Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
6315/22.0T8VNF-E.G1
Relator: ROSÁLIA CUNHA
Descritores: DECISÃO SURPRESA
OMISSÃO DE CONVITE AO APERFEIÇOAMENTO
DEVER DE GESTÃO PROCESSUAL
AÇÃO DE IMPUGNAÇÃO DA RESOLUÇÃO EM BENEFÍCIO DA MASSA INSOLVENTE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/09/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I - Do nº 4 do art. 590º do CPC resulta que o despacho de aperfeiçoamento dos articulados não é discricionário, estando afastada a possibilidade de o juiz optar entre proferir ou não tal despacho, posto que se trata de um despacho com caráter vinculado que tem obrigatoriamente que ser proferido desde que se verifique a hipótese normativa.
II - As deficiências passíveis de suprimento através do convite têm de ser estritamente formais ou de natureza secundária, sob pena de se reabrir a possibilidade de reformulação substancial da própria pretensão ou da impugnação e dos termos em que assentam (artigos 590.º, n.º 6 e 265.º, do CPC).
De outra forma, afrontar-se-ia o princípio da estabilidade da instância, previsto no art.º 260.º do CPC, nos termos do qual, após a citação do réu, a instância estabiliza-se quanto ao objeto e às partes, sendo legalmente limitada qualquer possibilidade de alteração objetiva ou subjetiva.
III - Não há que formular convite para a parte aperfeiçoar o pedido formulado na petição inicial numa situação em que tal implicaria a formulação de um novo pedido em violação das regras constantes dos arts. 260º, 265º, nº 2 e 590º, nº 6, do CPC.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, na 1ª secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

RELATÓRIO

AA intentou contra Massa Insolvente de BB ação de impugnação de resolução em benefício da massa insolvente pedindo que:

a) a ré seja condenada no reconhecimento do direito de propriedade da autora sobre o veículo marca ..., modelo ..., com a matrícula ..-SZ-.., desde ../../2017.
b) se declare que a autora atuou sempre de boa fé quando procedeu à aquisição do veículo automóvel;
c) seja ordenado o cancelamento de eventuais registos/pedidos de apreensão sobre o veículo de matrícula, peticionados pela ré;
sem prescindir,
d) que se declare que a autora é proprietária do referido veículo, por usucapião, nos termos e para os efeitos do artigo 1298º, al. a), 1ª parte do CC;
Alegou factualidade que, em seu entender, fundamenta os pedidos formulados.
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A ré deduziu contestação na qual impugnou a factualidade alegada e defendeu a improcedência dos pedidos.
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Realizou-se a audiência prévia e, em 5.10.2024, foi proferido despacho que:

a) fixou o valor da causa em € 15.000,01;
b) apreciou tabelarmente os pressupostos processuais;
c) apreciou o mérito da causa, por considerar que os autos continham todos os elementos necessários para o efeito, tendo entendido, além do mais e no essencial, que a ação de impugnação é uma ação de simples apreciação e que a “impugnação visa a negação dos factos invocados pelo administrador de insolvência para fundamentar a resolução que extrajudicialmente declarou” sendo que a “sentença a proferir na acção vocacionada à impugnação judicial da resolução não tem efeitos constitutivos” e “não abarca a possibilidade de ser proferida uma condenação da Ré massa insolvente”. Com base nesta fundamentação, aqui apertadamente sintetizada e reduzida ao essencial, julgou a ação improcedente.
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A autora não se conformou e interpôs o presente recurso de apelação, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

“1. Uma das grandes críticas que se faz nos corredores dos tribunais à reforma progressiva do processo civil, designadamente, quanto à supremacia da verdade material dos factos, sobre a dimensão formal, pelos “velhos do restelo” é que atualmente, e devido ao enunciado no artigo 590º do CPC, é que é quase suficiente “uma carta ao pai natal”, para que a ação vingue e exista até à prolação de uma decisão final, depois de decorrida a fase da audiência de julgamento.
2. As várias reformas do CPC vêm demonstrar que é necessário que todos os agentes processuais colaborem na descoberta da verdade material dos factos.
3. E que não se “mate” a ação, o direito de ação e defesa das partes.
4. Na prática, o dever de gestão processual e o dever de aplicar a verdade material às decisões implica que os senhores juízes promovam convites às partes, esclarecimentos, respostas às excepções, entre outras, ao longo das várias fases processuais.
5. O despacho saneador do tribunal a quo é incompatível com a dinâmica do iter legislativa e das progressivas reformas, motivo pelo qual criou tanta estupefação e surpresa.
6. O despacho saneador está ferido de nulidade, nos termos supra expostos.
7. O tribunal a quo poderia e deveria ter convidado a A. a aperfeiçoar ou reformular o seu pedido e não, como fez, proferindo uma decisão surpresa no despacho saneador sentença.
8. O despacho em apreço, é assim, é nulo, nos termos e para os efeitos do artigo 195º, 197º, 199º e 590.ᵒ, n.ᵒ 2, alíneas a) e b) e 3, todos do Código de Processo Civil.
9. Destarte, incumbia ao tribunal a quo, findos os articulados, aferir da necessidade de convidar as partes a corrigir imprecisões ou suprir insuficiências dos articulados, in casu, da petição inicial.
10. O convite ao aperfeiçoamento de articulados, nos termos do nº 4 do art. 590º do CPC, é um dever a que o juiz está sujeito e cujo não cumprimento acarreta uma nulidade processual.
11. Assim, dúvidas não restam de que se impõe a anulação da decisão recorrida, sendo a mesma substituída por outra, que se traduza no convite ao suprimento da apontada deficiência na formulação do pedido.
12. No caso concreto, segundo o tribunal a quo, verificou-se uma mera dissonância entre o pedido e a causa de pedir.
13. Dissonância essa que consubstancia uma deficiência na formulação do pedido, a qual, salvo devido respeito por douto entendimento, não compromete a aptidão da petição inicial.
14. Carecia, assim, o Juiz de proferir um despacho de aperfeiçoamento.
15. Não o tendo feito, ocorreu uma violação do princípio da cooperação e do dever de gestão processual imposto pelos artigos 6.º e 590.º, n.ºs 2, 3 e 4 do C.P.Civil, gerando a dita nulidade processual.”

Terminou pedindo a revogação do despacho recorrido e a sua substituição por outro que convide a recorrente a suprir a apontada deficiência na formulação do pedido, nos termos do disposto no artigo 590.º, nº 3 do CPC.
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A massa falida de “BB” contra-alegou, pugnando pela manutenção da decisão recorrida, tendo apresentado as seguintes conclusões:

“1 - Improcedem todas as conclusões formuladas pela Autora recorrente.
2 – Dado as mesmas atentarem contra as normas dos arts. 200º, 3; 10º, 2; 6º, 2; 264º; 265º; 591º, todos do CPC.”
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O recurso foi admitido na 1ª instância como de apelação, a subir imediatamente nos próprios autos, com efeito devolutivo, não tendo sido objeto de alteração neste Tribunal da Relação.
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Foram colhidos os vistos legais.

OBJETO DO RECURSO

Nos termos dos artigos 635º, nº 4 e 639º, nº 1, do CPC, o objeto do recurso está delimitado pelas conclusões contidas nas alegações do recorrente, estando vedado ao Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que as mesmas sejam de conhecimento oficioso, sendo que o Tribunal apenas está adstrito à apreciação das questões suscitadas que sejam relevantes para o conhecimento do objeto do recurso.
Nessa apreciação o Tribunal de recurso não tem que responder ou rebater todos os argumentos invocados, tendo apenas de analisar as “questões” suscitadas que, por respeitarem aos elementos da causa, definidos em função das pretensões e causa de pedir aduzidas, se configurem como relevantes para conhecimento do respetivo objeto, excetuadas as que resultem prejudicadas pela solução dada a outras.
Por outro lado, o Tribunal não pode conhecer de questões novas, uma vez que os recursos visam reapreciar decisões proferidas e não analisar questões que não foram anteriormente colocadas pelas partes.

Neste enquadramento, a questão a decidir consiste em saber se o tribunal a quo proferiu uma decisão surpresa e, por isso, ferida de nulidade, por não ter convidado a autora a aperfeiçoar ou reformular o pedido.

FUNDAMENTAÇÃO

FUNDAMENTOS DE FACTO

Na 1ª instância foram considerados provados os seguintes factos, que aqui se transcrevem nos seus exatos termos:

A. BB foi declarado insolvente por sentença, proferida a 12-07-2023, no processo principal, já transitada em julgado.
B. O insolvente transmitiu a propriedade do veículo ligeiro de passageiros, de matrícula ..-SZ-.., para a autora, em 09.12.2021.
C. Foi registada a propriedade a favor da autora.
D. A autora não pagou ao insolvente BB qualquer valor pela transmissão da propriedade referida em B.
E. A autora é filha do insolvente BB.
F. Por comunicação escrita datada de 17-11-2023, o Sr. Administrador de Insolvência de BB, procedeu à resolução do negócio subjacente ao registo de transmissão de propriedade do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-SZ-.. porque realizado gratuitamente.
E. Daquela missiva, constava o seguinte:

“Exma. Senhora,
CC (…) CC, na qualidade de Administrador Judicial da Insolvência do processo supra identificado, (…), vem declarar a resolução em beneficio da massa insolvente do Negócio que ao adiante se identificará, que importou a transferência de propriedade para V. Exa. do veiculo ligeiro de passageiros de matricula ..-SZ-.., que ao insolvente, supra identificado, pertencia, cujo registo a favor foi realizado em 09.12.2021, resolução que se declara nos termos das disposições conjugadas dos artigos 120º n.º 1 a 5 e 121º, n.º 1 al.b), todos do CIRE.
Do limite temporal para a resolubilidade do acto:
Em 12 de julho de 2023, por aliás douta sentença proferida nos autos de insolvência supra identificados foi declarado insolvente BB, NIF ...41, a mesma já transitada em julgada, tendo-se no mesmo dia precedido à publicação do respectivo anúncio (…).
Está, portanto, em tempo o signatário como expressamente por esta via o faz, para declarar, desde já, a resolução do negócio jurídico de transição para V. Exa. da propriedade e titularidade do veículo ligeiro de passageiros, de matricula ..-SZ-.., que ao agora insolvente pertencia, conforme o disposto no n.º 1 do artigo 123º do CIRE, nos termos que a seguir se elencarão.
Da prejudicialidade para a massa envolvente:
Com a concretização do negócio celebrado, o signatário não alcançou convencer-se, desde logo, da sua onerosidade, aliás sequer que o veiculo não passasse a pertencer ao insolvente logo quando a seu favor o mesmo ficou registado em ../../2017, havendo de infra expender outras especiais considerações sobre o mesmo, não surtindo qualquer evidencia que o veiculo por ele titulado não tivesse por si pago, fazendo até tal titularidade, presunção da sua titularidade, aduzindo que ao signatário não foi exibido qualquer meio de prova que evidencie que tal veiculo tenha sido por V. Exa. pago, circunstanciando-se o ato de transmissão aqui posto em crise como a título gratuito e i.é. doação.
(…)
Por conseguinte, concluiu nesta senda o aqui signatário em razão da gratuidade do negócio que é posto em crise, como está convencido, a transmissão do veiculo ligeiro de passageiros, de matricula ..-SZ-.. realizado o seu registo em 09.12.2021, é resolúvel incondicionalmente e assim desde já por essa razão resolvido expressamente se declara porque, violando o regime jurídico que lhes respeita, no âmbito do CIRE, em período critico (dentro dos dois anos anteriores à data do inicio do processo de insolvência) tendo procedido o agora insolvente à alienação do bem móvel a V. Exia. Sem que para ele tenha ocorrido qualquer contrapartida económica, importando por isso a atribuição patrimonial apenas para uma das partes, id est,

,V. Exia.

Com o negócio realizado e aqui posto em crise consumou-se o desvio do património do insolvente do veiculo que dele foi objecto, quando dessa transmissão que ocorreu gratuitamente, como até V. Exia já reconheceu, consumando-se a sonegação de ativo que deveria integrar a massa insolvente, daí resultando a frustração/ou diminuição da satisfação dos credores da insolvência que à época, era já evidente, requerida que foi em 13.10.2022.
Diga-se aliás, por manifesta prudência se invocando, concretizado o ajuste com a evidência supra aludida, mas induzindo-se do conteúdo declarativo no requerimento usado para o seu registo a favor de V. Excia, que a transmissão se operou por "compra-e-venda", tal consubstancia negócio simulado e por isso nulo, (nos termos do artigo 286.º do Código Civil invocável a todo o tempo) consignando depois o n. º10 1 do artigo 241. º do Código Civil: "quando sob o negócio simulado exista um outro que as partes quiseram realiz.ar, é aplicável a este o regime que lhe corresponderia se fosse concluído sem dissimulação, não sendo a sua validade prejudicada pela nulidade do negócio simulado".
Assim, no que à resolução do negócio a favor da massa insolvente que aqui se declara sobretudo importa, o negócio dissimulado que foi realizado alegando tê-lo sido de compra-e-venda, faz incidir uma presunção de prejudicialidade que nem sequer admite legalmente prova em contrário, é ius et iure.
Sem prejuízo de tudo o que se deixou dito, e sem conceder, caso o negócio em apreço não fosse enquadrado no âmbito da resolução incondicional, como aqui se invoca "tout court" ao abrigo do artigo 121.º, n.º l alínea b), a transmissão gratuita do veículo para a propriedade de V. Excia não se eximirá à sua subsunção na sua resolução condicional, tal porque, atendendo ao curto hiato de tempo entre a celebração desse negócio e depois o início dos autos de insolvência, sendo V. Excia filha do insolvente, a má fé da V. parte na sua celebração é legalmente presumida (nos termos e para os efeitos do considerando no artigo 120.º n.º 4 do CIRE), fazendo-se presumir, assim, que v. Excia tinha perfeito conhecimento das circunstâncias previstas nas alíneas a) ou b) n.º 5 do artigo 120.º do CIRE.
a) A situação de insolvência do devedor (vide art.º 3.º do CIRE);
b) Da prejudicialidade do ato e da situação de insolvência iminente do devedor (cfr. art.º 3.º n. º 4 do CIRE)-prejudicialidade essa definida no n.º 2 do artigo 120.º do CIRE e que é presumida ius et iure pelo seu n.º 3.
Com a celebração do negócio em questão, o Insolvente viu-se privado de ativo com valor relevante, contribuindo tal ato para a sua situação de insolvência ou agravando-a, prejudicando todos os Credores do Insolvente.

MÁ-FÉ:

No cumprimento do n.º 1 do artigo 120.º do CIRE, podem ser resolvidos em beneficio da Massa Insolvente os atos prejudiciais à Massa praticados ou omitidos dentro dos dois anos anteriores à data do início do Processo de Insolvência.
Sendo que no n.º 2 consideram-se prejudiciais à Massa os atos que diminuam ou retardem a satisfação dos Credores da Insolvência.
No n. º 3, como o já referido, presumem-se prejudiciais à massa, sem admissão de prova em contrário, os atos de qualquer tipo referidos no artigo 121.º do mesmo Código, ainda que praticados ou omitidos fora dos prazos aí contemplados.
No n.º 4 conclui-se que a resolução pressupõe a má-fé do terceiro, a qual se presume quanto a atos cuja prática ou omissão tenha ocorrido dentro dos dois anos anteriores ao início do Processo de Insolvência e em que tenha participado ou de que tenha aproveitado pessoa especialmente relacionada com o Insolvente, ainda que a relação especial não existisse a essa data, o que é manifestamente o caso em apreço.
No n.º 5 do mesmo artigo, entende-se por má-fé o conhecimento, à data do ato, das seguintes circunstâncias:
- De que o devedor se encontrava em situação de insolvência;
- Do caracter prejudicial do ato e de que o devedor se encontrava à data em situação de insolvência iminente.
- Do início do processo de insolvência.
Entendendo-se, como se entende, porque nenhuma evidência para si resultou que alguma quantia tinha sido entregue por V. Excia. ao Insolvente com a transmissão do veículo para a V. propriedade, nem antes sequer, não correspondendo à verdade também a declaração da sua onerosidade evidenciada no requerimento para o seu registo a V /favor, essa factualidade como resolução de atos gratuitos encontra-se, como o predito, prevista na alínea b) do n. 0 1 do artigo 121. º do CIRE, pelo que a má-fé, tal qual a prejudicialidade fica demonstrada por natureza, ius et iure.

Então atenda-se ainda:

Pela relação familiar tão estreita de V. Excia com o insolvente não podia deixar de manter um conhecimento muito estreito quanto situação económica e financeira do Insolvente, uma realidade deveras debilitada que levou à sua declaração de insolvência.
Ora, não ignorava nem podia ignorar a situação de tanta debilidade económico-financeira que atravessava o senhor V/ pai.
Tão próxima se encontrava, teria inegavelmente de perceber as dificuldades económicas e financeiras em que o Insolvente atravessava, que se encontrava situação de geral incumprimento das suas dívidas.
Não podia ignorar, não é nada crível, que ao adquirir o bem móvel cujo negócio é objeto da /v'I presente declaração de resolução, ademais gratuitamente, conhecendo que a insolvência do devedor era atual ou iminente, está por demais provada a má-fé, presumida legalmente, pela especial relação de descendente direta do devedor.
Assim, só se pode concluir, conduziu-se V. Excia de manifesta má-fé quando realizou o negócio posto em crise com o Insolvente.
Mercê de tudo aquilo quanto antecedentemente se deixou arrimado, resolve-se o negócio de transmissão de propriedade do veículo ligeiro de passageiros de matrícula ..-SZ-.., cujo registo a V/ favor foi realizado em 09.12.2021, nos termos evidenciados supra, primeiro com base na al. b) do n.º 1 do artigo 121. º do CIRE, porque realizado gratuitamente, ou porque simulada a declaração do seu registo como "compra-e-venda" se tratasse dissimulada, está nele dissimulado o ato gratuito da sua transmissão para V. Excia que se celebrou em período crítico, e, sem conceder, também fundada a sua resolução nos termos do artigo 120.º n.º s 1 a 5 do mesmo Código.
Informo ainda V. Excia de que nos termos e para os efeitos do preceituado no artigo 125.º do CIRE, dispõe do prazo de 3 (TRÊS) meses para impugnar a presente resolução, devendo fazê-lo nos próprios autos de insolvência.”

FUNDAMENTOS DE DIREITO

A recorrente considera que a decisão recorrida se encontra ferida de nulidade, por constituir uma decisão surpresa, defendendo que o dever de gestão processual impunha que o tribunal a quo proferisse despacho convidando-a a aperfeiçoar os pedidos formulados.

Não vindo a recorrente discutir no recurso a existência de qualquer violação do princípio do contraditório por as partes não terem sido ouvidas previamente à prolação da decisão de mérito, mas tão só que a decisão constitui decisão surpresa por não ter sido proferido despacho de convite ao aperfeiçoamento do pedido, em violação do dever de gestão processual legalmente consagrado, será unicamente nesta perspetiva que a questão será analisada.

O dever de gestão processual encontra-se genericamente previsto no art. 6º, do CPC, o qual estabelece que:
 1 - Cumpre ao juiz, sem prejuízo do ónus de impulso especialmente imposto pela lei às partes, dirigir ativamente o processo e providenciar pelo seu andamento célere, promovendo oficiosamente as diligências necessárias ao normal prosseguimento da ação, recusando o que for impertinente ou meramente dilatório e, ouvidas as partes, adotando mecanismos de simplificação e agilização processual que garantam a justa composição do litígio em prazo razoável.
2 - O juiz providencia oficiosamente pelo suprimento da falta de pressupostos processuais suscetíveis de sanação, determinando a realização dos atos necessários à regularização da instância ou, quando a sanação dependa de ato que deva ser praticado pelas partes, convidando estas a praticá-lo.

Como concretização deste dever geral de gestão processual, dispõe o art. 590º, do CPC, relativamente à gestão inicial do processo, que:

2 - Findos os articulados, o juiz profere, sendo caso disso, despacho pré-saneador destinado a:
a) Providenciar pelo suprimento de exceções dilatórias, nos termos do n.º 2 do artigo 6.º;
b) Providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, nos termos dos números seguintes;
c) Determinar a junção de documentos com vista a permitir a apreciação de exceções dilatórias ou o conhecimento, no todo ou em parte, do mérito da causa no despacho saneador.
3 - O juiz convida as partes a suprir as irregularidades dos articulados, fixando prazo para o suprimento ou correção do vício, designadamente quando careçam de requisitos legais ou a parte não haja apresentado documento essencial ou de que a lei faça depender o prosseguimento da causa.
4 - Incumbe ainda ao juiz convidar as partes ao suprimento das insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada, fixando prazo para a apresentação de articulado em que se complete ou corrija o inicialmente produzido.

A formulação do nº 4 do art. 590º deixa absolutamente claro que o despacho de aperfeiçoamento dos articulados não é discricionário, estando afastada a possibilidade de o juiz optar entre proferir ou não tal despacho, posto que se trata de um despacho com caráter vinculado que tem obrigatoriamente que ser proferido desde que se verifique a hipótese normativa.

Compreende-se que assim seja porquanto, como é sabido, a filosofia subjacente ao Código de Processo Civil visa assegurar a prevalência do fundo sobre a forma, estabelecendo mecanismos que permitam que a tramitação processual tenha a maleabilidade e flexibilidade necessárias para que se consiga alcançar a verdade material e a concretização dos direitos das partes.
Tal filosofia veio a ser progressivamente introduzida com a reforma operada com o DL nº 329-A/95, de 12/12, estando ainda mais reforçada no atual CPC.
Refere-se no preâmbulo do referido DL nº 329-A/95, que as linhas mestras do processo assentam, designadamente na “garantia de prevalência do fundo sobre a forma, através da previsão de um poder mais interventor do juiz…”; e que “visa, deste modo, a presente revisão do Código de Processo Civil torná-lo moderno, verdadeiramente instrumental no que toca à perseguição da verdade material, em que nitidamente se aponta para uma leal e sã cooperação de todos os operadores judiciários, manifestamente simplificado nos seus incidentes, providências, intervenção de terceiros e processos especiais, não sendo, numa palavra, nem mais nem menos do que uma ferramenta posta à disposição dos seus destinatários para alcançarem a rápida, mas segura, concretização dos seus direitos”; refere-se ainda o “…objectivo de ser conseguida uma tramitação maleável, capaz de se adequar a uma realidade em constante mutação…” e afirma-se que o processo civil terá que ser perspetivado “…como um modelo de simplicidade e de concisão, apto a funcionar como um instrumento, como um meio de ser alcançada a verdade material pela aplicação do direito substantivo, e não como um estereótipo autista que a si próprio se contempla e impede que seja perseguida a justiça, afinal o que os cidadãos apenas pretendem quando vão a juízo”.
De relembrar ainda outras vertentes do dever de gestão processual que são salientadas no Acórdão da Relação de Lisboa, de 5.7.2018 (P 4508/10.1TBOER-B.L1-7 in www.dgsi.pt), onde se escreve que “conforme refere Teixeira de Sousa, “a gestão processual visa diminuir os custos, o tempo e a complexidade do procedimento. Tal gestão pressupõe um juiz empenhado na resolução célere e justa da causa, e traduz-se um aspeto substancial – a condução do processo – e num aspeto instrumental – a adequação formal (cf. art. 547º). O dever de gestão processual procura ajudar a solucionar a “equação processual”: uma decisão justa do processo com os menores custos, a maior celeridade e a menor complexidade que forem possíveis do caso concreto”.
Ainda de acordo com o mesmo Autor, “o aspeto substancial do dever de gestão processual expressa-se no dever de condução do processo que recai sobre o juiz, dever que é justificado pela necessidade de o juiz providenciar pelo andamento célere do processo (cf. art. 6º, nº 1). Para a obtenção desse fim, deve o juiz (...) promover as diligências necessárias ao normal prosseguimento da acção e recusar o que for impertinente ou meramente dilatório (art. 6º, nº 1); (...) pode falar-se de um poder de “direção do processo” e de um poder de “correção do processo”.

Pese embora estes objetivos e estas linhas mestras do direito processual civil, entendemos que o dever de gestão processual não pode ter um alcance tal que leve a que o tribunal se substitua às partes e defina ele próprio os termos e trâmites processuais a seguir para que seja exercido determinado direito. No nosso sistema jurídico vigoram o princípio do dispositivo e o princípio da autorresponsabilização das partes, os quais não podem ser postergados por uma amplitude exacerbada no preenchimento do conteúdo do dever de gestão processual.

Concretizando e analisando o art. 590º, do CPC, o mesmo em lado algum refere a possibilidade de haver convite ao aperfeiçoamento do pedido. A al. b) do nº 2 refere que deve ser proferido despacho pré-saneador destinado a providenciar pelo aperfeiçoamento dos articulados, mas esse aperfeiçoamento é efetuado nos moldes dos nºs 3 a 6.
Aí não se enquadra o convite ao aperfeiçoamento do pedido, apenas estando prevista a possibilidade de convite ao suprimento de insuficiências ou imprecisões na exposição ou concretização da matéria de facto alegada (nº 4).

Mas, mesmo que se considerasse que o art. 590º, nº 2, al. b) permitiria o convite ao aperfeiçoamento do pedido, há que ter em conta que o nº 6 desse artigo impõe que se respeitem os limites previstos no art. 265º.
Assim, na hipótese de aperfeiçoamento da matéria de facto, por força do art. 265º, nº 1, não havendo acordo, o autor não pode aproveitar o convite formulado para apresentar um articulado aperfeiçoado no qual altere ou modifique a causa de pedir, a menos que o faça em consequência de confissão feita pelo réu e aceite pelo autor.
E, no que toca ao pedido, por força do art. 265º, nº 2, ele pode ser reduzido em qualquer altura e pode ser ampliado até ao encerramento da discussão em 1ª instância, mas apenas se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.
Fora dessas situações legalmente previstas, o pedido não pode ser unilateralmente modificado pelo autor após a citação do réu face ao princípio da estabilidade da instância previsto no art. 260º, do CPC.
Como referido no acórdão do Tribunal da Relação do Porto, de 9.1.2023 (P 778/21.8T8AMT-A.P1 in www.dgsi.pt), “em regra, o âmbito do aperfeiçoamento do articulado apenas pode ter por objecto o suprimento de pequenas omissões ou meras imprecisões ou insuficiências na alegação da matéria de facto, sob pena de completa subversão do princípio dispositivo, o que justifica as limitações impostas pelo citado nº 6 do artigo 590.º.
Aliás, em rectas contas, o citado nº 6 do artigo 590.º mais não faz do que manter o princípio da estabilidade da instância a que se refere o artigo 260.º do CPCivil, isto é, citado o Réu a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei” (sublinhado nosso).

No mesmo alinhamento de ideias, refere o acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 24.1.2019 (P 573/18.1T8SXL.L1-6 in www.dgsi.pt), que “[o] princípio da cooperação deve ser conjugado com os princípios do dispositivo e da auto-responsabilidade das partes, que não comporta o suprimento por iniciativa do juiz da omissão de indicação do pedido ou de alegação de factos estruturantes da causa de pedir.
O convite ao aperfeiçoamento de articulados previsto no artigo 590.º, n.ºs 2, alínea b), 3 e 4, do CPC,  (...) destina-se somente a suprir irregularidades dos articulados, designadamente quando careça de requisitos legais, imperfeições ou imprecisões na exposição da matéria de facto alegada.
As deficiências passíveis de suprimento através do convite têm de ser estritamente formais ou de natureza secundária, sob pena de se reabrir a possibilidade de reformulação substancial da própria pretensão ou da impugnação e dos termos em que assentam (artigos 590.º, n.º 6 e 265.º, do CPC).
De outra forma, afrontar-se-ia o princípio da estabilidade da instância, previsto no art.º 260.º do CPC, nos termos do qual, após a citação do réu, a instância estabiliza-se quanto ao objecto e às partes, sendo legalmente limitada qualquer possibilidade de alteração objectiva ou subjectiva” (sublinhado nosso).

A instância consiste na relação jurídica, por natureza dinâmica, existente entre cada uma das partes e o tribunal, bem como entre as próprias partes na pendência da causa, a qual é identificada por elementos objetivos e por elementos subjetivos. A instância inicia-se com a propositura da ação, tendo como objeto o pedido, fundado na causa de pedir, um e outro apenas modificáveis nos termos dos arts. 264º a 268º e 588º do CPC, nela assumindo um papel estruturante o princípio do dispositivo (cf. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in CPC Anotado, Vol. 1º, 4ª ed., págs. 517 e 518).

A instância é inicialmente delimitada e conformada pelo autor (com a receção da petição inicial na secretaria) quer relativamente aos elementos subjetivos, ou seja, quanto às pessoas demandadas, quer relativamente aos elementos objetivos, ou seja, quanto ao pedido formulado e fundado numa causa de pedir individualizada e concretizada. Essa conformação pode ser alterada pelo autor, mediante modificação dos sujeitos ou do objeto da ação, até à citação do réu, ato a partir do qual a relação jurídica se converte de bilateral em triangular. Após a citação, o réu fica constituído como parte e a instância estabiliza-se no tocante aos seus elementos subjetivos e objetivos e apenas será alterável na medida em que a lei, geral ou especial, o permita (cf. Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in ob. cit. págs. 518 e 519).

Trata-se do princípio da estabilidade da instância consagrado no art. 260º, do CPC, segundo o qual, citado o réu, a instância deve manter-se a mesma quanto às pessoas, ao pedido e à causa de pedir, salvas as possibilidades de modificação consignadas na lei.

Como já anteriormente referido, no que respeita à alteração do pedido rege o art. 265º, nº 2, do CPC, o qual dispõe que o autor pode, em qualquer altura, reduzir o pedido e pode ampliá-lo até ao encerramento da discussão em 1.ª instância se a ampliação for o desenvolvimento ou a consequência do pedido primitivo.

Não sendo lícito ao autor modificar o pedido, salvo nas situações atrás referidas, não pode o tribunal dirigir-lhe convite para a prática de uma faculdade que a lei não lhe concede e que, inclusivamente, lhe veda por via do princípio da estabilidade da instância.

Deste modo, o despacho de aperfeiçoamento cuja prolação a lei impõe ao juiz não pode servir para remediar o facto de a autora não ter formulado na petição inicial um pedido adequado a uma ação de impugnação da resolução em benefício da massa insolvente, pois a mesma não formula qualquer pedido nesse sentido, tendo antes formulado os pedidos de condenação supra transcritos nos quais pede a condenação da massa no reconhecimento do seu direito de propriedade sobre o veículo, com o consequente cancelamento de eventuais registos e pedidos de apreensão da massa quanto ao mesmo.
Não se trata, no caso concreto, de uma mera imprecisão ou deficiência na formulação do pedido que pudesse ser remediada com uma mera explicação ou concretização do pedido. Trata-se antes de uma total ausência de formulação do pedido de impugnação da resolução efetuada pelo administrador da insolvência, pelo que o convite implicaria a formulação de um pedido absolutamente novo e distinto dos pedidos inicialmente formulados, não enquadrável no conceito de mera consequência ou desenvolvimento dos pedidos primitivos.
E tal solução, a ser admitida, violaria, de forma frontal, o princípio da estabilidade da instância expressamente previsto no artigo 260.º e a segurança que o mesmo visa garantir aos intervenientes processuais, esvaziando de conteúdo prático o próprio princípio da autorresponsabilidade das partes, além de que afrontaria as normas processuais que disciplinam, de forma inderrogável, a matéria em causa. E os princípios da celeridade processual e da prevalência da decisão de mérito sobre a decisão formal em caso algum se poderiam sobrepor às normas processuais que, de modo perentório, regulam a dedução dos pedidos (cf. acórdão da Relação do Porto de 27.10.2022, P 1218/21.8T8AMT-A.P1 in www.dgsi.pt).

Por conseguinte, e em síntese, não há que formular convite para a parte aperfeiçoar o pedido formulado na petição inicial numa situação em que tal implicaria a formulação de um novo pedido em violação das regras constantes dos arts. 260º, 265º, nº 2 e 590º, nº 6, do CPC.

Consequentemente, o recurso improcede.
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Nos termos dos n.ºs 1 e 2 do artigo 527.º, do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa, entendendo-se que lhes deu causa a parte vencida, na respetiva proporção, ou, não havendo vencimento, quem do processo tirou proveito.
Tendo o recurso sido julgado improcedente, é a recorrente responsável pelo pagamento das custas, em conformidade com a disposição legal citada.

DECISÃO

Pelo exposto, acordam os juízes deste Tribunal da Relação em julgar a apelação improcedente, confirmando a decisão recorrida.
Custas da apelação pela recorrente.
Notifique.
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Guimarães, 9 de janeiro de 2025

(Relatora) Rosália Cunha
(1º/ª Adjunto/a) Susana Raquel Sousa Pereira
(2º/ª Adjunto/a) Gonçalo Oliveira Magalhães