Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2851/14.0T8VNF.G1
Relator: CONCEIÇÃO SAMPAIO
Descritores: ESGOTAMENTO DO PODER JURISDICIONAL
CASO JULGADO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 05/02/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Os princípios do esgotamento do poder jurisdicional e do caso julgado formal contendem com os limites do poder jurisdicional, e constituem as traves mestras da estabilidade das decisões dos tribunais.
II - Proferida a decisão fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
III - A intangibilidade da decisão proferida é, naturalmente, limitada pelo respetivo objeto no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão.
III – De igual modo, o pressuposto nuclear do instituto do caso julgado consiste em a pretensão – ao nível da relação meramente processual - constituir a renovação, alteração ou repetição duma anteriormente decidida.
IV - Não ocorre violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional sempre que o juiz se pronuncie de novo sobre uma questão que lhe é suscitada.
IV – E não há ofensa de caso julgado na situação em que a segunda decisão assenta em alterações consentidas pela lei, inerentes à própria dinâmica do processo, sendo distintas as bases factuais em que assentam, o que inviabiliza que se considere que a segunda é uma repetição da primeira.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

I - Relatório

No âmbito da presente execução foi determinada a venda por negociação particular.
Por vicissitudes processuais diversas, durante vários anos não foram promovidos os termos da venda.
Na data de 18 de fevereiro de 2023, a agente de execução promoveu pela publicitação da venda do imóvel na modalidade de negociação particular na plataforma “e-leilões”.
Desde então foram apresentadas várias propostas.
Na sequência de reclamação do proponente AA, e após informação da agente de execução, com data de 26 de maio de 2023 foi proferido o seguinte despacho:
«Uma vez que a modalidade de venda é “por negociação particular”, notifique-se o AE para proceder à venda pela maior proposta obtida, ou seja, pelo valor de 155.000,00 euros, conforme já informada.».
Dada a incerteza quanto ao termo do prazo, em face das reclamações do proponente AA e da posição assumida pela agente de execução, em 02 de novembro de 2023 foi judicialmente determinado que «a AE, enquanto encarregado da venda, informasse os autos do seguinte:
- Inicio e fim do período para a apresentação de propostas.
- data e valor de cada proposta apresentada nesse período de venda.»

A AE informou, então, com relevância que:

Na data de 10 de março de 2023, data de encerramento da publicitação da venda na plataforma, contavam-se vinte propostas, sendo a de maior valor de 153.000,00€ (cento e cinquenta e três mil euros).

Desde então, foram, ainda, apresentadas nove propostas:
1. Na data de 30/03/2023, pela sociedade EMP01..., Unipessoal, Lda., no valor de 154.000,00€ (cento e cinquenta e quatro mil euros);
2. AA, na data de 26/04/2023, apresentou a proposta de 155.000,00€ (cento e cinquenta e cinco mil euros);
3. Proposta essa que foi igualada pelo Exequente EMP02..., Unipessoal, lda., na data de 23/03/2023;
4. A sociedade EMP01..., Unipessoal, Lda. apresentou nova proposta de 160.000,00€ (cento e sessenta mil euros), na data de 02/06/2023;
5. Essa proposta foi superada pela proposta da sociedade EMP03..., Lda., na data de 21/06/2023, pelo valor de 175.000,00€ (cento e setenta e cinco mil euros);
6. Na data de 12/07/2023, AA apresentou nova proposta no valor de 176.000,00€ (cento e setenta e seis mil euros);
7. A EMP03..., Lda. apresentou a proposta de 177.000,00€ (cento e setenta e sete mil euros) na data de 11/09/2023;
8. Na data de 27/09/2023, foi apresentada proposta de 178.000,00€ (cento e setenta e oito mil euros) por AA;
9. Por fim, a última proposta foi de 180.000,00€ (cento e oitenta mil euros), datada de 19/10/2023, pela EMP03..., Lda.

Face à informação prestada pela AE, foi proferido o seguinte despacho, datado de 22 de novembro de 2023:

«Considerando a informação do AE de que a negociação por venda particular terminou no passado dia 10 de março de 2023, deverá aceitar a última proposta apresentada até esta data, o que se determina, com prejuízo das reclamações apresentadas e que contendem com esta nossa decisão.»
*
É contra esta decisão que se insurge o proponente AA, dela recorrendo apresentando as seguintes conclusões:

I) Do Objeto do Recurso
1- O presente recurso tem por objeto o douto despacho de 22/11/2023, o qual, no seguimento da informação prestada pela Sra. Agente de Execução, determinou que deverá ser aceite a última proposta apresentada até ao dia ../../2023, no âmbito da venda por negociação particular, ficando assim prejudicadas as 3 (três) reclamações apresentadas pelo ora recorrente.
Vejamos,
II) Questão prévia: da data do terminus da venda por negociação particular.
2- O ora recorrente, por uma questão de economia processual, dá por integralmente reproduzida a sua reclamação primitiva, datada de 02/05/2023, mediante a qual expôs os motivos da sua discordância da decisão do Agente de Execução, remetendo-se aqui também para o corpo da motivação do recurso acima exposto.
III) Da matéria de direito que fundamente a posição do recorrente.
A) As normas jurídicas violadas.
3- O ora recorrente entende que o Tribunal a quo, ao proferir a decisão de que ora se recorre, violou o disposto no artigo 613º, nº1 e nº3 do Código de Processo Civil, uma vez que o despacho recorrido contende diretamente com o despacho de ../../2023, já amplamente transitado em julgado.
4- De igual forma, dado que a referida decisão transitou em julgado, entende o ora recorrente que o despacho ora recorrido violou o caso julgado formal decorrente do despacho de ../../2023, em desrespeito do disposto no artigo 620º, nº1 do C.P.C..
Densificando,
B) O sentido que, no entender da recorrente, as normas que constituem fundamento jurídico da decisão deviam ter sido interpretadas e aplicadas.
i.) Do esgotamento do poder jurisdicional do tribunal–artigo 613º, nº1 e nº3 do C.P.C.:
5- Nos presentes autos, ora recorrente apresentou uma proposta no valor de 155.000,00€, a qual acabou por ser expressamente aceite pelo Tribunal a quo por despacho de ../../2023.
6- Portanto, a questão estava, ou deveria estar, resolvida logo aí: o prédio em causa tinha de ser adjudicado ao proponente AA, pelo valor de 155.000,00€.
7- Não obstante, o Tribunal a quo proferiu o despacho ora recorrido, que contraria diretamente a solução inicialmente perfilhada, pois ordena que seja aceite a proposta mais elevada apresentada até ../../2023.
8- Uma vez que o despacho ora recorrido foi proferido após o despacho proferido a ../../2023 pelo mesmo Tribunal, e com aquele contende diretamente, entende o ora recorrente que o poder jurisdicional do Tribunal quanto a esta matéria – recorde-se, a venda do imóvel, nomeadamente o valor e a identidade do adquirente – já se havia esgotado, nos termos do disposto no artigo 613º, nº1 e nº3 do C.P.C..
9- A este propósito, vejam-se os arestos já indicados e transcritos no corpo das motivações.
10- Realce-se ainda que, à data da prolação do despacho ora recorrido, não havia qualquer matéria nova ou superveniente que pudesse influir na decisão da causa e que pudesse justificar este novo despacho
11- Assim sendo, parece-nos evidente que o Tribunal a quo decidiu fora do seu poder jurisdicional, o qual já se tinha esgotado com a prolação do despacho de ../../2023, pelo que não poderia, em 22/11/2023, ter proferido novo despacho contraditório com aquele.
12- Assim, salvo melhor entendimento, cremos que a segunda decisão, proferida após o esgotamento do poder jurisdicional do Tribunal, é juridicamente inexistente.
13- E, assim sendo, o despacho ora recorrido é juridicamente inexistente, não podendo produzir quaisquer efeitos, inexistência essa que expressamente se invoca e deverá ser decretada, com as legais consequências.
14- Sem prescindir, caso não se entenda que a solução jurídica a adotar é a declaração da inexistência do despacho ora recorrido, sempre seria de aplicar um dos outros entendimentos que conduzem à ineficácia ou nulidade da decisão.
Ademais, e sem prescindir,
ii.) Do caso julgado formal resultante do despacho de ../../2023 – artigo 620º, nº1 do C.P.C..
15- Independentemente do esgotamento do poder jurisdicional do Tribunal, conforme já explanando supra, compete-nos ainda realçar novamente que o segundo despacho é contraditório com o primeiro, na medida em que determina que se aceite uma proposta que não a proposta de 155.000,00€, apresentada pelo ora recorrente.
16- A partir do momento em que o Tribunal ordenou que fosse aceite a proposta de 155.000,00€ (do ora recorrente), ficou logo aí decidida a questão da venda;
17- Qualquer decisão que seja contraditória e posterior a esta, como é o caso do despacho ora recorrido, viola ostensivamente o caso julgado formal que nasceu com o despacho de ../../2023, em desrespeito do mesmo e em violação do disposto no artigo 620º, nº1 do C.P.C.,.
18- E, assim sendo, o despacho ora recorrido não poderá prevalecer, devendo antes ser revogado, o que expressamente se requer.
Nestes termos, não só certamente pelo alegado mas principalmente pelo alto critério de Vªs Exªs, deverá ser dado pleno provimento o ao presente recurso, e, em consequência:
a) Determinar-se que a decisão ora recorrida é juridicamente inexistente, por ter sido proferida após o esgotamento do poder jurisdicional do Tribunal, devendo prevalecer a decisão constante do despacho de ../../2023 - a qual se deverá fazer cumprir;
b) Caso assim não se entenda, reconhecer-se que a decisão em causa viola o caso julgado formal determinado pelo despacho de ../../2023, devendo aquela ser revogada, com as legais consequências.
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Colhidos os vistos, cumpre decidir.
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II - Delimitação do objeto do recurso

São duas as questões a apreciar, delimitadas pelas conclusões do recurso:

- se a decisão recorrida é juridicamente inexistente, por ter sido proferida após o esgotamento do poder jurisdicional do Tribunal;
- se houve violação de caso julgado formal.
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III – Fundamentação

De facto:

À apreciação do recurso a factualidade que releva é a exposta no relatório que precede.

De Direito:

A questão posta em recurso convoca para a sua apreciação os limites do poder jurisdicional, sendo o esgotamento do poder jurisdicional e o caso julgado dois vértices desses limites e as traves mestras da estabilidade das decisões dos tribunais.
Por isso, no caso concreto, a apreciação da questão será feita sob esta dupla perspetiva: do esgotamento do poder jurisdicional e da violação do caso julgado.
Nos termos do artigo 613.º do CPC proferida a sentença fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
Esta norma é aplicável aos despachos, com as necessárias adaptações, por força do estatuído no nº 3 do preceito, sendo aplicável ao processo executivo, de acordo com o princípio geral de aplicação subsidiária das disposições reguladoras do processo de declaração constante do artigo 551.º, nº 1, do CPC
O âmbito do princípio consagrado no normativo, como ensina Alberto dos Reis, é o de que “O juiz não pode, por sua iniciativa, alterar a decisão que proferiu; nem a decisão, nem os fundamentos em que ela se apoia e que constituem com ela um todo incindível. Ainda que logo a seguir ou passado algum tempo, o juiz se arrependa, por adquirir a convicção que errou, não pode emendar o suposto erro. Para ele a decisão fica sendo intangível” - Código de Processo Civil Anotado, vol. V, Coimbra Editora, 1984, pag. 126.
Prolatada a sentença, a mesma torna-se imodificável. Esta imodificabilidade da sentença é apenas dirigida ao próprio juiz da causa, caso não tenha transitado em julgado, por ser ainda suscetível de recurso ordinário
Da extinção do poder jurisdicional consequente ao proferimento da decisão decorrem, assim, dois efeitos: um negativo – representado pela insusceptibilidade de o próprio tribunal que proferiu a decisão tomar a iniciativa de a modificar ou revogar; um positivo – traduzido na vinculação do tribunal à decisão por ele proferida-  Cf. Miguel Teixeira de Sousa, In Estudos sobre o Novo Código de Processo Civil, Lex, 2ª edição, pag. 572.
Mas isso não obsta a que o juiz mantenha ainda o exercício do poder jurisdicional para resolver os incidentes e questões que surjam no desenvolvimento posterior do processo, contanto que não se repercutam na sentença ou no despacho que proferiu.
A razão do princípio do auto-esgotamento do poder jurisdicional, por uma razão de ordem pragmática, encontra-se na necessidade de assegurar a estabilidade das decisões dos tribunais.
O princípio da intangibilidade da decisão, como resulta do n.º 2 do artigo 613.º do CPC, não é absoluto, uma vez ser lícito ao juiz retificar erros materiais, suprir nulidades e reformar a sentença, nos termos dos artigos 614.º a 616.º do CPC.
Este desvio ao princípio da intangibilidade da decisão, justifica-se pela circunstância da vontade declarada na decisão não corresponder à vontade do juiz, por não fazer sentido “que subsista vontade diversa daquela que o juiz teve em mente incorporar na sentença ou despacho” – Ac. da Relação de Coimbra de 20/10/2015, proferido no proc. 231514/11.3YIPRT.C1 (Maria Domingas Simões), em www.dgsi.pt
A intangibilidade da decisão proferida é, naturalmente, limitada pelo respetivo objeto no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão.
Se o tribunal, em desrespeito do comando ínsito no artigo 613.º, nº 1, do CPC (e fora dos ressalvados casos de retificação, reforma ou suprimento de nulidades) proferir outra decisão que incida sobre a mesma matéria que já foi anteriormente apreciada, a nova decisão que padeça de tal vício é juridicamente inexistente e não vale como decisão jurisdicional por ter sido proferida em momento e circunstâncias em que o aludido poder jurisdicional já se tinha esgotado - Ac. do STJ, de 6/5/2010, proferido no proc. 4670/2000.S1 (Álvaro Rodrigues), em www.dgsi.pt.
No caso em apreciação está em causa uma decisão que determinou fosse aceite a última proposta apresentada até ao dia ../../2023, no âmbito da venda por negociação particular, quando antes havia sido proferida outra que mandava atender à proposta de maior valor, apresentada até então.
Entende o recorrente que a última decisão é juridicamente inexistente, por ter sido proferida após o esgotamento do poder jurisdicional do Tribunal.
Assim não é.
Não há esgotamento do poder jurisdicional, quando a decisão é proferida no seguimento do requerimento (reclamação) do recorrente onde se solicitava uma decisão do tribunal sobre o que veio a requerer.
Assim, o despacho anterior foi proferido a propósito de uma situação, que mais tarde veio a verificar-se ser diferente. São dois despachos autónomos e não um despacho proferido sobre a mesma situação.
Face à nova reclamação efetuada pelo recorrente, de ato praticado pela AE, e a informação por esta prestada a pedido do tribunal, não estava vedado ao tribunal pronunciar-se; antes pelo contrário, foi-lhe solicitada uma decisão sobre a questão.
Não ocorre violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional sempre que o juiz se pronuncie de novo sobre uma questão que lhe é suscitada, como é o caso - Ac. da Relação de Guimarães de 7/01/2016 (Conceição Bucho), proc.30/08.4TBVNC-C.G1, disponível em www.dgsi.pt.
Evidencia-se que o próprio recorrente, enquanto proponente, após aquela decisão, que agora quer fazer valer como imutável, apresentou outras propostas, aderindo naturalmente à dinâmica típica do procedimento de venda.
Não existe assim, qualquer violação deste princípio.
Apreciemos, agora, a questão da violação do caso julgado.
Para tal importará apreciar se o despacho recorrido conheceu de questão previamente apreciada e decidida em anterior decisão, transitada em julgado, mais precisamente, se ao decidir que deveria ser aceite a última proposta apresentada até ao dia ../../2023, o tribunal violou o caso julgado formal da decisão anteriormente proferida, que mandava atender à proposta de maior valor, apresentada até então.
Nas palavras de Miguel Teixeira de Sousa, o caso julgado consubstancia-se “na inadmissibilidade da substituição ou modificação da decisão por qualquer tribunal (incluindo aquele que a proferiu) em consequência da insusceptibilidade da sua impugnação por reclamação ou recurso ordinário” – in Estudos Sobre o Novo Processo Civil, Lex, 2ª edição, 1997, p. 567.
Seguindo o ensinamento de Rui Pinto, o caso julgado tanto designa a qualidade de imutabilidade da decisão judicial que transitou em julgado, como o conjunto dos efeitos jurídicos que têm o transito em julgado da decisão judicial por condição. A decisão transitou em julgado logo que não seja suscetível de recurso ordinário ou de reclamação (cf. artigo 628.º, nº1, do CPC). Trata-se, por conseguinte, de uma qualidade formal ou externa ao próprio teor da decisão. Por outro lado, a imutabilidade da decisão permite que esta alcance uma estabilidade, ou seja, uma continuidade, na emissão dos respetivos efeitos jurídicos. O trânsito em julgado constitui uma técnica de estabilização dos resultados do processo, mas que não é única, integrando-se numa linha gradual de estabilização. Efetivamente, decorre, desde logo, do artigo 613.º, n.º 1, que, prolatada a sentença ou despacho, o tribunal não os pode revogar, por perda de poder jurisdicional. Trata-se, pois, de uma regra de proibição do livre arbítrio e discricionariedade na estabilidade das decisões judiciais- In Exceção e autoridade de caso julgado – algumas notas provisórias, revista Julgar Online, Novembro de 2018, p. 2/3.
O caso julgado formal, por oposição ao caso julgado material, restringe-se às decisões que apreciam matéria de direito adjetivo, produzindo efeitos limitados ao próprio processo – Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, Código de Processo Civil Anotado, Vol. I, Almedina, 2018, p. 745.
As decisões de forma que incidem sobre aspetos processuais, adquirindo, em regra, valor de caso julgado formal, são vinculativas no processo, produzindo efeitos processuais: enquanto efeito negativo, resulta da decisão transitada a insusceptibilidade de qualquer tribunal, incluindo o que a proferiu, se voltar a pronunciar sobre ela; como efeito positivo, resulta da decisão transitada a vinculação do tribunal que a proferiu (e de outros) ao que nela foi definido ou estabelecido - Miguel Teixeira de Sousa, ob cit. p. 572.
Assim, qualquer despacho proferido sobre questão processual, uma vez transitado em julgado, adquire valor de imutabilidade, sendo no processo inadmissível (e por isso ineficaz – art. 625.º, nº 2 do CPC) decisão posterior sobre a mesma questão que dele tenha sido objeto – não sendo respeitados os efeitos processuais resultantes de decisão transitada em julgado, ocorrerá situação de contraditoriedade, a solucionar de acordo com a regra prescrita no art. 625.º do CPC, valendo aquela que primeiro transitou em julgado (princípio da prioridade do trânsito em julgado que vale também para as decisões de natureza adjetiva proferidas no processo, como resulta do nº 2 do art. 625.º do CPC) –Ac. da Relação do Porto de 17/05/2022 (João Ramos Lopes), proc. 1320/14.2TMPRT.P1, em www.dgsi.pt.
Porque assim, o caso julgado formal de uma decisão obsta a que no processo seja tomada nova decisão (seja renovando, seja modificando a anterior) e, como referido no acórdão do STJ de 8/03/2018 (Fonseca Ramos), uma pretensão já decidida, em contexto meramente processual, e não recorrida, seja objeto de repetida decisão (se tal acontecer, a segunda decisão deve ser desconsiderada por violação do caso julgado formal assente na prévia decisão - disponível em www.dgsi.pt.
O pressuposto nuclear do instituto consiste em a pretensão - ao nível da relação meramente processual - constituir a renovação, alteração ou repetição duma anteriormente decidida.
Determinar quando tal ocorre, remete-nos para o âmbito objetivo do caso julgado, isto é, para a determinação do seu objeto, do quantum da matéria que foi apreciada pelo tribunal na decisão transitada.
Esse quantum definidor dos limites objetivos respeita, no caso julgado formal, à questão processual concretamente apreciada e decidida.
No caso em apreço constata-se que o despacho proferido a 23/05/2023 decidiu que, uma vez que a modalidade de venda é por negociação particular, o AE deveria proceder à venda pela maior proposta obtida, ou seja, pelo valor de 155.000,00 euros.
Após este despacho, suscitaram-se questões sobre o termo do prazo para apresentação de propostas e sobre qual o prazo que deveria ser atendido pela AE no âmbito da venda por negociação particular.
Nesse seguimento, depois de obtida informação acerca do termo do prazo para a venda, o tribunal decidiu que deveria ser aceite a última proposta apresentada até essa data (despacho de 22/11/2023).
A questão suscitada e apreciada pelo despacho de 22/11/2023, admitindo-se a similitude, não é a mesma que a conhecida e decidida no despacho transitado de 23/05/2023 – o objeto mediato é o mesmo, pois que em causa está saber qual a proposta que deve ser aceite, mas o momento e as circunstâncias são diversas, possibilitando, evidentemente, o entendimento adotado pelo tribunal de tomar como critério o termo do prazo referente ao encerramento da publicitação da venda na plataforma.
Discordar deste entendimento, é fundamento de recurso, já não de violação de caso julgado.
Incidindo o cerne da questão nos elementos disponíveis quanto ao momento temporal, estamos no caso em presença de dois tempos distintos.
Não há identidade objetiva da questão apreciada em ambos os despachos. O caso julgado formal apenas se forma relativamente a questões que tenham sido concretamente apreciadas e nos limites dessa apreciação.
Não pode ser afirmado que os efeitos processuais do caso julgado formal formado com o despacho de 23/05/2023 se mantinham, e que a situação que determinou a prolação de tal despacho permanece inalterada. Não, houve uma alteração.
Haverá, assim, de reconhecer-se que não foi renovada questão que já havia sido decidida, não estamos perante uma repetição, antes de apresentação de uma nova e diferente reclamação, que sempre o tribunal teria de apreciar e decidir, precisamente, porque a situação que determinou a prolação do despacho recorrido se alterou.
Nunca poderia o tribunal decidir não conhecer deste ponto, com a invocação de já ter apreciado a questão anteriormente.
Assentando a segunda decisão em alterações consentidas pela lei, inerentes à própria dinâmica do processo, a diferença na interpretação não consubstancia violação do caso julgado.
As decisões apresentadas pelo recorrente não são conflituantes, pois as bases factuais em que assentam, por serem distintas, inviabilizam considerar-se que a segunda é uma repetição da primeira.
Para a compreensão do alcance da figura, a questão de direito tem de derivar ou promanar de um similar quadro lógico-factual. À similitude lógico-factual não pode deixar de corresponder uma teleologia de sentido funcional-processual, ou seja, uma inferência de alcance e dimensão compreensiva que se contém no momento em que se coloca em tela de juízo a questão jurídico-normativa que se aprecia e decide. Daí que, a oposição de decisões tem de se inserir e integrar num quadro teleológico similar e idêntico para ambas as decisões. Vale por dizer que o pressuposto discursivo e lógico-funcional em que as decisões, tomadas como contraditórias, assentam têm de servir o mesmo fim correlativo de análise e sentido teleológico – Ac. do STJ de 07/03/2018 (Gabriel Catarino), processo n.º 98/17.2YFLSB, disponível em www.dgsi.pt.
Porque assim, o tribunal a quo não desrespeitou o caso julgado formal.
Improcede, assim, a apelação.
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SUMÁRIO (artigo 663º n º7 do Código do Processo Civil)

I - Os princípios do esgotamento do poder jurisdicional e do caso julgado formal contendem com os limites do poder jurisdicional, e constituem as traves mestras da estabilidade das decisões dos tribunais.
II - Proferida a decisão fica imediatamente esgotado o poder jurisdicional do juiz quanto à matéria da causa.
III - A intangibilidade da decisão proferida é, naturalmente, limitada pelo respetivo objeto no sentido de que a extinção do poder jurisdicional só se verifica relativamente às concretas questões sobre que incidiu a decisão.
III – De igual modo, o pressuposto nuclear do instituto do caso julgado consiste em a pretensão – ao nível da relação meramente processual - constituir a renovação, alteração ou repetição duma anteriormente decidida.
IV - Não ocorre violação do princípio do esgotamento do poder jurisdicional sempre que o juiz se pronuncie de novo sobre uma questão que lhe é suscitada.
IV – E não há ofensa de caso julgado na situação em que a segunda decisão assenta em alterações consentidas pela lei, inerentes à própria dinâmica do processo, sendo distintas as bases factuais em que assentam, o que inviabiliza que se considere que a segunda é uma repetição da primeira.
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IV - DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes deste Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso.
 Custas a cargo do recorrente (artigo 527.º, nº 1 do CPC).
Guimarães, 2 de Maio de 2024

Assinado digitalmente por:                                                   
Rel. – Des. Conceição Sampaio
1º Adj. - Des. José Manuel Flores
2º Adj. - Des. Fernanda Proença Fernandes