Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
156/23.4YRGMR
Relator: FERNANDO CABANELAS
Descritores: REVISÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
DIVÓRCIO MUÇULMANO
TALAQ
PRINCÍPIO DA IGUALDADE DOS CÔNJUGES
OFENSA AOS PRINCÍPIOS DA ORDEM PÚBLICA INTERNACIONAL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/23/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: REVISÃO E CONFIRMAÇÃO DE SENTENÇA ESTRANGEIRA
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
- É insuscetível de revisão, por violação do princípio da igualdade dos cônjuges e da ordem pública internacional do Estado português, a decisão que atesta o divórcio entre o requerente e a requerida, sendo o modo de divórcio o “Talaq”, sem que à cônjuge-mulher haja sido também reconhecido tal direito (talaq i tafweez).
Decisão Texto Integral:
AA, filho de BB (de acordo com o assento de casamento junto aos autos, ou CC de acordo com a certidão do registo de divórcio do ..., ...) e de DD, natural de ..., República Islâmica do Paquistão, alegadamente morador na Rua ..., ..., ..., ..., intentou contra

EE, filha de FF e de GG, natural de ..., República Islâmica do Paquistão, moradora em ..., ..., nº 490, ..., ....
a presente ação de revisão e confirmação do documento do governo de ..., ..., da República Islâmica do Paquistão, denominado certidão de registo de divórcio, que atesta a concessão do divórcio entre o requerente e a requerida em ../../2022, sendo o modo de divórcio o Talaq.
De acordo com a informação transmitida na sequência da carta rogatória, citada a requerida, não foi deduzida oposição.
O Ministério Público veio pronunciar-se no sentido de que não deve ser confirmada e revista a decisão, pelo que se deve desatender a pretensão deduzida.
O requerente, no decurso do prazo conferido para apresentar alegações, pugnou pela procedência do pedido.
Atendendo à simplicidade da questão, nos termos dos artºs 982º, nº2, 652º, nº1, c), e 656º, do CPC, o mérito da causa será julgado por decisão sumária do relator.
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O Tribunal é competente (artº 979º, do CPC).
Não ocorrem nulidades, exceções ou questões prévias obstativas do conhecimento do mérito da causa e que cumpra conhecer oficiosamente.
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Resultam documentalmente provados os seguintes factos, dos alegados com relevância para a decisão da causa:

A) O requerente e a requerida contraíram casamento civil sob a forma religiosa, sem convenção antenupcial, em 15 de janeiro de 2016, no registo civil do ..., República Islâmica do Paquistão.
B) Por documento do governo de ..., ..., da República Islâmica do Paquistão, denominado certidão de registo de divórcio, mostra-se atestada a concessão do divórcio entre o requerente e a requerida em ../../2022, sendo o modo de divórcio o Talaq.
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Nos termos do artº 980º, do CPC, são os seguintes os requisitos necessários para a confirmação de sentença estrangeira:

a) Que não haja dúvidas sobre a autenticidade do documento de que conste a sentença nem sobre a inteligência da decisão;
b) Que tenha transitado em julgado segundo a lei do país em que foi proferida;
c) Que provenha do tribunal estrangeiro cuja competência não tenha sido provocada em fraude à lei e não verse sobre matéria da exclusiva competência dos tribunais portugueses;
d) Que não possa invocar-se a exceção de litispendência ou de caso julgado com fundamento em causa afeta a tribunal português, exceto se foi o tribunal estrangeiro que preveniu a jurisdição;
e) Que o réu tenha sido regularmente citado para a ação, nos termos da lei do país do tribunal de origem e que no processo hajam sido observados os princípios do contraditório e da igualdade das partes;
f) Que não contenha decisão cujo reconhecimento conduza a um resultado manifestamente incompatível com os princípios de ordem pública internacional do Estado Português.

Entre nós, o reconhecimento das sentenças estrangeiras dá-se por via do exequator, controlo ou revisão, o qual não é de mérito (caso em que haveria um controlo da aplicação do direito ou até uma reapreciação da matéria de facto) mas simplesmente formal.
A menos que exista tratado ou lei especial que estabeleça outra coisa, é necessária, em princípio, a revisão, para uma sentença judicial ou arbitral estrangeira sobre direitos privados ser confirmada (artº 978º, nº1, do CPC).
Muito embora, em princípio, só estejam sujeitas a revisão as decisões proferidas por um órgão jurisdicional, este regime de reconhecimento deve ser aplicado analogicamente às decisões de autoridades administrativas estrangeiras que, em Portugal, são da competência dos tribunais.
No caso sub judice não se suscitam dúvidas sobre a autenticidade dos documentos apresentados, nem sobre inteligibilidade do documento, verificando-se deste modo os requisitos previstos nas alíneas a) a d) do artº 980º, do CPC.
Acresce que a decisão transitou em julgado e do processo não consta qualquer elemento de onde se possa retirar a existência de uma situação de litispendência ou de caso julgado, com fundamento em causa afeta a um tribunal português.
Da mesma forma, inexiste qualquer elemento de facto que permita concluir que o documento cuja confirmação se pretende provenha de entidade cuja competência tenha sido provocada em fraude à lei.
Por outro lado, a matéria sobre a qual o documento versa não é da exclusiva competência dos tribunais portugueses – artº 63º, do CPC.
Todavia, já quanto à parte final da alínea e), e quanto à alínea f), do artº 980º, do CPC, não podemos considerar verificados tais requisitos.
Vejamos.
Como consta do documento revidendo, proveniente da República Islâmica do Paquistão, o modo de divórcio foi o Talaq.
Desde logo, e antes de tecer considerações sobre o (não) preenchimento das alíneas e) e f) do citado artigo 980º do CPC, importa definir sumariamente o que é o Talaq.
Se o marido estiver iniciando o divórcio, esse processo é conhecido como talaq. Somente o marido tem o direito de talaq, a menos que o poder de talaq também tenha sido fornecido à esposa no contrato de casamento (conhecido como talaq i tafweez).Para que o talaq ocorra, o marido precisa pronunciar claramente à esposa que ele está terminando o casamento e fornecendo talaq. Esta é uma rejeição unilateral do casamento. Não é necessário que o talaq seja fornecido por escrito ou testemunhado. No entanto, alguns estudiosos islâmicos dirão que o talaq ideal é pronunciado claramente pelo marido enquanto a esposa não está menstruada. Uma vez que o talaq é pronunciado, há um período de espera de três meses antes do casamento terminar. Este período é conhecido como iddah. Durante esse período, se as partes se reconciliarem, o casamento permanece válido. Se as partes escolherem se reconciliar após esse período, um novo nikkah é necessário para que o casamento seja reconhecido como válido sob a lei Sharia. Talaq triplo. A reconciliação só pode ocorrer duas vezes e, portanto, em um terceiro talaq não pode haver reconciliação durante o iddah. Isso é conhecido como talaq 'absoluto'. Alguns maridos podem escolher dar três talaqs de uma vez, o que significa essencialmente que não há disponibilidade para reconciliação. Outra opção às vezes exercida é que um marido dará um talaq por mês durante o período do iddah, o que novamente significa que o divórcio é final sem nenhuma reconciliação possível. A prática do triplo talaq foi proibida em muitos países, com a Índia criminalizando o ato sob a Lei das Mulheres Muçulmanas (Proteção dos Direitos no Casamento) de 2019.Uma vez que o talaq final é concluído, as partes não podem se casar novamente, a menos que, após o divórcio, a esposa se case novamente com outro homem e esse segundo casamento seja encerrado por divórcio ou morte.” – retirado de https://www.lexology.com/library/detail.aspx?g=acdbb98d-0b57-47df-a928-34c2cca83446.
Um muçulmano que deseja se divorciar de sua esposa é aconselhado – em primeira instância – a pedir uma reunião de arbitragem, organizada pelos anciãos do casal para que uma reconciliação possa ser alcançada. Se tais esforços falharem e o homem sinceramente achar que não pode viver uma vida harmoniosa com sua esposa, ele pode se divorciar dela verbalmente ou por escrito – conhecido como Talaq . Em ambos os casos, é recomendado que haja duas testemunhas presentes na ocasião do pronunciamento de tal divórcio.
Um homem deve se divorciar (a) apenas uma vez, (b) apenas durante o período em que sua esposa não estiver menstruada e (c) quando não tiver tido contato sexual com ela desde a última menstruação.
Após o divórcio ser pronunciado pelo marido, sua esposa deve esperar por um determinado período de 3 meses ou 3 ciclos menstruais ('iddat'). Durante esse período, a esposa pode ficar na mesma casa e o marido é responsável por seu bem-estar e manutenção. Ele pode escolher durante o Iddat se reconciliar com ela, em um processo conhecido como Ruju'. Isso pode ser uma declaração verbal ou retomar a vida conjugal normal. Se, após esse período de espera, o marido não aceitar sua esposa de volta, o casal estará completamente divorciado.
Também é recomendável ter duas testemunhas presentes quando o marido decide aceitar de volta ('ruju') sua esposa, antes do final do iddat.
Quando um homem declara três divórcios, em três ocasiões diferentes, ele não pode aceitar de volta sua ex-esposa, nem se casar novamente com ela.
O Conselho emite um certificado de divórcio com base em “Talaq Nama”, assinado pelo requerente na presença de duas testemunhas. O homem é obrigado a pagar o valor do dote integralmente à mulher.” - retirado de https://www.islamic-sharia.org/services/talaq-divorce-initiated-by-husband.
A palavra árabe para divórcio é talaq, que significa "libertar ou desfazer o nó" (Imam Raghib). Na terminologia dos juristas. Talaq significa a dissolução do casamento, ou a anulação de sua legalidade pelo pronunciamento de certas palavras.
O divórcio é de três tipos: o Ahsan, ou mais louvável, o Hasan, ou louvável, e o Bid'a ou irregular.
Talaq Ahsan ou o divórcio mais louvável é quando o marido repudia sua esposa fazendo um pronunciamento dentro do prazo de Tahr (pureza, quando a mulher não está passando pelo período de menstruação) durante o qual ele não teve relações sexuais com ela, e ela é deixada para observar seu 'Idda.
Talaq Hasan ou divórcio louvável é quando um marido repudia uma esposa amada por três sentenças de divórcio, em três Tuhrs.
Talaq Bid'a ou divórcio irregular é quando um marido repudia sua esposa por três divórcios de uma vez. De acordo com a maioria dos juristas, o Talaq é válido, mas é contra o espírito da Shari'ah e, ​​portanto, o homem que segue esse curso no divórcio é um infrator aos olhos da Lei Islâmica. – retirado de “Kitab Al-Talaq (O Livro do Divórcio)”, disponível em https://www.iium.edu.my/deed/hadith/muslim/009-smt.html.
Feitas as breves considerações sobre o que é o Talaq, e mesmo admitindo as variações regionais sobre tal prática, duas conclusões se podem retirar: a de que tal direito é exclusivamente reconhecido ao marido (não consta dos autos que haja sido convencionada antenupcialmente tal direito ao cônjuge mulher - talaq i tafweez), e a de que a mulher não se pode opor a tal declaração.
Desde logo, a circunstância de, na vigência do contrato de casamento, o direito à dissolução do vínculo matrimonial não ser conferido em igualdade de circunstâncias aos cônjuges, sem haver razão juridicamente atendível para tal diferença, consubstancia uma violação do princípio da igualdade dos cônjuges (dois numa só carne, na expressão de Guilherme de Figueiredo, in Ex aequo, nº 10, 2004) que entre nós tem consagração constitucional no artº 36º, nº 3, da CRP. E, importa sublinhar, a circunstância de a requerida não ter intervindo neste processo de revisão não legitima uma interpretação de uma anuência tácita ao pedido de revisão.
Mais, tal desigualdade afronta os princípios de ordem pública internacional do Estado Português.
A despeito de formuladas em sede de diferente problemática e institutos, têm aqui pleno cabimento as seguintes considerações:
(…) Tentando evitar o caráter redutor que uma definição pode representar, arriscamos a dizer que a ordem pública constitui um complexo normativo de conteúdo ético-sócio-económico formado por certas normas de direito positivo e por princípios e valores fundamentais de uma comunidade juridicamente organizada, aplicável no espaço respetivo com prevalência sobre outras normas, princípios ou valores de uma ordem jurídica estrangeira estranhos ou conflituantes com ela.” - Manuel Pereira Barrocas, in “A Ordem Pública na Arbitragem”.
O controlo que o juiz tem de fazer para aquilatar da ofensa da ordem pública internacional do Estado não se confunde com revisão: o juiz não julga novamente o litígio decidido pelo tribunal arbitral para verificar se chegaria ao mesmo resultado a que este chegou, apenas deve verificar se a sentença, pelo resultado a que conduz, ofende algum princípio considerado como essencial pela ordem jurídica do foro; ainda assim, quando o controlo se destina a verificar se o resultado da decisão é manifestamente incompatível com os princípios da ordem pública internacional do Estado, poderá não bastar a análise do dispositivo da sentença por este ser, em geral, neutro, se desligado da vistoria ao raciocínio até ele percorrido pelo tribunal.
Mesmo que não seja possível determinar, a priori, o conteúdo da cláusula geral da ordem pública internacional, é latamente consensual a ideia de que o mesmo é enformado pelos princípios estruturantes da ordem jurídica, como são, desde logo, os que, pela sua relevância, integram a Constituição em sentido material, pois são as normas e princípios constitucionais, sobretudo os que tutelam direitos fundamentais, que não só enformam como também conformam a ordem pública internacional do Estado, o mesmo sucedendo com os princípios fundamentais do Direito da União Europeia e ainda com os princípios fundamentais nos quais se incluem os da boa fé, dos bons costumes, da proibição do abuso de direito, da proporcionalidade, da proibição de medidas discriminatórias ou espoliadoras, (…)
Considerando, porém, que os aludidos princípios possuem um conteúdo normativo amplo ou indeterminado, a invocação da sua violação, como fundamento da anulação de sentença arbitral terá de ser sujeita a acentuadas restrições e daí que a contrariedade à ordem pública internacional do Estado português, a que alude o artº 46º, nº1, e nº3, alínea b), ii), da LAV, pressuponha que essa decisão conduza a um resultado intolerável e inassimilável pela nossa comunidade, por constituir um patente, certo e efetivo atropelo grosseiro do sentimento ético-jurídico dominante e de interesse de primeira grandeza ou princípios estruturantes da nossa ordem jurídica.” - AcSTJ de 26/09/2017, Revista nº 1008/14.4YRLSB.L1.S1, objeto de anotação por Afonso Patrão, nos Cadernos de Direito Privado, nº62, abril e junho de 2018, pág. 412 e ss.
A nossa jurisprudência tem sido praticamente unânime (só conhecemos uma decisão sumária em sentido contrário[1], prolatada no processo nº 405/19...., em 7 de abril de 2020) ao considerar que a ordem pública internacional obsta ao reconhecimento do divórcio na modalidade aqui em causa, o Talaq.
No AcRL de 19/11/2019, processo 1378/18...., de 19/11/2019, considerou-se que “por não ter sido dada a oportunidade à mulher de intervir e de manifestar oposição à dissolução do casamento, não se podem considerar garantidos os princípios da igualdade de armas e do contraditório, exigidos por aquela disposição legal. VI. Nessa conformidade, a ordem pública internacional do Estado português obsta ao reconhecimento de tal divórcio.
De igual forma, o AcRL de 6/07/2023, processo nº 2985/22...., deliberou que “O divórcio muçulmano designado por “talaq”, mediante o qual o divórcio é obtido por mera declaração do marido face à mulher, é suscetível de ofender os princípios de ordem pública internacional do Estado Português – desde logo pela sua natureza discriminatória por não ser concedida tal faculdade à mulher e também por não existir qualquer tipo de contraditório - e, por causa disso, constituir um obstáculo ao reconhecimento da sentença que confirmou a declaração do marido.
O STJ, no seu acórdão de 29/02/2024, deliberou que “Sendo certo que o repúdio da mulher portuguesa pelo marido muçulmano (o instituto do talak) é susceptível de violar a ordem pública internacional portuguesa (porque coloca o cônjuge mulher numa situação de inferioridade, não lhe concedendo um direito que é concedido ao cônjuge marido, dessa forma ofendendo, em abstracto, o preceito constitucional que consagra o princípio da igualdade dos cônjuges), casos há em que essa desigualdade não será suficiente para desencadear a actuação da ordem pública internacional.”, sendo certo que a factualidade que ora nos ocupa não se subsume à exceção ali considerada.
Como supra começámos por referir, e agora reafirmamos, ponderadas todas as posições, entendemos que no caso concreto inexistem nos autos factos que nos permitam considerar afastada a supra referida violação do princípio da igualdade dos cônjuges, com igual violação dos princípios da ordem pública portuguesa.
Admitiríamos tal revisão, em abstrato, perante um pedido conjunto ou uma inequívoca declaração expressa de anuência pela requerida, manifestada proactivamente do lado ativo, como requerente, ou passivo, como requerida, caso em que consideraríamos ultrapassada a questão da posição desigual dos cônjuges.
Não é o caso.
Consideramos, assim, que por falta da verificação cumulativa dos requisitos necessários para a confirmação, previstos no artº 980º do CPC, tem o pedido de ser considerado improcedente.
Quanto à imputação das custas, considerando que o requerente decaiu no pedido, as custas ficam a seu cargo, nos termos do artº 527º, nº1, e 2, do CPC.
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Decisão:

Nestes termos, julgo improcedente o pedido de revisão e confirmação requerido.
Custas pelo requerente - artº 527º, nº1, e 2, do CPC.
Nos termos dos artsº 303º, nº1, e 306º, nº1, e 2, do CPC, fixo o valor da ação em €30.000,01.
Notifique, registe, e após trânsito em julgado cumpra-se o disposto no artº 78º, do Código do Registo Civil.
2024-12-23.
          

[1] Doutrinalmente, e negando tal violação da ordem internacional pública portuguesa vide Manuel Lopes, in “o reconhecimento de sentença estrangeira”, Revista Jurídica Portucalense, nº 34, páginas 173-176; Mariana Madeira da Silva Dias in “O reconhecimento do repúdio islâmico pelo ordenamento jurídico português: a exceção de ordem pública internacional”, na revista Julgar, nº 23, 2014, págs. 293-315.