Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
389/20.5T8VRL.G1
Relator: VERA SOTTOMAYOR
Descritores: ACIDENTE DE TRABALHO MORTAL
TRABALHADOR INDEPENDENTE
ABRANGÊNCIA DO CONTRATO DE SEGURO
VIOLAÇÃO DAS REGRAS DE SEGURANÇA
ALCÓOL
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 12/02/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO SOCIAL
Sumário:
I. Um dos critérios fundamentais, que não o único, para aferir a abrangência do seguro de natureza laboral, com a consequente aplicação do respectivo regime (NLAT) relativamente aos trabalhadores independentes tem necessariamente de ser o da actividade objecto do contrato de seguro à qual a actividade exercida tem de subsumir no momento do sinistro.
II. Se se pretende imputar uma responsabilidade por inobservância das regras de segurança ao sinistrado, é necessário alegar e provar o circunstancialismo preciso em que ocorreu o acidente, designadamente no que respeita às condições de segurança que o sinistrado estava obrigado a observar, por forma a permitir concluir que houve um efectivo incumprimento dessas regras.
III. Não permitindo a factualidade provada estabelecer o nexo de causalidade entre o estado de embriaguez e o acidente, o facto do sinistrado, na altura, ser portador de uma taxa de álcool no sangue de 1,94% só por si não é suscetível de descaraterizar o acidente de trabalho e conduzir à sua não reparabilidade.

Vera Sottomayor
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Guimarães

APELANTE: SEGURADORA ...
APELADA: M. P. e OUTRO

Comarca de Vila Real, Juízo do Trabalho de Vila Real – Juiz 1

I – RELATÓRIO

Frustrada a tentativa de conciliação, M. P., residente na Rua … Montalegre e T. P., residente na Rua … Braga, instauraram a presente ação especial emergente de acidente de trabalho contra SEGURADORA ... , com sede na Av. … Lisboa, pedindo a condenação da Ré a pagar:

À 1ª Autora:
a) - pensão anual vitalícia, conforme referido em d.1) da petição inicial:
a.1 - no valor de € 2.339,40 (dois mil, trezentos e trinta e nove euros e quarenta cêntimos) até à idade da reforma por velhice
a.2 - no valor de € 3.119,20 (três mil, cento e dezanove euros e vinte cêntimos), a partir da idade da reforma, ou da verificação de deficiência ou doença crónica que afete sensivelmente a sua capacidade para o trabalho
a.3 - dos juros vencidos e vincendos contados desde 13.12.2017, até efectivo pagamento
b - subsídio por morte, conforme referido em d.2) desta petição inicial:
b.1 - no valor de € 5.561,42 (cinco mil, quinhentos e sessenta e sessenta e um euros e quarenta e dois cêntimos)
b.2 - dos juros de mora vencidos e vincendos até efetivo pagamento
c - subsídio por despesas de funeral, conforme referido em d.3) desta petição
inicial:
c.1 - no valor de € 1.853,81
c.2 - dos juros vencidos e vincendos até efetivo pagamento
d - despesas de transporte, conforme referido em d.4) desta petição inicial:
d.1 - no valor de € 40,00 (quarenta euros)
e - indemnização, a título de danos não patrimoniais, de valor nunca inferior a € 40.000,00 (quarenta mil euros), conforme referido em d.5) desta petição inicial
f - o concreto valor devido à autora, neste âmbito, deve ser apurado a final

Ao 2.º Autor:
- indemnização, a título de danos não patrimoniais, em valor nunca inferior a € 25.000,00 (vinte e cinco mil euros)

Caso assim não se entenda,
condenar-se a Ré a pagar à autora M. P., as seguintes quantias, referentes a:
a - pensão anual vitalícia, conforme referido em d.1) desta petição inicial:
a.1 - no valor de € 2.339,40 (dois mil, trezentos e trinta e nove euros e quarenta cêntimos) até à idade da reforma por velhice
a.2 - no valor de € 3.119,20 (três mil, cento e dezanove euros e vinte cêntimos), a partir da idade da reforma, ou da verificação de deficiência ou doença crónica que afete sensivelmente a sua capacidade para o trabalho
a.3 - dos juros vencidos e vincendos contados desde 13.12.2017, até efectivo pagamento
b - subsídio por morte, conforme referido em d.2) desta petição inicial:
b.1 - no valor de € 5.561,42 (cinco mil, quinhentos e sessenta e sessenta e um euros e quarenta e dois cêntimos)
b.2 - dos juros de mora vencidos e vincendos até efetivo pagamento
c - subsídio por despesas de funeral, conforme referido em d.3) l:
c.1 - no valor de € 1.853,81
c.2 - dos juros vencidos e vincendos até efetivo pagamento
d - despesas de transporte, conforme referido em d.4):
d.1 - no valor de € 40,00 (quarenta euros)

Tal como se alega, em síntese, na sentença recorrida, o sinistrado H. F. faleceu em -/12/2017, quando, cerca das 14h40 horas, na sua própria casa em Montalegre, se encontrava a realizar trabalhos de construção civil, sofreu uma queda de cerca de 3 metros de altura, o que lhe veio a provocar lesões que lhe determinaram a morte. Acresce ainda dizer que o sinistrado havia transferido a sua responsabilidade infortunística para a Ré seguradora mediante contrato de seguro válido e eficaz à data do sinistro pela remuneração anual de €7.798,00.
Concluem os Autores pela condenação da Ré Seguradora a pagar-lhes os montantes indemnizatórios peticionados, na medida da sua responsabilidade.
Regularmente notificada, a Ré contestou, alegando em resumo que o falecido sinistrado contratou com a própria um contrato de seguro de trabalhadores independentes, tendo o acidente ocorrido exclusivamente por violação de regras de segurança pelo próprio sinistrado, pelo que deverá ser descaracterizado. Por outro lado, uma vez que o sinistrado estava a trabalhar numa obra que levava a cabo na sua própria casa, não exercendo na altura qualquer actividade lucrativa, o acidente não se encontra coberto pelo contrato de seguro.
Conclui a Ré Seguradora no sentido de que a acção deverá ser julgada improcedente, com a sua consequente absolvição de todos os pedidos formulados pelos AA.
*
Os autos prosseguiram os seus ulteriores termos tendo por fim sido proferida sentença, a qual terminou com o seguinte dispositivo:

“Tudo visto e nos termos expostos, julgam-se procedentes por provados os pedidos formulados pelos aqui AA., condenando-se a R. SEGURADORA ... no pagamento de pensão anual e vitalícia à 1ª A., M. P. montante de € 2.339,40 (dois mil trezentos e trinta e nove euros e quarenta cêntimos), até à idade da sua reforma e 40% a partir daí (equivalente a € 3.119,20); acrescida da quantia de €5.561,42 (cinco mil quinhentos e sessenta e um euros e quarenta e dois cêntimos) a título de subsídio por morte; da quantia de € 1.853,81 (mil oitocentos e cinquenta e três euros e oitenta e um cêntimos) a título de indemnização pelas despesas com o funeral e as despesas com deslocações suportadas pela aqui demandante e que ascendem a € 40,00 (quarenta euros).
No mais, absolve-se a R. dos pedidos formulados pelos AA.
Custas por mabas as partes na proporção do respectivo decaimento, fixando-se o mesmo em 4/5 para a R. e 1/5 para os AA. – cfr. art. 446º do C.P.C.
Fixa-se aos autos o valor de € 41.161,10.
Registe e notifique.”

Inconformada com esta decisão, dela veio a Ré Seguradora interpor recurso para este Tribunal da Relação de Guimarães, apresentando alegações que terminam com as seguintes conclusões:

1. O sinistrado sofreu um acidente quando realizava trabalho de construção civil na sua própria casa, sita na Rua ..., Montalegre;
2. O sinistrado exercia a atividade de construção civil por conta própria, tendo celebrado com a R. seguradora contrato de seguro de acidentes de trabalho, titulado pela apólice nº ........, pela remuneração anual de 7.798,00, válida e eficaz à data do sinistro;
3. O sinistrado apresentava, aquando do sinistro, uma TAS de 1,94 g/l+-0,25 g/l.;
4. O sinistrado, na data e hora do sinistro, estava a tapar com cimento e tijolo a parte superior duma janela, situada no 1º andar da sua moradia;
5. Na execução dessa tarefa o sinistrado, através de uma escada de alumínio, procedeu aos trabalhos no topo superior dessa janela, debruçando-se sobre o parapeito interior da mesma;
6. O sinistrado caiu da referida janela duma altura de cerca de três metros para o exterior, tendo embatido violentamente com a cabeça no chão;
7. O sinistrado, na data e hora do sinistro, encontrava-se na varanda do seu imóvel, a cerca de quatro metros do solo, a fim de colocar uns tijolos na parte superior dessa varanda, utilizando para o efeito uma escada de encostar;
8. O sinistrado não utilizava qualquer outro dispositivo de segurança e, quando se encontrava na parte mais alta do escadote, desequilibrou-se e caiu desamparado no solo onde bateu com a cabeça;
9. No estado de alcoolemia em que se encontrava o sinistrado, existe um estado de exagerada euforia, os reflexos são acentuadamente perturbados, o tempo de reação é prolongado e o risco de acidente aumenta mais de 16 vezes.
10.Dos factos provados é de concluir que o sinistrado violou as condições de segurança estabelecidas por lei para o risco de queda em altura e que o acidente não se encontrava garantido pela apólice de seguro celebrada com a ré.
11.O sinistrado exercia a atividade de construção civil por conta própria e, por isso, sabia quais as condições de segurança que deveria respeitar, nomeadamente a utilização de dispositivo ou equipamento que prevenisse o risco de queda em altura.
12.E o sinistrado tinha perfeito conhecimento do perigo que poderia resultar do ato que praticou, violador das instruções de segurança (encontrando-se na varanda do seu imóvel, a cerca de quatro metros do solo, utilização de uma escada portátil ou de encostar para subir ao topo superior de uma janela e, sobre a referida escada, na sua parte mais alta, debruçando-se sobre o parapeito interior, tapar com cimento e tijolo a parte superior dessa janela, situada no primeiro andar da moradia, sem usar qualquer dispositivo ou equipamento que prevenisse o risco de queda em altura para o exterior, o que veio a acontecer).
O sinistrado se encontrava sob o efeito do álcool, com uma taxa de alcoolemia de 1,94 g/l e nessa situação, existe um estado de exagerada euforia, os reflexos são acentuadamente perturbados, o tempo de reação é prolongado e o risco de acidente aumenta mais de 16 vezes.
14.Mas é de lembrar que o sinistrado, se estava nesse estado, em que podia não ter discernimento necessário para avaliar o risco, colocou-se voluntariamente nessa situação e, por isso, não só não é desculpável esse seu estado, como, bem pelo contrário, agrava a sua culpa.
15.Tratou-se, pois, de um ato voluntário e consciente, com desprezo pelo risco associado, que bem conhecia, podendo até classificar-se como negligência grosseira.
16.Tendo havido violação, por parte do Autor, sem causa justificativa, das condições de segurança e até atuação com negligência grosseira, o que os factos dados como provados inequivocamente confirmam, o acidente encontra-se descaracterizado, nos termos das alíneas a) e b) do nº 1 do artº 14º da Lei 98/2009, de 04/09.
17.Por outro lado, o sinistrado era trabalhador por conta própria e tinha celebrado contrato de seguro de acidentes de trabalho nos termos previstos na lei (DL 159/99, de 11/05, que remete para a LAT). Ora a LAT consagra, no seu artº 81º, que a regulamentação do contrato de seguro do ramo “acidentes de trabalho” deve constar de uma apólice uniforme, a aprovar pelo ISP (atualmente designada Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões).
18.A apólice uniforme do seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores independentes (Norma nº 3/2009-R, de 05/03), ao definir o objeto do seguro, estabelece, na sua cláusula 3ª, nº 1, que “o segurador, de acordo com a legislação aplicável e nos termos desta apólice, garante os encargos provenientes de acidentes de trabalho da pessoa segura, em consequência do exercício da atividade profissional por conta própria identificada na apólice”.
19.Sendo assim, uma vez que o exercício da atividade profissional pressupõe o trabalho para terceiros e a respetiva remuneração, o sinistrado não se encontrava nessa condição, pois trabalhava na sua moradia. Logo, o acidente dos autos não se encontra garantido pela apólice contratada com a ré.
20.A douta sentença recorrida violou o disposto nas alíneas a) e b) do nº 1. do artº 14º da Lei 98/2009, de 04/09 e no nº 1. da cláusula 3ª da Norma nº 3/2009-R, de 05/03, do ISP.

NESTES TERMOS,
Julgando o recurso de apelação procedente e revogando a douta sentença recorrida, substituindo-a por acórdão que julgue a ação não provada e improcedente e absolva a recorrente do pedido, V. Exªs. farão, como sempre, INTEIRA JUSTIÇA”

Contra alegaram os Autores pugnando pela improcedência do recurso e pela consequente confirmação da sentença recorrida.
*
Admitido o recurso na espécie própria e com o adequado regime de subida e efeito, foram os autos remetidos a esta 2ª instância.

Foi determinado que se desse cumprimento ao disposto no artigo 87.º n.º 3 do CPT., tendo o Exmo. Procurador-Geral Adjunto emitido o douto parecer, no qual pugna pela improcedência do recurso.
Notificados a Recorrente e Recorridos para responder, querendo, ao parecer do Ministério Público, nada vieram dizer.
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
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II – DO OBJECTO DO RECURSO

Delimitado o objeto do recurso pelas conclusões da recorrente (artigos 653º, nº 3 e 639º, nºs 1 e 3, ambos do Código de Processo Civil), não sendo lícito ao tribunal ad quem conhecer de matérias nele não incluídas, salvo as de conhecimento oficioso, que aqui se não detetam, coloca-se à apreciação deste Tribunal da Relação as seguintes questões:

- Da cobertura do acidente pela apólice de seguro;
- Da descaracterização do acidente nos termos do art.º 14º n.º 1 als. a) e b) da Lei n.º 98/2009, de 04/09.

III – FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A factualidade apurada é a seguinte:

· No dia -/12/2017 faleceu H. F. – cfr. documentos de fls. 113 a 114 cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido.
· Os AA. são os únicos herdeiros do mesmo sinistrado – cfr. doc. de fls. 115 cujo teor se dá aqui integralmente por reproduzido.
· Na data acima referida, cerca das 14h40 horas o sinistrado sofreu um acidente quando realizava trabalhos de construção civil na sua própria casa, sita na Rua ..., Montalegre.
· Em consequência do acidente ocorrido em 12/12/2017 o sinistrado acima indicado sofreu as lesões descritas no relatório de autópsia de fls. 50 a 53 (o qual se dá aqui integralmente por reproduzido) as quais lhe provocaram, directa e necessariamente a morte.
· O sinistrado exercia a actividade de construção civil por conta própria, tendo celebrado com a R. seguradora contrato de seguro de acidentes de trabalho, titulado pela apólice nº 000........, pela remuneração anual de € 7.798,00, válida e eficaz à data do sinistro.
· O sinistrado apresentava, aquando do sinistro, uma TAS de 1,94 g/l +- 0,25 g/l.
· O sinistrado, na data e hora do sinistro, estava a tapar com cimento e tijolo a parte superior duma janela, situada no 1º andar da sua moradia.
· Nessa mesma data a janela, varanda e escadas de acesso encontravam-se tal como constam dos documentos juntos a fls. 21 e 22.
· Na execução dessa tarefa o sinistrado através de uma escada de alumínio procedeu aos trabalhos no topo superior dessa janela, debruçando-se sobre o parapeito interior da mesma.
· O sinistrado caiu da referida janela, duma altura de cerca de 3 metros para o exterior, tendo embatido violentamente com a cabeça no chão.
· A A. M. P. suportou com despesas de deslocação realizadas em virtude da pendência destes autos, a quantia de € 40,00.
· O sinistrado, na data e hora do sinistro, encontrava-se na varanda do seu imóvel, a cerca de quatro metros do solo, a fim de colocar uns tijolos na parte superior dessa varanda, utilizando para o efeito uma escada de encostar.
· O sinistrado não utilizava qualquer outro dispositivo de segurança e quando se encontrava na parte mais alta do escadote, desequilibrou-se e caiu desamparado no solo onde bateu com a cabeça.
· No estado de alcoolemia em que se encontrava o sinistrado existe um estado de exagerada euforia, os reflexos são acentuadamente perturbados, o tempo de reacção é prolongado e o risco de acidente aumenta mais de 16 vezes.

IV – APRECIAÇÃO DO RECURSO

1 - Da cobertura do acidente pela apólice de seguro.

Cabe-nos indagar se o sinistro está abrangido pelos riscos cobertos no contrato de seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores independentes, ao abrigo da qual foi celebrado o contrato de seguro com o sinistrado, uma vez que a Recorrente defende que pelo facto da actividade desenvolvida pelo sinistrado na altura do acidente não ter caracter lucrativo se deve entender que o acidente não está coberto pela apólice de seguro.
Sobre esta questão já tivemos oportunidade de nos pronunciarmos, designadamente no Acórdão por nós relatado em 07.02.2019, no proc. n.º 1635/17.8T8VCT.G1, consultável em www.dgsi.pt o qual seguiremos de perto, pois não vislumbramos qualquer motivo para alterar a posição assumida.
Como é consabido, actualmente, o trabalhador que exerce alguma actividade por conta própria está obrigado a fazer um seguro de acidentes de trabalho, tal como decorre do artigo 1.º do DL n.º 159/99 de 11/05, seguro este que garanta, com as devidas adaptações, as prestações definidas na Lei dos Acidentes de Trabalho para os trabalhadores por conta de outrem e seus familiares. Estipula o art.º 2 do citado Decreto-Lei que este seguro rege-se também com as devidas adaptações, pelas disposições da Lei dos Acidentes de Trabalho (Lei n.º 100/97 de 13/09) e seus diplomas complementares.
Acresce dizer que também é aplicável a Norma Regulamentar n.º 3/2009-R, de 5 de Março, publicada no Diário da República, IIª Série, n.º 57, de 23 de Março de 2009 que aprovou a parte uniforme das «Condições Gerais da Apólice de Seguro Obrigatório de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores Independentes», que ainda se encontra em vigor.
Do exposto resulta que quer o Decreto-Lei n.º 159/99, quer a Norma Regulamentar n.º 3/2009-R referem-se à Lei n.º 100/97, de 13/09, sendo certo que esta, bem como o respectivo regulamento, resultante do Decreto-Lei n.º 143/99, de 30/04, foram revogados pelo artigo 186.º, alínea a), da Lei n.º 98/2009, de 04/09, (doravante NLAT), que aprovou o actual Regime Jurídico dos Acidentes de Trabalho e das Doenças Profissionais e que entrou em vigor no dia 01 de Janeiro de 2010.
Contudo, resulta do previsto no artigo 181.º, da NLAT, que “as remissões de normas contidas em diplomas legislativos para a legislação revogada com a entrada em vigor da presente lei consideram-se referidas às disposições do Código do Trabalho e da presente lei”.
É precisamente o caso do Decreto-Lei n.º 159/99, de 11 de Maio, cuja remissão deve, agora, considerar-se feita para a NLAT.
Por fim, referimos que o artigo 184.º, da NLAT, prescreve que a regulamentação relativa ao seguro obrigatório de acidentes de trabalho dos trabalhadores independentes consta de diploma próprio – diploma este que continua a ser o Decreto-Lei n.º 159/99, de 11/05.

Resulta do preâmbulo do Decreto-Lei n.º 159/99, de 11/05, o seguinte:

“Através do seguro de acidentes de trabalho pretende-se garantir aos trabalhadores independentes e respectivos familiares, em caso de acidente de trabalho, indemnizações e prestações em condições idênticas às dos trabalhadores por conta de outrem e seus familiares.
O carácter de obrigatoriedade do seguro não abrange os trabalhadores independentes cuja produção se destine exclusivamente ao consumo ou utilização por si próprio e pela sua família.”

E prescreve o artigo 1.º do citado diploma legal sob a epígrafe “Obrigatoriedade de seguro”, o seguinte:

«1. Os trabalhadores independentes são obrigados a efectuar um seguros de acidentes de trabalho que garanta, com as devidas adaptações, as prestações definidas na Lei n.º 100/97, de 13 de Setembro, para os trabalhadores por conta de outrem e seus familiares.
2. São dispensados de efectuar este seguro os trabalhadores independentes cuja produção se destine exclusivamente ao consumo ou utilização por si próprio e pelo seu agregado familiar».

Daqui decorre que o legislador pretendeu que trabalhadores que exercessem actividade por conta própria, bem como os trabalhadores independentes, cuja produção se destina exclusivamente ao seu consumo ou do seu agregado familiar beneficiassem do regime de reparação dos acidentes de trabalho e das doenças profissionais, desde que celebrassem um contrato de seguro (obrigatório para os primeiros e facultativo para os segundos) do qual fez depender a atribuição dos benefícios resultantes da referida legislação, sem destrinçar que a actividade tenha de ser ou não remunerada e tenha ou não que ser prestada a outrem. A este propósito cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Évora de 12/07/2011, proferido no Proc. n.º 259/08.5TTFAR.E1, acórdão este citado quer na sentença, quer nas contra alegações de recurso.
Em suma, o n.º 1 do artigo 1.º do citado DL n.º 159/99, de 11/05, não distingue se a actividade tem ou não que ser remunerada ou se tem ou não que se prestada exclusivamente a outrem inserindo-se tal interpretação no espírito da lei, que visou com o seguro obrigatório de acidentes de trabalho para trabalhadores independentes garantir a estes e seus familiares os benefícios que emergem da Lei n.º 100/97, em condições idênticas às dos trabalhadores por conta de outrem e seus familiares. E assim sendo, mal se compreenderia que se no trabalho por si desenvolvido o trabalhador independente exercesse uma actividade quer para outrem, quer para si mesmo ou para o agregado familiar, caso sofresse um acidente nesta última situação, o mesmo não fosse considerado acidente de trabalho e, como tal, o trabalhador e seus familiares ficassem sem direito às indemnizações e prestações previstas na lei dos acidentes de trabalho.
Naturalmente que a situação já se apresenta distinta se o trabalhador independente apenas realiza a actividade/produção para si próprio e/ou agregado familiar: aí compreende-se que o «risco» corra por conta do trabalhador e, por isso, que não exista a obrigatoriedade da celebração do contrato de seguro. Contudo, celebrado este, não pode o mesmo deixar de abranger qualquer eventual acidente sofrido pelo trabalhador.
Defende a Recorrente que a sentença recorrida ao considerar que o acidente é de trabalho e por si reparável violou nº 1. da cláusula 3ª da Norma nº 3/2009-R, de 05/03, do ISP, na qual se prescreve o seguinte: “o segurador, de acordo com a legislação aplicável e nos termos desta apólice, garante os encargos provenientes de acidentes de trabalho da pessoa segura, em consequência do exercício da atividade profissional por conta própria identificada na apólice”.
De facto não podemos concordar com a Recorrente, pois do citado normativo nada resulta que nos permita concluir que o acidente dos autos não estava abrangido pela apólice de seguro contratada com o sinistrado, sendo certo que o sentido e alcance do que pode ser entendido por “conta própria” não pressupõe a referência exclusiva ao trabalho prestado a terceiros mediante a respectiva remuneração, tal como resulta do acima por nós defendido.
O que temos por certo é que o sinistrado exercia a atividade profissional de construtor civil sem subordinação jurídica ou integração na respetiva estrutura organizativa de terceiro, ou seja era um trabalhador independente, que exercia a sua atividade por conta própria e foi nessa qualidade que celebrou o contrato de seguro de acidentes de trabalho com a recorrente.
Tal qualidade não é impeditiva do sinistrado poder realizar atividades de construção civil para terceiro de modo gracioso ou fazer um trabalho para si mesmo ou para o seu agregado familiar, sem auferir qualquer retribuição e daí não resulta qualquer exclusão no que respeita ao seguro de acidentes de trabalho contratado pelo sinistrado de cobrir os sinistros ocorridos em qualquer uma dessas situações.
Com efeito, nem da legislação do seguro infortunístico laboral que atinge um trabalhador independente, nem do contrato de seguro celebrado resulta que o seguro do trabalhador por conta própria apenas possa ser accionado quando o acidente ocorra no desenvolvimento de uma atividade remunerada a favor de terceiro.
Como tem vindo a defender este Tribunal da Relação de Guimarães, designadamente no Acórdão de 31/10/2018, proferido no Proc. n.º 3383/16.7T8VCT (relator Eduardo Azevedo), do qual fui 1ª Adjunta (consultável em www.dgsi.pt.) e em concordância com os Acórdãos do Tribunal da Relação de Coimbra de 10-02-2005 (CJ, 2005, I, pág. 60), do Tribunal da Relação do Porto de 08-09-2008 (CJ, 2008, IV, 229) e de 21.10.2020, no proc. n.º 1804/17.0T8AGD.P1, consultável em www.dgsi.pt, a actividade constitui o critério fundamental para aferir da abrangência do seguro infortunístico laboral que atinge um trabalhador independente: se aquela «…se integra no âmbito da sua profissionalidade e pela qual ele estava seguro, então independentemente de estar a laborar para si ou para outrem, com remuneração ou sem ela, o sinistro de que eventualmente venha a ser vítima, estará a coberto do contrato de seguro que celebrou (salvo naturalmente as hipóteses de invalidade deste)».”
Acresce dizer que sendo o contrato de seguro de acidentes de trabalho definido pela natureza da actividade profissional a que a pessoa se dedica, daí que a declaração do risco pelo tomador do seguro consista essencialmente na informação relativa ao objecto da actividade, ficando a cobertura circunscrita à actividade declarada, em função da qual é estipulado o prémio e as restantes condições contratuais, fácil é concluir que um dos critérios, que não o único, para aferir a abrangência do seguro de natureza laboral, com a consequente aplicação do respectivo regime (NLAT) relativamente aos trabalhadores independentes tem necessariamente de ser o da actividade objecto do contrato de seguro à qual a actividade exercida tem de subsumir no momento do sinistro.
Por outro lado, para que o acidente sofrido por um trabalhador independente seja qualificado como de trabalho, tem também de se estabelecer um elo de ligação entre o momento da ocorrência do acidente, o local e o tempo de trabalho, já que como resulta do artigo 8.º da NLAT (no qual se define o conceito de acidente de trabalho), ainda que com as devidas adaptações, os conceitos de «local e tempo de trabalho» são coincidentes na NLAT e na Apólice Uniforme do Seguro de Acidentes de Trabalho para Trabalhadores Independentes
Retornando ao caso em apreço temos por certo que quando o acidente ocorreu o sinistrado estaria a atuar por conta própria e não a prestar trabalho a terceiros mediante o recebimento da respectiva retribuição, contudo exercia a atividade de construção civil, sendo essa a actividade declarada para efeitos de cobertura de riscos do seguro. Mais resulta da factualidade apurada que o sinistrado no dia 12-12-2017, pelas 14.40h, encontrava-se na varanda do seu imóvel, a cerca de quatro metros do solo, e quando estava a tapar com cimento e tijolo a parte superior duma janela, situada no 1º andar, caiu da referida janela, duma altura de cerca de 3 metros para o exterior, tendo embatido violentamente com a cabeça no chão. Ou seja o sinistrado encontrava-se a desenvolver a sua habitual atividade profissional, aquando do sinistro.
Tanto basta para concluir que o evento danoso ocorreu em actividade relacionada com a profissão que foi declarada para efeitos de seguro (trabalhador da construção civil), realizando o sinistrado na altura do sinistro tarefa enquadrável no leque das tarefas que são executadas no exercício da actividade da construção civil, no tempo e no local de trabalho, ou seja o acidente deu-se no âmbito da profissionalidade do sinistrado e nessa exata medida, é de qualificar tal acidente como de trabalho e inserido no âmbito do risco transferido para a Recorrente.
Improcedem assim a 17ª a 20ª conclusão da alegação de recurso.

2. Da descaracterização do acidente nos termos do art. 14º n.º 1 als. a) e b) da Lei n.º 98/2009, de 04/09

A questão que agora importa apreciar consiste em apurar se o acidente de trabalho é ou não reparável, já que não está em causa a ocorrência do acidente de trabalho nem o nexo de causalidade entre este e as lesões.
Assim, perante o quadro factual apurado, importa agora apreciar se o comportamento do sinistrado integra alguma das situações previstas no artigo 14.º da NLAT designadamente aquelas a que aludem as alíneas a) e b) do seu n.º 1.

Sob a epígrafe de “Descaracterização do acidente” estabelece o artigo 14º da NLAT, o seguinte:

1. O empregador não tem de reparar os danos decorrentes do acidente que:
a) For dolosamente provocado pelo sinistrado ou provier de seu ato ou omissão, que importe violação, sem causa justificativa, das condições de segurança estabelecidas pelo empregador ou previstas na lei;
b) Provier exclusivamente de negligência grosseira do sinistrado;
c) Resultar da privação permanente ou acidental do uso da razão do sinistrado, nos termos do Código Civil, salvo se tal privação derivar da própria prestação do trabalho, for independente da vontade do sinistrado ou se o empregador ou se o seu representante, conhecendo o estado do sinistrado, consentir na prestação.
2. Para efeitos do disposto na alínea a) do número anterior, considera-se que existe causa justificativa da violação das condições de segurança se o acidente de trabalho resultar de incumprimento de norma legal ou estabelecida pelo empregador da qual o trabalhador, face ao seu grau de instrução ou de acesso à informação, dificilmente teria conhecimento ou, tendo-o, lhe fosse manifestamente dificilmente entendê-la.
3. Entende-se por negligência grosseira o comportamento temerário em alto e relevante grau, que não se consubstancie em ato ou omissão resultante da habitualidade ao perigo do trabalho executado, da confiança na experiência profissional ou dos usos da profissão.”
A Recorrente insurge-se contra o facto de na sentença recorrida se ter afastado a descaracterização do acidente, fazendo-se assim uma errada interpretação dos factos provados, já que na opinião da Recorrente, de tal factualidade resulta que o sinistrado foi o único culpado pela ocorrência do acidente, quer por ter agido em violação das condições de segurança previstas na lei, quer por ter atuado de forma grosseiramente negligente, ao encontrar-se na varanda do seu imóvel, a cerca de quatro metros do solo, a fim de colocar uns tijolos na parte superior dessa varanda, utilizando para o efeito uma escada de encostar, sem que utilizasse qualquer dispositivo de segurança que prevenisse o risco de queda em altura, o que veio a suceder, pois veio a cair desamparado no solo onde bateu com a cabeça. Por outro lado, sendo o sinistrado conhecedor das condições de segurança estabelecidas por lei para o risco de queda em altura ao violá-las tinha perfeito conhecimento do perigo que corria, a que acresce o estado de alcoolemia em que se encontrava e que faz aumentar o risco de acidente mais de 16 vezes.

No que respeita à descaracterização do acidente nos termos previstos na al. a) 2ª parte do n.º 1 do artigo 14º da NLAT, a jurisprudência e a doutrina têm entendido que a descaracterização só ocorre, nesta situação, se se verificarem cumulativamente os seguintes requisitos:

1 - Que sejam voluntariamente violadas as condições de segurança, exigindo-se aqui a intencionalidade ou dolo, na prática, ou omissão, o que exclui as chamadas culpas leves, desde a inadvertência, à imperícia, à distracção, esquecimento, ou outras atitudes que se prendem com os actos involuntários, resultantes ou não da habituação ao risco.
2- Que a violação das condições de segurança seja sem causa justificativa (do ponto de vista do trabalhador), o que passa pelo claro conhecimento do perigo que possa resultar do acto ou omissão, a causa justificativa ou explicativa não tem que ter um carácter lógico ou normal em relação à actividade laboral; pode ser uma brincadeira a que não se associam consequências danosas, uma inadvertência ou momentânea negligência, uma imprudência, ou mesmo um impulso instintivo ou altruísta.
3- Que as condições de segurança sejam estabelecidas legalmente ou pela entidade patronal.
4- Que se verifique que o acidente seja consequência necessária do acto ou omissão do sinistrado.

É de realçar que o ónus da prova dos factos que importam a descaracterização incumbe à entidade responsável pela reparação.
A violação das regras de segurança estabelecidas por lei contemplada no n.º 1 al. a) do artigo 14.º da NLAT deve ser entendida como abarcando as normas ou instruções que visam acautelar e prevenir a segurança dos trabalhadores, tendo em vista a eliminação ou diminuição dos perigos/riscos para a saúde vida ou integridade física do trabalhador, razão pela qual não podemos concluir que a violação pelo trabalhador de qualquer norma prevista na lei ou de uma qualquer regra imposta pelo empregador, dá lugar à descaracterização do acidente. A violação terá de ser de norma legal ou regra imposta pelo empregado ou pela lei, que vise acautelar ou prevenir a segurança dos trabalhadores abrangendo apenas as que se conexionam com o risco da actividade profissional exercida, as que estão de alguma forma ligadas à própria execução do trabalho que o sinistrado se obrigou a prestar no exercício da sua actividade.

Neste sentido se tem vindo o STJ a pronunciar, nomeadamente nos Acórdãos proferidos em 24/02/2010, Proc. n.º 747/04.2TTCBR.C1.S1; em 1/07/2009, Proc. n.º 823/06.7TTAVR.C1.S1 e 17/05/2007, Proc. 07S053 (consultáveis em www.dgsi.pt), tendo este último o seguinte sumário:

“I – A descaracterização do acidente de trabalho prevista na alínea a), do n.º 1, do art. 7.º da LAT, exige a verificação cumulativa dos seguintes requisitos: (i) existência de condições de segurança estabelecidas pela entidade patronal ou pela lei; (ii) verificação de acto ou omissão que as viole; (iii) voluntariedade desse comportamento, ainda que não intencional, e sem causa justificativa; (iv) nexo de articulação causal entre o acto ou omissão e o acidente produzido.
II – A previsão legal constante da referida norma não pretende abarcar todas e quaisquer condições de segurança – onde quer que elas venham previstas e independentemente dos seus destinatários –, antes se reporta às condições de segurança ligadas com a própria execução do trabalho que o sinistrado se obrigou a prestar no exercício da sua actividade laboral.”

No caso em apreço está em causa a violação das normas legais destinadas a prevenir o risco de queda em altura, quer as respeitantes à proteção individual, quer as respeitantes a protecção colectiva, sendo certo que no respeita à atuação negligente do sinistrado está também em causa o grau de alcoolémia de que na altura o sinistrado era portador.

A este propósito na sentença recorrida escreveu-se o seguinte:

“Quanto ao comportamento negligente que é imputado ao sinistrado pela demandada seguradora, o mesmo assenta quer na inexistência de meios de protecção individuais ou colectivos que impedisse a queda em altura, quer no grau de alcoolémia apresentado pelo de cujus.
Ora, recorrendo-se novamente à factualidade dada como assente, conclui-se, em nosso entender, que o mesmo não ficou minimamente demonstrado. Na verdade, e desde logo, na demandada não logrou demonstrar que os meios de protecção individuais (como o uso de capacete) ou colectivos (como os andaimes) fossem quer necessários para a tarefa que o sinistrado cumpria no momento do sinistro (estando a uma distância de 3 ou 4 metros do solo) ou possíveis, dado o espaço exíguo onde se encontrava, bem como não demonstrou que ainda que estes existissem tivessem impedido efectivamente a ocorrência do sinistro, já que mesmo que tivesse capacete este poderia ter-se desprendido com a queda e o sinistrado poderia igualmente ter caído dum andaime.”
Não podemos deixar de concordar com as considerações expendidas a este propósito, pois a factualidade provada é parca e não permite concluir pela causa objectiva, real e imediata do desequilíbrio que terá originado a queda do sinistrado ao solo.

Com efeito apenas se apurou o seguinte:

- que o sinistrado, estava a tapar com cimento e tijolo a parte superior duma janela, situada no 1º andar da sua moradia;
- que na execução dessa tarefa utilizou uma escada de alumínio para proceder aos trabalhos no topo superior dessa janela, debruçando-se sobre o parapeito interior da mesma;
- que sinistrado caiu da referida janela, duma altura de cerca de 3 metros para o exterior, tendo embatido violentamente com a cabeça no chão.

E embora ainda se tenha apurado que o sinistrado não usava outro dispositivo de segurança e quando se encontrava na parte mais alta do escadote, desequilibrou-se e caiu desamparado no solo onde bateu com a cabeça, o certo é que a Recorrente não logrou provar, como lhe incumbia, que existissem específicas regras de segurança que tinham de ser observadas pelo sinistrado, na tarefa que estava a ser por si desempenhada; que tais regras tenham sido incumpridas pelo sinistrado; que esse incumprimento não tivesse causa justificativa e que o acidente tenha ocorrido por esse incumprimento.
Acresce dizer que a Recorrente limitou-se a alegar que o sinistrado deveria ter usado equipamentos de protecção individual, sem concretizar quais os específicos meios de proteção que deveriam ter sido utilizados naquelas circunstâncias em que encontrava o sinistrado que teriam evitado a queda em altura.
Ora, não tendo sequer a recorrente logrado provar as regras de segurança que naquela situação em concreto estava o sinistrado obrigado a observar, de forma alguma poderíamos imputar ao sinistrado a sua violação, sem causa justificativa.
Não basta, que tenha ocorrido um acidente em altura para se concluir que foram desrespeitadas as regras de segurança. Se se pretende imputar uma responsabilidade por inobservância das regras de segurança ao sinistrado, é necessário alegar e provar o circunstancialismo preciso em que ocorreu o acidente, designadamente no que respeita às condições de segurança que o sinistrado estava obrigado a observar, por forma a permitir concluir que houve um efectivo incumprimento dessas regras.
Em suma, ao contrário do alegado pela Recorrente/Apelante teremos de dizer que a parca factualidade provada não permite concluir que da conduta do sinistrado resulte a violação ostensiva e voluntária e sem justificação de regra que conhecesse, suscetível de descaraterizar o sinistro nos termos previstos no artigo 14º n.º 1 al. a), 2 parte da NLAT.
Analisemos agora se o acidente se ficou a dever à negligência grosseira do sinistrado tal como está prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 14º da NLAT, como também argumenta a Recorrente.

Na sentença consignou-se o seguinte a este respeito:

No que respeita ao grau de alcoolémia, perfilha-se aqui o entendimento vastamente maioritário da jurisprudência, que não basta demonstrar que o sinistrado estava sob a influência do álcool, mesmo que em grau superior ao legalmente admissível (salientando-se aqui que o sinistrado não se encontrava a conduzir qualquer veículo nem a operar nenhuma máquina), há que demonstrar que o nexo de causalidade entre a existência de álcool no sangue e a verificação do sinistro e no caso dos autos, tal nexo de causalidade parece-nos claramente ausente. Nem a conduta anterior do sinistrado (que conversou com os seus vizinhos sem demonstrar qualquer alteração de comportamento e esteve a comprar pão) nem a tarefa que realizava, utilizando um escadote para aceder à parte superior da abertura da varanda do 1º andar da sua habitação, evidenciam qualquer erro grave de julgamento ou actuação inopinada e temerária que pudessem indicar a influência do álcool naquela conduta.
Deste modo tem entendido o STJ, dentre cujos vários arestos se destaca o Ac. de 26/06/2019, In proc. nº 763/16.1T8AVR.P1.S1, www.dgsi.pt quando esclareceu que “Para descaracterizar um acidente de trabalho quando o sinistrado apresenta álcool no sangue, ainda que em grau susceptível de influenciar o comportamento humano e de afectar as respectivas faculdades intelectuais ou capacidades psicomotoras, é necessário demonstrar, por quem tem esse ónus, a existência do nexo de causalidade entre aquela situação e a verificação do acidente, ou seja, que o grau de alcoolemia foi a causa do acidente, ou que, pelo menos, o influenciou.”. Também a Rel. do Porto se pronunciou claramente neste sentido no seu Ac. de 24/01/2018, In, proc. nº 1070/16.5T8AVR.P1 “VI- Ainda que se prove que o sinistrado apresentava uma taxa de álcool no sangue de 1,89 g/l, na altura do acidente, que lhe diminui a atenção, concentração, capacidade de reacção, equilíbrio e reflexos, não se provando que aquele teor de alcoolémia contribuiu para a queda que sofreu, apenas aqueles factos provados não permitem estabelecer o nexo de causalidade entre o estado de embriaguez e aquela.
VII - O facto de o mesmo estar alcoolizado não é susceptível de, só por si, descaracterizar o acidente de trabalho e conduzir à sua não reparação.
VIII – Assim, não estando provada a causa da queda que provocou a morte ao sinistrado, nem a culpa exclusiva deste na ocorrência do acidente não se pode concluir que tenha sido aquele estado de alcoolizado do mesmo que esteve na origem do acidente.”.

Tal sucede precisamente no caso dos autos, em que pelas circunstâncias que acima destacámos não se pode concluir que a mera embriaguez do sinistrado tenha sido a causa da sua queda, não tendo a demandada seguradora demonstrado a factualidade que o determinaria, não se pode deixar de concluir pela caracterização do sinistro como sendo de trabalho.”.
Podemos desde já adiantar que concordamos com a não descaracterização do acidente, já que no caso não se podem considerar de verificados todos os requisitos da al. b) do n.º 1 do art.º 14.º da NLAT.
Conforme é pacífico na doutrina e na jurisprudência, para que se verifique negligência grosseira como causa exclusiva descaracterizadora do acidente, não basta a culpa leve, a imprudência, a distracção, a imprevidência ou comportamentos semelhantes, exigindo-se um comportamento temerário, reprovado por um elementar sentido de prudência. Trata-se de uma negligência temerária, que configure uma omissão fortemente indesculpável, altamente reprovável e injustificável das precauções ou cautelas mais elementares, que tem de ser apreciada em concreto, em face das condições da própria vítima e não em função de um padrão geral, abstrato, de conduta. Considera-se como tal a atuação perigosa, audaciosa, inútil, que é reprovada pelo elementar sentido de prudência – cfr Ac. STJ de de 19/11/2014, proc.º 177/10.7TTBJA.E1.S1, disponível em www.dgsi.pt
Nesta situação para que se verifique a exclusão da responsabilidade emergente de acidente de trabalho é necessária a prova de que ocorreu um ato ou omissão temerários em alto e relevante grau por parte do sinistrado, injustificado pela habitualidade ao perigo do trabalho executado, pela confiança na experiência profissional ou pelos usos da profissão, e, para além disso, é preciso provar que o acidente ocorreu exclusivamente por causa desse comportamento.
Analisemos a actuação do sinistrado.

No caso dos autos, está em causa uma queda em altura em circunstâncias que não se conseguiram apurar, estando contudo provado que na altura do acidente o sinistrado apresentava, uma TAS de 1,94 g/l +- 0,25 g/l. E que no estado de alcoolemia em que se encontrava o sinistrado existe um estado de exagerada euforia, os reflexos são acentuadamente perturbados, o tempo de reacção é prolongado e o risco de acidente aumenta mais de 16 vezes.
Da factualidade apurada não é possível afirmar que a aquela concreta taxa de alcoolémia teve influência na ocorrência do acidente do qual veio a resultar a morte do sinistrado, uma vez que não sabemos qual a causa que conduziu à queda do sinistrado.
Na verdade, não é possível afirmar com relativa segurança que não existiu qualquer outra causa para a ocorrência do acidente, designadamente porque ninguém o presenciou, desconhecendo-se em absoluto porque é que o sinistrado caiu no solo, designadamente se houve ou não qualquer factor externo na origem da queda. Ou seja a factualidade provada não permite concluir que o acidente proveio exclusivamente de negligência grosseira resultante da actuação do sinistrado.
É facto assente que a elevada TAS com que o sinistrado executava o seu trabalho torna muito maior o risco de acidente afectando-lhe necessariamente a generalidade dos sentidos e capacidades, contudo é necessário o estabelecimento do nexo de causalidade entre esse estado de espírito e a verificação do acidente, que era ónus da Recorrente provar, nos termos do art.º 342 n.º 2 do Código Civil, por se tratar de facto impeditivo dos direitos invocados pelos AA., mas que a Recorrente não logrou provar.
Como tem sido defendido pela maioria da jurisprudência (cfr, Acs. RC de 03-05-2007, proc. n.º 1183/03.3TTCBR.C1; RP de 24/01/2018, proc. n.º 1070/16.5T8AVR.P1; RE de 14/01/2016, proc. n.º 166/14.2TTPTG.E1, disponíveis in www.dsgi.pt), designadamente pela do Supremo Tribunal de Justiça (cfr. acs. STJ de 26.05.94, in CJSTJ, ano II, tomo 2, pág 271-273, de 15-11-2006, proc. 06S1829 e de 26/06/2019, proc. n.º 763/16.1T8AVR.P1.S1 (in www.stj.pt,) para descaracterizar um acidente de trabalho, quando o sinistrado apresenta álcool no sangue (ainda que em grau susceptível de influenciar o comportamento humano e de afectar as respectivas faculdades intelectuais ou capacidades psico-motoras) é necessário demonstrar, por quem tem esse ónus, a existência do nexo de causalidade entre estado e a verificação do acidente. E como já deixámos acima expresso a matéria de facto apurada é omissa em relação às circunstâncias do acidente, não permitindo que se conclua que a queda do sinistrado se deveu única e exclusivamente ao estado alcoolizado em que se encontrava, ou seja se o sinistrado não tivesse alcoolizado o acidente não teria eclodido.
Para descaracterizar o acidente como de trabalho não é suficiente, que o sinistrado apresente um grau de alcoolémia elevado na altura do evento, pois é ainda necessário que se prove que a concentração de álcool no sangue verificada influenciou ou foi determinante na ocorrência do evento, competindo este ónus da prova à seguradora do sinistrado.
Não se dúvida que da factualidade provada se possa concluir que o comportamento do sinistrado é culposo, na medida em que não devia ter ido trabalhar para a varanda depois de ter ingerido a quantidade de álcool que o exame demonstra, contudo não sabemos, nem podemos saber se o sinistrado caiu por ter bebido a quantidade de álcool que determinou aquela a taxa de alcoolémia, ou se foi por outra causa.
Não permitindo a factualidade provada estabelecer o nexo de causalidade entre o estado de embriaguez e o acidente, o facto do sinistrado, na altura, ser portador de uma taxa de álcool no sangue de 1,94% só por si não é suscetível de descaraterizar o acidente de trabalho e conduzir à sua não reparabilidade. Neste sentido também se pronunciou recentemente este Tribunal no Acórdão de 4/03/2021, proferido no proc. n.º 1199/18.5T8VCT, não publicado, no qual se refere o seguinte “Da factualidade não pode concluir-se pela verificação de negligencia grosseira e exclusiva (muito menos de dolo) por parte do sinistrado. O sinistro pode ter ocorrido por variadas causas, como uma distração momentânea, uma quebra física momentânea, ou outras. Relativamente à taxa de alcoolemia, dos factos provados, até tendo em conta o grau de alcoolemia de que se encontrava afetado, não resulta possível estabelecer qualquer nexo causal.”
Em suma, por não se ter apurado/provado as concretas circunstâncias e/ou razões que rodearam a ocorrência do acidente, e não sendo conhecidas tais circunstâncias não é possível afirmar que a conduta do sinistrado foi grave, temerária, altamente reprovável e exclusiva, o que afasta per si a alegada descaracterização do acidente com fundamento na citada al. b) do n.º 1 do artigo 14º da NLAT.
É assim, de confirmar a sentença recorrida na qual se fez a correta interpretação dos factos provados ao direito, não se vislumbrando que tenha sido violada qualquer dispositivo legal.
Improcedem as conclusões 1 a 16 da apelação.

DECISÃO

Pelo exposto, e ao abrigo do disposto nos artigos 87º do C.P.T. e 663º do C.P.C., acorda-se, neste Tribunal da Relação de Guimarães em negar provimento ao recurso de apelação interposto por SEGURADORA ... , confirmando-se na íntegra a decisão recorrida.
Custas a cargo da Recorrente.
Notifique
2 de Dezembro de 2021

Vera Maria Sottomayor (relatora)
Maria Leonor Barroso
Antero Dinis Ramos Veiga