Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
29/23.0GAVPA.G1
Relator: FERNANDO CHAVES
Descritores: PROVA INDIRETA
REQUISITOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I - Na ausência de prova directa, o tribunal pode deduzir racionalmente a verdade dos factos a partir da prova indiciária.
II – A prova indiciária deve obedecer, em princípio, aos seguintes requisitos:
a) Existência de uma pluralidade de dados indiciários plenamente provados ou absolutamente credíveis;
b) Racionalidade da inferência obtida de maneira que o facto “consequência” resulte de forma natural e lógica dos factos-base, segundo um processo dedutivo, baseado na lógica e nas regras da experiência (recto critério humano e correcto raciocínio).
III - A actualidade na condução para a submissão do condutor à prova de detecção do estado de influenciado pelo álcool é de alargar àquelas situações em que, as concretas circunstâncias, tornam evidente e inequívoca a relação entre o agente e o facto num conceito próximo ao da presunção de flagrante delito (na modalidade de ser o agente encontrado com objectos ou sinais que mostrem inequivocamente que o cometeu).
Decisão Texto Integral:
Acordam na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães

I – Relatório

1. No processo comum singular n.º 29/23...., a correr termos no Tribunal Judicial da Comarca de ... – ... – Juízo de Competência Genérica, realizado o julgamento, foi proferida sentença em 18-01-2024, depositada na mesma data, com o dispositivo seguinte (transcrição):

«Em face de tudo o que foi dito, decido condenar o arguido AA pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. p. artigo 292º do Código Penal e, em consequência, decido:
1. aplicar-lhe uma pena de multa de 100 (cem) dias à taxa diária de €9,00 (nove), num total de €900,00 (novecentos euros).
2. Aplicar-lhe uma pena acessória de proibição de conduzir veículo motorizado de qualquer categoria, pelo período de 8 (oito) meses.
3. Determinar a entrega, no prazo de 10 dias após o trânsito em julgado da presente sentença, por parte do arguido, do título que o habilita a conduzir veículos motorizados na secretaria deste Tribunal ou em qualquer posto policial que a remeterá àquela, sob pena de incorrer na prática de um crime de desobediência e de ser ordenada a apreensão do referido título, nos termos do artigo 500º, n.º2 e 3 do Código de Processo Penal;
4. Mais se adverte que o incumprimento da pena acessória de proibição de condução, no referido período de 8 meses, poderá fazer o arguido incorrer na prática de um crime de violação de proibições, previsto e punido pelo artigo 353º do Código Penal.
Custas pelo arguido nos termos do artigo 513º, n.º 1 do Código de Processo Penal nos termos do artigo. 8º, n.º 5 e da tabela III do DL 34/2008 de 26 de Fevereiro.
Após trânsito:
• remeta boletins ao registo criminal, nos termos do artigo 5º, nº1, al. a), da Lei nº 57/98, de 18 de Agosto;
• comunique à Autoridade Nacional de Segurança Rodoviária e ao Instituto da Mobilidade e dos Transportes Terrestres, nos termos e para os efeitos do artigo 500.º n.º 1 do Código do Processo Penal;
Lida, vai a sentença ser depositada na secretaria deste Tribunal, nos termos do artigo 372º, nº5 e 373º, n.º2, ambos do Código de Processo Penal.
Notifique.»
2. Inconformado com a decisão, recorreu o arguido, terminando a sua motivação com as seguintes conclusões (transcrição):
«I. Salvo o devido e necessário respeito por diferente opinião, não se produziu nos autos qualquer prova que leve a concluir, de forma indubitável, pelo preenchimento do tipo, conquanto, não se pode concluir que o Arguido praticou o crime de que vem acusado. Nem de forma direta, nem de forma indireta.
II. Trata-se de um verdadeiro vício da decisão em crise, tal como definido na al. a), do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP, que, nos termos do artigo 426.º, do CPP, determinam que seja revogada a decisão e a sua remessa para novo julgamento.
III. Salvo o devido respeito por diferente opinião, o facto de a mota ser do Arguido, de ele estar junto à mota quando do acidente e de não ter sido avistado no local mais ninguém, não pode levar a concluir, sem margem para qualquer dúvida, que era ele o condutor da mota.
IV. Quando as primeiras pessoas chegaram ao local o Arguido estava inanimado.
V. O Arguido foi encontrado pela GNR noutro local, bastante tempo depois.
VI. Ora, daqui decorre, além do mais, o seguinte: podia estar mais alguém com o Arguido no momento do acidente, e ser essa pessoa que conduzia o veículo; dado o lapso de tempo decorrido desde o momento do acidente até que o Arguido é encontrado pela GNR, pode ter ingerido bebidas alcoólicas.
VII. Face a estas dúvidas, não conseguimos alcançar como o Tribunal conseguir ficar absolutamente convencido. Na verdade, se atentarmos na decisão ora em crise, o Tribunal a quo não explica o percurso lógico que trilhou para tal convencimento.
VIII. Contudo, da leitura da Sentença resulta ainda, de forma clara, que a prova foi apreciada de forma errada – verificando-se um verdadeiro erro de julgamento, por força do já citado artigo 426.º, do CPP, deve, ainda, a Sentença em crise ser revogada por se verificar um erro notório na apreciação da prova, nos termos da al. c), do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP.
IX. Não há nada que nos leve a concluir que o Arguido era o condutor do veículo no momento do acidente e, bem assim, que conduzia sob o efeito de álcool.
X. Da prova produzida o que resulta evidente é que o Arguido é o proprietário do veículo e que foi interveniente no acidente. Apenas isso.
XI. Face à prova que foi produzida, consideramos, com o devido e necessário respeito, que foram mal julgados alguns pontos da matéria de facto, pelo que, deve ser alterada pelo Tribunal ad quem, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 431.º, 410.º e n.º 3, do artigo 412.º, do CPP.
XII. Do depoimento da testemunha BB, militar da GNR, na sessão de julgamento de 11 de janeiro de 2024, com início às 11:24 e fim às 11:30, Ficheiro Diligencia_29-23.0GAVPA_2024-01-11_11-24-55.mp3, supra transcrito, resulta claro que o Arguido não estava no local do acidente quando chegaram.
XIII. Mais resulta que estiveram a fazer medidas no local e só depois foram contactados pela sala de situação. Não se sabe quanto tempo demoraram a chegar à Zona Industrial. Tampouco, quanto tempo depois do acidente foi o Arguido encontrado.
XIV. Contudo, uma coisa é certa: passou no mínimo o tempo necessário para se deslocarem para o local do acidente, depois de contactada a GNR pelos presentes no local; o tempo que demoraram a tirar as medidas; o tempo de se deslocarem para a zona industrial; e o tempo de encontrarem o Arguido (aqui sabemos que foram pelo menos 15 minutos).
XV. Destarte, entre o momento do acidente e o momento em que a GNR encontra o Arguido passaram, pelo menos, 60 minutos.
XVI. No que à “confissão” feita pelo Arguido a esta testemunha, trataremos infra.
XVII. Contudo, não deixa de se anotar desde já que tal aconteceu, como refere a testemunha, depois de muita insistência. Insistência feita por dois militares da GNR a uma pessoa que se encontrava, como veio depois a apurar-se, embriagada.
XVIII. Já a testemunha CC, também militar da GNR, no ficheiro Diligencia_29-23.0GAVPA_2024-01-11_11-31-08.mp3, supra transcrito, resulta à saciedade que o Arguido estava completamente desorientado, num estado de saúde bastante debilitado.
XIX. Num primeiro momento o Arguido refere que não era o condutor. Contudo, e no meio da pressão exercida pelos senhores militares e pelo facto de estar desorientado, acaba por referir que era ele que ia a conduzir.
XX. Por certo, o que o Arguido pretendia naquele momento era que os senhores militares da GNR o ajudassem e o levassem para o hospital. Para o conseguir, acabou por dizer o que os militares insistiam querer ouvir: que era ele o condutor da mota.
XXI. A testemunha DD, no ficheiro Diligencia_29-23.0GAVPA_2024-01-11_11-36-28.mp3, ao minuto 1:00, supra transcrito, refere que não assistiu ao acidente. Que quando chegaram ao local a mota e a pessoa já estavam no chão. Não sabe há quanto tempo aconteceu o acidente.
XXII. Resulta, ainda, que estava escuro no local. Que a pessoa caída junto da mota não tirou o capacete. Que não lhe conseguiu, em momento algum, ver a cara.
XXIII. Por último, a testemunha EE, ficheiro Diligencia_29-23.0GAVPA_2024-01-11_11-40-28.mp3, ao Minuto 01:39 supra transcrito, prestou um depoimento diferente da pessoa que o acompanhava, DD.
XXIV. Para a identificação do Arguido, feita por esta testemunha, o que nos parece que aconteceu, tal como alegámos na Contestação, é que depois de confrontada com a fotografia do Cartão de Cidadão do Arguido, de imediato assumiu que era ele.
XXV. Aqui chegados, da prova produzida não resulta que fosse o Arguido a conduzir a mota.
XXVI. Na verdade, até existem dúvidas que tenha sido o Arguido a pessoa encontrada no local do acidente.
XXVII. Destarte, devem ser julgados como não provados os seguintes factos: 1. Na madrugada do dia ../../2023, pelas 00h00m, na Estrada Nacional ..., próximo do Km 46,700, na localidade de ..., pertencente ao concelho ..., o arguido AA conduzia o motociclo com a matrícula ..-..-ZE, com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,50 g/L, quando foi interveniente num acidente de viação. 2. Ao actuar do modo descrito, agiu de forma de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade capaz de determinar uma taxa de álcool no sangue igual ou superior à legalmente permitida, o que se verificou, e que era proibido conduzir na via pública nessas circunstâncias, sem, contudo, se abster de o fazer.
3. Actuou com perfeito conhecimento de que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.”
XXVIII. De igual modo, devem ser dados como provados os seguintes factos: a) Ninguém presenciou o acidente; b) Quando a GNR chega ao local do acidente o Arguido não estava; c) O Arguido foi encontrado na Zona Industrial ..., bastante depois do acidente. d) O teste de álcool não foi feito no local do acidente.
XXIX. Tem sido entendimento da jurisprudência que para que possa submeter-se uma pessoa ao teste de deteção de álcool, é necessária a atualidade na condução.
XXX. Ora, como resulta da prova produzida, quando o Arguido foi encontrado pela GNR, tinham passado já vários minutos desde o acidente. No mínimo, passaram 15 minutos, que foi o tempo que a GNR andou à procura do Arguido. Mas, como vimos, este tempo será, seguramente, de 60 minutos.
XXXI. Pelo que a condução – se é que esta existiu – não era atual - Cfr. Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 13/05/2015, tirado no processo n.º 109/13.0GTAVR.P1, disponível em www.dgsi.pt. Ainda neste sentido, veja-se o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 16/12/2015, processo n.º 55/15.3GBALD.C1, disponível em www.dgsi.pt
XXXII. Como resulta da prova validamente produzida – e que resulta, aliás, da fundamentação da douta Sentença em crise – o Arguido foi encontrado, pelo menos, 15 minutos depois do acidente, num local que não o do acidente.
XXXIII. Assim, não se verificava a atualidade da condução. Motivo pelo qual não se consegue afirmar com um grau de certeza que não deixe lugar a quaisquer dúvidas, que o consumo de álcool tenha sido anterior ou posterior ao acidente.
XXXIV. Aliás, como já vimos, essa dúvida não se mostra ultrapassada quanto ao exercício da condução por parte do Arguido no momento do acidente.
XXXV. Destarte, e sem necessidade de maiores considerações, não pode concluir-se que o Arguido no momento do acidente estava sob o efeito do álcool. Pelo que se não verifica o preenchimento do tipo do crime que vem imputado ao Arguido.
XXXVI. Entendeu o Tribunal recorrido que a conversa mantida entre o Arguido e os militares da GNR deve ser valorada.
XXXVII. Ora, cumpre antes de se prosseguir, relembrar que quando o Arguido é encontrado pela GNR se apresentava desorientado e ferido.
XXXVIII. Mas mais, a GNR refere expressamente que o Arguido foi pressionado a admitir o exercício da condução!
XXXIX. A ter existido essa conversa, aconteceu antes da constituição de Arguido. Pelo que não gozava ainda das garantias constitucionais e legais que ao arguido assistem.
XL. Admitir a valoração de tais declarações é abrir caminho a algo que a lei processual expressamente proíbe (de acordo com o disposto nos artigos 356º, n.º 7 e 355º do CPP): o depoimento por quem tomou as declarações (documentadas e cuja leitura não é permitida) de um Arguido, sobre o seu conteúdo.
XLI. Se a lei processual penal proíbe o mais (o depoimento sobre declarações documentadas e cuja leitura não é permitida), cumprindo assim o disposto no artigo 32º n.º 1 da CRP, não se vislumbram razões válidas que sustentem a admissibilidade do menos (de declarações não documentadas e informais).
XLII. Na verdade, não estamos perante uma conversa informal – que tem merecido tratamento pela jurisprudência.
XLIII. O Arguido não admitiu a prática de qualquer facto de forma espontânea enquanto conversava com os senhores militares. Não!
XLIV. O Arguido primeira nega a prática dos factos. Depois os militares fazem mais questões, sem que tenham constituído o suspeito como Arguido. Depois insistem ainda mais para que ele fale e confesse a prática de um crime.
XLV. Estamos, isso sim, perante a inquirição insistente do futuro Arguido para que este confesse a prática do crime.
XLVI. Essa inquirição devia ter sido reduzida a auto.
XLVII. E a leitura desse auto é proibida pelo disposto no artigo 355.º, do CPP.
XLVIII. Se assim é, a testemunha não podia ser inquirida sobre esse facto, nos termos do n.º 7, do artigo 356.º, do CPP.
XLIX. De onde resulta, de forma clara, que a prova produzida pelos militares da GNR quanto a essa confissão é manifesta e incontornavelmente proibida.
L. Sendo proibida, tal prova não pode ser valorada, atento o disposto, além do mais, nos artigos 125.º e 127.º, do CPP.
LI. Tendo, assim, o Tribunal violado de forma grosseira as normas que se vêm escalpelizando.
LII. O Tribunal a quo refere que não foram valorados os reconhecimentos feitos pelas testemunhas em sede de inquérito.
LIII. A testemunha EE, quando confrontado com a fotografia do Cartão de Cidadão do Arguido, referiu imediatamente que era ele que estava no local do acidente.
LIV. Como é bom de ver, este ato processual ilegal condicionou todo o depoimento desta testemunha, tanto em sede de Inquérito, como em sede de Julgamento, no que à identificação do Arguido diz respeito.
LV. Sendo cumprido com o disposto no artigo 147.º, do CPP, a testemunha podia não apenas não ter identificado o Arguido, como podia ter identificado outra pessoa.
LVI. Tendo “identificado” o Arguido na única fotografia que lhe mostraram, ficou convencido que era ele que estava no local dos factos. Ainda que não fosse!
LVII. Estamos, claramente, perante (mais) uma violação das garantias de defesa do Arguido, previstos no n.º 1, do artigo 32.º, da CRP.
LVIII. Violação que, naturalmente, colocou em causa toda a prova produzida quanto à identificação do Arguido, conquanto, como é bom de ver, a testemunha ficou, de imediato, condicionada pela fotografia que lhe foi mostrada.
LIX. Aliás, sobre esta matéria veja-se o Acórdão tirado por esta Veneranda Relação de Coimbra a 07/05/2019 no processo 304/13.2GAVRM.G1, disponível em www.dgsi.pt
LX. Destarte, a identificação que é feita do Arguido pelas testemunhas em geral, mas por EE em particular, não pode valer como prova, por manifesta violação do disposto, além do mais, no artigo 147.º, do CPP.
LXI. Como resulta da leitura da Sentença, o Tribunal a quo reconhece que não existe prova direta que era o Arguido que conduzia a mota.
LXII. Como vimos, o teste de álcool não foi feito no momento do acidente, nem no local do acidente.
LXIII. Assim, o Tribunal parte de prova indireta quanto ao exercício da condução, para concluir, igualmente de forma indireta, que o fazia sob o efeito de álcool.
LXIV. Ora, resulta da douta Sentença que os factos que levaram a concluir que era o Arguido que conduzia a mota, são os seguintes: - o Arguido é dono da mota; - A mota sofreu despiste; - o “condutor” foi visto por testemunhas no local do acidente; - não foi avistada outra pessoa no local.
LXV. NINGUÉM presenciou o acidente. Assim, ninguém viu o condutor.
LXVI. Portanto, o Tribunal para concluir que o Arguido é o condutor, parte de um facto que não foi dado como provada com prova direta: que o Arguido é o condutor!!
LXVII. Na verdade, não conseguimos perceber como é que o Tribunal ficou absolutamente convencido que o Arguido era o condutor.
LXVIII. Vejamos, o facto de o Arguido ser dono da mota não pode levar a concluir que era ele que a conduzia.
LXIX. Desde logo porque ninguém presenciou o acidente.
LXX. Não sabemos, porque nenhuma prova foi feita quanto a essa matéria, se o acidente aconteceu muito ou pouco tempo depois de chegarem ao local as testemunhas.
LXXI. Pode ter-se dado o caso de uma segunda pessoa que seguia na mota, no lugar do condutor, ter-se posto em fuga depois do acidente…
LXXII. Não sabemos. Nem prova foi produzida quanto a essa matéria.
LXXIII. Relembre-se que, face ao princípio do acusatório, não é ao Arguido que cabe demonstrar que não praticou os factos.
LXXIV. Mas mais, o Tribunal fica ainda absolutamente convencido que no momento do acidente o Arguido apresentava uma taxa de álcool de, pelo menos, 1,50 g/l.
LXXV. Ora, como já vimos, o teste não foi feito no momento do acidente, mas sim minutos depois e noutro local.
LXXVI. Depois, o Tribunal parte da conclusão indireta que era o Arguido que conduzia, para concluir, uma vez mais de forma indireta, que o fazia sob o efeito do álcool.
LXXVII. São dois os factos base que levam o Tribunal a quo a concluir que era o Arguido o condutor: a propriedade da mota acidentada.
LXXVIII. Todos os demais, são ilações destes.
LXXIX. Destarte, verifica-se também nesta parte um erro de julgamento, pelo que deve ser julgado não provado que o Arguido era o condutor da mota e que apresentava uma taxa de álcool elevada no momento do acidente, nos termos já requeridos.

Nestes termos e nos melhores de Direito que V. Exa.s doutamente suprirão, deve o presente recurso ser declarado procedente, por provado e, em consequência, ser

A – Declarada a insuficiência para a decisão de matéria de facto provada, nos termos da al. a), do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP, que, nos termos do artigo 426.º, do CPP, determinam que seja revogada a decisão e a sua remessa para novo julgamento.
B – Declarado que se verifica erro notório na apreciação da prova, nos termos da al. c), do n.º 2, do artigo 410.º, do CPP, que deve levar à repetição do julgamento nos termos do artigo 426.º, do CPP, com as legais consequências. Sem prescindir,
C – Alterada a matéria de facto dada como provada, dando-se como não provados os factos 1, 2 e 3 dos factos provados, nos seguintes termos:
“1. Na madrugada do dia ../../2023, pelas 00h00m, na Estrada Nacional ..., próximo do Km 46,700, na localidade de ..., pertencente ao concelho ..., o arguido AA conduzia o motociclo com a matrícula ..-..-ZE, com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,50 g/L, quando foi interveniente num acidente de viação.
2. Ao actuar do modo descrito, agiu de forma de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade capaz de determinar uma taxa de álcool no sangue igual ou superior à legalmente permitida, o que se verificou, e que era proibido conduzir na via pública nessas circunstâncias, sem, contudo, se abster de o fazer.
3. Actuou com perfeito conhecimento de que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.”
D – Dar ainda como provados os seguintes factos:
a) Ninguém presenciou o acidente;
b) Quando a GNR chega ao local do acidente o Arguido não estava;
c) O Arguido foi encontrado na Zona Industrial ..., bastante depois do acidente.
d) O teste de álcool não foi feito no local do acidente.
C – Ser o Arguido absolvido do crime que lhe vem imputado.
Assim se fazendo a acostumada
JUSTIÇA»

3. O Ministério Público respondeu ao recurso, formulando no termo da contramotivação as seguintes conclusões (transcrição):
«I – A prova produzida, apreciada, ponderada e valorada pelo Tribunal a quo segundo os cânones legais, empresta a todo o processo decisório de formação da convicção do julgador, foros de justeza, correcção e comportabilidade juridicamente atendíveis.
II – A sentença recorrida encontra-se devidamente fundamentada, quer de facto quer de direito, e não é possuidora de qualquer vício que inquine a sua validade quer formal quer substancial.
Termos em que, nos melhores de Direito, e sempre com o mui douto suprimento desse Venerando Tribunal ad quem, deverá ao recurso sob resposta ser negado provimento mantendo-se na íntegra a decisão recorrida, fazendo-se desta forma a já acostumada Justiça.»
4. Nesta Relação, o Exmo. Procurador-Geral Adjunto, na intervenção a que alude o artigo 416.º do Código de Processo Penal([1]), emitiu parecer concluindo que se deverá julgar improcedente o recurso interposto pelo arguido, (a) por a sentença, analisado o seu texto, não conter um qualquer dos vícios previstos no art.º 410, n.º 2 do CPPenal, mormente o do erro notório na apreciação da prova, e (b) por inexistir razão para modificar a matéria de facto provada e especificamente por aquele contestada já que é plena a validade da prova produzida em audiência e valorada pelo julgador, pois que o arguido não ofereceu nenhuma prova impositiva de decisão diversa da fixada, tendo o julgador valorado exemplarmente a absolutamente legal prova indirecta na determinação da autoria dos factos na pessoa do arguido, em face da existência de indícios graves, precisos e concordantes.
5. Cumprido o disposto no n.º 2 do artigo 417.º, não houve resposta.
6. Colhidos os vistos, o processo foi presente à conferência para decisão.
*
II - FUNDAMENTAÇÃO

1. A sentença recorrida
1.1. Na sentença proferida na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos (transcrição):
«1. Na madrugada do dia ../../2023, pelas 00h00m, na Estrada Nacional ..., próximo do Km 46,700, na localidade de ..., pertencente ao concelho ..., o arguido AA conduzia o motociclo com a matrícula ..-..-ZE, com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,50 g/L, quando foi interveniente num acidente de viação.
2. Ao actuar do modo descrito, agiu de forma de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade capaz de determinar uma taxa de álcool no sangue igual ou superior à legalmente permitida, o que se verificou, e que era proibido conduzir na via pública nessas circunstâncias, sem, contudo, se abster de o fazer.
3. Actuou com perfeito conhecimento de que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.
Mais se provou que:
4. O arguido averba já no seu certificado de registo criminal uma condenação em 19/11/2018, transitada em julgado em 19/12/2018, no âmbito do processo n.º 55/17...., que correu termos no Juízo de Competência Genérica de ..., pela prática de um crime de tráfico de estupefacientes, p. e p. pelo artigo 21.º, do Decreto-Lei n-º 15/93, de 22 de Janeiro, em 15 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período e sujeita a regime de prova.
5. À data dos factos descritos em 1, no âmbito do Inquérito com o NUIPC 224/22.0GAVPA, o arguido beneficiava de uma suspensão provisória do processo, por terem sido recolhidos aí indícios suficientes de que foi autor de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelas disposições conjugadas dos artigos 292.º, n.º 1, do Código Penal.
6. O motociclo que o arguido conduzia à data dos factos descritos em 1 encontrava-se registado a seu favor.
Provou-se, ainda, que:
7. O arguido tem como habilitações literárias o 12º ano
8. O arguido é cantoneiro e aufere a quantia mensal de € 930,00.
9. O arguido vive em casa da mãe, pagando, na proporção de metade com a irmã, empréstimo no montante de € 390,00.»
*
1.2. Inexistem factos não provados
*
1.3. O tribunal recorrido fundamentou a formação da sua convicção nos seguintes termos (transcrição):

«O tribunal formou a sua convicção tendo em conta a apreciação da prova documental constante dos autos, bem a prova testemunhal produzida em audiência, de harmonia com o princípio da livre apreciação da prova, constante do artigo 127º do Código de Processo Penal.
*
O arguido remeteu-se ao silêncio.
*
As testemunhas BB e CC, militares da GNR, prestaram os respectivos depoimentos de forma serena e sem revelar qualquer interesse no desfecho da presente acção, pelo que foram considerados credíveis.
As testemunhas, cuja razão de ciência assenta na circunstância de terem sido chamados ao local em virtude de ter sido sinalizada a ocorrência de um acidente de viação, corroboraram os factos que se encontram descritos no auto de notícia (que foi pela segunda testemunha elaborado), bem como o estado em que se encontrava o arguido (ferido e aparentemente alcoolizado) e as diligências que foram, subsequentemente feitas, designadamente a ida ao hospital, o exame de pesquisa de álcool no sangue e a obtenção dos elementos de identificação, sendo que os documentos da mota se encontravam na mesma.
De notar que estas testemunhas encontraram o arguido na Zona Industrial ..., com ferimentos e sinais de desorientação tendo, de resto, a determinada altura, caído inanimado, pelo que foi accionado o INEM e o arguido levado para o Hospital.
Foi, ainda, segura a testemunha BB segura ao referir que viu um capacete antes de avistar o arguido e que este (após inicialmente ter referido que quem ia a conduzir era um primo seu) se assumiu como condutor da viatura, circunstancialismo que directamente percepcionou, não se consubstanciando, aqui, como declarações do arguido, e que, assim é valorado, conjuntamente com a demais prova produzida.
*
As testemunhas DD e EE, ambos vigilantes, prestaram os respectivos depoimentos de forma serena, consentânea e sem revelar parcialidade, motivo pelo qual foram tidos como credíveis pelo Tribunal.
Estas testemunhas, que se encontravam de passagem no local onde ocorreu o acidente uma vez que se dirigiam para o trabalho, aperceberam-se que se encontrava uma pessoa no chão, caída, ao lado da mota e que, num primeiro se encontrava inanimada tendo depois, após a as testemunhas terem referido que iriam chamar ajuda/pedir socorro, fugido em direcção a ....
A testemunha EE foi clara, ainda, ao referir que o acidentado tinha sangue nas mãos.
*
Nenhuma das testemunhas viu qualquer outra pessoa junto do local onde o acidente ocorreu, nem junto ao arguido.
*
Quanto à prova documental, o Tribunal teve em consideração a seguinte:
• Auto de notícia;
• Aditamento e relatório emitido pelo Serviço de Química e Toxicologia de;
• Informação extraída do Inquérito com o NUIPC 224/22.0GAVPA;
• Informação clínica;
• Participação de acidente de viação;
• Certificado de Registo Criminal;
*
No que concerne às condições socioeconómicas o tribunal deu-as por provado atendendo às declarações do arguido, por não haver razões para nelas não fazer fé.
*
Em jeito de síntese cumpre referir que não se olvida que não há prova directa quanto à condução pelo arguido no circunstancialismo de tempo, modo e lugar (ninguém o viu a conduzir), o que entende o Tribunal que não impede que se conclua pela factualidade que resultou provada, nos termos em que o foi.
O Tribunal ficou absolutamente convencido que o arguido conduzia o motociclo com a matrícula ..-..-ZE, com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,50 g/L, nas circunstâncias de tempo e lugar em apreço nos autos.

Assim, note-se que:
• a mota é do arguido;
• o veículo sofreu despiste;
• o condutor do veículo foi visto por testemunhas, no local do acidente, tendo sido assinalado que o mesmo se apresentava inicialmente desorientado (“depois veio a si”) e que tinha ferimentos, designadamente nas mãos;
• o arguido foi encontrado a alguma distância do local do acidente, desorientado e ferido, designadamente nas mãos;
• Não foi avistada por nenhuma das testemunhas qualquer outra pessoa no local do acidente ou onde o arguido foi encontrado.
Conforme se refere em acórdão do Tribunal da Relação do Tribunal do Porto de 22/04/2015, em situação muito parecida com a dos autos: “há que considera que a prova dos factos não tem de ser direta, pode ser indireta. Como se refere, entre outros no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27 de maio de 2010, proc. nº 86/06.0GBPRD.P1.S1, relatado por Soares Ramos (sum. in www.dgsi.pt): «Encontra-se universalmente consagrado o entendimento, desde logo quanto à prova dos factos integradores do crime, de que a realidade das coisas nem sempre tem de ser directa e imediatamente percepcionada, sob pena de se promover a frustração da própria administração da justiça. Deve procurar-se aceder, pela via do raciocínio lógico e da adopção de uma adequada coordenação de dados, sob o domínio de cauteloso método indutivo, a tudo quanto decorra, à luz das regras da experiência comum, categoricamente, do conjunto anterior circunstancial. Pois que, sendo admissíveis, em processo penal, “… as provas que não foram proibidas pela lei” (cf. art. 125.º do CPP), nelas se devem ter por incluídas as presunções judiciais (cf. art. 349.º do CC). As presunções judiciais consistem em procedimento típico de prova indirecta, mediante o qual o julgador adquire a percepção de um facto diverso daquele que é objecto directo imediato de prova, sendo exactamente através deste que, uma vez determinado usando do seu raciocínio e das máximas da experiência de vida, sem contrariar o princípio da livre apreciação da prova, intenta formar a sua convicção sobre o facto desconhecido (acessória ou sequencialmente objecto de prova).»
Ora, do facto de o arguido se encontrar sozinho junto do veículo que se tinha despistado, do facto de este veículo ser propriedade de seu pai e do facto de ele se ter submetido ao teste de alcoolemia, pode facilmente deduzir-se, à luz das regras da lógica e da experiência comum, que era ele quem conduzia tal veículo quando se deu o despiste.
E estamos perante um juízo de certeza (segundo a fórmula tradicional, para além de toda a dúvida razoável), não perante um juízo de mera suspeita ou probabilidade. Não se verifica, pois, qualquer violação do princípio in dubio pro reo.” (processo 616/14.8GBILH.P1, relator Pedro Vaz Pato, disponível em www.dgsi.pt).
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Por fim, cumpre, ainda, debruçarmo-nos quanto ao teor da contestação deduzida e uma vez que requereu o arguido que:

1 - Por não obedecer ao disposto no artigo 147.º, do CPP, declarar que não pode valer como meio de prova o reconhecimento feito pelas testemunhas em sede de inquérito, nos termos do n.º 7, do mesmo artigo;
2 – Declarar a inconstitucionalidade, por violação das garantias de defesa do arguido, consagradas no nº 1 do artigo 32º da Constituição, a norma constante do artigo 127º do Código de Processo Penal, quando interpretada no sentido de admitir que o princípio da livre apreciação da prova permite a valoração, em julgamento, de um reconhecimento do arguido realizado sem a observância de nenhuma das regras definidas pelo artigo 147º do Código de Processo Penal.
Ora, em termos liminares se diga que o Tribunal não valorou (até porque não se vislumbra tal meio de prova) nenhum “reconhecimento”, tendo, assim, valorado, nos termos que anteriormente se encontram escalpelizados, os depoimentos das testemunhas (prestados em sede de audiência de julgamento) e conjugando-os com os documentos aludidos, designadamente, o auto de notícia, o aditamento e relatório emitido pelo Serviço de Química e Toxicologia, informação extraída do Inquérito com o NUIPC 224/22.0GAVPA, informação clínica, participação de acidente de viação e certificado de Registo Criminal.
Desta feita, sendo os meios de prova valorados pelo Tribunal os expressamente referidos (e não outros) não há que declarar a nulidade de um meio de prova que não se verifica e que não foi tido em considerarão e, consequentemente, não se vislumbra qualquer inconstitucionalidade a apreciar.»
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2. Apreciando
Dispõe o artigo 412.º, n.º 1 do Código de Processo Penal que a motivação enuncia especificamente os fundamentos do recurso e termina pela formulação de conclusões, deduzidas por artigos, em que o recorrente resume as razões do pedido.
Por isso é entendimento unânime que as conclusões da motivação constituem o limite do objecto do recurso, delas se devendo extrair as questões a decidir em cada caso, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.
Assim, atenta a conformação das conclusões formuladas, importa conhecer das seguintes questões, organizadas pela ordem lógica das consequências da sua eventual procedência:
- vícios do n.º 2 do artigo 410.º do CPP [insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; erro notório na apreciação da prova];
- impugnação da matéria de facto;
- actualidade da condução.

2.1. Dos vícios do n.º 2 do artigo 410.º do CPP [insuficiência para a decisão da matéria de facto provada; erro notório na apreciação da prova]
Os vícios previstos no n.º 2 do artigo 410.º – a insuficiência para a decisão da matéria de facto provada, a contradição insanável da fundamentação ou entre a fundamentação e a decisão e o erro notório na apreciação do prova – são defeitos estruturais da própria decisão penal, razão pela qual a lei exige que a sua demonstração resulte, exclusivamente, do respectivo texto por si só, ou em conjugação com as regras da experiência comum.
No âmbito da revista alargada – comum designação do regime – o tribunal de recurso não conhece da matéria de facto – no sentido da reapreciação da prova –, limitando a sua actuação à detecção dos vícios que a sentença, por si só e nos seus precisos termos, evidencia e, não podendo saná-los, determina o reenvio do processo para novo julgamento. 
A insuficiência para a decisão da matéria de facto provada ocorre quando a factualidade provada não permite, por exiguidade, a decisão de direito, ou seja, quando a conclusão [decisão de direito] ultrapassa as respectivas premissas [decisão de facto].
Dito de outra forma, existe o vício quando a matéria de facto provada é insuficiente para fundamentar a decisão de direito e quando o tribunal deixou de investigar toda a matéria de facto com interesse para a decisão final([2]).
Para que exista o invocado vício é necessário que a matéria de facto fixada se apresente insuficiente para a decisão proferida por se verificar uma lacuna no apuramento da matéria necessária para uma decisão de direito.
No caso em apreciação, os factos provados praticados pelo arguido preenchem todos os elementos do tipo legal de crime de condução de veículo em estado de embriaguez por cuja prática foi condenado, assim como a mesma factualidade contém todos os elementos de facto necessários à determinação da medida da pena decretada pela 1ª instância, o que vale por dizer que a decisão de facto basta à decisão de direito proferida.
A este respeito alega o recorrente que não se produziu nos autos qualquer prova que leve a concluir, de forma indubitável, pelo preenchimento do tipo, conquanto não se pode concluir que o arguido praticou o crime de que vem acusado mas a argumentação do recorrente está longe do vício de que cuidamos na medida em que o que, verdadeiramente, pretende demonstrar não é a insuficiência da matéria de facto provada para a decisão de direito, mas a insuficiência dos meios de prova para a matéria de facto provada, a qual já cai no âmbito do princípio da livre apreciação da prova, que é insindicável em reexame restrito à matéria de direito.
Em conclusão, não se evidencia o vício de insuficiência para a decisão da matéria de facto provada que o recorrente aponta à sentença recorrida.
O erro notório na apreciação da prova verifica-se quando um homem médio, perante o teor da decisão recorrida, por si só ou conjugada com o senso comum, facilmente se dá conta que o tribunal violou as regras da experiência ou de que efectuou uma apreciação manifestamente incorrecta, desadequada, baseada em juízos ilógicos, arbitrários ou mesmo contraditórios.
O apontado vício é aquele que é evidente, que não escapa ao homem comum, de que um observador médio se apercebe com facilidade, que é patente, só podendo relevar se for ostensivo, inquestionável e perceptível pelo comum dos observadores ou pelas faculdades de apreciação do “homem médio”.
Trata-se de um vício do raciocínio na apreciação das provas, evidenciado pela simples leitura do texto da decisão; erro tão evidente que salta aos olhos do leitor médio, sem necessidade de particular exercício mental; as provas revelam claramente um sentido e a decisão recorrida extraiu ilação contrária, logicamente impossível, incluindo na matéria fáctica provada ou excluindo dela algum facto essencial.
Assim balizado o vício, lida a decisão em crise, não vemos que tenha sido considerado provado um qualquer facto que, notoriamente, não pudesse ter acontecido, nem que tenha sido valorado um qualquer meio de prova ao arrepio de critério legal estabelecido ou que esta tenha sido valorada contra as regras da experiência comum.
O que parece ser o verdadeiro propósito do recorrente é antes discordar da decisão proferida sobre a matéria de facto por entender que nela foram cometidos erros de apreciação, deslocando, portanto, a questão para o campo da valoração da prova.
Esta discordância já não tem a ver com o regime dos vícios da decisão, pois, a existir erro, ele não será notório, mas antes com o modo como o tribunal a quo valorou a prova produzida, ou seja, o uso que o tribunal recorrido fez do princípio da livre apreciação da prova.
Assim balizada a questão, ela nada tem a ver com o invocado vício, mas antes com a discordância do recorrente em relação a concretos aspectos da decisão proferida sobre a matéria de facto, discordância que pode ser sindicada nos termos da impugnação ampla da matéria de facto regulada no artigo 412.º do Código de Processo Penal, mecanismo processual a que o arguido também recorreu e de que cuidaremos de seguida.
Em conclusão, não se evidencia o vício de erro notório na apreciação da prova que o recorrente aponta à sentença recorrida.

2.2. Da impugnação da matéria de facto
Nos termos do disposto no artigo 428.º os Tribunais da Relação conhecem de facto e de direito.
Uma vez que no caso em apreço houve documentação da prova produzida em audiência, com a respectiva gravação, pode este tribunal reapreciar em termos amplos a prova, nos termos dos artigos 412.º, n.º 3 e 431.º, b), ficando, todavia, o seu poder de cognição delimitado pelas conclusões da motivação do recorrente.
É sabido que a matéria de facto pode ser sindicada no âmbito, mais restrito, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, no que se convencionou chamar de “revista alargada”, ou através da impugnação ampla da matéria de facto, a que se refere o artigo 412.º, nºs 3, 4 e 6.
No primeiro caso, estamos perante a arguição dos vícios decisórios previstos nas diversas alíneas do n.º 2 do referido artigo 410.º, cuja indagação, como resulta do preceito, tem que resultar da decisão recorrida, por si mesma ou conjugada com as regras da experiência comum, não sendo por isso admissível o recurso a elementos estranhos àquela para a fundamentar, como, por exemplo, quaisquer dados existentes nos autos, mesmo que provenientes do próprio julgamento([3]).
No segundo caso, a apreciação não se restringe ao texto da decisão, alargando-se à análise do que se contém e pode extrair da prova (documentada) produzida em audiência, mas sempre dentro dos limites fornecidos pelo recorrente no estrito cumprimento do ónus de especificação imposto pelos nºs 3 e 4 do artigo 412.º.
Nos casos de impugnação ampla, o recurso da matéria de facto não visa a realização de um segundo julgamento sobre aquela matéria, agora com base na audição de gravações, antes constituindo um mero remédio para obviar a eventuais erros ou incorrecções da decisão recorrida na forma como apreciou a prova, na perspectiva dos concretos pontos de facto identificados pelo recorrente.
O recurso que impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não pressupõe, por conseguinte, a reapreciação total do acervo dos elementos de prova produzidos e que serviram de fundamento à decisão recorrida, mas antes uma reapreciação autónoma sobre a razoabilidade da decisão do tribunal a quo quanto aos «concretos pontos de facto» que o recorrente especifique como incorrectamente julgados.
Para esse efeito, deve o tribunal de recurso verificar se os pontos de facto questionados têm suporte na fundamentação da decisão recorrida, avaliando e comparando especificadamente os meios de prova indicados nessa decisão e os meios de prova indicados pelo recorrente e que este considera imporem decisão diversa([4]).
Justamente porque o recurso em que se impugne (amplamente) a decisão sobre a matéria de facto não constituiu um novo julgamento do objecto do processo, mas antes um remédio jurídico que se destina a despistar e corrigir, cirurgicamente, erros in judicando ou in procedendo, que o recorrente deve expressamente indicar, impõe-se a este o ónus de proceder a uma tríplice especificação, estabelecendo o artigo 412.º, n.º 3, o seguinte:
«Quando impugne a decisão proferida sobre a matéria de facto, o recorrente deve especificar:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorrectamente julgados;
b) As concretas provas que impõem decisão diversa da recorrida;
c) As provas que devem ser renovadas.»
A especificação dos «concretos pontos de facto» traduz-se na indicação dos factos individualizados que constam da sentença recorrida e que se consideram incorrectamente julgados.
A especificação das «concretas provas» só se satisfaz com a indicação do conteúdo especifico do meio de prova ou de obtenção de prova e com a explicitação da razão pela qual essas «provas» impõem decisão diversa da recorrida.
A especificação das provas que devem ser renovadas implica a indicação dos meios de prova produzidos na audiência de julgamento em 1ª instância cuja renovação se pretenda, dos vícios previstos no artigo 410.º, n.º 2, e das razões para crer que aquela permitirá evitar o reenvio do processo (cfr. artigo 430.º).
Estabelece ainda o n.º 4 do artigo 412.º que, havendo gravação das provas, as especificações previstas nas alíneas b) e c) do número anterior fazem-se por referência ao consignado na acta, devendo o recorrente indicar concretamente as passagens (das gravações) em que se funda a impugnação, pois são essas que devem ser ouvidas ou visualizadas pelo tribunal, sem prejuízo de outras relevantes (n.º 6 do artigo 412.º)([5]).
Ao apreciar-se o processo de formação da convicção do julgador não pode ignorar-se que a apreciação da prova obedece ao disposto no artigo 127.º, ou seja, fora as excepções relativas a prova legal, assenta na livre convicção do julgador e nas regras da experiência, não podendo também esquecer-se o que a imediação em 1.ª instância dá e o julgamento da Relação não permite.
Como se tem entendido, a reapreciação, com base em meios de prova com força probatória não vinculativa, da decisão da 1ª instância quanto à matéria de facto deverá ser feita com o cuidado e ponderação necessárias, face aos princípios da oralidade, imediação e livre apreciação da prova.
São inúmeros os factores relevantes na apreciação da credibilidade do teor de um depoimento que só são apreensíveis pelo julgador mediante o contacto directo com os depoentes na audiência.
Embora a reapreciação da matéria de facto, no que ao Tribunal da Relação se refere, esteja igualmente subordinada ao princípio da livre apreciação da prova e sem limitação (à excepção da prova vinculada) no processo de formação da sua convicção, deverá ela ter em conta que dos referidos princípios decorrem aspectos de relevância indiscutível (reacções do próprio depoente ou de outros, hesitações, pausas, gestos, expressões) na valoração dos depoimentos pessoais que melhor são perceptíveis pela 1ª instância.
À Relação caberá, sem esquecer tais limitações, analisar o processo de formação da convicção do julgador, apreciando, com base na prova gravada e demais elementos de prova constantes dos autos, se as respostas dadas apresentam erro evidenciável e/ou se têm suporte razoável nas provas e nas regras da lógica, experiência e conhecimento comuns, não bastando, para eventual alteração, diferente convicção ou avaliação do recorrente quanto à prova testemunhal produzida.
Assim, se a decisão factual do tribunal recorrido se baseia numa livre convicção objectivada numa fundamentação compreensível e naquela optou por uma das soluções permitidas pela razão e pelas regras de experiência comum, a fonte de tal convicção – obtida com o benefício da imediação e da oralidade – apenas pode ser afastada se ficar demonstrado ser inadmissível a sua utilização pelas mesmas regras da lógica e da experiência comum.
Não basta, pois, que o recorrente pretenda fazer uma “revisão” da convicção obtida pelo tribunal recorrido por via de argumentos que permitam concluir que uma outra convicção “era possível”, sendo imperiosa a demonstração de que as provas indicadas impõe uma outra convicção.
A demonstração desta imposição recai sobre o recorrente que deve relacionar o conteúdo específico de cada meio de prova que impõe decisão diversa da recorrida com o facto individualizado que considera incorrectamente julgado([6]).
Torna-se necessário que demonstre que a convicção obtida pelo tribunal recorrido é uma impossibilidade lógica, uma impossibilidade probatória, uma violação de regras de experiência comum, uma patentemente errada utilização de presunções naturais, ou seja, que demonstre não só a possível incorrecção decisória mas o absoluto da imperatividade de uma diferente convicção.
Tudo isto vem para se dizer que o trabalho que cabe à Relação fazer, na sindicância do apuramento dos factos realizado em 1.ª instância, se traduz fundamentalmente em analisar o processo de formação da convicção do julgador, e concluir, ou não, pela perfeita razoabilidade de se ter dado por provado o que se deu por provado([7]).
O Tribunal da Relação só pode/deve determinar uma alteração da matéria de facto assente quando concluir que os elementos de prova impõem uma decisão diversa e não apenas permitem uma outra decisão([8]).
A utilização do termo “impor” no artigo 412.º do Código de Processo Penal “…revela que para o legislador essa alteração terá de ter um grau de exigência elevado, ou seja, que ela só ocorrerá se a prova invocada for suficientemente forte não só para colocar algumas dúvidas, mas para determinar sem lugar a dúvidas razoáveis uma decisão diferente. Se o tribunal de recurso concluir somente que as provas admitem outra solução não haverá lugar à alteração dos factos.”([9]).
Expostas estas breves considerações sobre o sentido e alcance da impugnação ampla da matéria de facto, assim como sobre os ónus impostos ao recorrente, passemos à análise do caso concreto.
O recorrente manifesta discordância sobre a matéria de facto por entender que devem ser julgados como não provados os pontos 1 a 3 dos factos provados e que devem ser dados como provados os seguintes factos: a) Ninguém presenciou o acidente; b) Quando a GNR chega ao local do acidente o Arguido não estava; c) O Arguido foi encontrado na Zona Industrial ..., bastante depois do acidente. d) O teste de álcool não foi feito no local do acidente.
Analisando a motivação e as conclusões constata-se que o recorrente não alega que a descrição que a sentença recorrida faz do conteúdo dos depoimentos das testemunhas, assim como a análise que faz da prova documental e pericial, não corresponde ao que, na realidade, disseram as testemunhas, nem ao que consta daquela prova documental ou pericial.
O que o recorrente faz é coisa totalmente diferente.
O recorrente faz a transcrição dos depoimentos das testemunhas para, a partir de tais transcrições, conferir à prova produzida uma outra leitura, substituindo a sua própria convicção à convicção do tribunal a quo, sem apontar em concreto um erro de julgamento, fazendo o ataque à decisão da matéria de facto pela via da credibilidade que o tribunal deu a determinados meios de prova, o que se afigura irrelevante em termos de impugnação da matéria de facto.
A factualidade sindicada, que corresponde, como se disse, aos pontos 1 a 3 dos factos provados que constam da sentença em crise, tem o seguinte teor: 
1. Na madrugada do dia ../../2023, pelas 00h00m, na Estrada Nacional ..., próximo do Km 46,700, na localidade de ..., pertencente ao concelho ..., o arguido AA conduzia o motociclo com a matrícula ..-..-ZE, com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,50 g/L, quando foi interveniente num acidente de viação.
- 2. Ao actuar do modo descrito, agiu de forma de forma livre, deliberada e consciente, bem sabendo que tinha ingerido bebidas alcoólicas em quantidade capaz de determinar uma taxa de álcool no sangue igual ou superior à legalmente permitida, o que se verificou, e que era proibido conduzir na via pública nessas circunstâncias, sem, contudo, se abster de o fazer.
3. Actuou com perfeito conhecimento de que a sua conduta era proibida por lei e criminalmente punida.
Como resulta da leitura da fundamentação da matéria de facto, em jeito de síntese, referindo que não existe prova directa quanto à condução pelo arguido nas circunstâncias de tempo, modo e lugar (ninguém o viu a conduzir), o tribunal a quo concluiu que tal não impede que se conclua pela factualidade que resultou provada, nos termos em que o foi.
Salientou o tribunal a quo que ficou absolutamente convencido que o arguido conduzia o motociclo com a matrícula ..-..-ZE, com uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,50 g/L, nas circunstâncias de tempo e lugar em causa nos autos, destacando vários indícios que lhe permitiram concluir que o arguido praticou tais factos, a saber:
• a mota é do arguido;
• o veículo sofreu despiste;
• o condutor do veículo foi visto por testemunhas, no local do acidente, tendo sido assinalado que o mesmo se apresentava inicialmente desorientado (“depois veio a si”) e que tinha ferimentos, designadamente nas mãos;
• o arguido foi encontrado a alguma distância do local do acidente, desorientado e ferido, designadamente nas mãos;
• Não foi avistada por nenhuma das testemunhas qualquer outra pessoa no local do acidente ou onde o arguido foi encontrado.
Em matéria de julgamento da prova a nossa lei consagrou o princípio da livre apreciação, de acordo com o qual a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção da entidade competente – artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Por outro lado, atentas as naturais dificuldades de reconstituição do facto delituoso([10]), vem sendo entendido que a apelidada prova artificial ou por concurso de circunstâncias – prova indiciária ou indirecta – é absolutamente indispensável em matéria criminal([11]).
É conhecida a clássica distinção entre prova directa e prova indirecta ou indiciária, sendo aquela a que incide directamente sobre o facto probando, enquanto esta incide sobre factos diversos do tema de prova mas que permitem, com o auxílio de regras da experiência, uma ilação da qual se infere o facto a provar([12]).
Embora a nossa lei processual não faça qualquer referência a requisitos especiais em sede de demonstração dos requisitos da prova indiciária, a aceitação da sua credibilidade está dependente da convicção do julgador que, embora sendo uma convicção pessoal, terá que ser sempre objectivável e motivável.
Sendo a prova por concurso de circunstâncias absolutamente indispensável em processo penal posto que, se a mesma fosse excluída, ficariam na mais completa impunidade um sem fim de actividades criminais([13]).
Trata-se, aliás, de prova especialmente apta para dilucidar os elementos do tipo subjectivo do crime que de outra forma seriam impossíveis de demonstrar a não ser pela confissão.
Não incidindo directamente sobre o facto tema de prova exige-se um particular cuidado na sua apreciação, sendo certo que apenas se pode extrair o facto probando do facto indiciário quando tal seja corroborado por outros elementos de prova por forma a que sejam afastadas outras hipóteses igualmente possíveis([14]).
Na avaliação da prova indiciária, mais do que em qualquer outra, intervém a inteligência e a lógica do julgador – sendo do mesmo passo, mais relevante do que em qualquer outro meio de prova mais ou menos tarifado, o contacto directo e a imediação do julgador com a sua produção, para aquilatar a sua credibilidade, assim como é tanto mais consistente quanto menores os factores externos que possam perturbar a verificação do facto probando.
Nada impedindo que, devidamente valorada, por si e na conjugação dos vários indícios, por si e de acordo com as regras da experiência, permita fundamentar a condenação.
Aliás, a associação que a prova indiciária permite entre elementos de prova objectivos e regras objectivas da experiência leva alguns autores a afirmarem a sua superioridade perante outros tipos de provas, nomeadamente a prova directa testemunhal, onde também intervém um elemento que ultrapassa a racionalidade e que será mais perigoso de determinar, qual seja, a credibilidade do testemunho([15]) ([16]).
Por isso, na ausência de prova directa, todos reconhecem a possibilidade de o tribunal deduzir racionalmente a verdade dos factos a partir da prova indiciária([17]).
No entanto, a prova indiciária deverá obedecer, em princípio, aos seguintes requisitos:
a) Existência de uma pluralidade de dados indiciários plenamente provados ou absolutamente credíveis([18]);
b) Racionalidade da inferência obtida de maneira que o facto “consequência” resulte de forma natural e lógica dos factos-base, segundo um processo dedutivo, baseado na lógica e nas regras da experiência (recto critério humano e correcto raciocínio)( [19]).
No caso vertente, estamos perante uma situação em que ocorrem dados indiciários de inquestionável credibilidade e especial relevo no que diz respeito à condução do motociclo pelo arguido nas descritas circunstâncias, quais sejam o de o motociclo ser do arguido [o arguido beneficia de presunção registral - art. 7.º do Código de Registo Predial ex vi do art. 29.º do Código do Registo da Propriedade Automóvel], o de o motociclo ter sofrido despiste, o de o condutor do motociclo ter sido visto por testemunhas no local do acidente, tendo sido assinalado que o mesmo se apresentava inicialmente desorientado (“depois veio a si”) e que tinha ferimentos, designadamente nas mãos, o de o condutor do motociclo se ter ausentado do local do acidente, o de o arguido ter sido encontrado a alguma distância do local do acidente, desorientado e ferido, designadamente nas mãos, e o de não ter sido avistada por nenhuma das testemunhas qualquer outra pessoa no local do acidente ou onde o arguido foi encontrado.
No caso vertente, dúvidas não existem que os indícios existentes contra o arguido são todos eles graves, precisos e concordantes, o mesmo é dizer são persuasivos, inatacáveis e convergem todos no mesmo sentido.
Todos os indícios supra descritos, se devidamente concatenados, apontam numa única direcção: a condução do motociclo pelo arguido nas descritas circunstâncias de tempo, modo e lugar.
Por último, perante essa pluralidade de indícios, o arguido nada trouxe ao processo (nem se preocupou em fazê-lo ao longo das suas diversas fases especialmente em audiência de julgamento) que contrariasse tais indícios.
Quanto ao depoimento da testemunha BB, na parte em que referiu que viu um capacete antes de avistar o arguido e que este (após inicialmente ter referido que quem ia a conduzir era um primo seu) se assumiu como condutor da viatura, diga-se que não constitui meio proibido de prova, pois estamos perante declarações extraprocessuais([20]) e não perante declarações processuais de arguido como tal constituído ou de sujeito a que se impusesse tal constituição (em face dos elementos até então colhidos pelos OPC), sendo certo que tal não foi determinante para a prova do facto presumido.
Assim, não só não estamos perante qualquer violação do preceituado no artigo 356.º n.º 7 ex-vi artigo 357.º, n.º 2 do CPP, uma vez que não estão em causa quaisquer declarações do arguido, vertidas em auto, cuja leitura não seja permitida, como inexiste uma qualquer proibição dos elementos que integrem órgãos de polícia criminal em deporem relativamente a factos de que tomaram conhecimento directo no decurso das investigações([21]).
Por outro lado, como resulta da leitura da fundamentação da decisão da matéria de facto, refira-se que, em momento algum, houve qualquer ‘reconhecimento’ do arguido pelas testemunhas em geral e em particular pela testemunha EE, tendo o tribunal a quo formado a sua convicção nos depoimentos prestados pelas testemunhas em sede de audiência de julgamento conjugados com o auto de notícia, o aditamento e relatório emitido pelo Serviço de Química e Toxicologia, informação extraída do Inquérito com o NUIPC 224/22.0GAVPA, informação clínica, participação de acidente de viação e certificado de registo criminal, nos termos supra expostos.
Por último, os factos que o recorrente pretende ver aditados, independentemente da respectiva prova, são factos meramente instrumentais que, de algum modo, já resultam da motivação da decisão da matéria de facto pelo que carece de justificação a sua pretendida inclusão no elenco dos factos provados.
Em suma, os meios de prova indicados pelo recorrente como impondo decisão diversa relativamente aos pontos 1 a 3 dos factos provados são insusceptíveis de alcançar tal desiderato – em bom rigor, o recorrente pouco mais fez do que dissentir da valoração probatória feita na sentença –, sendo certo que os mesmos factos encontram suficiente respaldo na prova valorada pelo tribunal recorrido nos termos que constam da motivação da decisão da matéria de facto e com plena observância do disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.
Improcede, portanto, a impugnação ampla da matéria de facto.

2.3. Da actualidade da condução
Alega o recorrente que tem sido entendimento da jurisprudência que, para que possa submeter-se uma pessoa ao teste de detecção de álcool, é necessária a actualidade na condução, acrescentando que a condução – se é que esta existiu – não era actual porque quando foi encontrado pela GNR tinham passado já vários minutos desde o acidente, no mínimo, 15 minutos, mas este tempo será, seguramente, de 60 minutos.
Começaremos por dizer que, resultando improcedente o recurso quanto à impugnação ampla da matéria de facto, tem-se por definitivamente fixada a matéria de facto nos exactos termos em que o foi pela 1ª instância e, portanto, assente a condução do motociclo pelo arguido nas descritas circunstâncias de tempo, modo e lugar.
Sendo certo que constitui entendimento da jurisprudência que é necessária a actualidade na condução para a submissão do condutor à prova de detecção do estado de influenciado pelo álcool, não menos certo é que o conceito de condução actual é de alargar àquelas situações em que, as concretas circunstâncias tornam evidente e inequívoca a relação entre o agente e o facto, entre o cidadão fiscalizado e a condução, num conceito próximo ao da presunção de flagrante delito [na modalidade de ser o agente encontrado com objectos ou sinais que mostrem inequivocamente que o cometeu – cfr. artigo 256.º, n.º 2 do Código de Processo Penal]([22]).
O flagrante delito comporta três distintas modalidades – artigo 256.º do Código de Processo Penal.
O flagrante delito propriamente dito, quando o agente é surpreendido a praticar o crime, portanto, é a actualidade do crime. O quase flagrante delito, quando o agente já cometeu o crime mas é surpreendido no momento em que cessou a execução, portanto, ainda no local da infracção. E a presunção de flagrante delito, quando o agente é perseguido, logo após a execução do crime, por qualquer pessoa, ou é encontrado com objectos ou sinais que mostrem inequivocamente que o cometeu.
A lei não estabelece critério para a densificação do que se deva considerar «logo após o crime» mas não vemos que um período de 15 minutos ou até de 60 minutos, por si só, se excluam do conceito, desde que o restante circunstancialismo envolvente torne evidente e inequívoca a relação de autoria do agente com o facto.
No caso dos autos, em que o motociclo do arguido sofreu um despiste, o arguido foi visto por testemunhas, no local do acidente, tendo sido assinalado que o mesmo se apresentava inicialmente desorientado (“depois veio a si”) e que tinha ferimentos, designadamente nas mãos, o arguido se ausentou do local do acidente e foi encontrado a alguma distância do local do acidente, desorientado e ferido, designadamente nas mãos, parece-nos evidente que o recorrente tinha, há relativamente pouco tempo, acabado de exercer a condução e, portanto, a condução do recorrente é uma condução actual.
Improcede, pois, também esta questão.
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III – DISPOSITIVO

Nestes termos, acordam os juízes do Tribunal da Relação em julgar improcedente o recurso do arguido AA e, consequentemente, confirmar a sentença recorrida.
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Custas pelo recorrente, fixando-se a taxa de justiça em 4 (quatro) UC (artigos 513.º, n.º 1 do Código de Processo Penal e 8.º, n.º 9 do Regulamento das Custas Processuais e Tabela III, anexa a este último diploma legal).
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(O acórdão foi elaborado pelo relator e revisto pelos seus signatários, nos termos do artigo 94.º, n.º 2 do CPP)
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Guimarães, 18.06.2024

Fernando Chaves (Relator)
Paulo Almeida Cunha (1º Adjunto)
Isilda Maria Correia de Pinho (2ª Adjunta)


[1] - Diploma a que se referem os demais preceitos legais citados sem menção de origem.
[2] - Cfr. Simas Santos e Leal Henriques, Recursos em Processo Penal, 7ª Edição, 2008, pág. 72.
[3] - Cfr. Maia Gonçalves, Código de Processo Penal, Anotado, 10ª edição, pág. 729, Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, Verbo, 2ª ed., pág. 339 e Simas Santos e Leal Henriques, Recurso em Processo Penal, 6ª ed., págs. 77 e segs.
[4] - Cfr. Acórdãos do STJ de 14/3/2007, de 23/5/2007 e de 3/7/2008, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[5] - Na ausência de consignação na acta do início e termo das declarações, o Supremo Tribunal de Justiça veio fixar jurisprudência no sentido de bastar, para efeitos do disposto no artigo 412.º, n.º 3, alínea b), do CPP, a referência às concretas passagens/excertos das declarações que, no entendimento do recorrente, imponham decisão diversa da assumida, desde que transcritas – Acórdão de Uniformização de Jurisprudência n.º 3/2012, de 8/3, publicado no DR, I Série, de 18/4/2012.
[6] - Paulo Pinto de Albuquerque, Comentário do Código de Processo Penal, Universidade Católica Editora, 3ª edição, pág. 1122, nota 9.
[7] - Cfr. Acórdãos do STJ de 23/4/2009 e de 29/10/2009, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[8] - Cfr. Acórdãos do STJ de 15/7/2009, de 10/3/2010 e de 25/3/2010, disponíveis em www.dgsi.pt/jstj.
[9] - Acórdão do STJ de 18/01/2018, proferido, em 2ª instância, no Proc.º. 563/14.3TABRG.S1 - 3ª Secção.
[10] - O facto delituoso, atenta a sua censurabilidade e punibilidade, por via de regra, quando materialmente possível, é perpetrado de forma oculta.
[11] - Cfr. Mittermaier, “Tratado de la prueba en material criminal”, Imprenta de la Revista de Legislacion, 3ª edição, 352.
[12] - Cfr. Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, 5ª Edição, volume II, pág. 144.
[13] - Cfr. Francisco Alcoy, Prueba de Indicios, Credibilidad del Acusado y Presuncion de Inocencia, Editora Tirant Blanch, Valencia 2003, pág. 25; Climent Dúran, La Prueba Penal, pág. 597, citando a melhor doutrina e a jurisprudência do Tribunal Constitucional de Espanha.
[14] - Cfr. Germano Marques da Silva, obra citada, pág. 145.
[15] - Cfr. Mittermaier, obra citada, pág. 389.
[16] - Neste sentido se pronunciou o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 11/11/2004, ao referir que o sistema probatório alicerça-se em grande parte no raciocínio indutivo de um facto desconhecido para um facto conhecido; toda a prova indirecta se faz valer através desta espécie de presunções. O recurso às presunções naturais não viola o princípio in dubio pro reo – disponível em www.dgsi.pt/jstj.
[17] - Cfr. Acórdão da Relação de Coimbra de 9/2/2000, publicado na CJ, Ano XXV, I, pág. 51; Veja-se ainda a jurisprudência e a doutrina mencionadas no Acórdão da Relação de Guimarães de 19/1/2009, processo n.º 2025/08-2, disponível em www.dgsi.pt/jtrg.
[18] - Excepcionalmente casos há em que basta um só indício pelo seu especial valor, como sucede, por exemplo, com a posse de estupefacientes para o tráfico – cfr. a decisão do Supremo Tribunal Espanhol de 21/11/2000, referenciada por Francisco Pastor Alcoy, ibidem.
[19] - Neste sentido a decisão do Tribunal Supremo Espanhol de 6/6/2001, referenciada por Francisco Pastor Alcoy ibidem.
[20] - Cfr. Paulo Dá Mesquita, A prova do crime e o que se disse antes do julgamento, Coimbra, Dezembro 2011, pág. 584.
[21] - Acs. S.T.J. de 30.10.2002, Proc. n.º 2557/02 e de 30.05.01, Proc. n.º 1405/01, cujos sumários estão vertidos no Código de Processo Penal Comentado, Henriques Gaspar, et alii, Almedina, 2016, pág. 1078.
[22] - Acórdão da Relação de Coimbra de 22.02.2017, Proc. 85/16.8GTVIS.C1, in www.dgsi.pt./jtrc.