Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
3273/23.7T8VCT.G1
Relator: GONÇALO OLIVEIRA MAGALHÃES
Descritores: STANDARD PROBATÓRIO
CONFISSÃO JUDICIAL
EMPREITADA
RESOLUÇÃO
DESISTÊNCIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 01/23/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
(i) A indevida consideração de uma confissão feita em depoimento de parte não reduzida a escrito para, com base nela, dar como provado um enunciado de facto relevante para a decisão da causa, constitui um error in iudicando, relacionado com a aplicação das normas de direito probatório material, tendo como consequência a modificação da sentença, e não um vício extrínseco ao ato de julgamento, suscetível de determinar a nulidade da sentença nos termos do disposto no art. 615 do CPC.
(ii) Não condena em objeto diverso do que foi pedido a sentença que, julgando parcialmente procedente o pedido de condenação do dono da obra a pagar uma indemnização ao empreiteiro por facto lícito (desistência da empreitada) num determinado quantitativo, condena aquele a pagar (apenas) o montante que vier a ser liquidado em momento ulterior, com fundamento na inexistência, no momento da sua prolação, dos elementos necessários à liquidação, que necessariamente estará limitada ao quantitativo adrede pedido.
(iii) A confissão obtida em sede de depoimento de parte (confissão judicial provocada) deve ser reduzida a escrito para produzir efeitos qua tale, dotada de força probatória plena.
(iv) A inobservância dessa formalidade preclude a possibilidade de o reconhecimento que o depoente fizer de um facto que lhe seja desfavorável, ainda que gravado, ter valor probatório de prova plena contra ele.
(v) Sem prejuízo, esse reconhecimento, sendo em si um meio de prova admissível, poderá ser livremente apreciado pelo tribunal, de forma conjugada com a demais prova, para efeitos de formação da sua convicção.
(vi) Provando-se que o contrato de empreitada cessou por declaração unilateral do dono da obra, enquadrável na figura da desistência, e não por incumprimento definitivo imputável ao empreiteiro, conforme havia sido alegado por aquele na petição inicial, deve improceder o pedido formulado pelo dono da obra de restituição da parte do preço já paga e de condenação no pagamento de indemnização pelos danos sofridos em resultado do dito incumprimento.
(vii) Em tal situação, apesar da licitude do ato do dono da obra, a posição de sujeição em que se encontra o empreiteiro é contrabalançada pelo direito a ser indemnizado das despesas e dos trabalhos realizados, bem como do proveito que poderia retirar da obra se a tivesse concluído.
(viii) Se os trabalhos realizados pelo empreiteiro apresentarem defeitos e desconformidades, estas devem dar lugar a uma redução equitativa do montante indemnizatório, sendo assim, nessa sede, que assumem relevo jurídico.
(ix) Tendo a desistência eficácia ex nunc, um eventual direito do dono da obra à restituição do preço adiantadamente pago ao empreiteiro, na parte em que o mesmo exceder o valor das despesas e dos trabalhos realizados, tem de ser enquadrado no instituto do enriquecimento sem causa – mais concretamente, na conditio ob causam finitam –, não podendo ser conhecido na ação em que tal restituição foi pedida com fundamento no (não provado) incumprimento definitivo imputável ao empreiteiro.
Decisão Texto Integral:
Relator: Juiz Desembargador Gonçalo Oliveira Magalhães
1.º Adjunto: Juiz Desembargador Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício
2.ª Adjunta: Juíza Desembargadora Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade

I.
1). AA e BB intentaram a presente ação declarativa, sob a forma comum, contra EMP01..., Lda., pedindo a condenação desta a: (i) “restituir aos Autores a quantia de € 5 822,40, acrescida de juros até efetivo e integral pagamento, a título de redução do preço do contrato de empreitada celebrado entre as partes”; e (ii) “pagar aos Autores a quantia de € 1 676,93, acrescida de juros até efetivo e integral pagamento, a título de indemnização por danos patrimoniais.”

Alegaram, em síntese, que: em dezembro de 2022, celebraram com a Ré um contrato de empreitada pelo qual esta se obrigou a proceder aos trabalhos de construção civil necessários à remodelação de um prédio urbano de que são proprietários, mediante o pagamento do preço total de € 61 041,00, acrescido de IVA à taxa legal; no momento da celebração desse contrato, adiantaram o pagamento de  € 25 225,33, correspondente a 40% do preço convencionado e respetivo IVA; ficou acordado que a Ré daria início aos trabalhos em janeiro de 2023, o que não sucedeu; apenas na segunda semana de fevereiro de 2023, a Ré apresentou um plano para a execução dos trabalhos, o qual previa a respetiva realização nos meses de fevereiro a abril do mesmo ano; apesar das diversas interpelações feitas pelos Autores, “no final de fevereiro os trabalhos que deveriam estar finalizados não estavam sequer iniciados” (sic); “[a]pós várias insistências por parte dos Autores para que se iniciasse a execução da obra, a Ré, unilateralmente[,] em 4 de março de 2023, resolveu o contrato de empreitada celebrado, abandonando a obra” (sic); nesse momento apenas se encontrava feita parte dos trabalhos, inferior a 10% do total da obra; alguns desses trabalhos estavam feitos de forma defeituosa; concomitantemente, a Ré emitiu uma nota de crédito a favor dos Autores no valor total que havia recebido destes (€ 25 225,33) e uma fatura no valor de € 5 822,40, em cujo descritivo fez constar diversos trabalhos que não foram contratados e outros que apresentam defeitos, oportunamente denunciados e reconhecidos, mas não eliminados; na sequência, a Ré apenas restituiu aos Autores a quantia de € 19 402,93; os Autores têm direito a ser ressarcidos do montante assim retido pela Ré após a resolução unilateral do contrato a que esta procedeu; têm ainda direito a ser indemnizados pelo montante de € 1 676,93 que despenderam com o seu alojamento em ... para poderem fiscalizar a execução da obra.
Citada, a Ré contestou dizendo, também em síntese, que: não foi convencionado qualquer prazo para o início e conclusão da obra; depois desta ter sido iniciada, em fevereiro de 2023, os Autores exigiram da Ré a apresentação dos trabalhos a executar diariamente, o que esta recusou; perante a recusa da Ré, os Autores disseram-lhe que “deixasse a obra, desistindo do contrato de empreitada” (sic); em março de 2023, a Ré deixou de trabalhar; emitiu uma nota de crédito relativa ao preço que havia recebido adiantadamente e uma fatura relativa ao valor dos trabalhos já executados; na sequência, restituiu aos Autores a diferença entre os dois valores, retendo o restante para si, por lhe ser devido; dois dias depois de a Ré ter deixado a obra, esta foi continuada por outro empreiteiro para esse efeito contratado pelos Autores; perante a desistência por parte dos Autores, a Ré tem direito não apenas ao valor dos trabalhos que realizou, mas também a receber € 7 500,00, “a título de proveito que poderia tirar da obra e que, por aquela razão, não tirou.” (sic)
Concluiu pedindo, ademais da improcedência da ação, a título reconvencional, a condenação dos Autores no pagamento da quantia de € 7 500,00, acrescida de juros “à taxa comercial” (sic), contados desde a notificação da contestação e até efetivo e integral pagamento.
Os Autores apresentaram réplica, reiterando o alegado na petição inicial e pugnando pela improcedência do pedido reconvencional.
Com data de 29 de janeiro de 2024, foi proferido despacho a: afirmar, em termos tabulares, a verificação dos pressupostos processuais; admitir o pedido reconvencional; fixar em € 14 999,33 o valor processual; dispensar a realização da audiência prévia e, bem assim, a delimitação dos termos do litígio e a enunciação dos temas da prova; admitir os meios de prova requeridos pelas partes.
Realizou-se a audiência final e, após o seu encerramento, foi proferida sentença, datada de 14 de junho de 2024, a julgar: (i) a ação improcedente, absolvendo a Ré dos pedidos formulados pelos Autores; (ii) a reconvenção parcialmente procedente, condenando os Autores (Reconvindos) a pagarem à Ré (Reconvinte) “o valor que se vier a liquidar ulteriormente, nos termos do disposto no art. 609.º do CPC.” (sic)
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2). Inconformados com o assim decidido, os Autores (daqui em diante, Recorrentes) interpuseram o presente recurso, através de requerimento composto por alegações e conclusões, sendo estas do seguinte teor (transcrição):

(I) O objeto do presente recurso versa sobre a decisão proferida pelo Tribunal a quo, [que] julgou improcedente a ação declarativa proposta pelos Recorrentes, na qual pediram a condenação da Recorrida à restituição aos Recorrentes da quantia de 5.822,40€ (cinco mil oitocentos e vinte e dois euros e quarenta cêntimos), acrescido de juros até efetivo e integral pagamento, a título de redução do preço do contrato de empreitada celebrado entre as parte; e ao pagamento aos Recorrentes da quantia de 1.676,93€ (mil seiscentos e setenta e seis euros e noventa e três cêntimos), acrescido de juros até efetivo e integral pagamento, a título de indemnização por danos patrimoniais; e julgou parcialmente procedente o pedido reconvencional deduzido pela Recorrida e, em consequência, condenou os Recorrentes ao pagamento à Recorrida do “valor que se vier a liquidar ulteriormente, nos termos do disposto no art.º 609.º, do CPC;
(II) A decisão proferida padece da nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. e), do Cód. de Proc. Civil, porquanto procede a uma condenação ultra petitum.
(III) A decisão proferida padece da nulidade prevista no art.º 615.º, n.º 1, al. d), do Cód. de Proc. Civil, na medida em que tem em consideração alegada da confissão do Recorrente, a qual não foi reduzida a escrito, sequer se verificou nos termos plasmados.
(IV) Assim, do elenco dos factos provados não pode constar o facto l), porquanto o mesmo não corresponde à verdade, devendo o mesmo passar a constar do elenco dos factos não provados. E passar o facto c) do elenco dos factos não provados: A Ré, unilateralmente, em 04 de março, resolveu o contrato de empreitada abandonando a obra, a constar do elenco dos factos provados, porquanto tal é o que resulta da prova produzida e tem influência direta na decisão da causa, determinando que o pedido da Recorrida a ser indemnizada no valor de 7.500,00€ (sete mil e quinhentos euros) seja julgado totalmente improcedente, revogando-se a decisão que lhe concedeu provimento parcial.
(V) O facto u) - u) Logo que a Ré saiu da obra, entrou em obra outro empreiteiro – do elenco dos factos provados entorpece o mérito da decisão, por três ordens de razão: retira-se dele um efeito jurídico que não se lhe pode retirar, nomeadamente, que foram os Recorrentes que desistiram da obra; e é completamente inócuo para a boa decisão da causa; e é um facto indeterminado, na medida em que o advérbio de tempo “logo” não permite determinar se a entrada de um outro empreiteiro em obra ocorreu uma semana ou um mês depois de Recorrida ter abandonado a obra. Pelas razões expostas e ainda pelo que resulta do depoimento do Recorrente e porque tal facto teve influência naquela que foi a motivação do Tribunal e que levou à absolvição da Recorrida, tal facto não deveria constar do elenco dos factos provados, o que se requer.
(VI) No que concerne ao facto w) do elenco dos factos provados: Ao desistirem da empreitada, os Autores impediram a Ré de auferir o lucro ou proveito que dela poderia ter retirado, no valor mínimo de 7.500,00€, o Tribunal faz uma incorreta apreciação da prova e, salvo o devido respeito, confunde factos com consequências jurídicas. [R]esulta da matéria de facto impugnada, quanto ao facto l) No início de março de 2023, os Autores solicitaram à Ré que deixasse a obra, pedido que a Ré aceitou, que os Recorrentes não desistiram da empreitada, o que se dá aqui por integralmente reproduzido. Por tal razão, não pode dar-se como provado que Ao desistirem da empreitada, os Autores impediram a Ré de auferir o lucro ou proveito que dela poderia ter retirado, no valor mínimo de 7.500,00€, devendo tal facto ser excluído ou passar a constar do elenco dos factos não provados, absolvendo-se os Recorrentes do pedido.
(VII) O Tribunal a quo considerou não provado que i)[1] Em decorrência da necessidade de fiscalizar a execução da obra, os Autores necessitaram de ficar alojados em ... e pagar a quantia de 1.676,93€. Sucede, porém, que de forma errada, porquanto resulta do documento n.º 17 junto com a petição inicial que os Recorrentes tiveram despesa com alojamento entre fevereiro e março, em ..., local onde decorria a execução da obra e o Recorrente esclareceu, em sede de Depoimento de Parte que tal estadia se deveu à necessidade de dar um impulso ao andamento da obra, razão pela qual tal facto deve ser julgado provado e a Recorrida deve ser condenada ao pagamento aos AA. do pedido deduzido a título de indemnização pelos danos patrimoniais.
(VIII) A decisão proferida faz uma incorreta aplicação do direito ao caso concreto e viola várias normas jurídicas.
(IX) O Tribunal não se encontra, nos termos do previsto no art.º 5.º, n.º 3, do Cód. de Proc. Civil, vinculado à alegação de direito que é feita pelas partes.
(X) A decisão proferida retira dos factos provados e da motivação apresentada uma consequência jurídica que não tem qualquer assento nas normas de direito, sequer nas regras da experiência comum, porquanto configura a situação dos autos enquanto uma desistência pelo dono de obra, quando, na verdade, aquilo que se verificou foi ou a desistência por parte do empreiteiro, em consequência de não aceitar a fiscalização da obra – direito que assiste aos Recorrentes, nos termos do art.º 1209.º, do Cód. Civil – ou um acordo entre as partes com vista à resolução do contrato de empreitada celebrado.
(XI) As partes acordaram na fixação de um prazo para a execução do contrato de empreitada, nos termos do disposto no art.º 405.º, do Cód. Civil, prazo que a Recorrida não cumpriu.
(XII) O Tribunal a quo deu como provada a existência de vários defeitos na execução da obra efetuada pela Recorrida, contudo, absolveu a Recorrida do pedido deduzido de redução do preço do contrato de empreitada em decorrência de tal circunstancialismo, ao arrepio do disposto no art.º 1222.º, do Cód. Civil, direito esse que não poderia ficar prejudicado pela circunstância de, o que não se admite, os Recorrentes terem desistido da obra, razão pela qual deverá ser dado provimento ao pedido dos Recorrentes de redução do preço, nos termos do disposto no art.º 1222.º, do Cód. Civil.
(XIII) A decisão proferida apresenta como motivação para não conceder o pedido de pagamento de indemnização dos danos patrimoniais aos Recorrentes, o facto de a obra apenas se poder considerar atrasada após o término do prazo concedido para a sua execução, o que não tem qualquer sentido e é contrário ao facto k) do elenco dos factos provados.
(XIV) Não se verificando uma situação de desistência da obra por parte dos Recorrentes, terão os mesmos de ser absolvidos do pedido contra si deduzido a título de indemnização pelos lucros que a Recorrida deixou de auferir, julgando-se improcedente a Reconvenção deduzida.”

Pediram a procedência do recurso, “com as legais consequências.” (sic).
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3) A Ré (daqui em diante, Recorrida) respondeu, pugnando: (i) pela não verificação das nulidades da sentença arguidas na conclusões; (ii) pelo não conhecimento da impugnação da decisão da matéria de facto, por os Recorrentes não terem especificado, nas conclusões, os concretos meios probatórios constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada que impõem decisão diversa sobre os pontos da matéria de facto impugnados, nem terem indicado, também nas conclusões, as passagens da gravação dos meios probatórios invocados como fundamento do recurso; (iii) em qualquer caso, pela improcedência do recurso e confirmação da sentença recorrida.
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4) Depois de se pronunciar sobre as nulidades da sentença arguidas pelos Recorrentes, concluindo, de forma especificada, que as mesmas não foram cometidas, o Tribunal de 1.ª instância admitiu o recurso como apelação, com subida nos próprios autos, fixando-lhe efeito devolutivo, o que não foi alterado por esta Relação.
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5) Realizou-se a conferência, previamente à qual foram colhidos os vistos dos Exmos. Srs. Juízes Desembargadores Adjuntos.
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II.
As conclusões da alegação do recorrente delimitam o objeto do recurso, sem prejuízo da ampliação deste a requerimento do recorrido (arts. 635/4, 636 e 639/1 e 2 do CPC). Não é, assim, possível conhecer de questões nelas não contidas (art. 608/2, parte final, ex vi do art. 663/2, parte final, do CPC).
Também não é possível conhecer de questões novas – isto é, de questões que não tenham sido objeto de apreciação na decisão recorrida –, uma vez que os recursos são meros meios de impugnação de prévias decisões judiciais, destinando-se, por natureza, à sua reapreciação e consequente alteração e/ou revogação.
Ressalvam-se, em qualquer caso, as questões do conhecimento oficioso, que devem ser apreciadas, ainda que sobre as mesmas não tenha recaído anterior pronúncia ou não tenham sido suscitadas pelo Recorrente ou pelo Recorrido, quando o processo contenha os elementos necessários para esse efeito e desde que tenha sido previamente observado o contraditório, para que sejam evitadas decisões-surpresa (art. 3.º/3 do CPC).

Tendo isto presente, as questões que se colocam no presente recurso podem ser sintetizadas nos seguintes termos, seguindo a ordem lógica do seu conhecimento:
1.ª Nulidade da sentença recorrida, ut art. 615/1, d), do CPC, na parte em que considerou uma confissão do Recorrente, feita oralmente, em sede de depoimento de parte, não reduzida a escrito;
2.ª Nulidade da sentença recorrida, ut art. 615/1, e), do CPC, na parte em que conheceu da reconvenção, por ter condenado ultra petitum;
3.ª Impugnação da decisão da matéria de facto: (1.) observância dos ónus que recaem sobre o impugnante; (2.) em caso afirmativo, erro de julgamento quanto aos enunciados das alíneas (2.1.) l) dos factos provados, que deve ser considerado como não provado, (2.2.) u) dos factos provados, por ser inócuo para a decisão da causa e ter um conteúdo indeterminado; (2.3.) w) dos factos provados, que deve ser considerado como não provado, (2.4.) c) dos factos não provados, que deve ser considerado como provado, e (2.5.)  i) dos factos não provado, que deve ser considerado como provado;
4.ª Erro na aplicação e interpretação (ut art. 639/2, b), do CPC) do direito aplicável, mais concretamente das normas jurídicas dos arts. 405 e 1222 do Código Civil, indicadas nas conclusões, no que tange: (1.) ao direito do dono da obra obter do empreiteiro a restituição do preço adiantadamente pago e uma indemnização pelos danos que sofreu, tudo com fundamento no incumprimento do contrato imputável ao segundo: e (2.) à condenação do dono da obra desistente na obrigação de indemnização o empreiteiro pelo proveito que este teria obtido se tivesse realizado a obra até à sua conclusão.
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III.
1). Antes de darmos resposta às questões enunciadas, respigamos a decisão da matéria de facto tomada pelo Tribunal a quo e a respetiva motivação.
Assim, foram ali considerados como provados, “[c]om relevância para a decisão da causa”, os seguintes enunciados de facto (transcrição, com destaque para aqueles que foram impugnados):
(…)
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IV.
1).1. Isto posto, avançamos com a resposta à 1.ª questão enunciada, começando por dizer que a  sentença – e, por extensão legal, os despachos judiciais (art. 613/3 do CPC) – pode estar viciada por duas causas distintas: por padecer de um erro no julgamento dos factos e do direito – o denominado error in iudicando –, sendo a consequência a sua revogação pelo tribunal superior; por padecer de um erro na sua elaboração e estruturação ou por o julgador ter ficado aquém ou ter ido além daquilo que constituía o thema decidendum, sendo a consequência a nulidade, conforme previsto no art. 615 do CPC. Nas situações do primeiro tipo, estão em causa vícios intrínsecos do ato de julgamento; nas do segundo, vícios formais, extrínsecos ao ato de julgamento propriamente dito, antes relacionados com a sua exteriorização ou com os seus limites. Neste sentido, inter alia, RG 4.10.2018 (1716/17.8T8VNF.G1), RG 30.11.2022 (1360/22.8T8VCT.G1), RG 15.06.2022 (111742/20.8YIPRT.G1), RG 12.10.2023 (1890/22.1T8VCT.G1).[2]
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1).2. A nulidade da sentença tem um regime próprio de arguição, previsto no n.º 4 do art. 615. Assim, (a) se a sentença admitir recurso ordinário, a nulidade deve ser arguida como fundamento autónomo deste, perante o tribunal ad quem; (b) se a sentença não admitir recurso ordinário, a nulidade deve ser arguida perante o tribunal que proferiu a sentença, através de reclamação.
Conforme se explica em RG 15.02.2024 (548/22.6T8VNF.G1), do presente Relator, na primeira hipótese, interposto o recurso em que é arguida a nulidade, compete ao juiz apreciá-la no próprio despacho em que se pronuncia sobre a admissibilidade do recurso (art. 617/1, 1.ª parte).
Nesta sequência, se o juiz indeferir a arguição não cabe recurso dessa decisão, prosseguindo o recurso para apreciação da questão (art. 617/1, 2.ª parte). Já se o juiz suprir a nulidade, considera-se o despacho proferido como complemento ou parte integrante da sentença, ficando o recurso interposto a ter como objeto a nova decisão (art. 617/2). Neste caso, o recorrente pode, em dez dias, desistir do recurso, alargar ou restringir o respetivo âmbito, em conformidade com a alteração introduzida, permitindo-se que o recorrido responda a tal alteração, em igual prazo (art. 617/3). Se o recorrente, por ter obtido o suprimento pretendido, desistir do recurso, pode o recorrido, no mesmo prazo, requerer a subida dos autos para decidir da admissibilidade pretendida (art. 617/4). Como referem Lebre de Freitas / Isabel Alexandre (Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 2019, p. 746), o termo admissibilidade é incorreto: “o tribunal superior pronunciar-se-á, sim, sobre o conteúdo da alteração, isto é, sobre o novo conteúdo da sentença (que a alteração integra) e não sobre se era admissível alterar a sentença.”
Na segunda hipótese, arguida a nulidade perante o juiz que proferiu a sentença, por dela não caber recurso ordinário, o juiz profere decisão definitiva sobre a questão suscitada; no entanto, se a alterar, a parte prejudicada com a alteração pode recorrer, mesmo que a causa esteja compreendida na alçada do tribunal, não suspendendo o recurso a exequibilidade da sentença (art. 617/6, 1.ª parte).
Não procedendo a parte prejudicada de qualquer um desses modos, permite que a nulidade em questão fique sanada. A propósito, RG 18.01.2024 (1731/23.2T8GMR-J.G1), do presente Relator. Diga-se, aliás, que não se trata, em rigor, de uma nulidade, mas de uma anulabilidade, uma vez que o Tribunal não pode conhecer dela ex officio. Este entendimento – do não conhecimento oficioso das referidas nulidades previstas nas alíneas b) a e) do n.º 1 do art. 615 do CPC – estriba-se na circunstância de várias disposições legais (arts. 614/1, 615/2 e 4 e 617/1 e 6, todos do CPC) preverem, em determinadas circunstâncias, a possibilidade do seu suprimento oficioso, assim indicando que o conhecimento do vício constituirá a exceção e não a regra e que, em contrapartida, há necessidade de alegação. Neste sentido, STJ 30.11.2021, (1854/13.6TVLSB.L1.S1), RG 1.02.2018 (1806/17.7T8GMR-C.G1), RG 17.05.2018 (2056/14.0TBGMR-A.G1), RG 4.10.2018 (4981/15.1T8VNF-A.G1), RG 7.02.2019 (5569/17.8T8BRG.G1), RG 19.01.2023 (487/22.0T8VCT-A.G1); na doutrina, Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado cit., pp. 735-736, e Rui Pinto, “Os meios reclamatórios comuns da decisão civil (arts. 613.º a 617.º do CPC)”, Julgar Online, maio de 2020, p. 10.
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1).3.1. Prosseguindo, diz a alínea d) do n.º 1 do art. 615 do CPC que é nula a sentença quando “[o] juiz (…) conheça de questões de que não podia tomar conhecimento.”
Está em causa o denominado excesso de pronúncia que ocorre quando o juiz conhece de questões de que não podia tomar conhecimento por violação da segunda parte do n.º 2 do art. 608, por força do qual, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso, “não pode ocupar-se senão das questões suscitadas pelas partes.”
Não haverá excesso de pronúncia se a questão que o tribunal decidiu, sem que tal lhe tivesse sido pedido, for do conhecimento oficioso. Também não haverá excesso de pronúncia se o tribunal, para decidir, usar fundamentos jurídicos diferentes dos invocados pelas partes, uma vez que o art. 5.º/3 estabelece o princípio iura novit curia e, muito menos, se o tribunal, na fundamentação, aduzir argumentos que a parte não apresentara, já que uma coisa são as questões e, outra, são os argumentos que suportam a sua resolução.
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1).3.2. Pondo de parte as questões colocadas, pela lei, ao conhecimento oficioso do tribunal, diremos que as questões a que alude o art. 608/2 do CPC – aquelas de que o tribunal deve conhecer e às quais deve restringir o seu conhecimento – são as que constituem a causa de pedir invocada pelo autor e as exceções deduzidas pelo réu. Dito de outra forma, são os pontos essenciais de facto ou direito em que as partes fundamentam as suas pretensões.
Transpondo isto para o caso dos autos, podemos dizer que, na presente ação, as questões colocadas à apreciação da 1.ª instância, na sentença recorrida, consistiam, grosso modo, de acordo com a versão dos Recorrentes, no incumprimento do contrato de empreitada por parte da empreiteira e, na versão da Recorrida, na desistência desse contrato por parte dos donos da obra.
E foram só estas as questões que foram conhecidas na sentença recorrida. É certo que, no processo de conhecimento da segunda, a 1.ª instância, para prova dos factos substanciadores da pretensão formulada pela Recorrida, considerou uma suposta confissão do Recorrente que não foi reduzida a escrito. Simplesmente, ainda que assim tenha sucedido, não valendo essa confissão qua tale – o que analisaremos mais à frente, a propósito da 3.ª questão –, a 1.ª instância, ao proceder desse modo, não exorbitou o âmbito dos seus poderes de cognição; incorreu, quando muito, num erro de julgamento – portanto, num vício intrínseco do ato – no que tange à aplicação das regras do direito probatório material.
A resposta à 1.ª questão é, portanto, sem necessidade de outras considerações, negativa.
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2).1. Passamos para a 2.ª questão, em relação à qual valem as considerações feitas em 1).1., sendo de acrescentar que, nos termos da alínea e) do n.º 1 do citado art. 615 do CPC, a sentença é nula quando “[o] juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”
Estamos aqui perante a situação normalmente conhecida como “condenação ultra petitum”, a qual ocorre quando o tribunal condena numa prestação quantitativa ou qualitativamente distinta da adrede pedida pelo autor ou pelo réu reconvinte, o que é proibido pelo n.º 1 do art. 609 do CPC, e também quando o tribunal absolve de um pedido que o autor não formulou. Na verdade, apesar de a norma falar apenas em condenação, a equiparação justifica-se pois , como escrevem Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, p. 715, “o réu não pode ser absolvido de um pedido que o autor contra ele não deduziu, o que teria a consequência, por via da formação de caso julgado (art. 619/1 do CPC), de impedir o autor de, em nova ação, pedir aquilo que o réu fosse absolvido de reconhecer ou prestar (art. 580/1 do CPC), embora não tivesse constituído objeto da primeira ação.”
Compreende-se que a infração a esta regra tenha como consequência a nulidade da sentença: como resultado do princípio do dispositivo “na vertente relativa à conformação objetiva da instância” (Lebre de Freitas / Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Almedina, 2019, p. 737), o tribunal apenas pode julgar procedente ou improcedente o pedido tal como este foi deduzido pelo autor, assim respeitando a sua vontade, mesmo que outros efeitos jurídicos equivalentes, porventura mais acertados, pudessem ser considerados e impostos ao réu. Como escreve Rui Pinto, loc. cit., p. 30, “[n]ão só o âmbito da jurisdição que a lei lhe atribui se mede pelo pedido, como o réu não se pôde antes defender de um efeito jurídico que o tribunal decretou, ao arrepio do objeto processual contra o qual pôde concretamente deduzir contestação.” No mesmo sentido, Manuel Henrique Mesquita, “Anotação ao Ac. da Relação de Coimbra de 17.01.1995”, RLJ, ano 128.º, n.º 3857, p. 257.
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2).2. A rigidez da regra acabada de expor não obsta, porém, a que, perante uma pretensão indemnizatória formulada em termos líquidos, o tribunal profira uma condenação genérica, sujeita a ulterior liquidação, através do incidente previsto nos arts. 358 e ss. do CPC, quando, tendo apurado a existência de danos, não disponha de elementos factuais suficientes para proceder à sua quantificação, ainda que com recurso à equidade. É o que se afirma, claramente, no n.º 2 do art. 609.
Trata-se de uma solução que, conforme explicam António Abrantes Geraldes / Paulo Pimenta / Luís Pires de Sousa (Código de Processo Civil Anotado, I, Coimbra: Almedina, 2018, p. 729), facilmente se compreende: em tais casos, o direito existe no momento em que a sentença é proferida, apenas carecendo de concretização, a qual será possível com a produção em sede incidental de prova complementar.
Foi isto o que sucedeu no caso vertente: na reconvenção, a Recorrida (Reconvinte), alegando que os Recorrentes (Reconvindos) haviam desistido da empreitada, pediu a condenação destes no pagamento da indemnização na parte relativa ao proveito que poderia ter obtido se tivesse realizado a totalidade da obra, quantificando este em € 7 500,00.
Na sentença recorrida, depois de ter considerado que a Recorrida é titular daquela pretensão indemnizatória, o Tribunal a quo entendeu que os factos provados são insuficientes para a quantificação e, assim, relegou esta para momento ulterior, emitindo apenas uma condenação genérica.
É certo que não foi especificado que a liquidação da condenação genérica estará, necessariamente, balizada pelo pedido formulado (€ 7 500,00). Afigura-se, no entanto, que constituindo a sentença, como qualquer outra decisão judicial, um ato jurídico não negocial, ao qual são aplicáveis, nos termos e para os efeitos do art. 295 do Código Civil, as regras gerais da interpretação jurídica e, desde logo, a doutrina da impressão do destinatário, cf. se explica em RP 25.01.2024 (2524/17.1T8LOU-E.P1), relatado por Isabel Peixoto Pereira, esse resultado pode ser alcançado através da interpretação do segmento decisório em questão, onde nele se afirma, expressamente, que a procedência do pedido feito pela Recorrida não foi total, mas meramente parcial, assim se transmitindo claramente a ideia de que estamos perante um minus relativamente a este elemento do objeto da reconvenção, tal como este foi definido pela Recorrida, e que uma ulterior liquidação não poderá ir além dos € 7 500,00 pedidos.
Não está, portanto, verificada esta nulidade da sentença.
Ainda que assim não fosse entendido, a nulidade sempre teria ficado sanada com a emissão do despacho em que o Tribunal a quo, observando o disposto no art. 617/1 do CPC, escreveu, expressamente, que “a condenação ulterior que sobrevier terá sempre como limite o valor do pedido reconvencional.”
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3).1. Passamos para a terceira questão, na qual está em causa, como escrevemos, a impugnação da decisão da matéria de facto.
(…)
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3).4.1. Assim definidos os termos de apreciação do recurso sobre a matéria de facto, tendo a Recorrente observado o disposto no art. 640/1 do CPC, vejamos a resposta a dar à questão, começando por dizer, em jeito de enquadramento, que os tribunais não lidam só com realidades inequívocas ou que não suscitam controvérsia. De ordinário, lidam com a dúvida e com realidades esbatidas e discutidas. E é aqui que intervêm a sensibilidade, a experiência e o bom senso do julgador.
Como, a propósito, se pode ler em RG 7.12.2023 (573/20.1T8VCH.G1), do presente Relator, nas situações mais comuns, não existem testemunhas presenciais nem outros meios que permitam uma prova direta, minuciosa e irrefutável do facto; há, assim, que recorrer a prova indireta, através de outros factos (ditos secundários, instrumentais ou probatórios), estes suscetíveis de prova direta, que permitam sustentar juízos de inferência.
A este propósito, Michele Tartufo, La Prueba de los Fechos, Madrid: Trotta, 2005, p. 266, ensina que “[o] grau de apoio que a hipótese sobre o facto pode receber dessa prova depende, então, de dois tipos de fatores: o grau de aceitabilidade que a prova confere à afirmação da existência do facto secundário e o grau de aceitabilidade da inferência que se baseia na premissa constituída por aquela afirmação.” Sobre o primeiro fator, as questões que se colocam são as mesmas que surgem no âmbito da prova direta: a atendibilidade e credibilidade da prova sobre o facto secundário. Já o segundo depende essencialmente, no dizer de Michele Tartufo (idem), “da natureza da regra de inferência que se adote para derivar conclusões aptas a representar elementos de confirmação da hipótese sobre o facto principal a partir das afirmações do facto secundário. Assim, o grau de aceitabilidade da prova não equivale ao grau de confirmação daquela hipótese, nem o contrário; o problema principal é precisamente a fundamentação das inferências desde o facto provado ao facto afirmado na hipótese que se tenta confirmar.”
Por outro lado, sabemos que o nosso sistema processual é enformado pelo princípio da prova livre, nos termos do qual o tribunal aprecia livremente os meios de prova e é livre na atribuição do grau do valor probatório de cada um deles. Isto não significa o arbítrio, posto que a apreciação da prova está sempre vinculada aos princípios em que se consubstancia o direito probatório. Por outras palavras – as de Paulo Saragoça da Mata (“A Livre Apreciação da Prova”, Jornadas de Direito Processual Penal e Direitos fundamentais, Coimbra: Almedina, 2004, p. 254) –, “a liberdade concedida ao julgador (…) não visa criar um poder arbitrário e incontrolável, mas antes um poder que na sua essência, estrutura e exercício se terá de configurar como um dever, justificado e comunicacional.” Para que o exercício de tal poder seja justificado e comunicacional é pressuposto que todo o caminho da prova, desde a sua admissão ou decisão de recolha até à sua valoração, seja suscetível de autocontrolo por parte do julgador e de controlo por parte da comunidade, incluindo os próprios sujeitos prejudicados com a atividade probatória em questão.
É esta necessidade que explica o disposto no já citado art. 607/4 do CPC que, por imposição constitucional (art. 205/1 da CRP), diz que “[n]a fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.”
Esta imposição é consequência de uma das traves-mestras do nosso processo civil: o processo deve ser orientado para a busca e averiguação da verdade dos factos. Esta não pode ser o resultado de uma atividade imperscrutável que ocorre no íntimo do juiz, mas o resultado de uma atividade cognoscitiva que se articula em passos controláveis como sejam a recolha da informação, a verificação da sua fidedignidade, a análise da sua relevância e a formulação de inferências logicamente válidas que conduzam a conclusões racionalmente justificadas. Nas palavras de Michele Tartufo, “Verdad, prueba e motivación en la decisión sobre los hechos”, Cuadernos de Divulgación de la Justicia Electoral, n.º 20, México: Tribunal Electoral del Poder Judicial de la Federación, 2013, p. 101[3], “a verdade não emana de uma misteriosa intuição individual, mas de um procedimento cognoscitivo articulado e verificável de maneira intersubjetiva.”
Por isso, ciente que o conhecimento dos factos, obtido através da prova, é limitado, o que resulta, desde logo, quer das regras do direito substantivo (o denominado direito probatório material), quer dos limites e preclusões impostos pelo direito adjetivo, o juiz tem o dever de racionalizar os fundamentos da decisão e articular os argumentos – rectius, as razões –, que a justificam à luz da prova produzida. A motivação consiste, assim, num “discurso justificativo constituído por argumentos racionais” (Michele Tartufo, Verdad, prueba e motivación cit., p. 103). Tem, desde logo, uma função endoprocessual que consiste em facilitar a impugnação, que é condição de um processo participado, a que acresce uma função extraprocessual: no dizer de Michele Tartufo (ob. cit., p. 104), “a motivação representa (…) a garantia do controlo do exercício do poder judicial fora do contexto processual por quivis de populo e pela opinião pública em geral”, o que, como o autor nota, “deriva de uma conceção democrática do poder, segundo a qual o exercício deste tem de ser controlado sempre de fora.”
Se assim é, então da motivação têm de transparecer todas as opções que o juiz fez para chegar à decisão final. Se assim não suceder, é impossível o controlo sobre a sua racionalidade.
Isto leva a falar-se num princípio de completude da motivação, o qual tem, também segundo a lição de Michele Tartufo (idem), a seguinte implicação: a motivação completa deve incluir tanto uma justificação interna, relacionada com a conexão entre a premissa de direito a premissa de facto (a subsunção do facto à norma), como uma justificação externa, relacionada com as razões pelas quais o juiz reconstruiu e averiguou daquela concreta forma os factos da causa. Esta última vertente implica que o juiz exponha os argumentos racionais relativos à avaliação que fez das provas e às inferências lógicas por meio das quais chegou a determinadas conclusões sobre os factos.
No fundo, é o que António Abrantes Geraldes (Recursos em Processo Civil, 7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 359-360), sintetiza quando escreve que “[a] exigência legal impõe que se estabeleça o fio condutor entre a decisão sobre os factos provados e não provados e os meios de prova usados na aquisição da convicção, fazendo a respetiva apreciação crítica nos seus aspetos mais relevantes. Por conseguinte, quer relativamente aos factos provados, quer quanto aos factos não provados, o juiz deve justificar os motivos da sua decisão, declarando por que razão, sem perda da liberdade de julgamento garantida pela manutenção do princípio da livre apreciação das provas (art. 607-5), deu mais credibilidade a uns depoimentos e não a outros, julgou relevantes ou irrelevantes conclusões dos peritos ou achou satisfatória ou não a prova resultante de documentos.”
Perante semelhante princípio, o tribunal tem liberdade para, em cada caso, considerar suficiente a prova produzida ou para considerar que a mesma é afinal insuficiente e exigir outro meio de prova de maior valor probatório no sentido de ficar convencido da verdade do facto em discussão.
Sobre esta última, temos como assente que as regras sobre o ónus da prova são regras de decisão e não regras de distribuição propriamente ditas. Tanto assim é que o princípio da aquisição processual (art. 413 do CPC), associado ao princípio do inquisitório em matéria de prova (art. 411/3 do CPC), podem levar a que os factos essenciais constitutivos da causa de pedir ou de uma exceção resultem provados ainda que a parte onerada não consiga produzir prova apta para esse efeito. A propósito, Luís Filipe Pires de Sousa, Direito Probatório Material Comentado, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2021, p. 15. Dito de outra forma, ter o ónus da prova significa, sobretudo, determinar qual é a parte que suporta a falta de prova de determinado facto e não tanto saber qual é a parte que está onerada com a prova desse mesmo facto. Sem prejuízo, sempre notamos que, conforme ensinam João de Castro Mendes / Miguel Teixeira de Sousa (Manual de Processo Civil, I, Lisboa: AAFDL, 2022, pp. 487-488), tendencialmente há coincidência entre a parte que suporta o ónus da prova e aquela que tem a iniciativa da prova que, assim, tentará, naturalmente, afastar o risco da falta de prova. Na perspetiva inversa, a contraparte sentir-se-á legitimada a uma inação probatória até à prova do facto pela parte onerada. Assim, escrevem estes autores, “o ónus subjetivo implica o ónus objetivo, e vice-versa.”
Neste sentido, o art. 346 do Código Civil e o art. 414 do CPC estabelecem que, na dúvida, o juiz decida contra a parte onerada com a prova.
É aqui que surge a questão do standard da prova que, no dizer de Luís Filipe Pires de Sousa (Direito Probatório cit., pp. 55-56), “consiste numa regra que indica o nível mínimo de corroboração de uma hipótese para que esta possa considerar-se provada, ou seja, possa ser aceite como verdadeira.” De acordo com Jordi Ferrer Beltrán (“La decisión probatória”, AAVV, Jordi Ferrer Beltrán (coord.), Manual de Razonamiento Probatorio, Ciudad de Mexico: Suprema Corte de Justicia de la Nación, 2022, pp. 397-458, disponível em https://bibliotecadigital.scjn.gob.mx/ [18.11.2023)), os standards de prova são regras que determinam o nível de suficiência probatória para que uma hipótese possa ser considerada provada (ou suficientemente corroborada) para fins de uma decisão sobre os factos. Ao realizarem essa determinação, cumprem três funções da máxima importância no marco do processo de decisão probatória: 1) aportam os critérios imprescindíveis para a justificação da própria decisão, no que diz respeito à suficiência probatória; 2) servem de garantia para as partes, pois permitem que tomem as suas próprias decisões sobre a estratégia probatória e controlem a correção da decisão sobre os factos; 3) distribuem o risco de erro entre as partes.
Não existe entre nós norma que se pronuncie diretamente sobre esta questão. Afastadas as teorias baseadas no cálculo matemático de probabilidades, mais concretamente no Teorema de Bayes, há quem entenda que, em processo civil, opera o standard da probabilidade prevalecente ou “mais provável que não.”
Este standard consubstancia-se, segundo Luís Pires de Sousa (Direito Probatório cit., p. 61), em duas regras fundamentais: “(i) Entre as várias hipóteses de facto deve preferir-se e considerar-se como verdadeira aquela que conte com um grau de confirmação relativamente maior face às demais; (ii) Deve preferir-se aquela hipótese que seja “mais provável que não”, ou seja, aquela hipótese que é mais provável que seja verdadeira do que seja falsa.”
Este critério, salienta o autor, não se reporta à probabilidade como frequência estatística, mas sim como grau de confirmação lógica que um enunciado obtém a partir das provas disponíveis.  Por outro lado, leva a que, perante provas contraditórias de um mesmo facto (rectius, afirmação de facto), o julgador deva sopesar as probabilidades das diferentes versões para eleger o enunciado que pareça ser relativamente “mais provável”, tendo em conta os meios de prova disponíveis. Dito de outra forma, “deve escolher-se a hipótese que receba apoio relativamente maior dos elementos de prova conjuntamente disponíveis.”
O autor ressalva que “pode acontecer que todas as versões dos factos tenham um nível baixo de apoio probatório e, nesse contexto, escolher a relativamente mais provável pode não ser suficiente para considerar essa versão como verdadeira.” Assim, “para que um enunciado sobre os factos possa ser escolhido como a versão relativamente melhor, é necessário que, além de ser mais provável que as demais versões, tal enunciado em si mesmo seja mais provável que a sua negação. Ou seja, é necessário que a versão positiva de um facto seja em si mesma mais provável que a versão negativa simétrica.”
Michele Tartufo (La Prueba cit., pp. 266-267 e 277-278) propõe uma metodologia de confirmação do grau de probabilidade das hipóteses sobre o facto em que cada prova concreta é valorável numa escala de 0 a 1 (grau particular de confirmação). Por sua vez, a representação da valoração do conjunto da probabilidade da hipótese deve fazer-se numa escala de valores 0 → ∞, sem limite máximo (grau global de confirmação). As duas escalas combinam-se para determinar a probabilidade do facto. Os números são aqui uma forma de expressar relações lógicas e não supõem medidas quantitativas de nada. Um grau de confirmação da hipótese superior a 0,50 deve considerar-se como o limite mínimo abaixo do qual não é razoável aceitar a hipótese como aceitável. Uma só prova clara e segura pode ultrapassar esse limite mínimo, podendo igualmente ser racional aceitar a hipótese confirmada por várias provas ditas indiretas convergentes, por exemplo.
O mesmo autor nota (La Prueba cit., p. 302) que podem existir contextos em que é sensato aplicar a probabilidade lógica prevalecente no seu estado puro, o que equivale a dizer, sem que se exija que a hipótese dotada de grau de probabilidade comparativamente mais alto seja também aceitável segundo o critério que opera quando está em jogo uma só hipótese (≥ 0,51). A aplicação do critério no seu estado puro poderá ser pertinente em casos em que não se exija a demonstração da aceitabilidade plena da hipótese, bastando algum elemento de confirmação suscetível de atribuir um mínimo de credibilidade a tal hipótese.
Temos dúvidas que esta solução seja compatível com o ordenamento jurídico português, em especial com a regra do non liquet consagrada no art. 414 do CPC, como salienta Miguel Teixeira de Sousa (“Standard probatório. Probabilidade prevalecente. Jurisprudência 2019 (100)” e “Por que razão a “probabilidade prevalecente” não é uma medida da prova aceitável no ordenamento probatório português”, disponíveis no Blog do IPCC [19.11.2023). Com efeito, ficando o juiz com dúvida sobre a verdade de um facto, deve julgá-lo como não provado, ainda que entenda que a probabilidade de ele ser verdadeiro é superior a 0,50, o que não sucede se for aplicado o referido critério. De acordo com ele, a referida probabilidade terá como consequência a prova do facto, ainda que subsista um espaço não despiciendo de dúvida, o que equivale à anulação da referida regra do non liquet.
Ainda segundo Miguel Teixeira de Sousa, o referido critério é igualmente “incompatível com a contraprova, que é um meio de impugnação da prova que se destina a tornar o facto provado duvidoso (art. 346 do Código Civil); se o standard da prova começa em mais de 0,50, isso significa que pode verificar-se uma dúvida sobre a verdade do facto até 0,49; disto resulta necessariamente que: (i) Se a contraprova é suficiente para impugnar uma prova bastante, então não é coerente admitir uma medida da prova que deixa até 0,49 de dúvida sobre a verdade do facto; se a contraparte provar que há uma dúvida até 0,49 sobre a verdade do facto, a prova bastante fica impugnada, pelo que, ao contrário do que resulta da medida da probabilidade prevalecente, o facto não pode ser considerado provado; (ii) Se, em contrapartida, a medida da prova admite uma dúvida até 0,49, então a contraprova (que se destina precisamente, não a tornar o facto não provado, mas a apenas torná-lo duvidoso) não tem nenhuma possibilidade de aplicação.”
Finalmente, “é incoerente com o disposto no art. 368/ 1 do CPC; este preceito determina que, para o decretamento de uma providência cautelar, não é necessária a prova do direito acautelado, mas, em todo o caso, é necessária a prova da probabilidade séria desse direito; a aceitação do critério da probabilidade prevalecente teria como consequência absolutamente surpreendente que a medida da prova seria mais exigente na tutela cautelar ("probabilidade séria") do que na tutela definitiva (probabilidade prevalecente).”
No fundo, face ao disposto no art. 414 do CPC, podemos concluir que o legislador português é especialmente exigente quanto ao grau de convicção que é necessário alcançar para que uma afirmação de facto seja considerada como provada, assumindo que é preferível o erro do juiz dar como não provado o que é verdadeiro em detrimento do erro de dar como provado o que é falso, a que conduziria o standard da probabilidade prevalecente. A propósito, colocando esta opção ao nível da política-legislativa, cf. Marina Gascón Abellán, “Sobre la possibilidade de formular estândares de prueba objetivos”, Doxa. Cuadernos de Filosofía del Derecho, n.º 28, nov. de 2005, pp. 127-139, disponível em https://doi.org/10.14198/DOXA2005.28 [20.11.2023].
Afigura-se-nos, assim, que o importante nesta sede é que a prova produzida tenha a medida bastante para criar no juiz a convicção de que o facto em discussão corresponde à verdade ontológica. Cabe depois ao juiz deixar transparecer na fundamentação as razões que o levaram a concluir dessa forma. Nesta medida, o standard serve essencialmente como uma orientação para o juiz na produção e na valoração da prova, designadamente na atribuição de um peso específico a cada um dos elementos que a compõem, tudo em ordem à formação da sua convicção. Não é mais que um critério de acordo com o qual deve construir, de forma completa, a justificação da sua decisão sobre a matéria de facto, baseada na solidez epistemológica das provas e dos juízos inferenciais que é necessário fazer para chegar delas até à hipótese de facto.
Como referido em RP 23.02.2023 (30/21.9T8PVZ.P1), relatado por Aristides Rodrigues de Almeida, esta é uma regra que “o julgador, com recurso ao bom senso e ao justo equilíbrio das coisas, há de definir e aplicar caso a caso, em função das exigências de justiça que o mesmo coloca, determinadas a partir de aspetos como o da acessibilidade dos meios de prova, da sua facilidade ou onerosidade, do posicionamento das partes em relação aos factos com expressão nos articulados, do relevo do facto na economia da ação.”
Como se salienta no aresto acabado de citar, “a circunstância de um facto ser verosímil ou possível não significa que o mesmo seja verdadeiro, mas o contrário também é correto. A vida diz-nos que por vezes ocorrem factos que eram pouco verosímeis ou não ocorrem factos que além de possíveis eram perfeitamente verosímeis. No entanto, o normal é haver verosimilhança no processo causal gerador de um facto, pelo que a maior verosimilhança do facto torna-o mais provável e a menor verosimilhança menos provável. São as regras da experiência que o determinam. Daí que se possa afirmar a seguinte regra probatória não escrita: quanto mais inverosímil e improvável o facto é, à luz da inteligência que rege os comportamentos humanos e das leis das ciências exatas, normalmente reconduzidas às regras da experiência, mais ou melhor prova deve ser exigida."
Nesta apreciação, há que considerar, quando estejam em causa ações humanas, “que as pessoas movem-se por interesses, motivações, objetivos, propósitos, emoções, impulsos. Estes são resultado do funcionamento do intelecto da pessoa enquanto animal dotado de razão, consciência, identidade pessoal. Nessa medida, perscrutar a realidade de um facto humano ou com intervenção humana é, antes de mais, averiguar a razão que subjaz a essa atuação, que lhe dá origem e a orienta, e, sobretudo, apurar se a mesma é compatível com o quadro de atuação de qualquer outra pessoa nas mesmas circunstâncias. Por isso, um dos elementos decisivos para a formação da convicção do julgador é a verosimilhança dos factos sobre os quais recai a controvérsia, ou seja, a pertinência lógica dos mesmos ao domínio dos acontecimentos humanos que por definição possuem motivações apreensíveis, são norteados pela inteligência humana (no sentido de serem comportamentos orientados para um fim compreensível e delineados por processos intelectualmente aptos, mesmo quando são comportamentos asnáticos) e estão de acordo com o que as regras da experiência nos ensinam ser expectável, corresponder ao devir normal.”
Finalmente, há que dizer, a propósito da prova pessoal, que o processo de formação das memórias é frequentemente condicionado por fatores que as deturpam, ainda que não intencionalmente, podendo levar a relatos não conformes à realidade ontológica. Como se escreve no aresto, “[e]sta circunstância obriga o tribunal a libertar-se da mera literalidade das afirmações e centrar mais a atenção na análise e interpretação da lógica dos acontecimentos relatados, colocados no seu contexto concreto.” A este propósito, Luís Pires de Sousa (Prova Testemunhal, Coimbra: Almedina, 2016, pp. 9-10) explica que “a memória, mais do que um processo de replicação, constitui um processo reconstrutivo. A evocação dos factos não constitui uma reprodução da realidade, mas sim uma reconstrução a partir de informação incompleta que guardamos do ocorrido. (…) A reconstrução é levada a cabo preenchendo as lacunas da memória mediante inferências que resultam do conhecimento geral e de outros eventos, vividos pela testemunha ou dela conhecidos, bem como com reativação e reorganização de diversas informações de modo a criar uma evocação. Neste sentido, a memória constitui uma combinação contínua de informação proveniente do que se viu, de pensamentos, da imaginação, conversações e outras fontes (…)”
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(…)
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3).6.1. Prosseguindo, vejamos agora os pontos da decisão da matéria de facto impugnados, começando pelo enunciado da alínea l) dos factos provados e pelo da alínea c) dos factos não provados, os quais, refletindo as versões opostas da mesma realidade que as partes expressaram nos respetivos articulados, serão tratados em conjunto.
Depois de ter escrito que “alicerçou a sua convicção no teor dos documentos aportados para os autos pelas partes, em conjugação com os depoimentos das testemunhas (…), bem como nos depoimentos de parte do legal representante da Ré [Recorrida] e do Autor marido [Recorrente], o Tribunal a quo concretizou, quanto ao enunciado da alínea l) dos factos provados, que o Recorrente “confessou que desistiu da obra, e que tal se deveu ao facto de ter contratado um Eng. para acompanhar a obra[,] o que a Ré [Recorrida] não aceitou.” Nada especificou quanto ao enunciado da alínea c) dos factos não provados.
No recurso, os Recorrentes sustentam, a um tempo, que não houve qualquer confissão do facto da alínea l) dos factos provados e, a outro, que do depoimento do Recorrente e do testemunho de CC resultou precisamente que foi a Recorrida quem decidiu “abandonar a obra”, por não aceitar a intervenção do engenheiro contratado para a fiscalizar.
A Recorrida, por seu turno, sustenta que o depoimento do Recorrente não foi valorado como uma confissão propriamente dita, mas como um meio de prova sujeito à livre convicção do julgador, e que a prova produzida, mais concretamente, os depoimentos do seu gerente e do próprio Recorrente e o testemunho de CC, conferem arrimo à decisão do Tribunal a quo.
Quid inde?
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3).6.1.1. Como vimos, o Tribunal a quo, depois de uma referência genérica aos meios de prova que foram produzidos na audiência final, incluindo os depoimentos de parte do Recorrente e do gerente da Recorrida, justificou a formação de uma convicção positiva quanto a este enunciado fazendo apelo, de forma especificada, apenas à confissão do Recorrente.
É evidente a falta de rigor.
Conforme se pode ler em RG 23.11.2023 (2922/20.3T8BRG-D.G1), do presente Relator, o CPC regula o depoimento de parte na Secção que se inicia com o art. 452, logo revelando, no respetivo título, a íntima relação entre o depoimento de parte e a confissão. Parece assim, haver um consenso generalizado no sentido de que o depoimento de parte é o modo processual (modo de prova) de obter a confissão (meio de prova). Assim, Antunes Varela / Miguel Bezerra / Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, 2.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1985, p. 589, J.P. Remédio Marques, “A aquisição e a valoração probatória de factos (des)favoráveis ao depoente ou à parte chamada a prestar informações ou esclarecimentos, Julgar, n.º 6, jan.-abr. e 2012, p, 138, Lebre de Freitas, A confissão no Direito Probatório, Coimbra: Coimbra Editora, 1991, p. 245, nota 18; Paulo Ramos de Faria / Ana Luísa Loureiro, Primeiras Notas ao Novo Código de Processo Civil, I, Coimbra: Almedina, 2013, p. 363. Na jurisprudência, RE 13.12.2011 (2112/09.6TBSTB-A.E1). Dito de outra forma, o depoimento de parte está funcionalizado ao meio de prova (confissão) que por ele se visa obter (Estrela Chaby, O Depoimento de Parte em Processo Civil, Coimbra: Coimbra Editora, 2014, pp. 18-19).
Sem prejuízo, como nota, Rui Pinto (Código de Processo Civil Anotado, I, Coimbra: Almedina, p. 662), “a intervenção oral da parte não pode ser dividida na sua economia pelo que pode afirmar a realidade de factos que tanto lhe podem ser favoráveis, como desfavoráveis, quanto à relação com os fundamentos da pretensão processual a que se refere o depoimento. Portanto, não se pode confundir depoimento de parte com confissão.” Deste modo, o depoimento de parte é mais abrangente que a confissão: pode haver depoimento de parte sem haver confissão, o que sucede na maior parte dos casos, em que o depoente nega os factos que lhe são desfavoráveis e afirma os que lhe são favoráveis. Por outro lado, o depoimento de parte pode levar o juiz à convicção da realidade de um facto desfavorável ao depoente e favorável à parte contrária, mas sem que se possa atribuir-lhe eficácia confessória específica. Será então um mero meio probatório a apreciar livremente, nos termos do art. 361 do Código Civil. A propósito, na jurisprudência, STJ 4.06.2015 (3852/09.5TJVNF.G1.S1), onde se escreve que “[o] depoimento de parte pode servir de elemento de prova, quer integre confissão, quer não integre”, e RC 13.11.2012 (470/11.1T2ILH.C1), onde se escreve que “[o] depoimento de parte que não redunde em confissão, por respeitar apenas a factos favoráveis ao depoente, pode ser livremente apreciado pelo tribunal, constituindo um simples elemento probatório a atender segundo o prudente critério do julgador.”
A confissão, como se sabe, “é o reconhecimento que a parte faz da realidade de um facto que lhe é desfavorável e favorece a parte contrária” (art. 352 do Código Civil).
São factos desfavoráveis ao depoente e favoráveis à parte contrária aqueles que, considerada a matéria controvertida e o teor da contestação, são em concreto idóneos a produzir consequências jurídicas desvantajosas para ele e, simultaneamente, vantajosas para a parte que o requer.
Por outro lado, a confissão obtida em sede de depoimento de parte, que se pode chamar de confissão judicial provocada (Estrela Chaby, O Depoimento cit., p. 17), distingue-se quer da confissão extrajudicial (art. 356/2, parte final, do Código Civil), quer da confissão que espontaneamente é feita pela parte no processo, designadamente nos respetivos articulados ou em termos (arts. 46 e 160 do CPC), quer ainda da confissão em sede de prestação de esclarecimentos e em declarações de parte.
Trata-se de uma confissão que é feita oralmente pela própria parte perante o juiz, submetida a um especial formalismo. Deve ser reduzida a escrito para produzir efeitos qua tale (art. 463/1 do CPC), dotada de força probatória plena, pois tal formalidade é imposta pelo art. 358/1 do Código Civil. A inobservância desta formalidade preclude a possibilidade de o reconhecimento feito pelo depoente de um facto que lhe seja desfavorável, ainda que gravado, ter valor probatório de prova plena contra ele. Sem prejuízo, esse reconhecimento, sendo em si um meio de prova admissível, poderá ser livremente apreciado pelo tribunal, nos termos do disposto no n.º 4 do mesmo preceito. Neste sentido, RG 31.10.2019 (33627/18.4YIPRT.G1), Alcides Rodrigues, RE 15.12.2022 (378/17.5T8CTX.E1), Albertina Pedroso, RG 19.01.2023 (3244/21.8T8VCT-C.G1), Lígia Venade, aqui Adjunta, e RG 5.12.2024 (684/16.8T8BRG.G3), Carla Oliveira.
 Ora, da ata da sessão da audiência final em que foi produzido o depoimento de parte do Recorrente não consta o registo escrito de qualquer declaração confessória feita pelo depoente, pelo que o enunciado em questão não pode considerar-se adquirido por confissão. Esta, de resto, a ter existido, não seria eficaz (cf. art. 353/2 do Código Civil), posto que está em causa facto que também é desfavorável à Recorrente, que nem sequer prestou depoimento de parte. A propósito, STJ 2.05.2004 (2313/14.5T8LSB.L1.S1), Oliveira Abreu. E se duvidas restassem quanto ao sentido com que o termo confissão foi usado na sentença recorrida – o seu sentido próprio, como exigiria o rigor, ou um sentido amplo, coloquial –, elas teriam ficado esclarecidas com o despacho proferido pelo Tribunal a quo a sustentar a não verificação das nulidades imputadas à sentença onde foi escrito que a não redução a escrito da declaração confessória constitui mera irregularidade que, por não ter sido arguida, não obsta a que ela tenha valor  confessório.
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3).6.1.2. Resta assim saber se a prova produzida, incluindo através do depoimento de parte do Recorrente, livremente apreciada de acordo com os cânones a que fizemos referência, permite que, com base nela se forme uma convicção positiva quanto ao enunciado da alínea l) dos factos provados e, por exclusão, conduz a uma convicção negativa quanto ao enunciado da alínea c) dos factos não provados.
Começando pelo depoimento do Recorrente, discordamos da interpretação que dele foi feita pelo Tribunal a quo, pois não vislumbramos que o Recorrente tenha reconhecido ter sido ele, juntamente com a Recorrente, quem desistiu da empreitada. Com efeito, a versão dos acontecimentos apresentada pelo Recorrente aproxima-se mais do enunciado da alínea e) dos factos não provados no sentido de que foi a Recorrida quem, reagindo à imposição de um fiscal, decidiu abandonar a obra.
Esta versão foi, porém, contrariada pelo depoimento de parte do gerente da Recorrida, que apresentou uma mais conforme à do enunciado da alínea c) dos factos provados, de acordo com a qual foram os Recorrentes que, descontentes com o ritmo dos trabalhos, formaram a vontade de substituir o empreiteiro, comunicando-a a este através de um terceiro – a arquiteta CC.
Perante este dissenso entre as versões de facto apresentadas pelas partes, o testemunho desta CC, arquiteta responsável pelo projeto da obra e que servia de veículo de comunicação entre os Recorrentes e a Recorrida – como constatamos a partir das mensagens que trocou por WhatsApp com o gerente da Ré que foram apresentadas com a petição inicial como documentos 5, 11, 12, 13 e 14, apresenta-se como o fiel da balança.
Analisado este, há que reconhecer que o mesmo confere apoio à versão da Recorrida. Não havendo nada que permita questionar a imparcialidade e a isonomia desta testemunha, temos necessariamente de concluir que, perante aquilo que afirmou, a resposta à questão de saber se a prova produzida impõe uma decisão diversa da que foi tomada pelo Tribunal a quo quanto aos enunciados em questão é negativa, ainda que as razões para tal sejam diversas daquelas que foram aduzidas na decisão recorrida.
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3).6.2. Vejamos agora o enunciado da alínea u) dos factos provados (u) Logo que Ré saiu da obra, entrou em obra outro empreiteiro).
O Tribunal a quo sustentou a sua convicção positiva quanto a este enunciado com base no reconhecimento feito pelo Recorrente, no depoimento de parte que prestou na audiência final, de que “a entrada de um novo empreiteiro na obra ocorreu poucos dias depois da Ré ter saído da obra.”
Os Recorrentes sustentam que este enunciado, para além de inócuo para a decisão da causa, tem um conteúdo indeterminado, resultando do uso do advérbio logo; a Recorrida sustenta a bondade do decidido.
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3).6.2.1. Não há muito a dizer sobre este enunciado.
Desde logo, não obstante aludir a um facto situado a jusante da alegada desistência da obra por partes dos Recorrentes, a sua relevância é evidente, uma vez que contribui para a interpretação da declaração de vontade dos desistentes.
No mais, o advérbio “logo”, sinónimo de imediatamente, prontamente, de pronto, com presteza, tem teor conclusivo, sendo, por isso, impróprio para descrever a realidade ontológica e, mais concretamente, o momento em que o novo empreiteiro tomou conta da obra.
Com efeito, do n.º 4 do art. 607 do CPC resulta que o tribunal só deve responder aos factos que julga provados e não provados, o que exclui a pronúncia, nessa sede, sobre questões de direito, sendo que, tradicionalmente, se englobam neste conceito, por analogia, os juízos de valor ou conclusivos, os quais são, no dizer de Helena Cabrita  (A Fundamentação de Facto e de Direito da Decisão Cível, Coimbra: Coimbra Editora, 2015, pp. 106-107), “ aqueles que encerram um juízo ou conclusão, contendo desde logo em si mesmos a decisão da própria causa” ou, dito de outro modo, aqueles que se fossem considerados provados ou não provados levariam a que toda a ação ficasse resolvida, em termos de procedência ou improcedência, com base nessa única resposta.
A título de exemplo, cita-se STJ de 28.09.2017 (809/10.7TBLMG.C1.S1), no qual se entendeu que, “[m]uito embora o art. 646.º, n.º 4, do anterior CPC tenha deixado de figurar expressamente na lei processual vigente, na medida em que, por imperativo do disposto no art. 607.º, n.º 4, do CPC, devem constar da fundamentação da sentença os factos julgados provados e não provados, deve expurgar-se da matéria de facto a matéria suscetível de ser qualificada como questão de direito.”
Este entendimento estrito tem sido objeto da crítica da doutrina, em especial de Miguel Teixeira de Sousa, “Anotação ao Acórdão do STJ de 28.9.2017, processo n.º 809/10.7TBLMG.C1.S1”, Blog IPPC, Jurisprudência 784[4], https://blogippc.blogspot.com/, que, a propósito, escreve que, “[e]nquanto no CPC/1961 se selecionavam, no modo interrogativo (primeiro no questionário e depois da base instrutória), factos carecidos de prova, hoje enunciam-se, no modo afirmativo, temas da prova (cf. art. 596.º CPC). Tal como estes temas não têm de (e, aliás, nem podem, nem devem) ser enunciados fora de qualquer enquadramento jurídico, também a resposta do tribunal à prova realizada pela parte não tem de ser juridicamente asséptica ou neutra (…).
A chamada "proibição dos factos conclusivos" não tem hoje nenhuma justificação no plano da legislação processual civil (não importando agora discutir se alguma vez teve). Se o tribunal considerar provados os factos que preenchem uma determinada previsão legal, é absolutamente irrelevante que os apresente com a qualificação que lhes é atribuída por essa previsão. Por exemplo: se o tribunal disser que a parte atuou com dolo, porque, de acordo com o depoimento de várias testemunhas, ficou provado que essa parte gizou um plano para enganar a parte contrária, não se percebe por que motivo isso há de afetar a prova deste plano ardiloso (nem também por que razão a qualificação do plano como ardiloso há de afetar a sua prova). O exemplo acabado de referir também permite contrariar uma ideia comum, mas incorreta: a de que factos juridicamente qualificados não podem constituir objeto de prova. A ideia é, efetivamente, incorreta, porque cabe perguntar como é que sem a prova do dolo (através dos respetivos factos probatórios) se pode aplicar, por exemplo, o disposto no art. 483.º, n.º 1, CC quanto à responsabilidade por facto ilícito. É claro que o preceito só pode ser aplicado se, no caso de o dolo ser um facto controvertido, houver prova desse facto. Assim, também ao contrário do entendimento comum, há que concluir que o tema da prova não é mais do que o enunciado do objeto da prova. A referida "proibição dos factos conclusivos" também não corresponde às modernas correntes metodológicas na Ciência do Direito, que não se cansam de referir que a distinção entre a matéria de facto e a matéria de direito é totalmente artificial, dado que, para o direito, apenas são relevantes os factos que o direito qualificar como factos jurídicos. Para o direito, não há factos, mas apenas factos jurídicos, tal como, para a física ou a biologia, não há factos, mas somente factos físicos ou biológicos. Os factos são sempre um Konstrukt, pelo que os factos jurídicos são aqueles factos que são construídos pelo direito. Em conclusão: o objeto da prova não pode deixar de ser um facto jurídico, com todas as características descritivas, qualitativas, quantitativas ou valorativas desse facto.”
Da nossa parte, entendemos que é preferível um entendimento equilibrado da questão. Com efeito, tal como se expende no Ac. de 9.11.2023 (175/21.5T8VNF-B.G2), do presente Relator, o mesmo STJ notou, em Acórdão de 13.11.2007, 07A3060, ainda na vigência do CPC de 1961, que “[t]orna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos.” E acrescentou que “não pode perder‑se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar‑se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas.”
Já no âmbito do CPC de 2013, o STJ, em Ac. de 22.03.2018 (1568/09.1TBGDM.P1.S1), considerou que a inexistência no CPC de 2013 de um preceito como o do art. 646/4 do CPC de 1961 “não pode deixar de ter implicações no que concerne à atual metodologia no que concerne à descrição na sentença do que constitui matéria de facto e matéria de direito.” Escreveu-se ali que “[n]o que concerne à decisão sobre a matéria de facto provada e não provada, não será indiferente nem o modo como as partes exerceram o seu ónus de alegação, nem a forma como o juiz, na audiência prévia ou em despacho autónomo, enunciou os temas da prova, tarefas relativamente às quais foram introduzidas no CPC importantes alterações que visaram quebrar rotinas instaladas e afastar os efeitos negativos a que conduziu a metodologia usualmente aplicada no âmbito do CPC de 1961 (…) A matéria de facto provada deve ser descrita pelo juiz de forma mais fluente e harmoniosa do que aquela que resultava anteriormente da mera transcrição do resultado de respostas afirmativas, positivas, restritivas ou explicativas a factos sincopados que usualmente preenchiam os diversos pontos da base instrutória do CPC de 1961 (…)”
O relator deste Acórdão, Juiz Conselheiro António Abrantes Geraldes, renovou este entendimento na sua obra Recursos em Processo Civil (7.ª ed., Coimbra: Almedina, 2022, pp. 354-355), ao escrever que, em resultado da modificação formal da produção de prova em audiência, que passou a ter por objeto temas de prova, e da opção da integração da decisão da matéria de facto no âmbito da própria sentença, “deve existir uma maior liberdade no que concerne à descrição da realidade litigada, a qual não deve ser imoderadamente perturbada por juízos lógico-formais em torno do que seja matéria de direito ou matéria conclusiva que apenas sirva para provocar um desajustamento entre a decisão final e a justiça material do caso (...) A patologia da sentença neste segmento apenas se verificará, em linhas gerais, quando seja abertamente assumida como matéria de facto provada pura e inequívoca matéria de direito…”
Sem prejuízo, como salientado no Acórdão desta Relação de 11.11.2021, 671/20.1T8BGC.G1, “não obstante subscrevermos uma maior liberdade introduzida pelo legislador no novo (atual) Código de Processo Civil, entendemos que não constituem factos a considerar provados na sentença nos termos do disposto nos n.ºs 3 e 4 do artigo 607º do Código de Processo Civil os que contenham apenas formulações absolutamente genéricas e conclusivas, não devendo também constituir “factos provados” para esse efeito as afirmações que “numa pura petição de princípio assimile a causa de pedir e o pedido”… De facto, se a opção legislativa tem subjacente a possibilidade de com maior maleabilidade se fazer o cruzamento entre a matéria de facto e a matéria de direito, tanto mais que agora ambos (decisão da matéria de facto e da matéria de direito) se agregam no mesmo momento, a elaboração da sentença, tal não pode significar que seja admissível a “assimilação entre o julgamento da matéria de facto e o da matéria de direito ou que seja possível, através de uma afirmação de pendor estritamente jurídico, superar os aspetos que dependem da decisão da matéria de facto”…”
No mesmo sentido, o Acórdão desta Relação de 31.03.2022 (294/19.8T8MAC.G1) sintetiza a questão nos seguintes termos: “[a]figura-se-nos que os factos conclusivos não devem relevar (não podem integrar a matéria de facto) quando, porque estão diretamente relacionados com o thema decidendum, impedem ou dificultam de modo relevante a perceção da realidade concreta, seja ela externa ou interna, ditando simultaneamente a solução jurídica, normalmente através da formulação de um juízo de valor.” E, sufragando RP 07.12.2018 (338/17.8YRPRT), acrescenta que: “Acaso o objeto da ação esteja, total ou parcialmente, dependente do significado real das expressões técnico-jurídicas utilizadas, há que concluir que estamos perante matéria de direito e que tais expressões não devem ser submetidas a prova e não podem integrar a decisão sobre matéria de facto. Se, pelo contrário, o objeto da ação não girar em redor da resposta exata que se dê às afirmações feitas pela parte, as expressões utilizadas, sejam elas de significado jurídico, valorativas ou conclusivas, poderão ser integradas na matéria de facto, passível de apuramento através da produção dos meios de prova e de pronúncia final do tribunal que efetua o julgamento, embora com o significado vulgar e corrente e não com o sentido técnico-jurídico que possa colher-se nos textos legais.”
Deste modo, tendo presente que a linha divisória entre o facto e o direito não é linear, tudo dependendo, no dizer de Anselmo de Castro, Direito Processual Civil Declaratório, III, Coimbra: Almedina, 1982, p. 270, “em considerável medida não só da estrutura da norma, como dos termos da causa: o que é facto ou juízo de facto num caso, poderá ser direito ou juízo de direito noutro. Os limites entre um e outro são, assim, flutuantes”, há sempre que verificar se o facto, mesmo com uma componente conclusiva, não tem ainda um substrato relevante para o acervo que importa para uma decisão justa.
Na verdade, como se salienta em STJ 14.07.2021 (19035/17.8T8PRT.P1.S1), citando um outro aresto do mesmo Tribunal, este de 13.11.2007, “torna-se patente que o julgamento da matéria de facto implica quase sempre que o julgador formule juízos conclusivos, obrigando-o a sintetizar ou a separar os materiais que lhe são apresentados através das provas. Insiste-se: o que a lei veda ao julgador da matéria de facto é a formulação de juízos sobre questões de direito, sancionando a infração desta proibição com o considerar tal tipo de juízos como não escritos.
Aliás, não pode perder-se de vista que é praticamente impossível formular questões rigorosamente simples, que não tragam em si implicados, o mais das vezes, juízos conclusivos sobre outros elementos de facto; e assim, desde que se trate de realidades apreensíveis e compreensíveis pelos sentidos e pelo intelecto dos homens, não deve aceitar-se que uma pretensa ortodoxia na organização da base instrutória impeça a sua quesitação, sob pena de a resolução judicial dos litígios ir perdendo progressivamente o contacto com a realidade da vida e assentar cada vez mais em abstrações (e subtilezas jurídicas) distantes dos interesses legítimos que o direito e os tribunais têm o dever de proteger. E quem diz quesitação diz também, logicamente, estabelecimento da resposta, isto é, incorporação do correspondente facto no processo através da exteriorização da convicção do julgador, formada sobre a livre apreciação das provas produzidas.”
Deste modo, o advérbio em questão (logo) deve ser, pura e simplesmente, expurgado da fundamentação de facto, assim se observando a lição de Manuel Tomé Soares Gomes (“Da Sentença Cível”, AAVV, O Novo Processo Civil. Textos e Jurisprudência, CEJ: Lisboa, 205, pp. 329-387) que aqui respigamos:

“Os enunciados de facto devem ser expressos numa linguagem natural e exata, de modo a retratar com objetividade a realidade a que respeitam, e devem ser estruturados com correção sintática e propriedade terminológica e semântica. A adequação dos enunciados de facto deve pautar-se pela exigência de evitar que esses enunciados se apresentem obscuros (de sentido vago ou equívoco), contraditórios (integrados por termos ou proposições reciprocamente excludentes) e incompletos (de alcance truncado), vícios estes que figuram como fundamento de anulação da decisão de facto, em sede de recurso de apelação, nos termos do artigo 662.º, n.º 2, alínea c), do CPC.
(…)
(…) as partes tendem a adestrar a factualidade pertinente no sentido estrategicamente favorável à posição que sustentam no seu confronto conflitual, daí resultando enunciados, por vezes, deformados, contorcidos ou de pendor mais subjetivo ou até emotivo.
Cumprirá, por sua vez, ao juiz, na formulação dos juízos de prova, expurgar tais deformações, sendo que, como é entendimento jurisprudencial corrente, não se encontra adstrito à forma vocabular e sintática da narrativa das partes, mas sim ao seu alcance semântico. Deve, pois, adotar enunciados que, refletindo os resultados probatórios, sejam portadores de um sentido semântico, o mais consensual possível, de forma a garantir que a controvérsia se desenvolva em sede da sua substância factual e não no plano meramente epidérmico dos seus modos de expressão linguística.”

Nesta sequência, certo como é que o emprego de expressões conclusivas gera uma situação de “falta de pronúncia sobre factos essenciais ou complementares (…) de modo que conjugadamente se mostre impedido o estabelecimento de uma plataforma sólida para a integração jurídica do caso”, a qual deve ser resolvida pela Relação, mesmo oficiosamente, nos termos da alínea c) do n.º 2 do art. 662º do CPC (RG 11.07.2024, 6145/22.9T8VNF-C.G1, José Carlos Pereira Duarte), vejamos se a prova produzida permite a substituição do advérbio eliminado por factos concretos
Pois bem, face à prova produzida, é inequívoco que, após a saída da Recorrida da obra, os trabalhos foram continuados por outro empreiteiro. Isto resulta do que foi afirmado pelo próprio Recorrente.
Os elementos disponíveis não permitem, porém, apurar se o contrato com esse outro empreiteiro foi celebrado antes ou depois da comunicação do facto constante da alínea c). As declarações do Recorrente – que, nesta parte, não foram colocadas em causa por qualquer outro meio de prova, permitem, porém, que se estabeleça que esse outro empreiteiro começou a trabalhar na obra ainda no mês de março de 2023, pelo que, procedendo parcialmente esta parte da impugnação, o enunciado passará a ter a seguinte redação: “Depois da saída da Ré, os trabalhos foram retomados por outro empreiteiro, para esse efeito contratado pelos Autores, o que sucedeu antes do mês de março de 2023.”
***
3).6.3. Vejamos agora o enunciado da alínea w) dos factos provados, do seguinte teor: w) Ao desistirem da empreitada, os Autores impediram a Ré de auferir o lucro ou proveito que dela poderia ter retirado, no valor mínimo de € 7.500,00.
O Tribunal a quo não explicou, de forma concreta, como se formou a sua convicção quanto a este enunciado. Conseguimos, porém, perceber, a partir da motivação genérica a que procedeu, que teve em consideração (apenas) as declarações prestadas pelo gerente da Recorrida em sede de audiência final.
Os Recorrentes sustentam, em primeiro lugar, que a parte inicial do enunciado não pode ser considerada como provada, fazendo apelo às razões aduzidas a propósito do enunciado da alínea e), e, em segundo lugar, que a parte final do enunciado é incoerente com a decisão de condenar os Réus a pagarem à Recorrida “o valor que se vier a apurar em sede de liquidação ulterior.”
A Recorrida, por seu turno, sustenta a bondade do decidido pelo Tribunal a quo.
***
3).6.3.1. A primeira parte do enunciado peca por conter um conceito de direito (desistência da empreitada), que pura e simplesmente deve ser expurgado.
A substanciação do conceito já está feita no enunciado da alínea l) dos factos provados, tornando-se desnecessária a sua repetição.
Quanto à 2.ª parte, temos de reconhecer que assiste razão aos Recorrentes quando afirmam que o teor do enunciado não é compaginável com a decisão final de julgar o pedido reconvencional (que consistia na condenação dos Recorrentes a pagarem à Recorrida a quantia de € 7 500,00, a título de indemnização pela perda do proveito que iria retirar da obra) parcialmente procedente.
É fácil perceber porquê, quando se atente no que escrevemos a propósito da segunda questão apreciada neste Acórdão (a da arguida nulidade da sentença com fundamento na condenação ultra petitum): se está em causa o montante do proveito que o empreiteiro deixou de auferir em consequência da desistência do dono da obra, então não se justifica uma condenação genérica quando o tribunal, apesar de não ter apurado esse montante com exatidão, sempre tenha concluído, dando-o como provado, que ele foi superior à liquidação feita pelo empreiteiro no ato postulativo. Limitado como está pelo quantitativo pedido – e que já apurou corresponder ao montante mínimo do dano –, o tribunal não tem outra solução que não seja a de julgar logo o pedido integralmente procedente, condenando o dono da obra no pagamento do respetivo montante. Relegar a liquidação para momento ulterior será, em tal caso, um contrassenso e uma inutilidade.
Sem prejuízo desta consideração, em si mesma irrelevante no que tange à impugnação da decisão da matéria de facto, o que surge como inegável é que esta 2.ª parte do enunciado é ostensivamente conclusiva, por esgotar o thema decidendum – a quantificação do proveito que a Recorrida teria obtido se o contrato celebrado com os Recorrentes tivesse sido cumprido, com a realização da obra –, e, portanto, totalmente imprestável para integrar a fundamentação de facto do ato decisório.
***
3).6.3.1. Tendo presente o que escrevemos a propósito do enunciado analisado no ponto anterior, importa ver se existem elementos que permitam lançar mão dos poderes atribuídos à Relação pelo art. 662 do CPC de modo a substanciar a conclusão.
Ora, os elementos disponíveis não nos permitem ir além daquilo que resulta das regras do id quod plerumque accidit – a Recorrida, como sociedade comercial que é, celebrou o contrato com os Recorrentes com um intuito lucrativo.
A partir daqui, seria necessário que tivessem sido alegados ou que resultassem da prova produzida factos complementares ou concretizadores dos quais se pudessem retirar os elementos necessários ao cálculo do proveito que a Recorrida teria obtido se tivesse realizado a obra completa, tendo em conta o critério positivo consagrado pelo legislador no art. 1229 do Código Civil (v.g., o valor que a Recorrida teria gasto em materiais e mão-de-obra).
A prova produzida, circunscrita às declarações do gerente da Recorrida, é insuficiente e imprecisa, exceto no que tange à expetativa de lucro que a Recorrida tinha quando apresentou os orçamentos, a qual era de 12,5 a 30% do valor orçamentado.
Assim, evitando redundâncias, o enunciado do ponto w) do rol dos factos provados passará a ter a seguinte redação: “Com a realização da obra e a obtenção da totalidade do preço acordado, a Ré tinha a expetativa de obter um lucro não inferior a 12,5% do valor orçamentado.”
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3).6.4. Passamos para o enunciado da alínea i) dos factos não provados, do seguinte teor: “Em decorrência da necessidade de fiscalizar a execução da obra, os Autores necessitaram de ficar alojados em ... e pagar a quantia de € 1.676,93.”
Este enunciado está relacionado com os danos alegadamente sofridos pelos Recorrentes em resultado do abandono (ad nutum) da obra por parte da Recorrida, facto que foi considerado como não provado pelo Tribunal a quo.
Improcedendo a impugnação da decisão assim tomada, temos de concluir que nenhuma utilidade resultará para a ação de uma eventual modificação do sentido do enunciado em apreço: não estando provado o facto ilícito, gerador da obrigação de indemnizar, é irrelevante o apuramento dos danos. A pretensão indemnizatória sempre seria improcedente, independentemente do resultado da impugnação deste concreto ponto da decisão da matéria de facto.
Como tem vindo a ser entendido, a impugnação da decisão de facto não se justifica a se, de forma independente e autónoma da decisão de mérito proferida, assumindo antes um carácter instrumental face à mesma.
A este propósito, pode ler-se em RG 15.12.2016 (86/14.0T8AMR.G1), Maria João Pinto de Matos:

“Com efeito, a «impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, consagrada no artigo 685.º-B [do anterior C.P.C.], visa, em primeira linha, modificar o julgamento feito sobre os factos que se consideram incorretamente julgados. Mas, este instrumento processual tem por fim último possibilitar alterar a matéria de facto que o tribunal a quo considerou provada, para, face à nova realidade a que por esse caminho se chegou, se possa concluir que afinal existe o direito que foi invocado, ou que não se verifica um outro cuja existência se reconheceu; ou seja, que o enquadramento jurídico dos factos agora tidos por provados conduz a decisão diferente da anteriormente alcançada. O seu efetivo objetivo é conceder à parte uma ferramenta processual que lhe permita modificar a matéria de facto considerada provada ou não provada, de modo a que, por essa via, obtenha um efeito juridicamente útil ou relevante» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10…).
Logo, «por força dos princípios da utilidade, economia e celeridade processual, o Tribunal ad quem não deve reapreciar a matéria de facto quando o(s) facto(s) concreto(s) objeto da impugnação for insuscetível de, face às circunstância próprias do caso em apreciação e às diversas soluções plausíveis de direito, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, de antemão, ser inconsequente» (Ac. da RC, de 27.05.2014, Moreira do Carmo, Processo nº 1024/12…).
Por outras palavra, se, «por qualquer motivo, o facto a que se dirige aquela impugnação for, "segundo as várias soluções plausíveis da questão de direito", irrelevante para a decisão a proferir, então torna-se inútil a atividade de reapreciar o julgamento da matéria de facto, pois, nesse caso, mesmo que, em conformidade com a pretensão do recorrente, se modifique o juízo anteriormente formulado, sempre o facto que agora se considerou provado ou não provado continua a ser juridicamente inócuo ou insuficiente.
Quer isto dizer que não há lugar à reapreciação da matéria de facto quando o facto concreto objeto da impugnação não for suscetível de, face às circunstâncias próprias do caso em apreciação, ter relevância jurídica, sob pena de se levar a cabo uma atividade processual que se sabe, antemão, ser inconsequente, o que contraria os princípios da celeridade e da economia processual consagrados nos artigos 2.º n.º 1, 137.º e 138.º.» (Ac. da RC, de 24.04.2012, Beça Pereira, Processo nº 219/10... No mesmo sentido, Ac. da RC, de 14.01.2014, Henrique Antunes, Processo nº 6628/10).

Esta orientação é constante na jurisprudência das Relações – inter alia, RC 6.11.2018 (228/17.4T8OHP.C1) e RL 24.09.2020 (35708/19.8YIPRT.L1-2) – e encontra acolhimento na do STJ – inter alia, STJ 17.05.2017 (4111/13.4TBBRG.G1.S1) e 28.01.2020 (287.11.3TYVNG.G.P1.S1).
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3).7. Em corolário do que antecede, reproduzimos os factos provados, devidamente organizados de acordo com a sequência lógica e cronológica que é conforme à realidade histórica[5]:
 
1. (a)) Autores e Ré celebraram um contrato de empreitada com vista à remodelação de um imóvel do qual os primeiros são proprietários, sito na Rua ..., ..., ..., em ....
2. (b)) A relação entre Autores e Ré foi mediada pela Arquiteta CC, contratada pelos primeiros.
3. (c)) A Ré apresentou os orçamentos nºs ...9 e ...0, datados, respetivamente, de 29 de novembro de 2022 e 28 de dezembro de 2022, no valor global de € 61.041,00, acrescido do IVA.
4. (d)) O orçamento nº ...9, de 29/11/2022, incluía o fornecimento/execução do seguinte:
- Guardas em vidro: € 9383,00 + € 750,00 + € 595,00 + € 6.105,00 + IVA;
- Construção e remodelação de anexo:
- Construção de WC exterior composto de sanita e lavatório e base de chuveiro, sendo que terá uma porta para o exterior em alumínio igual ao existente e uma porta cassete interior em melamina com ligação aos escritórios;
- Teto em madeira igual ao existente com isolamento de tela de alumínio e XPS de 40 entre a madeira e a telha, no telhado novo e no existente (incluiu levantamento do existente);
- Revestimento cerâmico no WC até € 20 de valor máximo suportando o cliente a diferença caso escolha superior;
- Reboco liso ou areado no anexo ao WC. Pintado a branco;
- Instalação de tubagem de esgotos e circuito de águas limpas, quente e fria, ligadas a rede existente;
(não contempla louças sanitárias, autoclismo nem torneiras): € 4.565,00 + IVA.
- Caleiros e rufos: - Fornecimento e aplicação de caleiros e rufos de telhado no escritório (existente) e anexos a construir em chapa lacada, cor a definir: € 565,00 + IVA;
- Alumínios: Fornecimento e aplicação de duas portas de abrir e duas janelas basculantes de Cortizo serie 2300 lacado a cor 7016, com rutura térmica, com vidro duplo fosco: € 2029,00 + IVA.
- Pichelaria e eletricidade:
- Verificação e medição da instalação elétrica;
- Fornecimento e aplicação de 24 projetores direcionáveis, aço escovado com lâmpada Gu10 led;
- Pré-instalação de ar condicionado;
- Instalação de casa de banho completa, água quente e fria e esgotos (até 6 metros);
- Instalação de quatro pontos elétricos de iluminação;
- Instalação de quatro tomadas de corrente na sala e duas no escritório;
- Mudança do radiador no quarto;
- Alteação da bomba de calor de onde está para cima do anexo de entrada;
- Alteração da instalação da piscina, sistema elétrico e hidráulico, para anexo da entrada: € 5.696,00 + IVA.
- Gesso cartonado BA13:
- Fornecimento e aplicação de gesso cartonado no revestimento das escadas;
- Criar parede ferralhada na saída da lavandaria;
- Revestimento de escritório (parede de fundo) com isolamento: € 2.775,00 + IVA.
- Pintura:
- Fornecimento e aplicação de primário isolante e pintura de cor a definir nas zonas de intervenção do gesso cartonado: € 455,00 + IVA.
- Substituição de Deck Exterior:
- Retirada do Deck Exterior da piscina, varanda do quarto superior e exterior da sala;
- Regularização em betonilha do pavimento e forma a receber cerâmico;
- Fornecimento e aplicação de cerâmico a imitar Deck (até € 30/m); - Fornecimento e aplicação de tela asfáltica 4 K no exterior do piso superior;
- Remoção do material retirado;
- Substituição de lajetas deterioradas: € 5.683,00 + IVA.
- Substituição de pedra da fachada exterior – Não contemplado;
Total € 44.970,00 + IVA.
5. (e)) A R. estabeleceu como regra de aceitação do contrato de empreitada/orçamento nº ...9 o depósito de 40% do valor do contrato, com exceção da cláusula referente ao vidro, no valor de € 23.202,00 + IVA, cuja aceitação dependia do depósito de 70% do preço.
6. (f)) O orçamento nº ...0, datado de 28 de dezembro de 2022, incluía o fornecimento/execução do seguinte:
- Carpintaria:
- Polir e envernizar soalho numa área de 140 m2;
- Substituir ripas de soalhos estragadas nas entradas dos quartos;
- Polir, escurecer e envernizar soalho em 10 m2;
- Polir e envernizar degraus interiores;
- Fornecer e aplicar meio patamar no piso superior;
- Fornecer e aplicar espelhos de madeira sucupira nos degraus interiores;
- Afinar portas nos móveis interiores;
- Fornecer e aplicar duas portas de divisórias interiores iguais às existentes.
- Fornecer e aplicar portas de cassete em madeira e vidro (estrutura incluída noutro orçamento): € 6.424,00 + IVA.
- Armários para a cave - € 2420,00;
- Forrar as laterais de dois lanços de escada conforme apresentado (D1) - € 2090,00;
- 3 apainelados lacados com 0,80 x 272 cm cada;
- Módulo de gavetas suspensas;
- 1 ripado vertical (AR3);
- Apainelado 0.80 x 253 cm em forma ripado (Ap1) - € 2607,00;
- Armário para escritório conforme descrito no projeto (AR2) - € 1265,00;
- Armário para quarto de criança conforme projeto (AR4) - € 1265,00:
Total € 16.071,00 + IVA.
7. (w, com a redação resultante da procedência parcial da impugnação) Com a realização da obra a Ré tinha a expetativa de obter um lucro não inferior a 12,5% do valor orçamentado.
8. (g)) A R. estabeleceu como regra de aceitação do orçamento nº ...0 o depósito de 40% do valor.
9. (h)) No dia 30 de dezembro de 2022, os Autores procederam à transferência bancária do valor de € 25.225,33 (vinte e cinco mil duzentos e vinte e cinco euros e trinta e três cêntimos), correspondente ao valor da adjudicação da obra.
10. (i)) A execução da obra iniciou-se no mês de fevereiro de 2023 em data não concretamente apurada.
11. (j)) Na segunda semana de fevereiro foi entregue aos Autores um plano para a execução dos trabalhos, elaborado pela Arquiteta CC, com a concordância da Ré, que previa o seguinte:
- Até ao final de fevereiro estarão terminados os trabalhos referentes a alicerces, decks, infiltração, telhados, rufos e isolamento;
- Até ao final de março estarão terminados os trabalhos relativos a gesso cartonado, pichelaria e eletricidade, aplicação de loiças e cerâmicos nos WC e decks; e
- A obra estará concluída em abril com a colocação de alumínios, gesso cartonado interior, carpintaria interior e pintura.
12. (k)) No final de fevereiro de 2023 não estavam finalizados os trabalhos previstos até essa data.
13. (m)) A Ré executou os seguintes trabalhos:
- Construção e remodelação de anexo:
- Construção de parede de alvenaria em tijolo;
- Instalação de tubagem de esgotos ligada à rede.
- Pichelaria e Eletricidade:
- Pré-Instalação dos esgotos da casa de banho;
- Fornecimento e aplicação de tela asfáltica no piso inferior e lavagem do pavimento e4m toda a área.
- Substituição de Deck Exterior
- Retirados 25,34 m2 do deck exterior existente.
14. (l)) No início de março de 2023, os Autores solicitaram à Ré que deixasse a obra, pedido que a Ré aceitou.
15. (u, com a redação resultante da procedência parcial da impugnação) Depois da saída da Ré, os trabalhos foram retomados por outro empreiteiro, para esse efeito contratado pelos Autores, o que sucedeu antes do mês de março de 2023.”
16. (n)) No dia 17/03/2023, a Ré emitiu uma nota de crédito sobre o valor total liquidado pelos Autores e procedeu à emissão de uma fatura no valor de € 5.822,40 (cinco mil oitocentos e vinte e dois euros e quarenta cêntimos), relativa a “Serviços de Consultoria de Eletricidade e Construção – Montagem de estrutura para anexo e casa de banho e aplicação de materiais – levantamento piso deck exterior – Lavagem pavimento – Pré-instalação de esgotos casa de banho – Fornecimento e Aplicação de Telas asfáltica no Exterior.”
17. (o)) Não consta dos orçamentos aprovados “Serviços de Consultadoria de Eletricidade e Construção”.
18. (p)) A aplicação de tela asfáltica no piso inferior não consta do projeto nem do orçamento apresentado.
19. (q)) A parede de alvenaria em tijolo foi construída fora do alinhamento e teve que ser corrigida.
20. (r)) A tubagem de esgotos foi instalada com os caimentos ao contrário.
21. (s)) A Ré transferiu para a conta dos Autores a quantia de € 10.000,00 em 15/03/2023, e € 9.402,93, em 21/03/2023.
22. (t)) Por carta datada de 05 de junho de 2023, os Autores reclamaram da fatura identificada na al. n), denunciaram os a existência de defeitos na obra, indicaram os trabalhos faturados e não executados e propuseram a redução do valor faturado para € 1.000,00, interpelando a Ré para a devolução do remanescente.
***
4).1.1. Passamos para a 4.ª questão.
Na resposta à primeira subquestão, começamos por lembrar que os Recorrentes pretendem, através da presente ação, a condenação da Ré no pagamento (i) da quantia de € 5 822,40, que dizem corresponder à “redução do preço do contrato de empreitada celebrado entre as partes”, e (ii) da quantia de € 1 676,93, que dizem corresponder ao valor do dano patrimonial que sofreram.
Sustentam a primeira pretensão no alegado facto de a Ré, no dia 4 de março de 2023, ter “resolvido unilateralmente” (sic) o contrato de empreitada, abandonando a obra, e de, nessa sequência, apenas lhes ter restituído parte do preço que haviam adiantado (€ 19 402,93), quando devia ter restituído a totalidade (€ 25 225,33), uma vez que, por um lado, parte dos trabalhos feitos pela Ré não haviam sido contratados e, por outra, a parte da obra realizada apresenta defeitos que reduzem o seu valor.
Sustentam a segunda pretensão no incumprimento, pela Recorrida, do contrato de empreitada celebrado entre as partes.
Não suscitando quaisquer dúvidas que entre as partes foi celebrado um contrato de empreitada, tal como este é tipificado no art. 1207 do Código Civil, esta simples sinopse dos elementos objetivos da ação, tal como delineados pelos Recorrentes, revela-nos as aporias e as contradições jurídicas de que a sua tese padece, a começar pela referência ao instituto da redução do preço no contrato de empreitada, legalmente arrimada na norma do art. 1222 do Código Civil. É que a aplicação deste instituto pressupõe que a obra tenha sido concluída pelo empreiteiro, apresentando, porém, defeitos – ou, na terminologia do DL n.º 84/2021, de 28.10, faltas de conformidade com o contratado –, que, não a tornando inútil para o dono da obra, no estado em que se encontra, lhe diminuem o valor (cf. art. 1222/1 do Código Civil e, para as empreitadas de consumo, art. 15/1, b), do DL n.º 84/2021). A redução do preço apresenta-se então como o meio de restabelecer o equilíbrio das prestações. Isto mesmo é explicado por Pedro Romano Martinez (Cumprimento Defeituoso em Especial na Compra e Venda e na Empreitada, Coimbra: Almedina, 1994, pp. 404-405), quando escreve que a redução do preço, não correspondendo a uma indemnização, encontra o seu “fundamento numa equivalência de prestações e, com ela, pretende-se tão-só estabelecer um reajustamento do preço.”
Diferentemente, havendo incumprimento (definitivo) do contrato por parte do empreiteiro, sem que a obra tenha sido concluída – facto alegado –, aquilo que surge na esfera jurídica do dono da obra é uma pretensão indemnizatória, a qual, tradicionalmente, se diz que poderá visar o denominado interesse contratual positivo – colocar o dono da obra na situação em que estaria se o empreiteiro tivesse realizado a sua prestação, concluindo a obra, caso em que persiste a obrigação de pagar o preço – ou o denominado interesse contratual negativo – colocar o dono da obra na situação em que estaria se o contrato não tivesse sido celebrado. Nesta última hipótese, pressupõe-se a prévia resolução do contrato que, como é sabido, a lei (art. 433) equipara, quanto aos efeitos, à nulidade ou à anulabilidade do negócio jurídico, o que se traduz numa eficácia retroativa – devendo ser restituído tudo o que tiver sido prestado – finalidade prosseguida pelos Recorrentes – ou, se a restituição em espécie não for possível, o valor correspondente (289/1) – bem como, implicitamente, numa eficácia liberatória das obrigações ou prestações ainda não efetuadas, entre elas a de pagar o preço.
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4).1.2. Considerando que a alusão à redução do preço e ao regime do art. 1222 do Código Civil mais não é que uma forma tecnicamente imperfeita de os Recorrentes expressarem a sua pretensão de restituição do preço adiantado à Recorrida, em consequência do (alegado) incumprimento (definitivo) do contrato e da sua (não alegada) resolução, diremos que não suscita dúvida a possibilidade do accipiens cumular tal pretensão com o direito a imputar na esfera jurídica da outra parte os prejuízos que sofreu em consequência do incumprimento desta que serviu de fundamento à resolução (cf., a propósito, Brandão Proença, A Resolução do Contrato no Direito Civil, Coimbra: Coimbra Editora, 1996, pp. 183 e ss.).
Segundo a doutrina maioritária (cf. Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, II, 5.ª ed., Coimbra: Almedina, 1992, p. 109; Carlos Alberto Mota Pinto, Cessão da Posição Contratual, Coimbra: Almedina, 1982, p. 412, nota 1; Pessoa Jorge, Ensaio sobre os Pressupostos da Responsabilidade Civil, Lisboa, 1968, p. 380; Brandão Proença, A Resolução cit., pp. 183 e ss.; Luís Menezes Leitão, Direito das Obrigações, II, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2005, pp. 258 e ss.), está em causa o interesse contratual negativo ou de confiança: a indemnização visará colocar o credor na situação em que se encontraria se não houvesse celebrado o contrato e não na situação em que se encontraria se o contrato tivesse sido pontualmente cumprido. Na jurisprudência, vide o Ac. da RP de 7.04.2008, processo n.º 0757285, e o Ac. do STJ de 26.03.1998, processo n.º 06A329.
A tese da indemnização pelo interesse negativo teve origem no antigo § 325/1 do BGB, onde se dizia expressamente que, em casos de impossibilidade imputável ao devedor, o credor poderia “exigir indemnização pelo não cumprimento ou resolver o contrato”. Esta solução era atenuada, porém, entendendo-se que o credor sempre poderia, em caso de resolução, pedir uma indemnização pelo interesse negativo. Esta solução do direito alemão foi corrigida, em 2001, na chamada Modernisierung do BGB, entrada em vigor em 1.01.2002.
O principal argumento dos defensores desta doutrina é o da retroatividade da resolução (434/1): destruindo-se retroativamente o contrato, não faria sentido em termos lógicos que a indemnização pudesse continuar a abranger os danos resultantes da não realização da prestação, sendo que por outro lado os arts. 898 e 908 estabelecem, no âmbito do cumprimento defeituoso do contrato de compra e venda, uma clara distinção entre a indemnização referida ao interesse contratual positivo e a indemnização referida ao interesse contratual negativo.
Contra este entendimento pronunciaram-se Vaz Serra, Baptista Machado e Ana Prata, partindo, para tanto, da ideia de que, se a resolução do contrato libera o seu Autor do dever de efetuar a contraprestação, não pode, porém, prejudicá-lo em termos de indemnização, pelo que ela deve continuar a abranger o interesse contratual positivo. Estes autores acabam, assim, por contestar o carácter retroativo da resolução por incumprimento, o argumento central da doutrina que limita a indemnização ao interesse contratual negativo.
Segundo Vaz Serra (“Impossibilidade Superveniente e Cumprimento Imperfeito Imputáveis ao Devedor”, BMJ, n.º 47, pp. 37 e ss.; “Anotação ao acórdão de 30.06.1970”, RLJ, ano 104, pp. 205 e ss.), a resolução por incumprimento apenas obriga o contraente faltoso à restituição da prestação recebida, devendo o contraente fiel ficar sujeito apenas à restituição por enriquecimento, que naturalmente poderá compensar com a indemnização pelo interesse contratual positivo.
Para Baptista Machado (“A resolução por não cumprimento e a indemnização”, Obra Dispersa, I, Braga: Scientia Iuridica, 1989, pp. 195 e ss.), o art. 801/2 não constitui um caso de resolução do contrato, mas antes a concessão ao credor nos contratos sinalagmáticos da alternativa entre uma grande indemnização pelo não cumprimento, ou uma indemnização pelo cumprimento onde seria descontado o valor da própria prestação, caso o credor optasse por não a fazer ou pedisse a sua restituição. Não haveria, assim, a destruição retroativa do contrato com alteração do montante da indemnização, mas uma compensação nela da própria prestação caso o credor tivesse interesse na sua recuperação ou não realização. Baptista Machado sustenta a sua tese no art. 802. Considera que a doutrina maioritária coloca o credor que opta pela resolução numa situação pior do que o que opta pela redução do contrato (cf. Pressupostos cit., pp. 175 e ss.).
Finalmente, Ana Prata (Cláusulas de Exclusão e Limitação da Responsabilidade Contratual, Coimbra: Almedina, 1985, pp. 479 e ss.) defende que na resolução por incumprimento a indemnização abrange o interesse contratual positivo, com base em argumentos de cariz exegético: o de que nos arts. 801/2 e no art. 802/1 a lei não estabelece qualquer distinção entre o conteúdo do direito de indemnização, que só pode, por isso, referir-se aos danos positivos, e o de que a disposição do art. 801/2 só se compreende no intuito de excecionar o carácter retroativo da resolução, que nesse caso só pode abranger o direito de indemnização. E acrescenta que “o argumento em que assenta a doutrina maioritária não é suficiente, porque retroatividade, aqui, quer dizer que as prestações devem ser restituídas ex tunc, ou seja, de modo a que os seus objetos, valores, frutos (incluindo juros) e acessórios voltem à parte que as realizou (ou aí se mantenham), como se de lá nunca houvessem saído. Além de que o art. 434/1 admite especificamente que a finalidade da resolução exclua a retroatividade.
O art. 802/1, relativo à impossibilidade imputável parcial, mostra que a indemnização é a mesma (interesse positivo) quer haja ou não resolução. Seria incompreensível um resultado diferente em sede de impossibilidade total. Aliás, o próprio art. 801/1 diz que o credor pode resolver o contrato “independentemente do direito à indemnização.”
A tese de que a indemnização pode abranger o interesse contratual positivo, quer haja ou não resolução, resulta de a função da resolução por impossibilidade imputável respeitar apenas aos efeitos dessa impossibilidade na contraprestação, permitindo que o credor não a realize se não quiser, ou seja, resulta de a resolução do art. 801/2 ser um mero instrumento do sinalagma. Problema autónomo é o da responsabilidade civil, que reage à falta do cumprimento (imputável ao devedor) e que, portanto, deve cobrir todos os danos causados por essa falta de cumprimento. Os danos causados pelo cumprimento correspondem ao interesse positivo. O credor vai ser colocado na situação patrimonial em que estaria se o cumprimento tivesse ocorrido. A solução da indemnização pelo interesse positivo é também, portanto, a que decorre mais diretamente dos arts. 562 e ss., designadamente, do art. 566/2.
Note-se que este problema do conteúdo da indemnização em caso de resolução (art. 801 /2) envolve três teorias sobre a relação entre as prestações inicialmente devidas e a indemnização.
A chamada “teoria da sub-rogação” pretendia que a indemnização pelo interesse positivo seria um equivalente pecuniário da prestação tornada impossível e, por isso, o credor só poderia exigir esta indemnização pelo interesse positivo se realizasse a sua contraprestação, de modo a que o sinalagma fosse respeitado. Se o credor não realizasse a sua contraprestação, resolvendo o contrato, só poderia pedir uma indemnização pelo interesse negativo. Esta teoria era um dos argumentos a favor de que, nos casos de resolução, a indemnização fosse pelo interesse negativo. A teoria da sub-rogação afigura-se incorreta porque, por um lado, a indemnização não é um equivalente pecuniário da prestação impossível. Por outro lado, se o credor só recebe o dito “equivalente pecuniário”, também nunca teria de realizar mais do que um “equivalente pecuniário” da sua contraprestação, e não a própria contraprestação. Ou seja, nunca teria mais do que descontar o valor da sua contraprestação no montante da indemnização.
A “teoria da diferença (pura)”, justamente confiante nessa ideia de “descontar”, de subtrair (ou seja, calcular a “diferença”) a contraprestação no montante da indemnização. Esta teoria foi desenvolvida na Alemanha, onde, como dissemos, o BGB consagrava a regra de que o credor teria de escolher entre resolução e indemnização pelo interesse positivo. O que a teoria da diferença (pura) vem dizer é que, para receber uma indemnização pelo interesse positivo, o credor não precisaria nem de resolver, nem de fazer a sua (contra)prestação. E isto porque, devido à existência de um sinalagma, a contraprestação extinguir-se-ia automaticamente, tal como acontece nos casos de impossibilidade não imputável. Esta teoria chegava à conclusão de que a contraprestação se extinguia automaticamente mesmo sem haver base legal para isso. A teoria não convence pela simples razão de que (como vimos) o credor pode ter interesse em fazer a sua contraprestação, pode ter interesse em livrar-se dela. A impossibilidade devida a culpa do devedor não pode forçar o credor a conservar a contraprestação, recebendo uma indemnização menor. Ora, para o credor realizar a sua contraprestação, é preciso que ainda tenha um “título” para isso, ou seja, é preciso que a sua obrigação não se tenha extinguido automaticamente. Se a sua obrigação se extinguisse automaticamente, o credor nunca estaria a realizar a sua contraprestação, mas sim a fazer uma prestação sem qualquer fundamento.
A teoria da diferença pura foi abandonada e apareceu a “teoria da diferença atenuada”: o credor não precisa de realizar a sua contraprestação para receber uma indemnização. Em caso de impossibilidade culposa, a contraprestação extinguir-se-ia automaticamente. O credor poderia escolher realizar a sua contraprestação (recebendo uma indemnização maior). É nesta que se baseiam as teses de Vaz Serra e Baptista Machado. Admitindo a indemnização pelo interesse contratual positiva, vide STJ 12.02.2009 (08B4052) e RP 4.1.2010 (1285/07.7TJVNF).
Entendemos, assim, que a resolução mais não faz que metamorfosear a relação primária numa relação de liquidação. A razão do instituto da resolução é a equidade, que não seria respeitada, num contrato sinalagmático, se a indemnização de uma das partes motivada pelo incumprimento culposo da outra visasse somente colocá-la na situação patrimonial em que estaria antes da negociação, privando-a dos benefícios que o contrato lhe traria acaso tivesse sido pontualmente cumprido.  A equiparação legal dos efeitos da resolução aos efeitos da declaração de nulidade ou da anulabilidade, apesar do peso literal dos arts. 433 e 434/1, 1.ª parte, não pode significar uma total identificação da “liquidação resolutiva” aos efeitos da invalidade negocial. Como ensina Brandão Proença (A Resolução do Contrato no Direito Civil, Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 178), “o alcance remissivo do art. 433 do CC não pode levar o intérprete a aderir a uma retroatividade tout court (e que é, no fundo, a do art. 289.º, n.º 1, do CC) imposta pelo legislador e que funciona como expediente técnico-jurídico (ou ficção dogmática) vocacionada a uma destruição quase-plena da eficácia do negócio. A resolução, apesar da sua carga etimológica, não é um instrumento puramente negativo, concretizado numa retroatividade mais ou menos arbitrária, mas visa (maxime quando houve um princípio de execução contratual) uma liquidação adequada à própria finalidade normal (ou funcionalidade) do direito.”
Transpondo para o caso, numa empreitada de remodelação de um edifício propriedade do dono da obra e com materiais do empreiteiro, que se consideram adquiridos pelo dono da obra à medida que vão sendo incorporados, cf. 1212/2 do Código Civil, a retroatividade implicaria, para o empreiteiro, a obrigação de restituir ao dono da obra o preço que porventura tivesse recebido antecipadamente. Uma retroatividade tout court poderia levar, também, à demolição da obra à custa do empreiteiro, em vez de, como parece mais razoável, à compensação do empreiteiro pelo que prestou.
Seria, portanto, no contexto desta relação de liquidação que os Recorrentes teriam direito à restituição do preço adiantadamente pago à Recorrida cumulada com o ressarcimento dos danos sofridos em resultado do incumprimento que serviu de fundamento à resolução. Seria também no âmbito dessa relação de liquidação que a Recorrida teria direito a receber o valor correspondente aos materiais incorporados no prédio dos donos da obra e ao trabalho que, para esse efeito, despendeu.
***
4).1.3. Partindo daqui, podemos afirmar que a procedência das pretensões dos Recorrentes pressupunha, desde logo, que tivesse ficado demonstrado o incumprimento (definitivo) do contrato por parte da Recorrida, o que não aconteceu.
Não bastava a simples mora, resultado da também alegada ultrapassagem do prazo convencionado para a execução da obra. A mora sempre teria de ser convertida em incumprimento definitivo, com o consequente surgimento, na esfera jurídica do accipiens, do direito de resolver o contrato, por um dos meios previstos no art. 808, que constituiu “uma ponte essencial de passagem do atravessadouro (lamacento e escorregadio) da mora para o terreno (seco e limpo) do não cumprimento definitivo da obrigação” (Antunes Varela, anotação ao Ac. STJ de 2.11.89, na Revista de Legislação e Jurisprudência, n.º 3853, pp. 118-119): a perda de interesse por parte do credor; e o decurso de um prazo suplementar de cumprimento estabelecido pelo accipiens. Neste sentido, RP 24.10.2005 (0554532), Fonseca Ramos.
Tenha-se presente que Inocêncio Galvão Telles (Direito das Obrigações, 7.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1997, p. 455) censura os arts. 801 e 808 pela sua insuficiência verbal: o art. 801 só prevê a resolução do contrato bilateral no caso de não cumprimento indireto, em que o devedor, por culpa sua, impossibilita a realização da prestação; o art. 808 não prevê a resolução do contrato bilateral no caso de não cumprimento direto, em que o devedor, por culpa sua, deixa de cumprir – simplesmente, deixa de cumprir. O problema resolver-se, ou deve resolver-se, através da interpretação extensiva ou da integração (por analogia) do art. 801. Este aplica-se, por interpretação declarativa, ao não cumprimento aplicar-se ao incumprimento definitivo direto; por interpretação extensiva (ou por analogia) ao não cumprimento definitivo indireto. A aludida insuficiência verbal deve assim corrigir-se estendendo o alcance do n.º 2 do art. 801 “à situação de o devedor deixar de cumprir culposamente a prestação não impossibilitada.” Isto porque a resolubilidade do contrato bilateral constitui um afloramento ou uma concretização de um princípio geral de interdependência das obrigações sinalagmáticas”, pelo que “seria de todo absurdo que essa interdependência conduzisse à resolução do contrato quando uma das partes deixasse de o respeitar por se colocar na impossibilidade de o cumprir e não quando voluntariamente o violasse.”
É certo que vem sendo entendido que a declaração, ainda que tácita, de não-cumprimento, feita antecipadamente pelo devedor, bem como, nos contratos, como a empreitada, de execução continuada, a recusa de prosseguimento da prestação já iniciada, equivale, ipso iure, a um incumprimento definitivo.
A este propósito, não há, no nosso direito positivo, qualquer norma a propósito da declaração de não cumprimento e dos efeitos dela. Os contributos doutrinais debruçam-se, sobretudo, sobre a desnecessidade de interpelação do devedor que declarou não querer cumprir para operar a constituição em mora.
Vaz Serra (“Mora do Devedor”, BMJ, n.º 48, pp. 60 e ss.), abordou o tema, aquando dos trabalhos preparatórios do Código Civil, referindo em especial o art. 1219/2 do Código Civil italiano, que dispensa a intimação quando o devedor declare por escrito não querer cumprir a obrigação, e a prática jurisprudencial francesa, no sentido de tornar dispensá­vel a interpelação quando o devedor tome a iniciativa de “fazer conhecer ao credor a sua recusa de cumprir”. O mesmo Autor (“Impossibilidade Superveniente / Cumprimento Imperfeito Imputável ao Devedor”, BMJ, n.º 47, p. 97), propôs uma solu­ção de tipo italia808no, exigindo que, por escrito, o devedor manifeste “clara e definitivamente que não fará a prestação devida”.
Na literatura subsequente ao Código Civil vigente, Pessoa Jorge (Lições de Direito das obrigações, I, 1967, pp. 296 – 298) toma uma posição cla­ramente contrária. A solução do vencimento imediato da obriga­ção, perante uma declaração do devedor de não querer cumprir, teria um espe­cial interesse nas obrigações sujeitas a prazo: porém, ela não seria, de modo algum, aceitável quanto a estas: “Na verdade, numa obrigação sujeita a prazo, o credor tem o seu interesse satisfeito se o devedor cumprir no prazo; se, antes deste, o devedor declara não cum­prir mas depois se arrepende e se apresenta a cumprir no momento inicialmente fixado, o credor não terá de se queixar, porquanto tem a prestação devida na altura prevista”.
Além disso, segundo este autor, as causas de exigibilidade antecipada estão fixadas na lei e têm natureza excecional, pelo que a eficácia da declaração antecipada de incumprimento apenas é admissível se ocorrer uma reação, confluente, do credor.
Almeida Costa (Direito das Obrigações, 9.ª ed., Coimbra: Almedina, 2005, p. 980) e Ribeiro de Faria (Direito das Obrigações 2 (1988), p. 447) associam à declaração séria e ine­quívoca de não cumprir, feita pelo devedor, o vencimento antecipado ou a des­necessidade de interpelação.  
No direito alemão, como dá conta Menezes Cordeiro (“A Declaração de não-cumprimento da obrigação”, em O Direito, ano 138 (2006), t. 1, pp. 28 e ss.), o tema tem sido aprofundado e mereceu mesmo um expresso tratamento legislativo, aquando reforma do BGB de 2001/2002.
A consagração legal é fruto de uma evolução doutrinal e jurisprudencial que sempre sublinhou a necessidade de uma declaração de não-cumprimento “séria, honesta, precisa e definitiva”, de tal modo que não haveria recusa “eficaz” nos seguintes casos: um pedido de moratória por falta de dinheiro; uma (mera) declaração de não poder cumprir a tempo; uma manifestação de dúvidas jurídicas; divergência de opiniões sobre o conteúdo da prestação; recusa de cumprimento e simultânea disponibilidade para querer cumprir; oferta de prestação parcial; declaração de já ter cumprido.
Segundo o § 281(1), nova versão, quando o devedor não efetue uma prestação vencida, pode o credor exigir uma indemnização, caso o cumpri­mento não ocorra num prazo razoável por ele fixado. Posto isto, diz § 281(2) que a fixação do prazo é dispensável quando o devedor recuse séria e definitiva­mente a prestação ou quando existam circunstâncias especiais que, sob a pon­deração dos interesses de ambas as partes, justifiquem a imediata invocação da prestação indemnizatória.

Por seu turno, dispõe o § 323 do BGB, nova versão, que:

“(1.) Quando o devedor, num contrato bilateral, não concretize uma prestação ven­cida ou não o faça em conformidade com o contrato, pode o credor rescindir o contrato quando, sem resultado, ele tenha fixado um prazo razoável, ao deve­dor, para a prestação ou cumprimento.

(2.) A fixação do prazo é dispensável quando:
1. O devedor recuse séria e definitivamente a prestação; (...)”.
A doutrina alemã, refere Menezes Cordeiro (A Declaração…, p. 34), é muito clara ao explicar que se mantêm as estritas exigên­cias jurisprudenciais e doutrinárias, fixadas pelo Direito anterior. Deve estar em causa uma pura e simples declaração de não-cumprimento, sem qualquer justificação e que traduza a última palavra do devedor.
Assim tem sido também entendido pela jurisprudência nacional, inclusive a propósito de situações de abandono da obra já iniciada por parte do empreiteiro. É exemplo STJ 14.01.2021 (2209/14.0TBBRG.G3.S1), João Cura Mariano, onde se pode ler:

“O abandono da obra é um conceito que há muito foi adotado no universo da gíria jurídica e que traduz o comportamento do empreiteiro que, após ter iniciado a execução dos trabalhos de realização da obra a que se vinculou, por iniciativa unilateral, cessa essa execução de um modo e/ou durante um período de tempo revelador, de forma concludente, que é sua intenção firme não retomar aqueles trabalhos, deixando a obra inacabada.
Com esta configuração, o abandono da obra, tem sido qualificado pela jurisprudência, e pela doutrina como um comportamento significante da recusa do empreiteiro a cumprir integralmente a prestação a que se obrigou, dotada das caraterísticas que justificam a sua equiparação a um incumprimento parcial definitivo da obrigação de realizar a obra contratada.
Note-se que, contrariamente ao pretendido pela Autora nas suas alegações de recurso, o abandono da obra não é um facto que se possa retirar, através de um raciocínio presuntivo da factualidade que se encontra provada, mas sim uma qualificação jurídica de um comportamento cuja descrição deve constar do acervo dos factos provados.
Sendo a prestação de realização da obra, típica do contrato de empreitada, uma prestação duradoura e, no tipo de obra aqui em causa, de execução contínua, o abandono da obra, enquanto comportamento de recusa a cumprir, apresenta a especificidade de não consistir numa recusa antecipada, mas sim numa recusa em prosseguir a execução de uma prestação já iniciada. Essa conduta, essencialmente omissiva, mas podendo ser precedida de ações que a anunciam (v.g. retirada de materiais e máquinas), para ser significante de um propósito definitivo de não conclusão do ato de realização da obra, deve ser aparente, categórica e unívoca.”

No mesmo sentido, STJ 12.10.2023 (1823/19.2T8FNC.L1.S1), Fernando Batista de Oliveira, onde se pode ler:

“Temos por correto o entendimento de que o abandono da obra pelo empreiteiro representa, em termos práticos, a extinção do contrato, independentemente de não ter sido declarada a sua resolução pela parte contrária; abandonando os trabalhos iniciados, o empreiteiro manifestou tacitamente, e em termos que a lei reputa eficazes (art. 217.°, n.° 1, do CC), a sua total indisponibilidade para reparar os defeitos, ou para, ainda que só em parte, construir de novo a obra, o que evidencia o seu propósito firme e definitivo de não cumprir, tornando dispensável a interpelação admonitória do art. 808.° do CC por parte do dono da obra para o efeito de conversão da mora em incumprimento definitivo; deste modo, provada que esteja a realidade dos prejuízos sofridos pelo dono da obra decorrentes desse abandono, torna-se clara a pertinência da aplicação das normas dos arts. 798.°, 799.° e 1223.° do CC, que lhe confere o direito a ser indemnizado em consequência do incumprimento do empreiteiro3.
Por outro lado, para além das normas especiais disciplinadoras do contrato aqui em causa, valem, para a mora ou incumprimento definitivo, as regras gerais.
Ora, a violação dos deveres emergentes do contrato de empreitada faz incorrer o empreiteiro (ou subempreiteiro – perante aquele) em responsabilidade contratual (art. 798.º do Cód. Civil).
Efetivamente, se o empreiteiro deixa de efetuar a sua prestação em termos adequados, dáse o inadimplemento da obrigação, com a consequente responsabilidade deste. E, a ser assim, o não cumprimento da sua prestação será definitivo se a obra, não tendo sido realizada, já o não puder ser, por o empreiteiro ter nela perdido o interesse (art. 808.º, n.º 1, 1.ª parte, do CC), ou por não ter sido realizada dentro do prazo que razoavelmente for fixado (art. 808.º, n.º 1, 2.ª parte).
Perante o incumprimento definitivo imputável ao empreiteiro (ou subempreiteiro), poderá, então, o dono da obra (ou o empreiteiro, na subempreitada) resolver o contrato que com ele celebrara e exigir uma indemnização (art. 801.º, n.º 2).”

Como facilmente se constata, o facto de a Recorrida ter interrompido a execução da sua prestação e saído da obra não pode, no contexto em que ocorreu, ser interpretado como um ato de recusa do cumprimento, equiparável a incumprimento definitivo, uma vez que, como veremos, ele mais não exprime que a aceitação da vontade dos Recorrentes de que assim sucedesse.
Acrescentamos apenas que, ao contrário do sustentado pelos Recorrentes, não resulta da matéria de facto que as partes tivessem fixado um prazo para a conclusão da obra, mas apenas que, já com a obra em execução, a Recorrida concordou com a elaboração de um calendário de execução da obra. Simplesmente, este consiste numa mera previsão dos tempos de execução da sua prestação, não tendo uma natureza cogente. Assim, quando os Recorrentes, no início do março de 2023, solicitaram à Recorrida que deixasse a obra, esta não estava sequer constituída em mora quanto à execução da prestação a que estava adstrita.
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4).2.1. Vejamos agora a segunda subquestão.
O facto acabado de referir evidencia-nos que, como concluiu o Tribunal a quo, os Recorrentes, num primeiro momento, formaram a vontade de que não fosse a Recorrida, mas um outro empreiteiro, a concluir a obra e, num segundo, transmitiram a correspondente declaração à Recorrida, que a recebeu.
A subsequente aceitação da vontade dos Recorrentes, por parte da Recorrida, exprime um mero comportamento passivo de sujeição. Não podemos retirar dela, nem da subsequente saída da obra, uma declaração negocial conforme à extinção consensual do contrato adrede celebrado. Isto permite-nos afirmar que o contrato cessou por um ato potestativo dos Recorrentes (donos da obra) e não por um acordo entre eles e a Recorrida.
Diz o art. 1229 do Código Civil que “[o] dono da obra pode desistir da empreitada a todo o tempo, desde que indemnize o empreiteiro dos seus gastos e trabalho e do proveito que poderia retirar da obra.”
Estamos aqui perante uma exceção à regra do n.º 1 do art. 406 do Código Civil, nos termos da qual a cessação de um contrato não pode ocorrer por vontade discricionária de apenas um dos contraentes, feita em benefício do dono da obra. Com efeito, a norma citada permite que o dono da obra desista do contrato, sem qualquer razão, discutindo-se depois – o que para aqui não releva – se esse direito pode ser exercido até que a obra fique concluída ou até à sua aceitação.
 De acordo com a lição de Pedro Romano Martinez (Contrato de Empreitada, Coimbra: Almedina, 1994, pp. 177 e ss. = “Art. 1229”, AAVV, António Agostinho Guedes / Júlio Vieira Gomes, coord., Comentário ao Código Civil. Direito das Obrigações. Contratos em Especial, Lisboa: UCE, 2023, pp. 848-849), seguida pela jurisprudência – a título de exemplo, RG 12.09.2024 (5111/22.9T8BRG.G1), Alcides Rodrigues –, a ratio legis do preceito é perfeitamente justificável: “[d]e facto, mediante um contrato de empreitada pretende-se que o dono da obra obtenha um determinado resultado: a realização de uma obra. Ora, pode acontecer que o dono da obra perca o interesse na obtenção desse resultado – por alteração da sua vida, da sua situação económica, etc. – e não se justifica que continue vinculado à execução daquele negócio jurídico. Por outro lado, o dono da obra pode pretender que a obra seja realizada por outro empreiteiro, porque, p. ex., perdeu a confiança no primeiro, ou querer realizar a obra por outra forma, v.g., por administração direta.”
Consagra-se, assim, ainda no dizer do mesmo autor, uma “faculdade discricionária (ad nutum)”, cujo exercício não carece de fundamento, pelo que não é suscetível de apreciação judicial. O seu único limite é a boa-fé (Pedro de Albuquerque / Miguel Assis Raimundo (Direitos das Obrigações. Contratos em Especial, 2.ª ed., Coimbra: Almedina, 2013, p. 503)
Também não carece de aviso prévio – embora se admita que este possa ser imposto pelos mandamentos da boa-fé, à luz das circunstâncias do caso, como defendem Pedro de Albuquerque / Miguel Assis Raimundo (Direitos das Obrigações cit.., pp. 504-505) –, nem de forma especial, podendo ser exercida mediante declaração expressa ou tácita (cf. art. 219 do Código Civil), pelo que é de entender que equivale à desistência a resolução ilícita do contrato por parte do dono da obra (STJ 15.04.20215, 2986/08.8TBVCD.P1.S1, Manuel Tomé Soares Gomes) e, também, a pura e simples contratação de outro empreiteiro para que dê continuidade e conclua os trabalhos destinados à realização da obra (RG 15.09.2022, 140/19.2T8VRM.G1, Margarida Almeida).
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4).2.2. Tendo a desistência efeitos ex nunc (Vaz Serra, “Empreitada”, BMJ, n.º 146, p. 131), não há lugar à restituição, por efeito dela, ao que tiver sido prestado pelas partes (RL 16.10.2012, 159/08.9TVLSB.L1-1, Rui Vouga). O dono da obra mantém direito à parte já realizada. Sem prejuízo, a posição de sujeição em que se encontra o empreiteiro é contrabalançada pelo direito a ser indemnizado pelo dono da obra das despesas e dos trabalhos realizados, bem como do proveito que poderia retirar da obra. Assim, podemos dizer que a desistência da obra é lícita, mas constitui o desistente (dono da obra) na obrigação de indemnizar o empreiteiro, sendo, portanto, um dos exemplos de responsabilidade por intervenções lícitas (Pedro Romano Martinez, Da Cessação do Contrato, 3.ª ed., Coimbra: Almedina, 2015, p. 528).
De acordo com Pires de Lima / Antunes Varela (Código Civil Anotado, II, 4.ª ed., Coimbra: Coimbra Editora, 1997, pp. 908-909), “[a] indemnização devida pelo dono da obra incide, em primeiro lugar, sobre os gastos e trabalho. São considerados todos os danos emergentes, sem se atender à utilidade que a parte executada possa ter para o dono.
A fixação dos gastos e trabalho não está relacionada com o preço da empreitada. Este pode interessar para a fixação dos proveitos, mas não para a fixação do que se gastou em material e trabalho. O Código afastou-se da solução do anteprojeto, que fixava a indemnização global por um critério negativo: o do preço da empreitada com a dedução daquilo que o empreiteiro deixasse de gastar ou adquirisse por outra aplicação da sua atividade. Embora, na generalidade dos casos, os resultados sejam praticamente os mesmos, pareceu mais simples e mais rigoroso o critério do Código de 1867, que veio a ser admitido.”
Os mesmos autores acrescentam que “[d]evem considerar-se como gastos não só as despesas feitas com a obra, nomeadamente as despesas com a aquisição dos materiais de construção, embora ainda não incorporados, como também os salários pagos ou devidos aos operários durante o período de tempo em curso, salvo se eles forem utilizados noutros trabalhos ou não houver obrigação legal de lhes pagar. Claro que, computados estes materiais no montante da indemnização, eles passam a pertencer ao dono da obra. (…) e não há razão para não aceitar a doutrina entre nós, que, pertencendo os materiais ao empreiteiro até à sua incorporação, esta tem a faculdade de ficar com eles, não sendo, neste caso, computado o seu custo na indemnização.”
É nesta sede que podem assumir relevo eventuais defeitos e desconformidades de que enferme a parte da obra realizada pelo empreiteiro antes da desistência. Como, a propósito, se pondera em RC 24.02.2015 (34886/13.4YIPRT.C1), António Barateiro Martins, havendo desistência da empreitada por parte do dono da obra, “a única discussão que pode existir é sobre o montante da indemnização do empreiteiro, ou seja, é aqui, nesta sede e perspetiva, que o que está mal feito pode ter relevância jurídica (comprimindo o montante indemnizatório). “
Não sendo isto o que prima facie se extrai do art. 1229, em que, como vimos, se diz que o dono da obra indemniza o empreiteiro “dos seus gastos e trabalho e do proveito que poderia tirar da obra”, dando assim a entender que é indiferente para a indemnização o resultado (obra) em parte porventura já executado pelo empreiteiro –, acrescenta-se no aresto que a solução se impõe “à luz do princípio geral da boa fé (cfr. art. 762.º do C. Civil), aplicável também a quem exige o cumprimento duma obrigação indemnizatória” uma vez que “o que foi/está mal executado não pode/deve deixar de ter o seu relevo em sede de fixação do montante indemnizatório”, o qual “não coincidirá com o custo da eliminação/reparação de defeitos, até porque ao empreiteiro não foi sequer dada a possibilidade de cumprir sem defeito, o mesmo é dizer, de ele próprio proceder, com os seus meios, à reparação.” E conclui-se que “[o]s defeitos que a obra por si [empreiteiro] executada porventura tenha poderiam dar, quando muito, lugar a uma redução do montante indemnizatório; por certo a uma redução equitativa, nos termos do art. 566.º/3 do C. Civil, da indemnização.” No mesmo sentido, RC 23.09.2008 (336/03.9TBALD.C1), Jorge Arcanjo, e RC 6.10.2009 (116/05.7TBNLS.C1), Hélder Almeida.
Finalmente, “[a] determinação do proveito que o empreiteiro poderia tirar da obra terá por base a obra completa e não apenas o que foi executado. É àquela, ou melhor, à parte que falta realizar (visto os gastos do empreiteiro e o seu trabalho já estarem compreendidos na verba anterior: n.º 5) que se refere a parte final do artigo 1229.º. Terá, pois, de se atender, para este efeito, ao custo global da empreitada e ao preço fixado. Da subtração destas duas verbas resultará o lucro.” Estamos aqui perante uma indemnização pelo interesse contratual positivo e não perante uma indemnização por lucros cessantes a título de interesse contratual negativo. Assim, Pedro de Albuquerque / Miguel Assis Raimundo (Direitos das Obrigações cit., p. 504.
Em suma, como se conclui no citado STJ 15.04.2015, para a determinação da indemnização devida ao empreiteiro pelo dono da obra desistente importa, por isso, ponderar duas vertentes: “[p]or um lado, os gastos e trabalhos já suportados pelo empreiteiro à data da desistência, independentemente do preço convencionado, sem se atender à utilidade que a parte executada possa ter para o dono; (ii) Por outro lado, ao proveito que o empreiteiro deixou de tirar com a realização completa da obra, a apurar pela diferença entre o custo global da obra e o preço convencionado”
Perante isto, não suscita qualquer dúvida a bondade da sentença recorrida em condenar os Recorrentes (Reconvindos) a pagarem à Recorrida (Reconvinte) a indemnização peticionada, a qual, tenha-se presente, visou apenas o proveito perdido, posto que não foi formulado qualquer contra-pedido relativo aos gastos e trabalhos suportados.
***
4).2.3. No que tange ao cômputo dessa indemnização, a Recorrida pediu a sua fixação no montante de € 7 500,00 alegando, simplesmente, que seria esse o proveito que retiraria da execução da obra.
Como vimos, o art. 1229 do Código Civil, ao prever o direito de o empreiteiro ser indemnizado pelo proveito que poderia tirar da obra, ou seja, pelo lucro previsto, obriga a verificar qual o custo total que a obra teria para o empreiteiro, designadamente com materiais e mão de obra necessária à sua execução, retirando-se o valor encontrado ao preço total da obra contratado.
Só com estes dados – quanto é que a Recorrida gastou e quanto ainda teria de gastar com a execução da obra nos termos contratualmente previstos, em razão dos trabalhos que não chegou a realizar – será possível apurar a sua margem de lucro.
A esta luz, compreende-se a decisão do Tribunal a quo de relegar a liquidação do quantum indemnizatório para momento ulterior, através do incidente previsto nos arts. 358 e ss. do CPC, que em si mesma não foi questionada por qualquer uma das partes (os Recorrentes apenas a colocaram em causa na medida em que, no seu entender, importou a condenação em objeto diverso do pedido). Na verdade, se, por um lado, o art. 566/3 do Código Civil admite que a indemnização seja fixada pelo tribunal de acordo com a equidade, por outro, tal apenas deve ocorrer quando não seja possível averiguar o valor exato dos danos, como aí se refere expressamente.
No caso, verificamos que não existem os elementos factuais que permitam fixar a indemnização com um mínimo de objetividade e rigor – mais concretamente, os custos da obra contratualmente prevista –, mas também que não está demonstrada uma impossibilidade de os obter. Como se escreve em STJ 3.06.2014 (04B1447), Neves Ribeiro, “não é configurável, nem necessário, o recurso à equidade, quando há elementos objetivos determináveis para averiguar o valor exato dos danos, empregando palavras do preceito reproduzido acima. A diferença patrimonial há pouco falada, é suscetível de determinação exata, sem necessidade de recurso ao critério, mais aleatório e menos objetivo, do cálculo equitativo da indemnização devida ao lesado. (…) Não se pode dizer que houve um fracasso da prova da sua existência, obstando por isso a que ela (a prova) se reabra em futuro processo. O que se pode dizer é que, verificada a existência desses danos, podem surgir melhores elementos de prova relativamente à sua quantificação, não devendo ser fechada essa possibilidade.”
Assim sendo, como a propósito de situações semelhantes se conclui em STJ 23.10.2008 (08B3104), Salvador da Costa, e RL 9.09.2021 (18575/17.3T8LSB.L1-2), Inês Moura, há que relegar para ulterior liquidação o montante da indemnização devida à Recorrida pelo proveito que deixou de auferir em resultado da desistência da obra por parte dos Recorrentes.
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4).2.4. Importa ainda dizer que nos casos, como o dos autos, em que o dono da obra pagou antecipadamente o preço devido ao empreiteiro como contrapartida pela realização da obra, o direito à restituição daquele, não sendo um efeito da desistência, conforme vimos, tem de ser encontrado no quadro do instituto, de aplicação subsidiária, do enriquecimento sem causa. Entrará, então, em jogo a figura da conditio ob causam finitam (art. 473/2 do Código Civil). Como escreve Lebre de Freitas (“Caso Julgado e causa de pedir. O enriquecimento sem causa perante o artigo 1229 do Código Civil”, ROA, ano 66, 2006, III, disponível em https://portal.oa.pt/publicacoes), “[a]s prestações de preço foram entregues no pressuposto da conclusão da empreitada e, uma vez verificada a desistência, a causa que as justificava (a feitura da obra, devidamente concluída) deixou de existir. Não é que, à data do pagamento, as importâncias não fossem devidas: não pode, por isso, aplicar-se o art. 476-1 CC. Mas supervenientemente a obrigação deixou de ter causa: tal como o inquilino que paga antecipadamente a renda, caducando depois o arrendamento antes do período a que ela se reporta, tal como o segurado que paga uma indemnização pelo roubo de coisas que, entretanto são encontradas, tal como o contraente que recebe um sinal que não pode ser imputado na prestação da contraparte e o retém após o cumprimento, tal como a entidade patrimonial que fez adiantamentos ao empregado por conta de ordenados futuros, vindo entretanto a cessar a relação de trabalho, o dono da obra que faz, nos termos do contrato, o pagamento de prestações por conta do preço da empreitada, não sendo esta concluída e desistindo dela o dono da obra, tem direito à restituição do que houver prestado em pagamento de prestações do empreiteiro não perfeitamente realizada.”
Não é, porém, possível decretar a restituição do preço pago pelos Recorrentes à Recorrida na presente ação, pois tal implicaria o conhecimento de uma causa de pedir (enriquecimento sem causa) diversa da que foi gizada na petição inicial (incumprimento contratual), com a consequente nulidade da decisão, ut art. 615/1, c), do CPC.
***
5). Resta concluir que o recurso improcede e, por essa razão, os Recorrentes, vencidos, devem suportar as custas respetivas: art. 527/1 e 2 do CPC.
***
V.
Nestes termos, acordam os Juízes Desembargadores da 1.ª Secção Cível do Tribunal das Relação de Guimarães em (i) julgar o presente recurso improcedente e (ii) confirmar a decisão recorrida.
Custas pelos Recorrentes.
Notifique.
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Guimarães, 23 de janeiro de 2024

Os Juízes Desembargadores,
Relator: Gonçalo Oliveira Magalhães
1.º Adjunto: Pedro Manuel Quintas Ribeiro Maurício
2.ª Adjunta: Lígia Paula Ferreira de Sousa Santos Venade


[1] A argumentação dos Recorrentes está dirigida à impugnação do enunciando da alínea i) dos factos não provados, que é transcrita, pelo que a sua identificação com referência à alínea e) padece de evidente lapso.
[2] Os Acórdãos citados ao longo do texto estão disponíveis em www.dgsi.pt, salvo indicação em contrário.
[3] Disponível em http://ru.juridicas.unam.mx/xmlui/handle/123456789/42415 [2.10.2023].
[4] O autor retomou o tema no escrito “Factos conclusivos": já não há motivos para confusões!”, disponível em https://blogippc.blogspot.com/2023/06/factos-conclusivos-ja-nao-ha-motivos.html
[5] Inter alia, RG 10.07.2023 (4607/21.4T8VNF-A.G1), Maria João Pinto de Matos. No dizer de António Abrantes Geraldes, “A sentença cível”, disponível em Publicações - Supremo Tribunal de Justiça (stj.pt), pp. 10-11, “na enunciação dos factos apurados o juiz deve observar uma metodologia que permita perceber facilmente a realidade que considerou demonstrada, de forma linear, lógica e cronológica, a qual, uma vez submetida às normas jurídicas aplicáveis, determinará o resultado da ação. Por isso, é inadmissível (…) que se opte pela enunciação desordenada de factos, uns extraídos da petição, outros da contestação ou da réplica, sem qualquer coerência interna.”