá ser, se possível, devidamente reparado. A declaração de irregularidade e a consequente destruição do processado deverá ordenar, sempre que possível e necessário, a repetição do ato irregular, assim repondo integralmente a legalidade processual penal, cfr. João Conde Correia, ob. cit. pág. 1298. No caso vertente, a Exma. Senhora Juíza, no despacho a que se refere o artigo 311º do CPP, como questão prévia, tendo constatado a irregularidade da notificação da acusação ao arguido, em virtude de lapso na descrição da morada constante do TIR (número da porta e do respetivo código postal), decidiu conhecer oficiosamente de tal questão. Porém, e como consequência, determinou a “…remessa do processo aos Serviços do Ministério Público para os fins tidos por convenientes“. E, logo a seguir, clarificou, dizendo “, julgo verificada a apontada irregularidade processual e, em consequência, determino a remessa do processo à 2.ª Secção do DIAP de Guimarães, com vista ao seu suprimento, dando-se a competente baixa na distribuição”, (sublinhado nosso). A dita irregularidade da notificação da acusação ao arguido foi conhecida ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 123º do CPP (expressamente invocado no despacho recorrido), o qual estabelece que “Pode ordenar-se oficiosamente a reparação de qualquer irregularidade, no momento em que da mesma se tomar conhecimento, quando ela puder afetar o valor do ato praticado”. Segundo a interpretação que fazemos desta norma na sua aplicação ao caso em apreço, constatando a irregularidade da notificação da acusação ao arguido, o juiz oficiosamente deve declarar a irregularidade, e ordenar a sua reparação. Quanto mais não fosse, por razões de economia e celeridade processuais, ao invés de ordenar a remessa do processo aos serviços do Ministério Público para suprimento da irregularidade e mandar dar baixa na distribuição, impunha-se que a Exma. Senhora Juíza tivesse, desde logo, providenciado pela reparação da irregularidade, ordenando à secção judicial na sua dependência que procedesse à notificação da acusação ao arguido. O interesse da realização da Justiça e da proibição de atos inúteis assim o exigia, sem mais delongas. Mas, não tendo assim sucedido, a verdade é que foi declarada, pelo juiz de julgamento, a irregularidade da notificação da acusação ao arguido ao abrigo do disposto no nº 2 do artigo 123º do CPP, numa altura em que naturalmente o processo havia transitado dos Serviços do Ministério Público para o Tribunal. Ou seja, quando o processo já se encontrava pendente em tribunal para julgamento. Assim, tendo o juiz de julgamento conhecido e declarado a irregularidade ao abrigo do referido dispositivo legal, no momento do saneamento do processo, ou seja, da prolação do despacho a que alude o artigo 311º do CPP, tinha igualmente o juiz competência para proceder à sua reparação (que é um dever), procedendo, naturalmente através da respetiva seção judicial, à notificação da acusação ao arguido na morada correta, até porque daí não resultava que o processo tivesse de regressar à fase de inquérito. Por isso, uma vez remetido o processo para julgamento, por força do disposto nas disposições conjugadas dos artigos 123º, nº 2 e 311º, nº 1, ambos do CPP, é ao juiz de julgamento, e já não ao Ministério Público, que compete conhecer e reparar a irregularidade da notificação da acusação ao arguido. A ordem do juiz de julgamento de remessa do processo aos Serviços do Ministério Público com vista ao suprimento da dita irregularidade não tem suporte legal, pois não existe norma e/ ou princípio que a preveja e, consequentemente, a permita. E, para além disso, esse procedimento contém claramente uma ordem dirigida ao Ministério Público, a qual é violadora dos princípios da autonomia e da independência do Ministério Público, inexistindo qualquer dever de obediência institucional do Ministério Público à Magistratura Judicial, cfr. artigo 219º, nº 2 da CRP e artigo 3º, nº 1 do Estatuto do Ministério Público. […] (sublinhados nossos) - o Acórdão proferido em 26/10/2020 pelo Tribunal da Relação de Guimarães, no Processo n.º 754/19.0T9BRG.G1, disponível para consulta em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: “I - O juiz de julgamento pode conhecer oficiosamente da irregularidade relativa à falta de notificação da acusação particular ao arguido em sede de inquérito, em consonância com o disposto no Artº 123º, nº 2, do C.P.Penal, pois que tal omissão pode vir a afectar a validade de todos os actos processuais posteriores, e não se mostra sanada. II - Tal sanação, porém, deve ser levada a cabo pelos próprios serviços do tribunal, não tendo base legal a determinação da devolução dos autos ao Ministério Público para aquele efeito, sob pena de se afrontarem os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz.” - o Acórdão proferido em 5/12/2016 pelo Tribunal da Relação de Guimarães no Processo n.º 823/12.8PBGMR.G1, disponível para consulta em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: “I) O Ministério Público goza de independência e autonomia que não se compadecem com ordens concretas de um juiz no sentido do suprimento de uma determinada irregularidade por parte daquele. II) Daí que por falta de fundamento legal, não pode o juiz determinar a devolução dos autos ao Ministério Público para sanação de irregularidade concretizada numa notificação ao arguido de uma incorrecta identificação do defensor que lhe foi nomeado.” - o Acórdão proferido em 25/2/2019 pelo Tribunal da Relação de Guimarães no Processo n.º 972/17.6T9GMR-A.G1, disponível para consulta em www.dgsi.pt, com o seguinte sumário: É na fase de inquérito que se impõe o cumprimento do dever de informação a que alude o art. 75º, nº1, do Código de Processo Penal. Omitido tal cumprimento, mas prevendo-se no nº 2 do art. 123º do Cód. Proc. Penal, a possibilidade de “ordenar-se oficiosamente a reparação”, tal apenas poderá significar que a autoridade judiciária que detectar a irregularidade pode tomar a iniciativa de a reparar, determinando que os respetivos serviços diligenciem nesse sentido. Não faz sentido, uma vez detectada a irregularidade quando o processo é concluso para os efeitos do art. 311º, do C.P.P. e entendendo-se ser possível repará-la, optar por remeter os autos à fase anterior para o seu suprimento, o qual se resume a uma mera notificação ao lesado. Razões de economia processual deveriam logo ter sopesado na opção tomada, as quais impunham a determinação imediata à respectiva secretaria judicial do cumprimento da notificação omitida. Acresce que o inquérito mostra-se encerrado, estão em causa duas fases processuais autónomas – a do inquérito e do julgamento – dirigidas respetivamente por autoridades judiciárias distintas e autónomas. Ao ordenar a remessa dos autos ao Ministério Público, com vista ao cumprimento do dever de informação, tal não deixa também de ter implícita uma “ordem”, que afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público relativamente ao Juiz. 8.ª) A decisão recorrida, no segmento em que determinou a remessa dos autos ao Ministério Público para suprimento da irregularidade, violou o disposto no artigo 123.º, n.º 2, e 311.º, ambos do Código de Processo Penal. 9.ª ) Assim, a decisão recorrida deverá ser revogada na parte em que determinou a remessa dos autos ao Ministério Público e, em consequência, deverá ser substituída por outra que receba a acusação deduzida, nos termos do disposto no artigo 311.º do Código de Processo Penal, notificando-se ainda a arguida, conjuntamente, da acusação contra ela deduzida, em conformidade com o preceituado no artigo 311.º-A, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, seguindo-se os ulteriores termos do processo. * Termos em que deverá ser concedido provimento ao presente recurso, revogando-se parcialmente a decisão proferida em 4/7/2024 pelo Tribunal a quo (na parte em que determinou a remessa dos autos ao Ministério Público para suprimento da irregularidade), assim se fazendo JUSTIÇA.”A arguida/recorrida, notificada do despacho de admissão do recurso, nos termos e para os efeitos do artigo 413.º, n.º 1 do CPP, não apresentou resposta. I.3 - Neste Tribunal da Relação, a Exma. Procuradora-Geral Adjunta (PGA), convergindo com a posição assumida pelo Ministério Público recorrente, emitiu douto parecer sustentando a procedência do recurso (referência ...87). Cumprido o disposto no art. 417º, nº2 do CPP, não foi apresentada resposta ao parecer. Efetuado exame preliminar e colhidos os vistos legais, foram os autos submetidos à conferência, cumprindo, pois, conhecer e decidir. II – Âmbito objetivo do recurso: É hoje pacífico o entendimento doutrinário e jurisprudencial de que o âmbito do recurso é delimitado pelas conclusões extraídas pelo recorrente da respetiva motivação, sendo apenas as questões aí inventariadas (elencadas/sumariadas) as que o tribunal de recurso tem de apreciar, sem prejuízo das de conhecimento oficioso, designadamente dos vícios indicados no art. 410º, nº 2, do Código de Processo Penal (doravante designado, abreviadamente, CPP)[1]. Assim sendo, no caso vertente, a questão que importa decidir é se, uma vez decretada em fase de julgamento uma irregularidade processual cometida em fase de inquérito, deve a mesma ser sanada pelo Tribunal que a decretou ou, antes, se devem os autos ser devolvidos para o efeito aos Serviços Ministério Publico. * III – Apreciação: O Ministério Público discorda da decisão do Tribunal a quo na parte em que, tendo julgado verificada uma irregularidade processual versando a notificação da acusação à arguida AA, ordenou a remessa do processo ao Ministério Público com vista ao seu suprimento. Alega o recorrente, resumidamente, que o despacho recorrido violou o disposto nos artigos 123.º, n.º 2 e 311.º, ambos do Código de Processo Penal, devendo ser revogado e substituído por outro que receba a acusação, notificando-se ainda a arguida AA conjuntamente da acusação contra ela deduzida, em conformidade com o preceituado no artigo 311.º-A, n.º 2, alínea b), do Código de Processo Penal, seguindo-se os ulteriores termos do processo. Conhecendo: Não se discute no presente recurso o acerto da decisão no que concerne à judicialmente declarada irregularidade processual concernente à inválida notificação da acusação à arguida, a qual, como admitido pelo Ministério Público e ressuma do processado dos autos, verificou-se efetivamente por incumprimento do disposto conjugadamente nos arts. 113º, nº1, al. c), 196º, nº2 e 283º, nºs 3 e 4, todos do CPP, na medida em que foi enviado aviso postal simples para outra morada que não a correspondente à indicada pela arguida no termo de identidade e residência que prestou no processo. Cumpre somente apreciar se, declarada pelo Tribunal recorrido a mencionada irregularidade processual, devia ser tentada a sanação da mesma por determinação da Mma. Juíza, ordenando-se à Secção de Processos que, nos termos legais, procedesse à notificação da acusação à arguida e do direito que lhe assiste de requerer a abertura de instrução, no prazo legal, sem prejuízo de, concomitantemente, receber a acusação, notificando-se igualmente a arguida para contestar, querendo, no prazo legal (cf. arts. 311º e 313º-A, ambos do CPP, este último aditado pela Lei nº 94/2021, de 21.12), ou, ao invés, como se entendeu no despacho recorrido, deve tal irregularidade ser reparada pela autoridade competente para a prática do acto, ou seja, pelo Ministério Público, visto o retorno do processo ao ponto onde foi praticado o ato imperfeito. Não obstante a querela jurisprudencial existente a propósito desta questão, como disso dá nota a decisão recorrida, e da ponderosa argumentação desenvolvida pela jurisprudência que se pronunciou no sentido ali defendido, propendemos para adotar o entendimento largamente maioritário da mais recente jurisprudência portuguesa e, por certo, quase unânime deste Tribunal da Relação de Guimarães, de que, nestes casos, a reparação da irregularidade detetada aquando do saneamento do processo, no âmbito do disposto no art. 311º, nº1, do CPP, deve ser efetuada pelos serviços do tribunal recorrido mediante determinação do juiz para o efeito vertida no despacho que declare essa invalidade. Consideramos que a solução contrária, adotada no impugnado despacho, afronta os princípios do acusatório e da independência e autonomia do Ministério Público, consagrados nos arts. 32º, nº5 e 219º, nº2, da Constituição da República Portuguesa. Como é consabido, ao Ministério Público esta atribuída a direção da fase de inquérito enquanto o titular ou dominus da fase de julgamento é o juiz de julgamento e, portanto, é a este que cabe dirigir esta terminal fase processual praticando todos os atos necessários ao bom andamento dos autos e, a final, à boa decisão da causa e descoberta da verdade material, que não prescinde do assegurar das garantias de defesa do arguido, como seja a possibilidade de exercício efetivo do direito ao contraditório, nomeadamente por dedução de contestação à acusação contra ele dirigida. Assim sendo, não se afigura legítimo que um juiz possa emitir uma “ordem” para ser cumprida no âmbito do inquérito por um sujeito processual (MP) que não deve obediência institucional ou hierárquica a tal imposição. Sufragamos na íntegra o exposto, de modo apodítico, pela Exma. PGA no douto parecer que lavrou nos autos, onde realça inúmero arestos de tribunais superiores – alguns igualmente citados no douto recurso - que conferem arrimo à posição sustentada pelo recorrente e por nós acolhida como a correta. Passamos, pois, a transcrever o ali expendido: «Ora, se é certo que o juiz de julgamento pode conhecer oficiosamente da apontada irregularidade, nos termos do artigo 123.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, afigura-se-nos mostrar-se completamente ultrapassado o procedimento processual veiculado no douto despacho recorrido no sentido da devolução dos autos ao Ministério Público para suprimento da irregularidade detetada. Na verdade, como lucidamente se refere no acórdão deste Tribunal da Relação de Guimarães de 14-11-2023, processo n.º 1778/21.3T9BRG-A.G1, disponível em www.dgsi.pt, “(…) a quem compete, então, chegados os autos já à sua fase jurisdicional, proceder à reparação da irregularidade: aos serviços do Ministério Público (que a cometeram, certamente por lapso involuntário) ou ao Tribunal, onde correm agora os autos? Nesta questão, afigura-se óbvio que a própria sistemática legal seria suficiente para fornecer uma resposta: o Livro VI do Código de Processo Penal trata das fases preliminares (Título I) – a notícia do crime, as medidas cautelares e a detenção –, do inquérito (Título II) e da instrução (Título III); já o Livro VII versa sobre o julgamento. Ora, não há dúvidas de que o dominus das duas primeiras – sem prejuízo da intervenção judicial, sempre que a lei processual penal o exija – é o Ministério Público (art. 263.º, n.º 1); já a instrução é da competência do respetivo juiz (art. 288.º, n.º 1) e a fase de julgamento cabe ao juiz que irá realizar este (art. 311.º, n.º 1). A lei determina com rigor a competência – estanque, quanto à direção da respetiva fase processual – de cada um destes intervenientes e os atos que lhes cabem realizar, bem como aos respetivos serviços. Daí que, uma vez no âmbito de competência do juiz como titular do processo, não possa haver devolução deste pelo juiz ao Ministério Público, mesmo para suprir uma nulidade de inquérito: havendo autonomia de atuação do Ministério Público, “não tem fundamento legal qualquer «ordem» [de um juiz] para ser cumprida no âmbito do inquérito por quem não deve obediência institucional nem hierárquica a tal injunção” (cfr. Acórdão do STJ de 27-04-2006, in https://jurisprudencia.csm.org.pt/ecli/ECLI:PT:STJ:2006:06P1403.A7/)”. Neste sentido e por ser esse o único que respeita o princípio constitucional da autonomia do Ministério Público, previsto no artigo 219.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa, tem-se pronunciado, julgamos que quase unanimemente, a mais recente jurisprudência, (cfr., entre muitos outros, os acórdãos deste Tribunal da Relação de Guimarães de 06/02/2024, processo n.º 28/22.0GAVVD.G1; de 06/02/2024, processo 165/22.0IDBRG-A.G1; de 26.10.2020, processo n.º 754/19.0T9BRG.G1; de 10.07.2019, processo n.º 260/18.0GEBRG.G1; de 25.02.2019, processo n.º 972/17.6T9GMR-A.G1; de 06.02.2017, processo n.º 540/14.4GCBRG.G1; de 05.12.2016, processo n.º 832/12.8PBGMR.G1; de 09-01-2024, processo n.º 262/21.0PCBRG.G1; de 06-12-2021, processo n.º 275/19.1GDGMR-A.G1; a decisão sumária de 06-05-2024, processo n.º 1694/21.9T9GMR-B.G1; cfr. ainda o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa de 08.09.2020, processo n.º 3276/18.3T9SXL.L1-5; o acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 23.10.2013, processo n.º 1231/11.3T3AVR.C1, disponíveis em www.dgsi.pt).» Cumpre ainda objetar à fundamentação aduzida na decisão recorrida na parte em que se escuda na alegada competência do Ministério Público para o ato de notificação da acusação, nos termos do art. 283º, nº5, 1ª parte, do CPP, e de decorrer da segunda parte deste normativo e do disposto no art. 336º, nº3, do mesmo diploma legal, que só é excecionalmente permitida a remessa do processo para julgamento se se frustrarem tentativas idóneas de proceder à notificação da acusação ao arguido. Salvo o devido respeito, tal entendimento funda-se numa errada ideia de exclusiva competência do Ministério Público para notificar a acusação por si deduzida aos sujeitos processuais, olvidando que a partir do momento que deduz o libelo acusatório mostra-se encerrada a fase de inquérito, cujo termo não fica legalmente dependente da concretização da sua notificação. É o que ressuma das disposições conjugadas dos arts. 276º, nº1, e 283º, nº1, ambos do CPP. Não colhe, para o efeito, a asserção artificiosa de que não tendo sido recebida a acusação no âmbito do art. 311º do CPP – como sucedeu in casu –, “o processo está num limbo entre a fase de inquérito e a fase de julgamento”. Não está não. Está na fase de julgamento e, reitera-se, o juiz que preside a esta fase tem poderes legais para determinar o suprimento da irregularidade decorrente da inválida notificação da acusação à arguida, mediante o encetar de novas diligências tendentes a essa perfectibilizada notificação. O argumento em contrário é vicioso e reversível, porquanto é precisamente a (in)validade do ato do julgador de não ter recebido a acusação, como julgamos que devia ter feito, que está em discussão nos autos. Ademais, nos termos do art. 123º, nº1, do CPP, a irregularidade detetada só gera a invalidade dos atos subsequentes que não possam ser aproveitados, e entre eles não cremos que se conte, sem mais, forçosamente, a distribuição do processo para julgamento, uma vez que tal ato se pode manter, caso a arguida, notificada que seja da acusação, não utilize a faculdade de requerer a abertura de instrução. Somente no caso deste direito legal ser exercido pela arguida é que os autos terão de retroceder à fase de instrução, presidida pela Juiz de Instrução e já não por outra entidade com independência e autonomia funcional face à magistratura judicial. Por último, a proceder a tese acolhida na decisão recorrida, podíamos hipoteticamente cair numa situação de insolúvel entrave processual, com inadmissível prejuízo para a celeridade processual e, reflexamente, para o direito do arguido de ver o direito definido em tempo razoável, bastando para tanto que o Ministério Público titular do inquérito não se predispusesse a cumprir a orientação do juiz de julgamento, por entender que a notificação tinha sido validamente efetuada ou, então, determinasse recorrentemente a realização da notificação em termos que não asseguravam a sua legalidade. Destarte, urge conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que receba a acusação e determine a notificação da arguida, não só para contestar, nos termos do art. 311º-A do CPP, como ainda do libelo acusatório contra si deduzido e do direito processual de requerer, em alternativa, a abertura de instrução, de acordo com o disposto nos arts. 283º, nºs 3 e 4, e 287º, do mesmo Código. IV - Dispositivo: Pelo exposto, acordam os Juízes da Secção Criminal deste Tribunal da Relação de Guimarães em conceder provimento ao douto recurso interposto pelo Ministério Público e, consequentemente, revogar o douto despacho recorrido que deve ser substituído por outro que receba a acusação e determine a notificação da arguida, não só para contestar, nos termos do artigo 311º-A do Código de Processo Penal, outrossim do libelo acusatório contra si deduzido e do direito processual de requerer, em alternativa, a abertura de instrução, de acordo com o estatuído nos artigos 283º, nºs 3 e 4, e 287º, do mesmo Código. Sem tributação. * Guimarães, 28 de janeiro de 2025, Paulo Correia Serafim (relator) [assinatura eletrónica] Anabela Rocha (1ª Adjunta) [assinatura eletrónica] Declaração de voto do Exmo. Desembargador Fernando Chaves (2º adjunto): Vencido pelas razões constantes do Acórdão deste TRG de 6.2.2017, Proc. n.º 374/15.9GCBRG.G1, de que fui relator. [assinatura eletrónica] (Acórdão processado e revisto pelo relator, com recurso a meios informáticos – cfr. art. 94º, nº 2, do CPP) [1] Cfr., neste sentido, Paulo Pinto de Albuquerque, in “Comentário do Código de Processo Penal”, 2ª Edição, UCE, 2008, anot. 3 ao art. 402º, págs. 1030 e 1031; M. Simas Santos/M. Leal Henriques, in “Código de Processo Penal Anotado”, II Volume, 2ª Edição, Editora Reis dos Livros, 2004, p. 696; Germano Marques da Silva, in “Direito Processual Penal Português - Do Procedimento (Marcha do Processo)”, Vol. 3, Universidade Católica Editora, 2018, pág. 335; o Acórdão de Fixação de Jurisprudência do S.T.J. nº 7/95 de 19/10/1995, publicado no DR, Série I-A, de 28/12/1995, em interpretação que mantém atualidade. |