Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
7820/24.9T8VNF.G1
Relator: JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS
Descritores: EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE
INDEFERIMENTO LIMINAR
REQUISITOS
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
1- A única condição imposta ao devedor, pessoa singular, declarado insolvente, para que seja deferido liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante que formulou é que, no requerimento em que deduziu o pedido, tenha declarado preencher os requisitos necessários para que esse benefício lhe seja concedido e se dispõe a observar todas as condições e obrigações decorrentes da sua concessão (n.º 3 do art. 236º do CIRE), pelo que, o ónus da alegação e da prova da verificação dos pressupostos previstos numa das alíneas do n.º 1 do art. 238º daquele Código para o indeferimento liminar daquele pedido recai sobre os credores e o administrador da insolvência.
2- O indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante da al. d) do n.º 1 do art. 238º do CIRE pressupõe o preenchimento dos seguintes requisitos cumulativos: 1º- o devedor se encontrar em situação de insolvência; 2º- não se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes em que ficou insolvente; 3º- por via desse comportamento omissivo cause prejuízo aos seus credores, decorrente de, após o decurso do prazo legal para se apresentar à insolvência, ter celebrado novos negócios de que resulte um aumento do seu passivo (v.g., celebração de novos contratos de financiamento, de leasing, etc. de que resultem novas responsabilidades financeiras), ou a diminuição do seu ativo (v.g., celebração de contratos de compra e venda tendo por objeto bens de que seja proprietário, por preço inferior ao seu valor de mercado; celebração de contratos de doação, etc.), isto é, que se prove um nexo de causalidade entre a apresentação tardia à insolvência (para lá do prazo legal de seis meses após ter ficado em estado de insolvência) e o prejuízo sofridos pelos credores; e 4º- tivesse conhecimento ou não pudesse ignorar, sem culpa grave, que inexistia qualquer perspetiva séria de ver melhorada a sua situação económica.
3- O estado de insolvência pressupõe uma situação estrutural de falta de liquidez do devedor que lhe permita saldar as suas obrigações já vencidas e as que se forem vencendo. Encontra-se insolvente o devedor que não tenha cumprido com uma ou mais obrigações já vencidas, acompanhado da prova de factos e/ou de circunstâncias (montante e/ou natureza das obrigações já vencidas e não liquidadas e enquadramento dessas dívidas na totalidade do seu passivo e com as suas fontes de rendimento e o seu ativo patrimonial) que levam a que se possa, justificada e fundadamente, presumir que não pagou as obrigações já vencidas por falta de solvabilidade, nem dispõe de liquidez que lhe permita liquidar as restantes obrigações que tem à medida que se forem vencendo.
4- Estando apurado que, em 14/11/2018 e 05/01/2019, se venceram dívidas da devedora, não saldadas, no montante global de 548.410,75 euros, atento o montante elevado desse passivo, concatenado com a circunstância de, em 23/05/2019, se ir vencer uma outra dívida, no montante de 70.517,63 euros, além de ter outras dívidas de elevado montante que se irão vencer dentro de um prazo inferior a dois anos a contar de 05/01/2019, as fontes de rendimento daquela (funcionária administrativa e administradora única de uma sociedade imobiliária, às quais renunciou em 04/09/2019, passando a sociedade a ser administrada pelos filhos) e o seu ativo patrimonial (que se resume a uma fração autónoma, onerada por hipoteca constituída a favor da entidade bancária que financiou a aquisição da fração e que garante o pagamento da quantia de 390.000,00 euros), impõe-se concluir que, pelo menos, em 05/01/2019, a devedora encontrava-se insolvente.
5- Não tendo a devedora se apresentada à insolvência nos seis meses seguintes a 05/01/2019 e tendo, em 18/10/2019, doado aos filhos a fração autónoma, que constituía o seu único ativo patrimonial, encontra-se preenchido o requisito do nexo causal entre a apresentação tardia à insolvência e o prejuízo sofrido pelos seus credores, na medida em que, a não apresentação tempestiva à insolvência pela devedora permitiu-lhe doar o único ativo patrimonial que tinha em benefício dos filhos e em prejuízo dos seus credores que não dispunham de qualquer garantia sobre a fração doada, impossibilitando-os de obterem a satisfação dos créditos de que são titular sobre aquela à custa do produto da venda do prédio que doou e, assim, agravou a possibilidade dos últimos de verem satisfeitos os seus créditos.
6- Considerando que, em 05/01/2019, a devedora, perante os factos referidos, não podia ter qualquer perspetiva séria de que a sua situação económica iria melhorar, de modo a possibilitar-lhe a liquidação das dívidas que então já se encontravam vencidas e as que, entretanto, se venceram, impõe-se indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante que formulou, com fundamento na al. d) do n.º 1 do art. 238º do CIRE.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores do Tribunal da Relação de Guimarães no seguinte:

I- Relatório

Em 03/12/2014, AA, residente na Travessa ..., ... ..., ..., instaurou ação especial de insolvência, requerendo que fosse declarada insolvente e lhe fosse concedido o benefício de exoneração do passivo restante.
Por sentença proferida em 05/12/202, transitada em julgado, declarou-se a devedora insolvente e, além do mais, fixou-se em 30 dias o prazo para os credores reclamarem os seus créditos junto do administrador da insolvência e dispensou-se a realização da assembleia de credores para apreciar o relatório a que alude o art. 155º do CIRE.

Em 24/01/2025, o administrador da insolvência juntou aos autos o relatório a que alude o art. 155º do CIRE, em que, a propósito do pedido de concessão do pedido de exoneração do passivo restante formulado pela devedora, opôs-se à sua concessão com os seguintes fundamentos:
“(…) no dia 18 de Outubro de 2019, a insolvente doou a BB (filha da insolvente) e CC (filha da insolvente) a fração autónoma designada pela letra ..., pertencente ao prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...55, da freguesia ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana com o artigo ...69.º, da referida freguesia ..., sendo que o valor patrimonial tributário ascende a 259.283,40€, determinado no ano de 2022. No dia 11 de outubro de 2021, BB (filha da insolvente) e CC (filha da insolvente) venderam a DD a referida fração autónoma, data na qual foi efetuado o registo de uma hipoteca voluntária a favor do Banco 1..., S.A..
Atendendo às reclamações de créditos e aos créditos relacionados, os créditos sobre a insolvência (artigo 47.º, n.ºs 1 e 2 do CIRE) ascendem ao montante global de 683.566,44€, e discriminam-se do seguinte modo: 544.317,77€, de natureza comum; e 4,26€, de natureza subordinada. – vide lista provisória de credores anexa, prevista no artigo 154.º do CIRE.
À data da formalização da sobredita doação pela insolvente, a generalidade das obrigações perante os respetivos credores já se encontravam vencidas e/ou na iminência de se vencerem. Ainda à data da doação do sobredito imóvel, a insolvente não podia desconhecer que se encontrava em situação de insolvência, face à sua incapacidade de cumprir as suas obrigações vencidas.
O imóvel em causa era, também à data, o único ativo de que a mesma dispunha, e cujo valor, apesar de insuficiente para pagar as dívidas reconhecidas nos autos, daria sempre para liquidar parte delas.
Portanto, caso o imóvel em causa não tivesse sido doado pela insolvente, o produto da venda seria – agora – “utilizado” para satisfazer os créditos sobre a insolvência.
Com a doação do sobredito bem imóvel, a insolvente ficou sem qualquer ativo capaz de responder pelos seus créditos.
Tal circunstância agravou a situação de insolvência da mesma, uma vez que impossibilitou os credores de serem ressarcidos (ainda que de parte) dos seus créditos.
Isto dito, “A concessão da exoneração do passivo restante […] depende, como facilmente se compreende, da verificação de certos requisitos que, em geral, são dominados pela preocupação de averiguar se o insolvente, pessoa singular, pelo seu comportamento, anterior ao processo de insolvência ou mesmo no curso dele, é merecedor do benefício que da exoneração lhe advém.” – Cfr., neste sentido, Carvalho Fernandes e João Labareda, in “Coletânea De Estudos Sobre a Insolvência”, Quid Juris, Lisboa, 2009, a págs. 276 e 277.
Do que tem de retirar-se a conclusão de que, também no nosso ordenamento jurídico, a figura da exoneração do passivo restante tem de ser vista como uma exceção e não a regra, devendo tal benefício ser apenas concedido a um devedor que tenha tido um comportamento anterior ou atual pautado pela licitude, honestidade, transparência e boa fé no que respeita à sua situação económica e aos deveres associados ao processo de insolvência, reveladores de que a pessoa em causa se afigura merecedora de uma nova oportunidade.
Os motivos para indeferimento liminar deste pedido estão plasmados no n.º 1, do artigo 238.º do CIRE, segundo as suas diversas alíneas.
Descendo diretamente aos factos e normas que interessa aqui convocar, a alínea d), do n.º 1, do artigo 238.º do CIRE, estabelece que é indeferido o pedido de exoneração do passivo restante seo devedor tiver incumprido o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores, e sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica”.
Ora, tendo desde logo em conta os factos elencados supra, resulta evidente que a insolvente, numa ocasião em que a generalidade dos seus créditos se encontravam vencidos e/ou na iminência de se vencerem, doou o (único) bem de que dispunha.
Pretendeu, pois, a insolvente, e sempre salvo melhor entendimento em contrário, inverter o conceito supra-elencado do fresh start, limitando-o ao passivo, mas mantendo a disponibilidade sobre o seu património o que, subvertendo totalmente os fins do processo de insolvência, também deverá impedir liminarmente que o mesmo beneficie da exoneração do passivo restante, limitado que se encontra a situações de boa-fé.
Atento todo o exposto, e concatenando os factos elencados com a legislação aqui aplicável, o signatário opõe-se à requerida exoneração do passivo restante formulada pela insolvente, devendo o respetivo pedido ser indeferido nos termos do disposto da alínea d), do n.º 1, do artigo 238.º do CIRE”.

Na sequência da notificação do relatório acabado de referir à devedora e aos credores, a credora EMP01..., S.A. opôs-se ao deferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante pelos mesmos fundamentos invocados pelo administrador da insolvência no relatório acabado de referir.
Por sua vez, a devedora, AA, pronunciou-se quanto ao teor do relatório, impugnando parte dos factos nele alegados, sustentando não se encontrarem preenchidos os pressupostos da al. d) do n.º 1 do art. 238º do CIRE, alegando, em suma: nos anos anteriores à entrada em incumprimento perante os seus credores, sempre trabalhou, no sentido de obter liquidez para formalizar com os mesmos acordos de pagamento em prestações das dívidas e sempre auferiu rendimentos para amortizar e pagar as suas dívidas; o vencimento da maioria dos créditos é posterior à doação do prédio que fez, em 2019, aos filhos; apenas se apresentou à insolvência agora dado que a sua atual profissão não lhe está a dar liquidez suficiente para se auto-sustentar; o imóvel doado foi adquirido, por ela e pelo ex-marido, na constância do matrimónio, mediante recurso a crédito bancário, no montante de 390.000,00 euros, e mediante constituição de hipoteca sobre o prédio, a favor da instituição bancária, para garantir as obrigações emergentes do referido contrato de crédito; aquando da separação de pessoas e bens, em 2012, o imóvel ficou para a devedora; em 2017, a separação de pessoas e bens foi convertida em divórcio por mútuo consentimento; o valor patrimonial do prédio, aquando da doação feita aos filhos, não dava para pagar ao Banco 1... o crédito hipotecário; à data da doação, no ano de 2019, o prédio não tinha o valor de mercado que atualmente tem, não podendo aquela adivinhar que o valor do dito imóvel, à data da doação, iria ser amplamente inflacionado no futuro; doou o prédio aos filhos na sequência de um pedido do seu ex-marido, aquando do segundo casamento com ele, em abril de 2019, uma vez que não queria que existissem mais problemas entre eles a nível patrimonial; os credores com os maiores valores de crédito sobre a mesma, atendendo às datas dos incumprimentos dos respetivos créditos que constam do relatório do administrador da insolvência tiveram cerca de 2 anos (no caso da EMP02...) e 1 ano (no caso da EMP03...) para instaurarem ação executiva contra aquela e para, no âmbito dessas execuções penhorarem o prédio, atenta a data em que o doou aos filhos.
Requereu que lhe fossem tomadas declarações de parte, arrolou uma testemunha e juntou aos autos um documento.
O administrador da insolvência impugnou parte dos factos alegados pela devedora e reiterou a posição que exarou no relatório, reafirmando opor-se a que fosse deferido o pedido de exoneração do passivo restante.
Por despacho de 18/02/2025, admitiram-se os meios de prova apresentados pela devedora e designou-se data para a tomada de declarações de parte à última e para inquirição da testemunha que arrolou.
Produzida a prova, em 16/03/2025, proferiu-se sentença, em que se determinou o encerramento do processo de insolvência, por insuficiência de massa insolvente; qualificou-se a insolvência como fortuita; e indeferiu-se liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela devedora, com fundamento de estarem preenchidos os pressupostos de indeferimento liminar da al. d) do n.º 1 do art. 238º do CIRE.

Inconformada com o segmento decisório em que se indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, a devedora, AA, interpôs recurso, em que formulou as seguintes conclusões:
I. Vem o presente recurso interposto da sentença proferida a 16.03.2025, com a qual a Recorrente não se conforma, pois entende que, como infra irá demonstrar, da prova produzida nos autos, o tribunal a quo deveria ter concedido liminarmente a exoneração do passivo restante à Insolvente.
II. Importa analisar se o Tribunal a quo fez uma correta análise da prova produzida no que toca para depois fazer-se uma análise do ponto de vista do direito.
III. Assim sendo, decidindo como decidiu o Tribunal a quo, não fez uma correta interpretação dos factos, tendo inclusive desconsiderado os elementos de prova produzidos pela recorrente em sede de audiência de produção de prova, chegando mesmo a uma análise deveras superficial e parcial a não fundamentar quer de facto, quer de direito em que se baseou para uma tal conclusão.
IV. Antes de mais, cumpre identificar que o depoimento da testemunha CC foi desvalorizado pela Mma. Juiz a quo, assim como as declarações de parte da própria Insolvente, sendo que, ambos foram ouvidos na audiência de produção de prova de 10.03.2025, conforme consta da respetiva ata.
V. Discorda-se da matéria de facto dada como não provada, IMPUGNANDO-SE ESPECIFICADAMENTE o seguinte facto que foi dado como não provado: “b) A doação do imóvel descrita em 18. foi efetuada pela insolvente, exclusivamente, na sequência de um pedido/condição do seu ex-cônjuge, CC, aquando do segundo matrimónio, em abril de 2019, por forma a que não existissem mais discussões/problemas entre ambos a nível patrimonial.”
VI. Ora, a Recorrente não se conforma com a matéria de facto que deveria inevitavelmente ter sido dada como provada, que se refere ao ponto b) dos factos dados como não provados supra descrito e não foi, no que toca ao alegado pela Recorrente no seu requerimento datado de 03.02.2025 referencia CITIUS 17315387.
VII. Uma vez que, deveria ter sido dado como provado que a referida doação do imóvel foi realizada pela Insolvente exclusivamente na sequência de um pedido e condição do seu ex-marido, aquando do segundo matrimónio, em abril de 2019, por forma a que inexistissem entre o ex-casal problemas ou discussões entre ambos a título patrimonial.
VIII. Ouça-se as declarações de parte da Insolvente prestado na audiência de produção de prova realizada em 10.03.2025 no sistema de gravação integrado digital - Diligencia_7820- 24.9T8VNF_2025-03-10_10-56-39 dos 04m:17s a 05m:37s e 06m:52s a 07m:50s.
IX. Ouça-se o depoimento do depoimento prestado pela testemunha CC prestado na audiência de produção de prova realizada em 10.03.2025 no sistema de gravação integrado digital - Diligencia_7820-24.9T8VNF_2025-03-10_10-56-39 dos 02m:00 a 03m:02s, 04m:32s a 04m:55s, 05m:54s a 06m:07s, 07m:10s a 07:42s, 08m:00s a 08m:10.
X. Do exposto da prova supra indicada resulta que a doação do imóvel melhor descrita no ponto 18. da matéria de facto dada como provada foi realizada única e exclusivamente na sequência de um pedido/condição do seu cônjuge, aqui testemunha CC, aquando do segundo matrimónio, em abril de 2019, por forma a que não existissem mais discussões/problemas entre ambos a nível patrimonial.
XI. Não se entende como pôde o tribunal a quo considerar o depoimento de ambos como “…titubeantes e muito pouco esclarecedores…”, prestaram depoimentos consonantes com as regras da experiência comum no que toca a dinâmica do ex-casal que tentou dar uma segunda oportunidade ao relacionamento entre ambos em abril de 2019, contraindo novo matrimónio e começando com um fresh-start!
XII. Mais, não se entende, como é que o Tribunal a quo considerou na sua motivação vertida na sentença de que se recorre que, “O que se torna ainda mais curioso quando o próprio ex-cônjuge da insolvente havia também ficado com um outro imóvel aquando da separação de bens e pessoas”, quando resultou do depoimento da testemunha, que efetivamente aquando da separação de pessoas e bens, ficou com outro imóvel, facto esse que, inclusive, foi dado como provado no ponto 17. da sentença de que se recorre.
XIII. Acresce ainda que, o Tribunal a quo não refere na sentença em crise que esse imóvel que o ex-cônjuge da Recorrente ficou aquando da separação de pessoas e bens em 2012, foi vendido, sendo o valor integral da venda entregue ao credor hipotecário, conforme inclusive resulta do seu depoimento prestado pela testemunha CC na audiência de produção de prova realizada em 10.03.2025 no sistema de gravação integrado digital - Diligencia_7820-24.9T8VNF_2025-03-10_10-56-39 dos 12m:53s a 13m:22s.
XIV. Assim, não se vê, como se torna “curioso” para o Tribunal a quo, a testemunha ter pedido à Recorrente para fazer a doação aos filhos, de modo a não existirem discórdias entre o casal se aquando da celebração do seu segundo matrimónio em abril de 2019, a testemunha CC não era proprietário de qualquer bem imóvel, ao contrário da Recorrente, sendo notório que, o ex-casal encontrava-se numa situação de desigualdade patrimonial,
XV. Face a tal, é normal, e resulta de acordo com as regras da experiência comum, que o ex-casal ao dar uma segunda oportunidade à relação que os unia e ao começar do zero, começarem, ou os dois titulares de bens, ou os dois sem qualquer património.
XVI. Relativamente ao conhecimento das dívidas, mais uma vez, não se entende, como da prova produzida, pôde o Tribunal a quo considerar que “Sendo ainda, no mínimo, estranho que, quando questionada sobre o(s) momento(s) em que tomou conhecimento dos créditos aqui em apreço (num total de 682.566,69, que não é um valor de todos despiciendo), seja perentória a afirmar que no momento da doação não era conhecedora dos mesmos, mas não consegue precisar o(s) concreto(s) momento(s), especialmente tendo em consideração o volume de créditos em causa e, ainda, que contra correm termos dois processos executivos, iniciados no ano de 2019.”
XVII. Efetivamente, correm dois processos executivos contra a Recorrente iniciados no ano de 2019, o processo n.º3313/19.4T8LOU, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Porto Este, Juízo de Execução de Lousada – Juiz 1 e o processo n.º 4648/19.1T8MAI, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca do Porto, Juízo de Execução da Maia – Juiz 2, resulta do relatório de Administrador de Insolvência junto aos autos datados de 24.01.2025 na sua página 8.
XVIII. Como se pode constatar, bastando olhar para o número do processo verifica-se que estas execuções deram entrada no Tribunal no ano de 2019, sendo que a Recorrente, consultados os referidos autos, constatou que a entrada dos requerimentos executivos remonta a 08.10.2019 e 31.12.2019, respetivamente.
XIX. Como bem sabemos, o conhecimento por parte do executado de um processo executivo, atenta a demora das diligências judiciais e por parte do agente de execução demora meses e muitas vezes anos, sendo impossível e improvável a Recorrente ter conhecimento sequer da existência destes processos executivos uma vez que a doação (19.10.2019) ocorreu 10 dias após a entrada da primeira execução (08.10.2019) em juízo.
XX. Acresce que, conforme resultou do depoimento da testemunha CC, os assuntos relacionados com dinheiros era um tabu.
XXI. A este propósito ouça-se o depoimento prestado pela testemunha CC na audiência de produção de prova realizada em 10.03.2025 no sistema de gravação integrado digital - Diligencia_7820-24.9T8VNF_2025-03-10_10-56-39 dos 09m:53s a 10m:22s.
XXII. Assim, resultou do depoimento da testemunha CC, que o casal já vinha com uma “bagagem” passada para o novo matrimónio, nomeadamente no que toca a dinheiro, que tinha levado à anterior rutura, não tendo a testemunha falado com a Recorrente acerca das dívidas existentes.
XXIII. Aliás, se a Recorrente, tivesse conhecimento dos créditos, estivesse de má-fé, e tivesse intenção de dissipar património, tê-lo-ia feito mais cedo, uma vez que, conforme consta dos autos, a maioria dos créditos já se haviam vencido em anos anteriores.
XXIV. E mais, poderia a Recorrente, ter procedido à venda do imóvel e não a uma doação aos seus filhos, de modo a salvaguardar-se.
XXV. Mais, entendeu o Tribunal a quo: “Isto posto, além de não terem logrado convencer este Tribunal que a existência de um imóvel em nome da insolvente fosse motivo de qualquer discórdia entre o casal, tampouco demonstraram que esse alegado “gatilho” tivesse motivado verdadeiramente a doação nos termos em que a mesma foi efetuada [dado que, segundo afirmaram de forma concordante, continuaram ambos a pagar as prestações do empréstimo, juntamente com os filhos, tendo ainda a insolvente continuado a residir].”
XXVI. Uma vez mais, não se percebe como chegou o Tribunal a quo a tal entendimento visto que, estavam todos a residir no imóvel e sobre o mesmo recaía uma hipoteca.
XXVII. O não pagamento das prestações ao Banco, no limite importaria à entrega do imóvel ao mesmo, sendo normal que todos, na medida do que podiam, contribuírem para o pagamento das prestações do empréstimo uma vez que o não pagamento das prestações cominariam na entrega do imóvel.
XXVIII. Relativamente à renúncia ao cargo de administradora da sociedade EMP04..., S.A. a Recorrente em sede de declarações de parte explicou o motivo pelo qual renunciou naquele momento, uma vez que não se sentia bem mentalmente.
XXIX. Ouça-se as declarações de parte prestadas pela Recorrente na audiência de produção de prova realizada em 10.03.2025 no sistema de gravação integrado digital - Diligencia_7820-24.9T8VNF_2025-03-10_10-56-39 dos 18m:41s a 19m:25s.
XXX. Mais, o Tribunal a quo, pese embora tenha feito a menção na sua sentença à renúncia do cargo, não referiu, que a Recorrente no ano em que realiza a renúncia, bem como no ano posterior, em momento algum esteve numa situação de ausência de rendimentos, conforme consta do relatório do Sr. Administrador de Insolvência na sua página 9.
XXXI. Pelo aqui já supra exposto, não concorda a Recorrente com o facto de o Tribunal a quo considerar que a doação feita do imóvel aos seus filhos em 2019 “(…) serviu, exclusiva ou essencialmente, o interesse de dissipação do seu património, em detrimento dos seus credores (…)”, nem com o facto de o Tribunal a quo considerar que aquando da doação do imóvel a Recorrente tinha conhecimento das dívidas, conforme já supra se explanou.
XXXII. Tendo em consideração a matéria de facto dada como provada nos autos, com as alterações sustentadas pela Apelante na presente apelação, afigura-se à mesma que a decisão proferida pela 1ª Instância terá necessariamente que ser outra, ou seja, que deveria ter concedido pelo Tribunal a quo a exoneração do passivo restante a Recorrente.
XXXIII. Decidiu o Tribunal a quo indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela Recorrente, por entender encontrarem-se preenchidos os pressupostos a que alude a al. d), do nº 1 do art.238º do CIRE.
XXXIV. Vejamos, são pressupostos cumulativos do supracitado preceito os seguintes:
1. o devedor incumprir o dever de apresentação à insolvência ou, não estando obrigado a apresentar-se, ter deixado de se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência;
2. causar, com tal atraso, prejuízo aos credores, com a sua não apresentação oportuna à insolvência; e
3. sabendo ou não podendo ignorar, sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica.
XXXV. No que toca ao primeiro requisito, não se concorda com as considerações do Tribunal a quo no sentido que, a apresentação à insolvência da Recorrente foi “manifestamente tardia”.
XXXVI. Porquanto, nem o Tribunal a quo, nem o Sr. Administrador de Insolvência, nem os credores, quer os ausentes, quer os presentes na audiência de produção de prova, carrearam para os autos, qualquer prova demonstrativa que, a Recorrente à data em que faz a doação aos filhos, tinha conhecimento, quer da falta de pagamento dos créditos, quer dos processos executivos que já pendiam, ónus que impendia sobre os mesmos, limitando-se apenas e tão só a alegar a existência de processos executivos.
XXXVII. Inclusive veja-se que, como alegado supra e para lá se remete por economia processual, a própria testemunha tinha conhecimento das dívidas, mas nunca informou a Recorrente porque tal assunto era um tabu, colocando-se a questão, se a Recorrente não tinha conhecimento da falta de pagamento dos créditos, como é que a mesma poderia ter conhecimento da sua situação de insolvência?
XXXVIII. Ou seja, não podia como tal, o Tribunal a quo, salvo melhor opinião, concluir, como o fez, sem mais, que, a Recorrente incumpriu o seu dever de apresentação à insolvência nos 6 meses posteriores à verificação da mesma.
XXXIX. Quanto ao segundo requisito, alega o Tribunal a quo que, “(…) a Insolvente desfez-se do único património que lhe poderia permitir pagar (ainda que parcialmente) aos seus credores, com evidente prejuízo para os mesmos (…)”.
XL. Ora, remetendo para o já alegado e no que toca ao primeiro pressuposto para o indeferimento liminar da exoneração do passivo restante, a Recorrente não se desfez do único património que tinha, uma vez que a doação em causa, como já se explicou e reitera, nunca teve como objetivo, ocultação ou dissipação de património, mas unicamente, a base de uma reaproximação do ex-casal.
XLI. Aliás, à data do ano de 2019 e 2020, ao contrário do que refere o Tribunal a quo, o imóvel doado não era o único património da Insolvente, uma vez que, a mesma e, conforme consta do relatório do Sr. Administrador de Insolvência na sua página 9, a Recorrente teve rendimentos nos anos de 2019 e 2020 que poderiam sempre ser sujeitos a penhora por parte dos credores,
XLII. Mais, não consta dos autos se a mesma não seria eventualmente titular de valores bancários suscetíveis de penhora o que, em caso afirmativo, seria mais uma fonte dos credores verem satisfeitos os seus créditos.
XLIII. Acresce ainda que, da análise do quadro de créditos constante da página 6 do relatório do Sr. Administrador de Insolvência que os créditos relativos aos credores, EMP03... - STC, S.A. e EMP02..., S.A., as datas de incumprimento dos referidos contratos de crédito remontam a 2017, 2018 e janeiro de 2019.
XLIV. Mais uma vez, se a Recorrente quisesse efetivamente dissipar património, atendendo às datas de incumprimento do pagamento dos créditos, a mesma teria procedido à doação em momento anterior a 2019, não arriscando ver-se desprovida do único património que tinha.
XLV. Não se vislumbra em que factos se pode o Tribunal a quo socorrer para concluir que o comportamento da Recorrente acarretou prejuízo para os credores.
XLVI. A Recorrente não agravou o seu passivo, nem diminuiu as possibilidades de os credores recuperarem o valor dos seus créditos.
XLVII. Refere o Tribunal a quo os juros de mora que efetivamente acrescem às dívidas vencidas, no entanto, o mero acumular de juros não integra o conceito de prejuízo, conforme consta do acórdão do STJ de 24/01/2012, proferido no âmbito do processo n.º 152/10.1TBBRGE.G1.S1
XLVIII. Assim, competia aos credores da Recorrente e ao Sr. Administrador de Insolvência o ónus da prova de um efetivo prejuízo, o qual não se presume.
XLIX. Consideramos, assim, ao contrário do Tribunal a quo e, a par da jurisprudência que vem sendo firmada pelo Supremo Tribunal de Justiça, que deve a conclusão sobre a verificação de prejuízo para os credores aferir-se face ao circunstancialismo concretamente apurado em cada caso concreto, e, se é tal prejuízo relevante para aplicação do art.º 238º, nº1 al. d) do CIRE, verificação esta que não decorre dos factos provados.
L. Nestes termos, em concreto, não poderá concluir-se que, da não apresentação tempestiva à insolvência por parte da aqui Recorrente haja resultado prejuízo relevante para a situação dos credores, e, assim, não se mostram verificados os legais pressupostos de aplicação do art.º 238º-n.º 1 alínea d) do CIRE.
LI. Resulta ainda que, nem os credores, nem o Sr. Administrador da Insolvência fizeram demonstração nos autos que, se a doação não tivesse sido realizada e o referido imóvel tivesse sido alvo de penhora e posterior venda judicial, se o preço da venda, sendo a mesma realizada no ano de 2017 e seguintes, chegaria para o pagamento da hipoteca de qual o imóvel estava onerado e ainda para o pagamento aos credores reclamantes.
LII. Assim, entende a Recorrente, conforme está claro, que nem os credores, nem o Sr. Administrador da Insolvência demonstraram o concreto prejuízo de que eventualmente padeceram.
LIII. Por fim, quanto ao terceiro e último pressuposto, mais uma vez, a Recorrente não concorda com a posição do Tribunal a quo no sentido de lhe ver indeferido liminarmente o seu pedido de exoneração do pedido restante,
LIV. Visto que, conforme consta da matéria de facto dada como provada na sentença nos seus pontos 9. a 12 resultou que a Recorrente sempre trabalhou, encontrando-se neste momento empregada como angariadora imobiliária, não tendo ainda fechado nenhum negócio.
LV. Refere o Tribunal a quo na sua sentença que, “Sendo que, como se disse, muito embora a insolvente argumente que “sempre trabalhou, no sentido de obter liquidez necessária e suficiente para formalizar acordos de pagamentos em prestações das dívidas que tinha”, o certo é que, essa alegação não colhe, atentas as regras da experiência comum e a factualidade dada como provada.”
LVI. Sucede que, a Recorrente efetivamente não se acomodou, mas sim, sempre trabalhou no sentido de obter liquidez para o pagamento das suas dívidas,
LVII. Até porque, a profissão que a mesma desempenha desde 21 de janeiro de 2024 como angariadora imobiliária, prova isso, sendo de conhecimento geral que o mercado imobiliário a nível nacional está em ascensão e quando são fechados negócios o incremento patrimonial pode ser bastante a nível das comissões, conforme cláusula 10ª do contrato de prestação de serviços junto com a PI aos autos sob DOC.3.
LVIII- Como tal, é mais do que normal, que efetivamente a Recorrente tivesse sérias expectativas em melhorar financeiramente a sua vida e pagar, ainda que em prestações, aos credores.
LIX. Pelo que, não se entende deveras, como pôde o Tribunal a quo considerar que tal não decorre das regras da experiência comum, não podendo, salvo melhor opinião, dar como assente que, a Recorrente em 2019 tinha a perfeita consciência da sua situação económica e das reduzidas possibilidades melhorias a breve trecho.
LX. Até porque, além dos credores e o Sr. Administrador da Insolvência não fazerem prova de tal, nem o Tribunal a quo, oficiosamente e ao abrigo do princípio do inquisitório, ordenou a notificação dos processos executivos a fim de trazerem aos autos a data do conhecimento por parte da Insolvente da pendência dos mesmos contra ela de acordo com o art.411º do CPC, ex vi art.17º do CIRE.
LXI. Assim, não se pode concluir pelo preenchimento dos pressupostos da al. d) do nº 1 do art.238º.
LXII. Pelo que, deveria o Tribunal a quo ter deferido o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela Recorrente.
LXIII. Do exposto, a sentença em crise violou o disposto no art.238º, nº1 al. d) e artigo 18.º, ambos do CIRE, os artigos 411.º e 414.º do CPC e o artigo 342.º do Código Civil.
LXIV. Devendo a decisão recorrida ser substituída por outra em que, acolhendo-se as razões invocadas pela Recorrente, seja deferido o pedido de exoneração do passivo restante.
Nestes termos, deve o despacho recorrido ser substituído por outro em que, acolhendo-se as razões invocadas pelo Recorrentes, seja deferido o pedido de exoneração do passivo restante.

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Não foram apresentadas contra-alegações.
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A 1ª Instância admitiu o recurso como sendo de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito devolutivo, o que não foi alvo de modificação no tribunal ad quem.
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Corridos os vistos legais, cumpre decidir.
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II- DO OBJETO DO RECURSO

O objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, não podendo este Tribunal conhecer de matérias nelas não incluídas, a não ser que sejam de conhecimento oficioso - cfr. artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.ºs 1 e 2, do CPC.
Acresce que, o tribunal ad quem também não pode conhecer de questão nova, isto é, que não tenha sido, ou devesse ser, objeto da decisão sob sindicância, salvo se se tratar de questão que seja do conhecimento oficioso, dado que, sendo os recursos os meios específicos de impugnação de decisões judiciais, mediante o reexame de questões que tenham sido, ou devessem ser, nelas apreciadas, visando obter a anulação da decisão recorrida (quando padeça de vício determinativo da sua nulidade) ou a sua revogação ou alteração (quando padeça de erro de julgamento, seja na vertente de erro de julgamento da matéria de facto e/ou na vertente de erro de julgamento da matéria de direito), nos recursos, salvo a já enunciada exceção, não podem ser versadas questões de natureza adjetivo-processual e/ou substantivo material sobre as quais não tenha recaído, ou devesse recair, a decisão recorrida[1].
No seguimento desta orientação cumpre ao tribunal ad quem apreciar as seguintes questões:
a- Se a sentença recorrida padece de erro de julgamento da matéria de facto quanto à facticidade que nela foi julgada não provada na alínea b) e se, uma vez revisitada e reponderada a prova produzida, se impõe julgar essa facticidade como provada; e
b- Se, na sequência do êxito da impugnação do julgamento da matéria de facto operada pela recorrente ou, independentemente dele, aquela sentença padece de erro de direito (ao indeferir liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela recorrente) e se, em consequência, se impõe a revogação desse segmento decisório e substituição por outro em que se admita liminarmente aquele pedido.
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III- DA FUNDAMENTAÇÃO DE FACTO

A 1ª Instância julgou provada a seguinte facticidade com relevância para a decisão a proferir em sede de (in)deferimento do pedido de exoneração do passivo restante formulado pela recorrente:

1-  A insolvente nasceu a ../../1973 e é divorciada.
2- A insolvente apresentou-se à insolvência a 03 de dezembro de 2024, tendo sido declarada insolvente a 05 de dezembro de 2024, às 17h00.
3- A insolvente casou catolicamente com CC, em 04 de fevereiro de 1995.
4- Por decisão proferida a 13 de novembro de 2012, foi declarada a separação de pessoas e bens entre os cônjuges.
5- A referida separação foi convertida em divórcio, por decisão de 05 de junho de 2017.
6- A insolvente casou, novamente, civilmente com CC em ../../2019, o qual veio a ser dissolvido por divórcio declarado por decisão de ../../2020.
7- Fruto do referido relacionamento nasceram dois filhos, atualmente maiores de idade, BB e CC.
8- A insolvente reside em habitação propriedade da sua filha, BB, sendo esta quem a ajuda financeiramente.
9- A insolvente encontra-se com atividade aberta, como trabalhadora independente, desde o dia 07 de julho de 2023, na modalidade “outros prestadores de serviços”.
10- A insolvente encontra-se, desde 31 de janeiro de 2024, a trabalhar como “angariadora imobiliária”, na sociedade comercial “EMP05..., Limitada”, ao abrigo de um “contrato de prestação de serviços”, sendo a sua remuneração correspondente a uma percentagem das comissões imobiliárias cobradas.
11- No período compreendido entre janeiro a dezembro de 2024 a insolvente não conseguiu fechar nenhum negócio, razão pela qual não auferiu qualquer rendimento durante esse período.
12- Antes de desempenhar funções como “angariadora imobiliária”, a insolvente de desempenhou funções como “operária fabril” (durante 6 anos) e “administrativa” (durante 20 anos), tendo gerido algumas empresas no ramo imobiliário.
13- A insolvente constituiu-se avalista, pelo menos, em uma operação de crédito da sociedade EMP06..., Lda. (anteriormente designada de EMP07..., Lda.”), que veio a ser declarada insolvente.
14- No dia 04 de setembro de 2019, a insolvente renunciou à administração da sociedade comercial EMP04..., S.A., pessoa coletiva com o número ...01, com sede social na Rua ..., ..., ... ....
15- Desde então, têm sido os seus filhos, BB e CC, quem vem assumindo a posição de administradores da referida sociedade.
16- No decurso do matrimónio, concretamente no ano de 2011, a insolvente e o seu ex-cônjuge, CC, adquiriram a fração autónoma designada pela letra ..., pertencente ao prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...55, da freguesia ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana com o artigo ...69.º, da referida freguesia ..., tendo constituído uma hipoteca voluntária a favor do Banco 2..., S.A., no valor de € 390.000,00 (trezentos e noventa mil euros).
17- Na sequência da separação de bens e pessoas entre cônjuges, ocorrida a 14 de novembro de 2012, a propriedade da referida fração autónoma foi adjudicada à insolvente e a CC um outro imóvel, sito em ....
18- No dia 18 de outubro de 2019, a insolvente doou a BB (filha da insolvente) e a CC (filho da insolvente) a fração autónoma designada pela letra ..., pertencente ao prédio urbano descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...55, da freguesia ..., inscrito na respetiva matriz predial urbana com o artigo ...69.º, da referida freguesia ..., reservando para si o direito de habitação desse imóvel.
19- No dia 11 de outubro de 2021, BB (filha da insolvente) e CC (filho da insolvente) venderam a DD a referida fração autónoma, pelo valor de € 545.000,00 (quinhentos e quarenta e cinco mil euros), data na qual foi efetuado o registo de uma hipoteca voluntária a favor do Banco 1..., S.A.
20- Parte do valor da venda do referido imóvel, em montante não concretamente apurado, foi afeto ao pagamento do crédito do Banco 2..., S.A., de molde a cancelar a hipoteca que incidia sobre o mesmo.
21- Aquando da doação mencionada em 18., a referida fração autónoma era o único ativo que incorporava a esfera patrimonial da insolvente.
22- Apesar da doação efetuada, até ao momento em que foi vendida pelos seus filhos, a insolvente continuou a residir no imóvel.
23- A insolvente nunca antes tinha sido declarada insolvente.
24- A insolvente nunca beneficiou da exoneração do passivo restante.
25- A insolvente não tem registado em seu nome qualquer bem imóvel ou bem móvel sujeito a registo.
26- Encontra-se apreendido à ordem da massa insolvente um saldo bancário no valor de € 886,90 (oitocentos e oitenta e seis euros e noventa cêntimos).
27- Não são conhecidos quaisquer antecedentes criminais da insolvente pela prática de crimes previstos e punidos nos arts. 227.º a 229.º do Código Penal.
28- Foram reclamados e reconhecidos pelo senhor administrador de insolvência os seguintes créditos:
i. Instituto da Segurança Social, I.P. - ... – crédito de natureza comum no valor de € 20,15 (vinte euros e quinze cêntimos), cuja data de vencimento se reporta a 01 de janeiro de 2025;
ii. EMP02..., S.A – crédito de natureza comum no valor de € 70.517,63 (setenta mil e quinhentos e dezassete euros e sessenta e três cêntimos), cuja data de vencimento se reporta a 23 de maio de 2019;
iii. EMP03... – Stc, S.A – crédito de natureza comum, no valor de € 61.802,95 (sessenta e um mil, oitocentos e dois euros e noventa e cinco cêntimos), cuja data de vencimento se reporta a 17 de agosto de 2020;
iv. EMP03... – Stc, S.A – crédito de natureza comum, no valor de € 548.410,75 (quinhentos e quarenta e oito mil, quatrocentos e dez euros e setenta e cinco cêntimos), cujas datas de vencimento de reportam às datas de 14 de novembro de 2018 e 05 de janeiro de 2019;
v. EMP08..., S.A., crédito de natureza comum, no valor de € 1.810,95 (mil oitocentos e quinze euros e noventa e cinco cêntimos), cuja data de vencimento se reporta a 11 de abril de 2020;
vi. EMP08..., S.A., crédito de natureza privilegiada, no valor de € 4,26 (quatro euros e vinte e seis cêntimos), cuja data de vencimento se reporta a 11 de abril de 2020;
29- Os créditos ascendem a um total de € 682.566,69.
30- Foram intentados contra a insolvente, a par dos processos de execução fiscal instaurados pelo Instituto de Segurança Social, IP., os seguintes processos judiciais:
a. Processo executivo que corre termos sob o n.º 3313/19.4T8LOU, no Juízo de Execução de Lousada – Juiz 1, Tribunal Judicial da Comarca do Porto Este, cujo exequente é a credora EMP03... STC, S.A (entretanto suspenso, nos termos do art. 88.º, n.º 1, do CIRE);
b. Processo executivo que corre termos sob o n.º 4648/19.1T8MAI no Juízo de Execução da Maia – Juiz 2, Tribunal Judicial da Comarca do Porto, cujo exequente é a credora “EMP03... STC, SA”.
31- Nos últimos anos a insolvente declarou os seguintes rendimentos anuais:
a. Ano de 2020: € 7.408,30 (rendimentos do trabalho dependente pagos pela sociedade “EMP04..., S.A.”);
b. Ano de 2021: € 7.403,676 (rendimentos do trabalho dependente pagos pela sociedade “EMP04..., S.A.”);
c. Ano de 2022: € 3.172,50 (rendimentos do trabalho dependente pagos pela sociedade “EMP04..., S.A.”) e 1.762,50 (rendimentos do trabalho dependente pagos pela sociedade “EMP09... Unipessoal Lda.”);
d. Ano de 2023: € 1.849,33 (rendimentos do trabalho dependente pagos pela sociedade “EMP09... Unipessoal Lda.”) e 750,00 (rendimentos do trabalho independente – Código Tabela de Atividades: 1519 - “outros prestadores de serviços”).
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E julgou como não provada a seguinte facticidade:
a- À data da propositura da insolvência a insolvente residia com a sua filha, na casa desta.
b- A doação do imóvel descrita em 18. foi efetuada pela insolvente, exclusivamente, na sequência de um pedido/condição do seu ex-cônjuge, CC, aquando do segundo matrimónio, em abril de 2019, por forma a que não existissem mais discussões/problemas entre ambos a nível patrimonial.
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IV- DA FUNDAMENTAÇÃO JURÍDICA

A- Da impugnação do julgamento da matéria de facto
A.1- (In)cumprimento dos ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto
A recorrente impugna o julgamento da matéria de facto quanto à facticidade julgada não provada na al. b), pretendendo que, perante a prova produzida que identifica (que se reconduz ao depoimento prestado pela testemunha CC, seu ex-marido, conjugado com as declarações de parte prestadas pela própria e com as regras da experiência comum) se impõe julgar essa facticidade como provada.
Estabelece o art. 640º, n.º 1 do CPC que: 
“Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição:
a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados;
b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida;
 c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas.
2- No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte:
a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento do erro na apreciação das provas tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes”.
Estabelecem as disposições acabadas de referir os ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto, cujo cumprimento o legislador impõe ao recorrente quando impugne o julgamento da matéria de facto realizado pelo tribunal a quo com vista a evitar a interposição de recursos de pendor genérico e à salvaguarda integral do princípio do contraditório que assiste ao recorrido, o qual apenas ficará habilitado de todos os elementos necessários a organizar a sua defesa, em sede de contra-alegações, quando lhe seja dado a conhecer a concreta materialidade fáctica julgada provada e/ou não provada pela 1ª Instância que é impugnada pelo recorrente; qual a específica decisão que, na sua perspetiva, deverá recair sobre essa facticidade; quais os concretos elementos de prova em que funda a impugnação; e, bem assim, qual a lógica de raciocínio por ele percorrida na valoração e conjugação daqueles meios de prova em que funda a impugnação, de modo a evidenciar que o raciocínio probatório seguido pela 1ª Instância é injustificado e consubstancia um exercício incorreto da hierarquização dos parâmetros de credibilização dos meios de prova, ou seja, que é inconsistente, e antes inculca a versão dos factos que por ele é propugnada, por ser a que atinge o patamar da probabilidade prevalecente[2] .
Contudo, conforme é entendimento jurisprudencial consolidado, impõe-se distinguir entre: ónus impugnatórios primários e secundários. Os ónus impugnatórios primários são os que se encontram especificados nas alíneas do n.º 1 do art. 640º e relacionam-se com o mérito ou demérito do recurso. Em relação a esses concretos ónus impugnatórios a jurisprudência defende que o seu cumprimento deve ser apreciado de acordo com um critério de rigor em sentido estrito, impondo-se a imediata rejeição do recurso quanto à matéria de facto impugnada pelo recorrente em relação à qual incumpra com qualquer um deles. Por sua vez, os ónus impugnatórios secundários encontram-se fixados na al. a) do n.º 2 do art. 640º e prendem-se com a observância de requisitos formais, destinados a facilitar a localização da prova pessoal gravada no suporte técnico que contenha a gravação em que o recorrente funda a impugnação do julgamento da matéria de facto que opera. O não cumprimento perfeito ou inexato dos mesmos não tem como efeito automático a rejeição imediata do recurso quanto à facticidade impugnada pelo recorrente em relação à qual se verifique a “falha”, uma vez que a falta cometida deve ser apreciada à luz do princípio constitucional da proporcionalidade, não se justificando a rejeição do recurso quando não exista dificuldade relevante na localização (pelo recorrido e pelo tribunal de recurso) dos excertos da gravação em que o recorrente funda a impugnação do julgamento da matéria de facto[3].
Acresce precisar que, atento o disposto no n.º 4 do art. 635º do CPC, exercendo as conclusões de recurso a função essencial de delimitação do objeto deste, fixando o thema decidendum a que o tribunal ad quem vê a sua atividade decisória balizada, a quem não é lícito conhecer de questões que não tenham sido suscitadas pelo recorrente nas conclusões, sob pena de incorrer em nulidade por excesso de pronúncia, salvo tratando-se de questão que seja de conhecimento oficioso (arts. 608º, n.º 2 e 615º, n.º 1, al. d), do CPC), nas conclusões, o recorrente tem de indicar, de forma rigorosa, os concretos pontos da matéria de facto julgada provada e/ou não provada que impugna, isto é, tem de dar cumprimento ao ónus impugnatório primário da al. a) do n.º 1 do art. 640º do CPC nas conclusões de recurso, enquanto os restantes ónus impugnatórios primários das als. b) e c) do n.º 1 do art. 640º e secundários  da al. a) do n.º 2 do art. 640º, na medida em que não exercem uma função individualizadora das questões submetidas pelo recorrente ao tribunal de recurso, não devem constar das conclusões, mas sim da motivação do recurso[4].
Ora, tendo presente o que se vem dizendo, analisadas as alegações de recurso apresentadas pela recorrente verifica-se que cumpriu, de modo suficiente, com todos os ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto que se acabam de enunciar, posto que indica: nas conclusões, qual o concreto ponto da matéria de facto que impugna (a al. b) da facticidade julgada não provada na sentença); na motivação (e, inclusivamente, desnecessariamente, nas conclusões), os concretos meios probatórios constantes do processo e nele registados em que funda a impugnação (o depoimento prestado pela testemunha CC, seu ex-marido, e as declarações de parte prestadas pela própria, concatenadas com as regras do normal acontecer), e o resultado que pretende seja dada a esse ponto (a de provado) e, finalmente, quanto aos excertos daqueles depoimentos e declarações em que funda a impugnação, indica o início e o termo dos mesmos e, inclusivamente, procedeu à sua transcrição.
Deriva do exposto que, face ao cumprimento integral dos ónus impugnatórios do julgamento da matéria de facto enunciados no art. 640º, n.ºs 1 e 2 al. a) do CPC por parte da recorrente, não existe qualquer óbice processual a que esta Relação entre na apreciação da impugnação do julgamento da matéria de facto que opera.
   
A.2- Da impugnação da facticidade julgada não provada na al. b)
A 1ª Instância julgou não provada a seguinte facticidade:
“b- A doação do imóvel descrita em 18. foi efetuada pela insolvente, exclusivamente, na sequência de um pedido/condição do seu ex-cônjuge, CC, aquando do segundo matrimónio, em abril de 2019, por forma a que não existissem mais discussões/problemas entre ambos a nível patrimonial”.

E fundamentou/motivou o julgamento de não provado da mencionada facticidade nos termos que se seguem:
“Para formar a sua convicção quanto à factualidade provada e não provada o Tribunal deve proceder a uma análise crítica e conjugada de todos os meios de prova, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção.
Essa valoração deve ser efetuada ao abrigo do princípio da livre apreciação da prova (cfr. art. 607.º, n.º 5, do Código de Processo Civil) e com recurso às regras da experiência comum (cfr. art. 351.º do Código Civil), exceto no que respeita aos factos para cuja prova a lei exige formalidade especial e aqueles que só podem ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
No presente caso, a convicção do Tribunal estribou-se, fundamentalmente, na análise crítica e conjugada de todos elementos probatórios juntos aos autos, designadamente: a prova documental apresentada pela insolvente em anexo à petição inicial [cfr. referência citius n.º 17038458], a sentença de declaração de insolvência proferida nos presentes autos [cfr. referência citius n.º 193827744], a prova documental junta pelo senhor administrador de insolvência no seu relatório [cfr. referência citius n.º ...44], a prova documental apresentada pela insolvente com o seu contraditório [cfr. referência citius n.º 117315387], auto de apreensão junto ao apenso B [cfr. referência citius n.º 738626], compaginadas com as declarações de parte da insolvente e o depoimento da testemunha CC [ex-cônjuge da insolvente] produzidos em sede de audiência final e, bem assim, às regras de experiência comum e as presunções daí decorrentes (cfr. art. 607.º, n.º 4, do Código de Processo Civil), que nos concretos pontos infra identificados se acolheram.
Efetuadas estas considerações prévias, cumpre a este passo escalpelizar os concretos meios de prova chamados à colação para o juízo probatório levado a cabo pelo Tribunal quanto à factualidade supra descrita.
Concretizando.
(…).
Quanto à factualidade não provada, o Tribunal considerou-a nessa qualidade por entender que quanto à mesma não se produziu prova credível, suficiente e/ou inequívoca nesse sentido e, ainda, por ter sido infirmada pelos demais meios de prova carreados aos autos.
(…)
Por seu turno, quanto à factualidade descrita na alínea b), a mesma resultou nessa qualidade, uma vez mais, em face da carência de prova cabal nesse sentido (cfr. art. 341.º, n.º 2 do Código Civil e 414.º, do Código de Processo Civil). Impondo-se destacar que apesar dessa alegação da insolvente, e de a mesma ter sido, em parte, corroborada pelo seu ex-cônjuge, tais depoimentos compaginados e analisados à luz das regras da experiência comum e da normalidade do acontecer, não mereceram qualquer credibilidade por parte deste Tribunal, inexistindo ainda nos autos qualquer outro elemento probatório que corrobore essa “versão”, muito contrário.
Na verdade, tanto o depoimento de CC como da própria insolvente se revelaram bastante titubeantes e muito pouco esclarecedores, tendo ambos se escudado em formulações e justificações genéricas (v.g. “era um gatilho de desassossego”, “se sentia desconfortável”, “moralmente não devia ficar com o imóvel”, “não queria mais confronto”, “fonte de conflito”), sem, contudo, conseguirem identificar cabalmente o motivo pelo qual a existência de um bem imóvel na esfera patrimonial da insolvente (que, aliás, já se encontrava na sua esfera há cerca de seis anos, na sequência de uma decisão tomada por ambos) motivara tamanha discórdia entre o casal, de tal forma grave que tenha levado o ex-cônjuge da insolvente a sentir a necessidade de colocar como “imposição” para contraírem novo matrimónio a realização dessa mesma doação aos filhos. O que se torna ainda mais curioso quando o próprio ex-cônjuge da insolvente havia também ficado com um outro imóvel aquando da separação de bens e pessoas.
Isto posto, além de não terem logrado convencer este Tribunal que a existência de um imóvel em nome da insolvente fosse motivo de qualquer discórdia entre o casal, tampouco demonstraram que esse alegado “gatilho” tivesse motivado verdadeiramente a doação nos termos em que a mesma foi efetuada [dado que, segundo afirmaram de forma concordante, continuaram ambos a pagar as prestações do empréstimo, juntamente com os filhos, tendo ainda a insolvente aí continuado a residir].
Com efeito, ao invés de corroborarem a versão carreada pela insolvente, tais depoimentos levaram a que, pelo contrário, o Tribunal criasse a convicção de que o verdadeiro motivo pelo qual a insolvente procedeu à doação do imóvel aos seus filhos passou, sim, pela dissipação do seu único ativo, de forma voluntária e consciente (já que a própria bem sabia, como assumiu, os avais que havia prestado e os negócios do seu ex-cônjuge, tanto mais que, segundo a mesma, foi precisamente o receio de que as coisas corressem mal nos negócios, que levou a que, num primeiro momento, concordassem numa separação de bens e pessoas).
Tanto mais tomando em consideração o momento em que essa doação ocorreu, que não só coincidiu com o momento em que a insolvente decidiu renunciar ao cargo de administradora única da sociedade EMP04..., S.A. (de onde provinha o seu rendimento mensal), a favor dos seus filhos (que passaram então a assumir o cargo de administradores), mas também com o momento em que se começaram a vencer grande parte dos créditos aqui em apreço, o que não é, de todo, inócuo, contrariamente ao que tentou a insolvente perpassar.
Sendo ainda, no mínimo, estranho que, quando questionada sobre o(s) momento(s) em que tomou conhecimento dos créditos aqui em apreço (num total de € 682.566,69, que não é um valor de todo despiciendo), seja perentória a afirmar que no momento da doação não era conhecedora dos mesmos, mas não consegue precisar o(s) concreto(s) momento(s), especialmente tendo em consideração o volume de créditos em causa e, ainda, que contra correm termos dois processos executivos, iniciados no ano de 2019. 
Na verdade, não tendo a insolvente logrado dar uma explicação lógica e plausível para tal doação, em face da demais factualidade dada como provada, este Tribunal convenceu-se que esse ato gratuito serviu, exclusiva ou essencialmente, o interesse de dissipação do seu património, em detrimento dos seus credores, como bem avisam as regras da experiência comum.
Concomitantemente, em face de tais circunstâncias e na ausência de outros elementos probatórios que possibilitassem ao Tribunal estabelecer um juízo probatório positivo quanto a tal factualidade, imperioso se tornou dar como não provada tal factualidade.
Os factos julgados não provados são, assim, o direto reflexo da falta de produção de prova cabal demonstrativa de que os mesmos são verídicos”.

Imputa a recorrente erro de julgamento ao assim decidido, sustentando que o depoimento prestado pela testemunha CC, concatenado com as declarações de parte prestadas pela própria e com as regras da experiência comum impõem que se julgue provada a facticidade julgada não provada na apontada alínea b), acusando, no essencial, a julgadora a quo de ter desconsiderado a versão dos factos apresentada pela testemunha e pela própria, quando estes, na sua perspetiva, depuseram de forma isenta, objetiva e enxuta e a sua versão dos factos se mostra conforme com as regras do normal acontecer, contrariamente às ilações extraídas pela Meritíssima Senhora Juiz, as quais, ou não têm qualquer respaldo na prova produzida ou se mostram desconformes com as ditas regras da experiência comum.
Antes de mais, cumpre frisar que procedemos à análise de toda a prova documental que consta do presente processo de insolvência e respetivos apensos, bem como à audição integral da prova pessoal produzida,  a qual se reconduziu às declarações de parte prestadas pela própria devedora, AA, e ao depoimento prestado pela testemunha CC, seu ex-marido e, antecipe-se desde já, que sufragamos totalmente daquela que foi a convicção do tribunal a quo, posto que, não só a versão dos factos que por eles foi apresentada se mostra “bastante titubeantes e nada esclarecedora”, como se revelou defensiva e contraditória e é contraditada pelas regras do normal acontecer.
Em sede de declarações de parte a devedora, AA, referiu ter contraído casamento com aquele que é o seu atual ex-marido (a testemunha CC), no regime da comunhão geral de bens, facto esse que é corroborado pela certidão emitida pela Conservatória do Registo Predial ... quanto ao prédio nela descrito sob o n.º ...12, freguesia ..., junta em anexo ao relatório a que alude o art. 155º do CIRE, e que também foi junta aos autos pela própria devedora em anexo à resposta a esse relatório, em 03/02/2025, em que se vê que esse prédio (doado, com reserva do direito de habitação, em 18/10/2019, pela devedora aos filhos) foi adquirido na constância do matrimónio daqueles, sob o regime da comunhão geral de bens. Logo o casamento a que alude o ponto 3º dos factos julgados provados na sentença (não impugnado) foi celebrado sob o regime da comunhão geral de bens.
AA referiu que, em 2012, o casal se separou de pessoas de bens, facto esse que foi julgado provado no ponto 3º da sentença recorrida, que também não foi impugnado, mas alegou que o casal se separou de pessoas e bens porque ela “tinha medo que os negócios não corressem bem; era uma forma de se proteger”. Adiantou que, em 2019, se divorciou do seu ex-marido, facto esse que também foi julgado provado no ponto 5º da sentença, também ele não impugnado, onde se deu como provado que a separação de pessoas e bens do casal formada pela devedora AA e pela testemunha CC, decretada em ../../1995, foi convertida em divórcio por mútuo consentimento, por decisão de 05/06/2017.
A devedora AA também referiu que, aquando da separação de pessoas e bens o prédio acima referido (fração ...) constituía a casa de morada de família do casal, e fora adquirido por ela e pela testemunha CC na constância do matrimónio, mediante recurso a crédito bancário, garantido por hipoteca constituída a favor da instituição bancária, destinada e garantir o cumprimento pelos mesmos das obrigações emergentes daquele contrato de credito, imóvel esse que veio a doar aos seus filhos, os quais, por sua vez, vieram a vender esse prédio a terceiro, altura em que foi liquidada a hipoteca que onerava aquele prédio, o que tudo também se encontra dado como provado nos pontos 17º, 18º, 19º e 20º na sentença, também eles não impugnados.
Relatou que, na altura da separação de pessoas e bens, enquanto aquele prédio, que constituía a casa de morada de família e onde disse ter continuado a residir até os seus filhos o terem vendido, foi adjudicado à própria, ao seu marido (a testemunha CC) foi doado uma outra casa. Quando questionada sobre o destino que o seu ex-marido deu a essa casa, AA começou por dizer desconhecê-lo, acabando por referir: “Acha que ele a vendeu”.
AA referiu ter doado a casa aos filhos (a fração ...), que lhe fora adjudicada na sequência da separação de pessoas e bens do casal, a pedido do seu ex-marido (a testemunha CC), quando o casal, em 2019, decidiu casar de novo, altura em que este lhe pediu que doasse a casa aos filhos, e quando questionada porque é que o seu marido também não doou a casa que lhe fora adjudicada, limitou-se a dizer que este não doou essa casa “porque era uma coisa antiga”.
Questionada das razões do marido lhe ter pedido, aquando do segundo casamento, que ela doasse a casa que lhe fora adjudicada aquando da separação de pessoas e bens, respondeu que “era um gatilho de desassossego entre nós. Havia muitas coisas entre nós” (entre ela e o ex-marido - a testemunha CC), e este queria que “se viesse a acontecer alguma coisa, como infelizmente veio a acontecer, ele não queria que ela ficasse com algo”. Questionada se, na altura em que fez a doação daquela casa (fração ...) aos filhos, se devia alguma coisa, respondeu: “Não me recordo se já tinha sido notificada. Logo depois começaram a chegar várias notificações” (quando, antecipe-se desde já, não foi isso que lhe fora perguntado, ou seja, não lhe foi perguntado se aquela, na altura em que realizou a doação aos filhos, já tinha sido notificada para eventuais execuções que lhe foram movidas pelos seus credores, mas sim se já tinha dívidas vencidas para com os últimos e não pagas).
Apesar de afirmar ter exercido funções de administradora única da sociedade EMP04..., S.A., funções essas a que renunciou, passando a sociedade a ser administrada pelos filhos (conforme também foi julgado provado nos pontos 14º e 15º da sentença recorrida, que não foram impugnados), onde AA continuou a trabalhar enquanto administrativa, quando questionada pela dívida que tinha assumido perante a credora “EMP03...”, a devedora AA referiu “saber que tinha assinado documentos muitos antes da doação”, mas pretendeu ter assinado os referidos papéis, a pedido do seu ex-marido, sabendo que ao assinar os mesmos “estava a dar aval para qualquer coisa, mas honestamente, não sabia o quê”, concluindo que ela, AA, “confiava no marido e assinava” aquilo que ele lhe pedia para que assinasse.
Finalmente, a devedora AA pretendeu que, na altura em que fez a doação da casa (fração ...) aos filhos “não tinha consciência das dívidas que tinha para com os credores”, e afirmou que, depois da realização da doação, ela e os filhos continuaram a residir naquela casa, continuando a “pagar a hipoteca ao banco com algumas poupanças que tinham”, sustentando que, a dado passo, as prestações mensais devidas ao banco deixaram de ser pagas por falta de meios económicos para proceder ao respetivo pagamento, ficando imensas prestações mensais por liquidar ao banco, acabando tudo por ser regularizado, e a hipoteca sobre o prédio por ser cancelada, quando os filhos venderam aquele prédio a terceira pessoa e liquidaram o crédito bancário fazendo uso do preço da venda da fração.
Por sua vez, a testemunha CC, pretendeu que a doação da casa (fração ...) que foi adjudicada à devedora AA, aquando da separação de pessoas e bens do casal, em 2012, foi doada por esta aos filhos por exigência dele – a doação foi feita “numa altura em que já vínhamos a discutir o assunto e eu queria que a casa ficasse para os filhotes”. Concretizou que, “em 2019, tentaram (ele e AA) a conciliação em prol dos filhos e para se casar ele disse que, para não haver mais problemas entre eles, a mulher tinha de colocar a casa em nome dos filhos”. “Era a minha condição” (para casar novamente com AA), mas isso não significava que esta tinha de colocar a casa em nome dos filhos antes de ambos casarem, tinha que o fazer, “mas a seu tempo”. “Não era condição que quando casasse a casa já tinha de estar em nome dos filhos”.
Questionado se a mulher lhe falou das dívidas que tinha para com os credores e se lhe falou de credores antes da doação que realizou aos filhos, a testemunha CC hesitou, não respondeu à pergunta que lhe fora feita durante alguns segundos, decorridos os quais acabou por afirmar: “Se havia dívidas, eu penso que ela (AA) nem sequer tinha consciência disso”, quando, antecipe-se desde já, não foi isso que lhe foi perguntado, mas sim se a sua ex-mulher, AA, antes de realizar a doação aos filhos da fração ..., em 18/10/2019, lhe transmitira que tinha dívidas, se lhe falou de dívidas ou da existência de credores.
E quando confrontado com o facto de existir uma execução pendente em que figurava como executado o próprio CC e a devedora AA – “Há aqui uma execução que foi proposta contra ambos” -, a testemunha CC respondeu: “É provável”, alegando, contudo, que ele e AA não falavam entre eles de dívidas porque “era um tabu”. “Eu tinha conhecimento das dívidas de mim, não dela. Ela tinha conhecimento de algumas dívidas. Se ela tinha dívidas de aval, passou-me ao lado”.
Finalmente, confrontado pela Senhora Juiz a quo da razão de ser para, quando se separaram, a devedora ter ficado com um imóvel, e ele com outro, conforme alega acontecer, ter exigido que AA tivesse de doar aos filhos o imóvel que lhe fora adjudicado aquando da separação do ex-casal de pessoas e bens como condição para com ela contrair segundo casamento, enquanto ele, CC, não teve de fazer o mesmo quanto ao imóvel que lhe fora adjudicado aquando da separação de pessoas e bens, a testemunha CC alegou ter vendido o imóvel que lhe fora adjudicado e pretendeu que, com o produto da venda pagou ao banco o crédito hipotecário que onerava esse prédio, nada tendo remanescido do produto da venda – “Eu vendi para pagar ao banco”.
Analisadas as versões dos factos apresentadas pela devedora AA e pelo seu ex-marido, a testemunha CC, que se acabam de sintetizar e cotejadas as mesmas com os factos que por eles foram relatados e dados como provados na sentença recorrida (que não foram impugnados), dir-se-á que os seus depoimentos não só se revelam titubeantes, defensivos e contraditórios, como se mostram totalmente desconforme com as regras da experiência comum, isto é, com as regras do normal acontecer.
Com efeito, o ex-casal formado pela devedora e por CC contraíram casamento católico em ../../1995 (cfr. ponto 3º dos factos provados na sentença, não impugnado), no regime da comunhão geral de bens, o que significa que aqueles pretenderam uma comunhão de vida e patrimonial integral, que não se satisfazia com o regime supletivo da comunhão de adquiridos, mas tiveram o cuidado de entre eles celebrar convenção antenupcial, optando pelo regime da comunhão geral de bens, em que o património comum do casal é constituído por todos os bens presentes e futuros dos cônjuges, não excetuados por lei (art. 1732º do CC), integrando, portanto, o património comum do casal os bens de que eram já proprietários antes da celebração do casamento e todos os que viessem a adquirir na constância do matrimónio, incluindo os que lhes viessem a ser doados ou que cada um viesse a adquirir por sucessão.
Daí que a questão patrimonial, aquando da celebração do casamento entre a devedora AA e o seu ex-marido, CC, em ../../1995, não era algo que fosse indiferente aos elementos do futuro casal, pretendendo aqueles que não existissem bens próprios  de cada um deles, mas antes que tudo o que tinham e que viessem a ter na constância do matrimónio integrasse o património comum, um “património familiar”, propriedade de ambos e de que ambos os elementos e os futuros filhos do casal viessem a beneficiar e que viesse a ser transmitido aos últimos, uma vez cessada a relação conjugal por falecimento.
Em suma, está-se perante indivíduos preocupados e interessados nas questões patrimoniais que entre eles intercediam.
Por sentença proferida em 13/11/2012, foi decretada a separação de pessoas e bens entre a devedora e CC.
Ora, o único fundamento para a separação judicial de bens é a má administração do património comum ou do património próprio do outro cônjuge pelo cônjuge administrador, por inépcia, negligência ou má fé por parte deste, colocando o cônjuge não administrador, requerente da separação, em risco sério e justificado de perder o património que é seu (art. 1767º do CC).
Por isso, contrariamente à versão dos factos apresentada pela devedora AA, o fundamento para aquela e o então seu marido, CC, por sentença proferida em 13/11/2012, se terem separado de pessoas e bens, não pôde residir no facto de ter “medo que os negócios não corressem bem, era uma forma de se proteger, dado serem casados no regime da comunhão geral de bens”, mas a dita separação de pessoas e bens que foi decretada entre a mesma e o seu então marido, CC, por sentença proferida em 13/11/2012, a ser certa aquela sua alegação e, consequentemente, a ter sido ela quem requereu a separação de pessoas e bens de CC, teve necessariamente por fundamento o facto de os negócios que por ele foram levados a cabo (ou no caso do requerente da separação de pessoas e bens ter sido CC, os negócios levados a cabo pela devedora AA) estarem efetivamente “a correr mal”, por má administração, inépcia ou má fé, temendo, fundada e justificadamente o cônjuge não administrador, requerente da separação de pessoas e bens, perder aquilo que era seu.
O que se acaba de dizer determina que, por um lado, se conclua que tendo contraído casamento, em ../../1995, sob o regime da comunhão geral de bens (com o que demonstraram que para eles a questão patrimonial não era indiferente, mas antes estar-se na presença de pessoas preocupadas com a questão patrimonial), a devedora AA e marido, CC, eram pessoas que efetivamente se preocupavam com a situação patrimonial do casal, procurando constituir um património comum, como que um património familiar, de modo que o património que cada um era já detentor antes de casarem e o que viessem a adquirir na constância do matrimónio, incluindo, por doação ou por herança, fosse propriedade dos dois elementos do casal, escopo esse que os levou a casar, em 1995, sob o regime da comunhão de adquiridos. Por outro lado, essa preocupação com a salvaguarda do património comum/familiar, levou a que um deles (segundo AA, a própria), face ao fundado e justificado risco de perder aquilo que era seu, perante a má administração do património comum do casal pelo outro elemento, por negligência, inépcia ou má fé deste, não tivesse hesitado em requerer, em 2012, a separação de pessoas e bens.
Daí que, na sequência da separação de pessoas e bens, tendo o casal partilhado o património comum, tendo sido adjudicado à devedora AA aquela que era a casa de morada de família do casal – a fração ... -, onde esta e os filhos continuaram a residir, enquanto ao então cônjuge, CC, foi adjudicado um outro prédio, passando entre eles a vigorar o regime da separação de bens (art. 1770º do CC), dir-se-á que à luz das regras do normal acontecer não colhe a versão dos factos apresentada pela devedora AA quando pretendeu desconhecer o destino que CC deu ao prédio que lhe fora adjudicado, tanto mais que, apesar de separados de pessoas e bens, tinham dois filhos; ao casarem sob o regime da comunhão geral de bens demonstraram que a questão patrimonial não era para eles  algo de indiferente e de somenos importância e, segundo a própria AA, o fundamento para se terem separado de pessoas e bens, em 13/11/2012, foi o “medo” que tinha que “os negócios não corressem bem, era uma forma de se proteger, dado serem casados no regime da comunhão geral de bens” e, quando lida essa afirmação em consonância com o fundamento legalmente previsto para a separação, esse fundamento para o então casal se ter separado de pessoas e bens, atenta a versão dos factos apresentada por AA, foi a má administração, inépcia ou má fé que o então seu marido – a testemunha CC - estava a exercer em relação ao património comum do então casal, colocando a devedora AA em fundado e justificado risco de perder aquilo que era dela.
Daí que, no contexto que se acaba de referir, não se antolha como razoável aceitar-se, à luz das regras do normal acontecer, que a devedora AA se fosse desinteressar pelo destino que o então seu marido – a testemunha CC -, deu ao prédio que lhe fora adjudicado na sequência da separação de pessoas e bens do casal e pretenda desconhecer o destino que o mesmo deu a esse prédio. Aliás, dando-se conta da desrazoabilidade dessa sua afirmação, AA acabou por afirmar que “acha” (isto é, ser sua convicção, mas não ter a certeza) que CC vendeu o dito prédio (venda essa que, conforme infra se verá, foi corroborada por CC no depoimento testemunhal que prestou). O que se acaba de referir é bem demonstrativo das incongruências em que incorreu a devedora AA ao longo das declarações de parte que prestou e da sagacidade e astúcia que subjaz às mesmas.
Acresce dizer que, no contexto que foi relatado pela devedora AA e vindo a descrever, à luz das regras da experiência comum, não se antolha como razoável aceitar-se que, tendo o ex-casal formado por AA e CC acabado por se divorciar, em 05/06/2017, mediante a conversão da separação de pessoas e bens decretada em 2012, em divórcio por mútuo consentimento (cfr. ponto 5º dos factos provados na sentença, não impugnado), em 2019, CC fosse exigir a AA, como condição para com ela celebrar segundo casamento, que a mesma doasse aos filhos do casal o prédio que lhe fora adjudicado aquando da separação de pessoas e bens.
Com efeito, por um lado, a testemunha CC tinha vendido o prédio que lhe fora adjudicado aquando da separação de pessoas e bens do casal e, por outro lado, o cônjuge que, segundo a versão dos factos apresentada pela devedora AA, fez uma má administração do património comum do casal, levando à separação de pessoas e bens do casal, foi precisamente CC, pelo que não se antolha, à luz do normal acontecer, que este fosse impor como condição para contrair o segundo casamento que celebrou, em ../../2019, com AA, que doasse o prédio (aquela que era a casa de morada de família e onde esta e os filhos residiam) que lhe foi adjudicado na sequência da separação de pessoas e bens, quando o próprio CC vendera o prédio que lhe fora adjudicado, não dispondo, por isso, de qualquer legitimidade para fazer semelhante exigência à devedora AA como condição para com ela contrair segundo matrimónio. Além de que, segundo a versão dos factos apresentada pela devedora AA, em sede de declarações de parte, o “culpado” pela má administração do património comum do ex-casal e que levou ao decretamento da separação de pessoas e bens entre eles fora o próprio CC, pelo que não existia então qualquer motivo que levasse o último a temer que a sua ex-mulher (AA) perdesse o prédio de que era exclusiva proprietária, por via de uma eventual má administração que fizesse desse património próprio. Acresce que, face às suas características pessoais e de experiência de vida, nomeadamente, profissional, não colhe a tese de que a devedora AA fosse aceder a semelhante exigência injustificada e injusta por parte de seu marido, exceto naturalmente se ambos tivessem conhecimento (como efetivamente tinham) que AA, face ao elevado valor das dívidas já vencidas (à EMP02..., a dívida de 70.517,63 euros, vencida em 23/05/2019, e à EMP03..., a dívida de 548.410,75 euros, vencida em 14/11/2018 e 05/01/2019 – cfr. ponto 28º dos factos provados, não impugnado) que a mesma tinha para com os seus credores, levando a que estivesse em risco de perder aquele prédio, que constitua o único bem (ativo) que integrava o seu património.
Na verdade, apesar de, a dado passo das declarações de parte que prestou, AA ter pretendido transmitir ao tribunal uma imagem de mulher submissa, obediente, que assinava os documentos que o marido lhe dava a assinar, na ignorância do que estava a assinar (“Da EMP03... eu não sabia, só agora é que sei”. Muito antes da doação “sabia que assinei uns documentos”. “O meu ex-marido pedia para eu assinar, eu sabia que estava a dar aval, mas honestamente não sabia” de quê. “Eu confiava no meu ex-marido e assinava”) e de, inclusivamente, pretender que, na altura da doação do prédio que realizou aos filhos, não ter nem sequer consciência das dívidas que tinha para com os seus credores, e da testemunha CC ter pretendido transmitir ao tribunal igual imagem em relação à sua ex-mulher, esse retrato em nada se mostra conforme com o percurso profissional de AA ao longo da sua vida e com a inteligência e sagacidade por ela demonstrada ao longo das declarações de parte.
Com efeito, conforme consta do pontos 13º e 14º da facticidade julgada provada na sentença sob sindicância (não impugnados), AA exerceu as funções de operária têxtil durante seis anos, passando a exercer, durante vinte anos, as funções de “administrativa”, tendo, durante esse período de tempo, gerido algumas empresas do ramo imobiliário, e exerceu (conforme, aliás, foi referido pela própria em sede de declarações de parte) as funções de administradora única da EMP04..., S.A., até ter renunciado a essas funções em 04/09/2019, passando a dita sociedade a ser gerida pelos seus filhos, enquanto ela continuou aí a trabalhar alegadamente como administrativa. O que se acaba de dizer demonstra que AA é uma pessoa ambiciosa, insatisfeita, que procura subir social, profissional e economicamente, não se tendo conformado com a sua condição de mera operária fabril, nem, posteriormente, com as funções de funcionária administrativa, mas lançou-se a exercer, e exerceu, ao longo de vários anos, as funções de administradora única de uma sociedade anónima do ramo imobiliário, tratando-se, por isso, de pessoa ambiciosa, independente, social e profissionalmente ativa e informada.
As referidas características de personalidade de ambição, independência, inteligência e de sagacidade de AA ficaram, aliás, bem patenteadas ao longo das declarações de parte, onde se constata estar-se na presença de pessoa com um discurso fluente, com um vocabulário rico e com utilização de termos técnicos, denotando ter conhecimento sobre o que é uma letra, uma livrança, um aval, etc..
Aliás, a inteligência e, sobretudo, a sagacidade de AA ficaram cabalmente demonstradas quando foi questionada se, na altura em que fez a doação do prédio (fração ...) aos filhos, se já devia alguma coisa aos credores, se furtou a essa pergunta, limitando-se a responder: “Não me recordo se já tinha sido notificada. Logo depois começaram a chegar várias notificações”. E, quando questionada sobre as razões do seu ex-marido lhe ter pretensamente exigido que doasse o prédio que lhe tinha sido adjudicado, aquando da separação de pessoas e bens do ex-casal, aos filhos como condição para com ela contrair segundas nupciais, se refugiou em respostas genéricas de que o prédio “era um gatilho de desassossego entre nós”, não cuidando em concretizar essa sua afirmação apesar de questionada, por diversas vezes, sobre o que pretendia com ela dizer, escudando-se na dita expressão e dela não saindo, naturalmente porque não desconhecia que não podia dar explicações adicionais e racionais sobre o sentido da mesma que não fosse que “o gatilho de desassossego” que a afligia e ao então ex-marido – a testemunha CC - era a dívida, no montante de 70.517,63 euros, que tinha contraído junto da EMP02..., que se tinha vencido em 24/05/2017 e, bem assim, a dívida de 548.410,75 euros, contraída junto da EMP03..., S.A., que se tinha  vencido em 14/11/2018 e 05/01/2019, a que acresciam as dívidas que tinha contraído junto de outros credores, que se estavam para vencer em data próxima, e que a mesma, CC e os filhos não tinham meios para liquidar e que, por isso, corria o sério risco de perder aquele único prédio que constituía o seu ativo patrimonial, que doou aos filhos, de modo a subtraí-lo aos credores.
O que se vem dizendo relativamente às declarações de parte prestadas por AA é igualmente válido quanto ao depoimento prestado pela testemunha CC.
Com efeito, CC pretendeu igualmente dar uma imagem de AA de mulher submissa, não informada, obediente, que lhe obedecia cegamente e em que o casal não falava de dívidas, nem de credores (era “um tema tabu” entre o casal), ao ponto de pretender que AA não tinha consciência das dívidas que tinha.
Sucede que, conforme antedito, CC desconsiderou que: o casal tinha contraído casamento, em ../../1995, no regime da comunhão geral de bens e a leitura que desse facto necessariamente se extrai a propósito do escopo prosseguido por ambos os elementos do então casal e das suas características de personalidade (que acima se deixaram enunciadas); que o casal se tinha separado de pessoas e bens em 13/11/2012,  e que, segundo a versão dos factos apresentada por AA, foi a própria (a tal mulher pretensamente  submissa e não informada) que terá requerido a dita separação de pessoas e bens; que a própria pretensa exigência que afirma ter feito a AA para que doasse aos filhos o prédio de que era proprietária e que lhe fora adjudicado na sequência da separação de pessoas e bens do casal, como condição para com ela voltar a contrair novo casamento, a ter existido – o que não se consente –, demonstra que o próprio CC (tal como AA) é pessoa preocupada com a salvaguarda do património (no caso, com a salvaguarda do património detido por AA, uma vez que CC não dispunha então de nenhum património), em que, por conseguinte, o ativo e o passivo que integrava o património de AA  nunca podia ser um “tema tabu” entre CC e AA, mas antes um tema sempre presente e falado entre eles, estando sempre presente a necessidade de o preservar); e, finalmente, que a dita imagem de AA em nada condiz com o percurso de vida, social e profissional desta, nem com a imagem de mulher inteligente, informada e sagaz que denotou ao longo das declarações de parte que prestou.
Aliás, o percurso de vida, nomeadamente, social e profissional que foi relatado pelo próprio CC e pela devedora AA quanto àquele e, bem assim, a postura que CC adotou ao longo do depoimento testemunhal que prestou, denotam igualmente estarmos perante uma pessoa informada, inteligente e sagaz (relembra-se que CC se furtou à pergunta sobre se AA, antes de realizar a doação do prédio aos filhos, lhe falou de dívidas ou de credores, hesitando e silenciando na resposta a dar a essa concreta pergunta, acabando por afirmar que, se AA tinha então dívidas, ser sua convicção de que a mesma não tinha consciência da sua existência), pelo que, face a essas características, o mesmo não deixou naturalmente de se informar junto de AA, antes de com ela contrair o segundo matrimónio, sobre as dívidas por ela detidas junto dos seus credores, como efetivamente o fez, tanto assim que tudo fizeram para subtraírem o património de que AA então tinha aos credores desta.
Frise-se, aliás, que a sagacidade de CC ficou bem patenteada quando cotejado o seu depoimento se verifica que se apresentou a testemunhar em tribunal com o único objetivo de fazer passar uma imagem de AA de mulher submissa, obediente, desconhecedora dos negócios e das próprias dívidas que tinha para com os seus credores e, bem assim, de que aquela teria doado o prédio aos filhos, em 18/10/2019 (fração ...), que lhe fora adjudicado na sequência da separação de pessoas e bens do casal, por exigência sua, como condição para com ela contrair segundo matrimónio, furtando-se a prestar explicações adicionais, calando e hesitando perante as perguntas que lhe foram feitas, nomeadamente, para que explicasse e concretizasse semelhante exigência/condição a todas as luzes incompreensível e injustificada (quando, relembra-se, vendera o prédio que lhe fora adjudicado), a não ser o conhecimento que tinha de que AA tinha dívidas de elevado montante para com os seus credores, que então já se encontravam vencidas antes da celebração do segundo casamento, agindo ambos e os filhos para que subtraírem aquele prédio aos credores de AA.
Acresce dizer que a tese apresentada por CC e por AA de que a última doou o dito prédio (fração ...) aos filhos por exigência do primeiro, como condição para que com ela contraísse segundas núpcias é totalmente afastada quando se constata que a doação do prédio aos filhos foi realizada por AA em 18/10/2019 (cfr. ponto 18º dos factos provados na sentença, não impugnado), enquanto o ex-casal formado por AA e por CC contraiu segundo casamento em ../../2019 (cfr. ponto 6º dos factos provados na sentença, também não impugnado), isto é, após a celebração da doação, não colhendo as explicações dadas (de motu proprio) por CC quando pretendeu que, apesar de ter imposto a AA que fizesse a doação aos filhos como condição para com ela casar, não era condição que, aquando do segundo casamento, já tivesse feito a dita doação do prédio aos filhos, sabendo-se que não é razoável aceitar-se que alguém imponha uma determinada condição a outrem para assumir um determinado comportamento e cumpra com essa conduta (no caso, contrair segundas núpcias com AA) sem que antes a sua contraparte tenha cumprido com a condição que lhe impusera e a que subordinou a sua conduta, quando não dispõe de meios para, posteriormente, obrigar a pessoa em causa a que cumpra com a pretensa condição (ou seja, celebrado, em ../../2019, o segundo casamento entre AA e CC, o último não dispunha de condições legais para a obrigar a cumprir com a pretensa condição de doar o prédio aos filhos a que alegadamente subordinara a celebração do casamento, o que tudo CC não ignorava, nem podia ignorar). Daí que, caso a versão dos factos apresentada por CC e AA fosse verdadeira (que não é), o mesmo jamais teria contraído o segundo casamento sem que AA tivesse previamente doado o prédio aos filhos de ambos.
Tudo o que se vem dizendo, a que acresce o facto de a doação do prédio (fração ...) realizada, em 18/10/2019, por AA aos filhos ter sido feita com reserva do direito de habitação, e deste último, nos termos do disposto no art. 1484º e 1485º do CC, ser inalienável e impenhorável, e de AA ter renunciado ao mesmo quando os filhos (donatários) o venderam a terceira pessoa (sem o que jamais esta aceitaria comprá-lo) não só é bem demonstrativo das características de personalidade acima identificadas de AA (e de CC), nomeadamente, da sua sagacidade, como é bem reveladora dos propósitos com que depuseram em tribunal.
Tudo o que se vem dizendo, à luz das regras da experiência comum força a que se conclua, tal como concluiu a 1ª Instância, que o único propósito prosseguido por AA com a mencionada doação foi o de subtrair o prédio que lhe fora adjudicado, aquando da separação de pessoas e bens do ex-casal (e que constituía o seu único património e, bem assim, o único património familiar, dado que CC não dispunha, à data da celebração da doação, de qualquer património, por ter vendido o único prédio que lhe fora adjudicado aquando da separação de pessoas e bens) aos seus credores.
Em suma, decorre do exposto que a versão dos factos apresentada pela devedora AA e pela testemunha CC, seu ex-marido, não só se revelou titubeante, defensiva e contraditória, como totalmente desconforme às regras do normal acontecer, as quais evidenciam, perante os factos acima elencados que a única razão plausível para a primeira ter doado, em 18/10/2019, o prédio que lhe tinha sido adjudicado, aquando da separação de pessoas e bens do ex-casal, reservando para si o direito de habitação sobre esse prédio (o qual é impenhorável), vindo a renunciar ao mesmo quando os filhos o venderam, em 11/10/2021, a terceira pessoa, por forma a viabilizar essa venda, foram as dívidas que a mesma tinha e que já se encontravam vencidas, junto da EMP02..., no montante de 70.517,63 euros (vencida em 23/05/2019) e junto da EMP03..., no montante de 548.410,75 euros (vencida em 14/11/2018 e 05/01/2019) e, bem assim, as que tinha para com os demais credores identificados no ponto 28º dos factos provados (não impugnados), que se venceriam proximamente, sem que aquela, o seu ex-marido (CC) ou filhos dispusessem de meios económicos que lhes permitisse saldar as mesmas e correndo, por isso, o sério risco de ser executada e de perder esse único prédio que integrava o seu ativo patrimonial, visando AA, acolitada por CC e pelos filhos (donatários), com a doação, tal como concluiu a 1ª Instância, furtar o mesmo aos credores daquela.
Destarte, longe da prova produzida impor que a 1ª Instância tivesse julgado provada a facticidade julgada não provada sob a alínea b) na sentença sob sindicância (conforme é exigido pelo n.º 1 do art. 662º do CPC, nos termos do qual para que a impugnação do julgamento da matéria de facto operada pela recorrente proceda, não é suficiente que a prova por ela indicada, isolada ou conjugadamente com a restante prova produzida que o tribunal de recurso, ao abrigo do princípio da oficiosidade, entenda dever socorrer-se,  permita ou consinta o julgamento da matéria de facto que por ela vem propugnado, mas antes é exigido que o imponha), essa mesma prova, atentos os fundamentos probatórios supra identificados e analisados, impõe o julgamento de não provado dessa concreta facticidade.
Decorre do exposto que, na improcedência da impugnação do julgamento da matéria de facto operada pela recorrente, mantém-se inalterada a facticidade julgada não provada na alínea b) da sentença.
 
B- Mérito
B.1- Do instituto de exoneração do passivo restante
Mantendo-se inalterado o julgamento da matéria de facto realizado pela 1ª Instância, apesar do teor da conclusão XXXII das alegações de recurso apresentadas pela recorrente poder inculcar a ideia que o erro de direito que assaca à decisão de mérito constante da sentença recorrida, no segmento em que indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante, estar dependente do êxito da impugnação do julgamento da matéria de facto, basta ler as conclusões de recurso para se constar que assim não é.
Com efeito, a recorrente advoga que, ao contrário do decidido na sentença sob sindicância, não estão preenchidos nenhuns dos requisitos legais de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante da al. d) do n.º 1 do art. 238º do CIRE, o que significa que, independentemente do êxito da impugnação do julgamento da matéria de facto por ela operada, na sua perspetiva, aquele segmento decisório padece de erro de direito, impondo-se a sua revogação e substituição por outro em que se admita liminarmente aquele benefício.
Por conseguinte, urge indagar se assiste razão à recorrente para os erros de direito que assaca ao segmento decisório da sentença recorrida em que a 1ª Instância indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante.
O processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e na repartição do produto obtido pelos credores (art. 1º do CIRE, a que se reportam todos os dispositivos legais que se venham a referir sem menção em contrário), em que o principal objetivo do processo é a satisfação dos interesses dos credores.
Acontece que, inspirado no modelo do fresh start, com origem no ordenamento jurídico norte-americano (Bankruptcy Act de 1898), depois incorporado na legislação alemã (§§ 286 a 303 da InsO), o CIRE, no Título XII, introduziu na ordem jurídica nacional, em relação à insolvência de pessoas singulares, o instituto da exoneração do passivo restante, que se encontra regulado nos arts. 235º a 248º.
O principal objetivo do instituto da exoneração é o de satisfazer os interesses do devedor, pessoa singular, ao permitir-lhe que, quando a insolvência ocorra em determinadas condições e mediante o cumprimento, durante o denominado período de cessão, de determinados requisitos e obrigações, se liberte das dívidas que permaneçam insatisfeitas (uma vez liquidada a massa insolvente e afeto o respetivo produto e os rendimentos que entregou ao fiduciário durante o período de cessão ao pagamento dessas dívidas), para que recomece de novo, sem elas, a sua vida económica.
O princípio do fresh start consubstancia o princípio fundamental e básico do instituto de exoneração do passivo restante, ao permitir ao devedor, pessoa singular, a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente liquidados no âmbito do processo de insolvência ou no período de cessão, salvo os indicados no n.º 2 do art. 245º[5].
Trata-se de uma “uma medida de proteção” do devedor, pessoa singular, cujo objetivo primordial é reabilitá-lo para a vida em sociedade e dar-lhe “uma segunda oportunidade, para que possa recomeçar a sua vida evitando a indigência que nada beneficia a sociedade”[6]. Em rigor, trata-se de uma nova causa de extinção das obrigações, extraordinária relativamente às causas extintivas que se encontram tipificadas nos arts. 837º a 874º do CC, em que o principal interesse nele tutelado é o do devedor. Como tal, no instituto de exoneração assiste-se a uma “colisão entre direitos ou valores constitucionalmente protegidos: de um lado, a proteção constitucional dos créditos, no quadro (…) da proteção geral do património; do outro, a proteção da liberdade económica e do direito ao desenvolvimento da personalidade e, também, o princípio próprio do Estado Social de Direito, de proteção social dos mais fracos (neste caso, tendencialmente o devedor insolvente)”[7].
Precisamente porque o instituto da exoneração tem subjacente uma colisão de direitos fundamentais constitucionalmente tutelados e, por isso, nos termos do art. 18º da Constituição da República Portuguesa, exige-se que o legislador infraconstitucional proceda à concordância prática de todos os direitos fundamentais conflituantes, com cabal observância dos princípios da proporcionalidade e da necessidade, sem que elimine o núcleo essencial de qualquer um deles, a exoneração do passivo restante configura um instituto de exceção, que não consubstancia, nem pode consubstanciar, um brinde ao incumpridor, sob pena de se incorrer em inconstitucionalidade material, por violação do princípio da proporcionalidade ao se postergar injustificadamente os direitos de crédito que assistem aos credores em benefício exclusivo da reabilitação económica e social do devedor e de se banalizar o próprio instituto, ao qual todos recorreriam, sem qualquer sentido de responsabilidade e sacrifício, e olvidando não ter sido propósito do legislador que aquele tivesse por escopo a desresponsabilização do devedor, nem que o processo judicial possa ser uma porta aberta para se atingir semelhante desiderato.
Por isso, o instituto da exoneração, no ordenamento jurídico nacional, não assenta num modelo de puro fresh start, mas antes no modelo derivado do earned start ou da reabilitação, nos termos do qual o devedor, pessoa singular, declarado insolvente não pode ser exonerado das suas dívidas em quaisquer circunstâncias, dado que, em princípio, os contratos são para cumprir (art. 406º, n.º 1 do CC), mas apenas pode ser concedido a quem, antes do decretamento da insolvência e no âmbito do próprio processo de insolvência assuma uma conduta honesta, leal, de boa fé e de cooperação, que em nada tenha contribuído para a verificação ou o agravamento do estado de insolvência e que permita apurar das causas dela (o que passa pela não prova das condutas tipificadas taxativamente no n.º 1 do art. 238º, que levam ao indeferimento liminar do pedido de exoneração) e que, uma vez deferido liminarmente o pedido de exoneração, durante o período de cessão, com a duração de três anos, assuma igual conduta e cumpra com a obrigação principal de ceder o rendimento disponível ao fiduciário e cumpra com os deveres acessórios do n.º 3 do art. 239º, demonstrando ser merecedor (“earn”) do perdão de dívida em causa.
Por isso é que apenas findo o período de cessação e verificado que seja que o devedor cumpriu com todas as suas obrigações e que, por isso, é merecedor do perdão de dívida é que lhe pode ser concedido o beneficio de exoneração do passivo restante[8].
Deste modo, atenta a colisão de direitos de credores e devedor e a ratio que está subjacente ao instituto da exoneração, para que esse benefício seja concedido ao devedor, pessoa singular, declarado insolvente, é necessário que antes do processo de insolvência, durante o mesmo e, bem assim, até ao termo do ano subsequente ao trânsito em julgado da decisão que confira a exoneração (art. 246º, n.ºs 1 e 2 do CIRE), justifique ser merecedor de uma segunda oportunidade, que lhe permita “começar de novo”[9] a sua vida económica liberto das anteriores dívidas que o oneravam.
Para que o benefício da exoneração do passivo restante seja concedido, o devedor terá de percorrer um processo próprio, onde se destacam, como principais fases: o pedido de exoneração, o despacho liminar e o despacho final.
O pedido de exoneração do passivo restante tem de ser formulado pelo devedor na petição inicial com que se apresenta à insolvência ou, na hipótese da insolvência ter sido requerida por um dos legitimados indicados no art. 20º, n.º 1 do CIRE, no prazo de dez dias, a contar da sua citação para o processo de insolvência (n.º 1 do art. 236º), para a eventualidade de vir a ser declarado insolvente.
O pedido de exoneração poderá ainda ser requerido até ao encerramento da assembleia de credores para apreciar o relatório emitido pelo administrador da insolvência a que alude o art. 155º ou, no caso de dispensa de realização desta, após os 60 dias subsequentes à sentença que o declarou insolvente, mas, nesse caso, em que o pedido é formulado durante o denominado período intermédio, o juiz decide livremente sobre a admissão ou não do pedido (art. 236º, n.º 1, parte final).
Depois da realização da assembleia de credores para apreciar o relatório a que alude o art. 155º o pedido de concessão do benefício de exoneração é sempre rejeitado, por ser intempestivo.
Acresce que o pedido de exoneração, ainda que tempestivamente deduzido e, ainda que já tenha sido liminarmente admitido, porque totalmente incompatível com a aprovação e homologação de um plano de pagamento (al. c) do art. 237º) - os efeitos da exoneração já resultam da homologação do plano de pagamento (art. 198º, al. c)) -, terá de ser rejeitado sempre que for apresentado um plano de pagamento pelo devedor, exceto se declarar, aquando da apresentação do plano, que pretende que lhe seja concedido o benefício de exoneração na hipótese de o plano não ser aprovado (art. 254º).
Quanto ao conteúdo do requerimento em que solicita a exoneração do passivo restante, o devedor tem de declarar expressamente que preenche os requisitos para que esse benefício lhe seja concedido e que se dispõe a observar todas as condições e obrigações decorrentes da sua concessão (n.º 3 do art. 236º).
Perante esse pedido, exceto quando for apresentado fora do prazo legal ou de já constarem do processo de insolvência ou respetivos apensos documento autêntico comprovativo de algum dos fundamentos de indeferimento liminar previstos taxativamente nas diversas alíneas do n.º 1 do art. 238º, em que o juiz deverá logo indeferir liminarmente o pedido de exoneração (art. 236º, n.º 4, parte final), o julgador, uma vez ouvidos os credores e o administrador da insolvência, profere despacho, deferindo (ou não) liminarmente o pedido de exoneração, conforme se encontrem (ou não) provados os pressupostos de indeferimento liminar taxativamente enunciados numa das alíneas do n.º 1, do art. 238º.
No caso de deferimento liminar do pedido de exoneração o julgador fixa as condições que o devedor terá de cumprir durante o período de cessão (arts. 237º, al. b) e 239º do CIRE).
O despacho inicial tem, assim, como único objetivo a aferição da existência de condições mínimas, a ser emitido segundo um juízo de prognose e prova sumária, que justificam que ao devedor deva ser dada uma oportunidade de se submeter a uma espécie de período de prova - o período de cessão - que, uma vez terminado, pode resultar (ou não) na concessão do benefício de exoneração do passivo restante e, no caso positivo, fixar as obrigações a que fica adstrito durante esse período (arts. 239º, 244º e 245º do CIRE).
O deferimento liminar do pedido de exoneração não significa, pois, que esse benefício venha efetivamente a ser concedido ao devedor, mas apenas tem o alcance de que existem condições para proferir o despacho inicial, em que se determina que, durante os três anos subsequentes ao encerramento do processo de insolvência – período de cessão (n.º 2 do art. 239º) -, o devedor terá de ceder ao fiduciário o rendimento disponível, se fixa o montante do rendimento indisponível, e se enunciam os comportamentos a que fica adstrito durante esse período, e que mais não são do que o cumprimento de deveres de conduta acessórios, com vista a garantir o cumprimento da obrigação principal de ceder o rendimento disponível ao fiduciário e a permitir ao tribunal, credores e administrador da insolvência sindicar o cumprimento dessa obrigação principal. Apenas findo o período de cessão, caso, entretanto, não tenha sido decretada a cessação antecipada do procedimento (art. 243º), é que o juiz decide, em definitivo, sobre a concessão (ou não) da exoneração do passivo restante ao devedor (arts. 239º, n.ºs 2, 3 e 4 e 244º, n.º 1 do CIRE)[10].
Como refere a recorrente e foi corretamente ponderado na decisão recorrida, apesar das dúvidas iniciais, é atualmente largamente maioritário o entendimento jurisprudencial - que se subscreve -, de que o ónus de alegação e da prova da verificação dos requisitos legais previstos numa das alíneas do n.º 1 do art. 238º, para o indeferimento liminar do pedido de exoneração impende sobre os credores do devedor e/ou sobre o administrador da insolvência (e não sobre o devedor, requerente do benefício de exoneração), dado tratar-se de matéria de exceção ao direito que assiste ao último de lhe ser concedido o benefício de exoneração[11].

C.2- Fundamento de indeferimento liminar de exoneração do passivo retante da al. d) do n.º 1 do art. 238º do CIRE
A 1ª Instância indeferiu liminarmente o pedido de concessão do benefício de exoneração do passivo restante formulado pela recorrente com fundamento em se encontrarem alegados e provados os requisitos da al. d) do n.º 1 do art. 238º, decisão essa com a qual não se conforma a recorrente, advogando não se encontrarem preenchidos nenhum dos requisitos legais previstos naquela norma.
Estabelece a referida alínea d) do n.º 1 do art. 238º que: “O pedido de exoneração é liminarmente indeferido se o devedor tiver incumprido o dever de apresentação de insolvência ou, não estando obrigado a se apresentar, se tiver abstido dessa apresentação nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, com prejuízo em qualquer dos casos para os credores e, sabendo, ou não podendo ignorar sem culpa grave, não existir qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica”.
No caso sobre que versam os autos, a devedora AA (recorrente) é uma pessoa singular, pelo que sobre ela não impede o dever de se apresentar à insolvência previsto no art. 18º, n.º 1 (cfr. al. b) do n.º 2 do art. 18º).
Destarte, para que seja indeferido liminarmente o pedido de exoneração com fundamento na al. d) do n.º 2 do art.  238º requerido pela recorrente é necessário que se alegue e prove estarem preenchidos os seguintes requisitos cumulativos: 1) a recorrente encontrar-se numa situação de insolvência; 2) aquela não se apresentar à insolvência nos seis meses seguintes à verificação do seu estado de insolvência; 3) que por via desse seu comportamento omissivo resultaram prejuízos para os seus credores; e d) que aquela tivesse conhecimento ou não pudesse ignorar, sem culpa grave, que inexistia qualquer perspetiva séria de ver melhorada a sua situação económica[12].
O ónus da alegação e da prova da facticidade integrativa da cada um dos identificados requisitos, conforme antedito, não impende sobre a recorrente (devedora), mas sim sobre os seus credores e/ou o administrador da insolvência, tudo sem prejuízo dos poderes inquisitoriais que impendem sobre o juiz (art. 11º).
Descendo à análise de cada um dos requisitos acabados de enunciar, a propósito do primeiro requisito (encontrar-se o devedor em situação de insolvência), a noção básica de insolvência consta do n.º 1 do art. 3º, nos termos do qual: “É considerado em situação de insolvência o devedor que se encontre impossibilitado de cumprir as suas obrigações vencidas”.
Da referida noção básica de insolvência decorre que, para a caracterização da insolvência apenas relevam, por um lado, as obrigações vencidas e não as vincendas; por outro, que não relevam o número de obrigações vencidas que se encontrem em incumprimento; e, finalmente, ser indiferente tratar-se de obrigações civis e comerciais.
Com efeito, à caracterização do estado de insolvência apenas releva a impossibilidade de o devedor em cumprir com uma ou mais obrigações vencidas, isto é, que já se encontrem em mora, por falta de liquidez do devedor para as solver, e que essa situação não decorra de uma situação passageira, mas estrutural de falta de liquidez, de modo a poder presumir-se que não cumpriu com uma ou mais obrigações já vencidas e que, dada a natureza da sua falta de liquidez, não irá cumprir com as restantes à medida que se forem vencendo.
Conforme expendem Carvalho Fernandes e João Labareda, “De há muito que tem sido geral e pacificamente entendido pela doutrina e pela jurisprudência que, para caracterizar a insolvência, a impossibilidade de cumprimento não tem de abranger todas as obrigações assumidas pelo insolvente e vencidas. O que verdadeiramente releva para a insolvência é a suscetibilidade de satisfazer obrigações que, pelo seu significado no conjunto do passivo do devedor, ou pelas próprias circunstâncias do incumprimento, evidenciam a impotência, para o obrigado, de continuar a satisfazer a generalidade dos seus compromissos. Com efeito, pode até suceder que a não satisfação de um pequeno número de obrigações ou até uma única indicie, por si só, a penúria do devedor, característica da sua insolvência, do mesmo modo que o facto de continuar a honrar um número quantitativamente significativo pode não ser suficiente para fundar saúde financeira bastante. Assim, se, por hipótese, uma sociedade comercial com algumas centenas de trabalhadores entra em rutura quanto aos seus encargos para a segurança social e deixa também de honrar as dívidas com os seus credores bancários mais relevantes, ela não deixará de se encontrar numa situação de insolvência atual, apesar de manter religiosamente o pagamento aos seus colaboradores e mesmo assegurar o serviço da dívida a um ou outro banco. Ao contrário, o facto de, porventura, deixar atrasar, circunstancialmente, o pagamento dos salários, continuando, no entanto, a satisfazer os credores bancários, fornecedores e o setor público, não será, só por si, caracterizador do estado de insolvência em termos de se requerer a correspondente declaração”[13] (destacado nosso).
No mesmo sentido, ensina Alexandre de Soveral Martins ocorrer a situação de insolvência quando o devedor não tem “meios para cumprir as obrigações vencidas. Meios que o devedor não tem porque nem sequer consegue obtê-los junto de terceiros. Em rigor, a impossibilidade de cumprir as obrigações vencidas não significa que se tenha de fazer a prova imediata de que o devedor está impossibilitado de cumprir todas e cada uma das obrigações. Basta a prova imediata de que o devedor não consegue cumprir as obrigações vencidas que, por sua vez, permitam ao julgador presumir que o devedor também não tem possibilidade de cumprir as restantes[14] (destacado nosso).
Em suma, para se considerar que o devedor se encontra em estado de insolvência, basta que se prova que incumpriu uma ou mais obrigações já vencidas, por falta de liquidez e factos ou circunstâncias que levem o julgador a presumir, fundada e justificadamente, que a sua falta de solvabilidade não lhe permitirá cumprir com as restantes obrigações assumidas à medida que se forem vencendo.
Descendo ao caso concreto, apurou-se que, em 23/05/2019, se venceu a dívida que a recorrente AA tinha para com a EMP02..., S.A., no montante de 70.517,63 euros e, em 14/11/2018 e 05/01/2019, se venceu a dívida que aquela tinha para com a EMP03..., no montante de 548.410,75 euros, dívidas que permanecem por liquidar até ao presente (cfr. ponto 28º dos factos apurados).
À data de vencimento das referidas dívidas, a recorrente AA exercia funções de administrativa e era administradora única da sociedade comercial EMP04..., S.A., posto que apenas renunciou à administração dessa sociedade em 04/09/2019, altura em que passou a ser administrada pelos filhos da recorrente. Como único património (ativo) AA era proprietária da fração autónoma designada pela letra ..., do prédio constituído em propriedade horizontal, descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...55, da freguesia ..., que se encontrava onerado com uma hipoteca voluntária a favor do Banco 2..., S.A., no valor de 390.000,00 euros, que lhe tinha sido adjudicado na sequência da separação de pessoa e bens, ocorrida a 14/11/2012, prédio esse em que residia (cfr. pontos 12º, 14º, 15º, 16º, 17º, 21º e 22º dos factos apurados).
Contrariamente ao que parece ser o entendimento da recorrente, o seu estado de insolvência não depende da circunstância dos seus credores, perante o incumprimento dos créditos que lhe assistem, lhe terem instaurado execução para pagamento de quantia certa com vista a cobrar coercivamente os créditos que lhes assistem e de nela já ter sido citada, nem da circunstâncias da recorrente exercer (ou não) atividade remunerada, mas sim do facto de se terem vencido uma ou mais obrigações assumidas perante os seus credores e que não liquidou, por falta de liquidez, entrando em mora e, bem assim, do apuramento de facto ou de circunstâncias que evidenciem a sua impotência, por falta de solvabilidade, de vir a cumprir com as suas demais obrigações assumidas à medida que se forem vencendo.
Ora, tendo-se vencido em 14/11/2018 e 05/01/2019, o crédito detido pela EMP03... sobre a devedora, no montante global de 548.410,75 euros, atento o montante elevado desse crédito (passivo) no confronto com o ativo detido à data do seu vencimento pela recorrente (que se resumida à fração ..., que se encontrava onerada por uma hipoteca bancária constituída a favor do Banco 2..., garantindo o pagamento da quantia de 390.000,00 euros), é apodítico que, pelo menos, em 05/01/2019, a recorrente estava impossibilitada, por falta de liquidez, de cumprir as obrigações já vencidas que tinha assumido para com a EMP03..., bem como as que se viessem a vencer posteriormente, como foi o caso da obrigação contraída junto da EMP02..., no montante de 70.517,63 euros, que se venceu em 23/05/2019; a que assumiu perante a EMP03..., no montante de 61.802,95 euros, que se venceu em 17/08/2019; e as que assumiu perante a EMP08..., S.A, nos montantes de 1.810,95 euros e 4,26 euros, que se venceram em 11/04/2020, as quais também não liquidou (cfr. ponto 28º dos factos apurados).
De resto, o elevado montante daquelas dívidas e a proximidade das datas dos respetivos vencimentos, independentemente dos rendimentos auferidos pela devedora, de per se leva a que se conclua que, pelo menos, em 05/01/2019, a devedora AA se encontrava em clara e manifesta situação de insolvência.
Nos termos do segundo requisito acima enunciado necessário ao indeferimento liminar do pedido de exoneração com fundamento na al. d) do n.º 1 do art. 238º, é necessário que a recorrente se tivesse abstido de se apresentar à insolvência no prazo máximo de seis meses a contar da verificação da sua situação de insolvência, ou seja, a contar de 05 de janeiro de 2019, requisito esse que se encontra preenchido, dado que apenas se apresentou à insolvência 03/12/2024 e, por isso, quando o prazo máximo de seis meses para fazê-lo há muito se mostrava decorrido.
Passando ao terceiro requisito necessário ao indeferimento liminar do pedido de exoneração (por via do comportamento omissivo da devedora, traduzido na circunstância de não se ter apresentado à insolvência nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência, conforme lhe era legalmente imposto), exige-se que “o prejuízo” para os credores a que alude o art. 238º, n.º 1, al. d) seja um efeito necessário da não apresentação atempada da recorrente à insolvência, mas esse prejuízo não se presume, nem pode ser um efeito automático da não apresentação à insolvência no prazo máximo de seis meses a contar da data em que ficou insolvente, uma vez que a não apresentação atempada do devedor à insolvência provoca sempre um conjunto de consequências nefastas para os credores que decorrem da circunstância: do ativo se reduzir por força das execuções singulares dos credores e, em princípio, desvaloriza-se com o decurso do tempo; em contrapartida, o passivo aumenta por via do aumento de juros. É que a jurisprudência é unânime que o aumento da contagem dos juros, resultante do retardamento da apresentação do devedor à insolvência não constitui, por si só, fundamento bastante para se poder decidir pelo indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante, mas é necessário que o devedor, após o decurso do prazo legal para se apresentar à insolvência, celebre negócios dos quais resulte um aumento do seu passivo (v.g., celebração de contratos de financiamento, leasing, etc. de que resultem novas responsabilidades financeiras para o devedor),  ou a diminuição do seu ativo (v.g., celebração de contratos de compra e venda de bens do devedor por preço inferior ao seu valor de mercado, contrato de doação, etc.), isto é, que se prove um nexo de causalidade entre a demora na apresentação à insolvência  para lá do prazo fixado na lei e o prejuízo para os credores[15].
O referido prejuízo tem de ser provado, ou seja, tem de decorrer dos factos que se quedaram provados nos autos e tem de ser tal que constitua um patente agravamento da situação dos credores que assim ficaram onerados pela atitude culposa do insolvente e deve ser um prejuízo irreversível e grave[16].
No caso em análise apurou-se que, em 18/10/2019, isto é, após o decurso do prazo de seis meses a contar de 05/01/2019, data em que a recorrente AA estava insolvente, esta doou aos seus filhos a fração autónoma designada pela letra ..., do prédio constituído em propriedade horizontal, descrito na Conservatório do Registo Predial ... sob o n.º ...55, da freguesia ..., reservando para si o direito de habitação, fração essa que constituía o único ativo que integrava o seu património (cfr. pontos 18º e 21º da facticidade apurada).
Independentemente do prédio doado pela recorrente aos filhos se encontrar, à data da doação, onerado com uma hipoteca voluntária constituída a favor do Banco 2..., que garantia o pagamento da quantia de 390.000,00 euros, hipoteca essa que os filhos da recorrente (donatários) liquidaram com parte do preço, no montante de 545.000,00 euros, pelo qual vieram a vender a dita fração a terceira pessoa (cfr. pontos 19º e 20º dos factos apurados), sendo a doação, por definição legal, o contrato pelo qual uma pessoa, por espírito de liberalidade e à custa do seu património, dispõe gratuitamente de uma coisa ou de um direito, ou assume uma obrigação, em benefício do outro contraente (art. 940º do CC), o dito ato dispositivo feito pela recorrente do único ativo que integrava o seu património em benefício dos seus filhos, implicou necessariamente um benefício para os últimos – de contrário não se trataria de uma doação. E esse benefício para os filhos da recorrente, que  passaram a ser os proprietários do único ativo que integrava o património daquela, traduziu-se necessariamente num prejuízo para os credores da recorrente que não beneficiavam de qualquer garantia sobre o prédio doado, ao impossibilitá-los de se pagarem pelos créditos que detinham (e continuam a deter) sobre ela, à custa do produto da venda desse prédio que remanescesse, uma vez pagas as custas da execução e o crédito garantido pelo hipoteca que então permanecia por liquidar[17].
Daí que a circunstância da recorrente não se ter apresentado à insolvência nos seis meses subsequentes a 05/01/2019, altura em que já se encontrava insolvente, possibilitou-lhe que tivesse doado o único ativo que integrava o seu património aos filhos, em benefício dos últimos e em prejuízo dos seus credores que não beneficiam de qualquer garantia sobre esse prédio, agravando a possibilidade destes de obterem a satisfação dos créditos que detinham (e detêm) sobre a devedora à custa do produto da venda do prédio por ela doado aos filhos.
Destarte, salvo melhor entendimento, tal como decidido pelo tribunal a quo, também se encontra preenchido o terceiro requisito legal acima enunciado para o indeferimento liminar do pedido de exoneração.
Passando à análise do quarto e último requisito para o indeferimento liminar do pedido de exoneração, à data de 05 de janeiro de 2019, em que ficou em estado de insolvência, a recorrente, AA, face ao elevado montante do crédito que então se venceu, que perfaz a significativa quantia de 548.410,75 euros, não tinha, nem podia ter qualquer legitima expectativa que a sua situação económica iria melhorar ao ponto de lhe possibilitar a liquidação desse crédito, tanto mais, que não desconhecia, nem podia desconhecer que tinha uma dívida para com a EMP02..., que ascendia à relevante quantia de 70.517,63 euros, que se venceria em 23/05/2019, além das demais dívidas que acima se identificaram e que se venceriam em datas próximas, pelo que este último requisito se mostra igualmente perfectibilizado.
Decorre do excurso antecedente que, contrariamente ao pretendido pela recorrente, tal como decidido pela 1ª Instância, todos os requisitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração do passivo restante da al. d) do n.º 1 do art. 238º se encontram provados e verificados, pelo que, ao indeferir liminarmente aquele benefício, o tribunal a quo não incorreu em nenhum dos erros de direito que assaca ao segmento decisório da sentença recorrida em que se decidiu pelo indeferimento liminar daquele pedido, impondo-se, em suma, julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmar esse segmento decisório.

D- Das Custas
Nos termos do disposto no art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC, a decisão que julgue o recurso condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento, quem do recurso tirou proveito. Entende-se que dá causa às custas do recurso a parte vencida, na proporção em que o for.
Tendo o presente recurso interposto pela recorrente improcedido na íntegra, tendo nele a última ficado totalmente vencida, em obediência aos comandos legais acabados de referir, as custas do recurso devem ficar a seu cargo.
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V- Decisão

Nesta conformidade, os Juízes Desembargadores da 1ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães acordam em julgar o recurso improcedente e, em consequência, confirmam o segmento decisório da sentença recorrida, em que se indeferiu liminarmente o pedido de exoneração do passivo restante formulado pela recorrente, AA, com fundamento na al. d) do n.º 1 do art. 238º do CIRE.
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Custas do recurso pela recorrente, AA, dado que ficou totalmente “vencida” (art. 527º, n.ºs 1 e 2 do CPC).
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Notifique.
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Guimarães, 10 de julho de 2025

José Alberto Moreira Dias – Relator
Fernando Manuel Barroso Cabanelas – 1º Adjunto
Maria Gorete Morais – 2ª Adjunta
 

[1] Ferreira de Almeida, “Direito Processual Civil”, vol. II, 2015, Almedina, págs. 395 e 396.
[2] Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Filipe Pires de Sousa, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. I, 2ª ed., Almedina, pág. 797.
[3] Ac. STJ., de 29/10/2015, Proc. 233/09.4TBVNG.G1.S1, in base de dados da DGSI, onde constam todos os acórdãos que se venham a citar sem menção em contrário.
[4] Acórdão uniformizador de jurisprudência (AUJ) n.º 12/2023, de 17/10/2023, Proc. 8344/16.6T8STB.E1-A.S1, publicado no D.R., n.º 220/2023, Série I, de 14/11/2029, em que se uniformizou a seguinte jurisprudência: “Nos termos da alínea c), do n.º 1, do artigo 640º do Código de Processo Civil, o recorrente que impugna a decisão sobre a matéria de facto não está vinculado a indicar nas conclusões a decisão alternativa pretendida, desde que a mesma resulte, de forma inequívoca, das alegações”; Acs. S.T.J. de 18/11/2008, Proc. 08A3406; de 15/09/2011, Proc. 1079/07.0TVPRT.P.S1; de 04/03/2015, Proc. 2180/09.0TTLSB.L1.S2; de 01/10/2015, Proc. 824/11.3TTLSB. L1. S1; de 26/11/2015, Proc. 291/12.4TTLRA.C1; de 03/03/2016, Proc. 861/13.3TTVIS.C1.S1; 11/02/2016; Proc. 157/12.8TUGMR.G1.S1; Abrantes Geraldes, “Recursos no Novo Código de Processo Civil”, 2017, 4ª ed., Almedina, págs. 158 e 159, em que expende: “A rejeição total ou parcial do recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações: a) Falta de conclusões sobre a impugnação da matéria de facto (arts. 635º, n.º 4 e 641º, n.º 2, al. b)); b) Falta de especificação, nas conclusões, dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados (art. 640º, n.º 1, al. a)); c) Falta de especificação, na motivação, dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registados (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d) Falta de indicação exata, na motivação, das passagens da gravação em que o recorrente se funda; c) Falta de posição expressa, na motivação, sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação”.

[5] Neste sentido expende-se no Preâmbulo do Decreto-Lei n.º 53/2004, de 18/03, que: “O Código conjuga de forma inovadora o princípio fundamental do ressarcimento dos credores com a atribuição aos devedores singulares insolventes da possibilidade de se libertarem de algumas das suas dívidas, e assim lhes permitir a sua reabilitação económica. O princípio do fresh start para as pessoas singulares de boa-fé incorridas em situação de insolvência, tão difundido nos Estados Unidos, e recentemente incorporado na legislação alemã da insolvência, é agora também acolhido entre nós, através do regime da «exoneração do passivo restante». O princípio geral nesta matéria é o de poder ser concedida ao devedor pessoa singular a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não foram integralmente pagos no processo de insolvência ou nos cinco anos (atualmente, na sequência da revisão operada ao CIRE pela Lei n.º 9/2022, de 11/01, reduzido a três anos) posteriores ao encerramento deste. A efetiva obtenção de tal benefício supõe, portanto, que, após a sujeição a processo de insolvência, o devedor permaneça por um período de cinco anos (agora três) – designado período da cessão – ainda adstrito ao pagamento dos créditos da insolvência que não hajam sido integralmente satisfeitos. Durante esse período, ele assume, entre várias outras obrigações, a de ceder o seu rendimento disponível (tal como definido no Código) a um fiduciário (entidade designada pelo tribunal de entre as inscritas na lista oficial de administradores da insolvência), que afetará os montantes recebidos ao pagamento dos credores. No termo desse período, tendo o devedor cumprido, para com os credores, todos os deveres que sobre ele impendiam é proferido despacho de exoneração, que liberta o devedor das eventuais dívidas ainda pendentes de pagamento. A ponderação dos requisitos exigidos ao devedor e da conduta reta que ele teve necessariamente de adotar justificará, então, que lhe seja concedido o benefício da exoneração, permitindo a sua reintegração plena na vida económica”.
[6] Luís M. Martins, “Processo de Insolvência”, 2016, 4ª ed., Almedina, pág. 535; Luís Menezes Leitão, “Código da Insolvência e da Recuperação de Empresas Anotado”, 4ª ed., págs. 236 e ss.; Catarina Serra, “O Novo Regime Português da Insolvência – Uma Introdução”, 2008, 3ª ed. Almedina, págs. 102 e 103.
[7] Paulo Mota Pinto, “Exoneração do Passivo Restante: Fundamento e Constitucionalidade”, no “III Congresso de Direito da Insolvência”, Almedina, 2015, págs. 187 e 194.
[8] Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, Almedina, abril de 2018, pág. 559.
[9] Luís M. Martins, ob. cit. pág. 535; Ac. RP. de 06/04/2017, Proc. 1288/12.0TJPRT.P1.
[10] Ac. RC. de 03/06/2014, Proc. 747/11.6TBTNV-J.C1.
[11] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., pág. 855; Acs. STJ., de 19/04/2012, Proc. 434/11.5TJCBR-D.C1-S1; de 06/07/2011, Proc. 7295/08.0TBBRG.G1.S1; RG., de 16/01/2014, Proc. 1409/12.2TBVVD-B.G1; de 22/06/2023, Proc. 1824/20.8T8GMR.G1; R.P., de 27/09/2011, Proc. 3713/10.5TBVLG-E.P1; R.C., de 07/03/2017, Proc. 2891/16.4T8VIS.C1; de 17/01/2012, Proc. 165/11.6TBACN-G.C1; R.E., de 12/07/2012, Proc. 9/12.1TBENT-C.E1; de 12/07/2012, Proc. 5241/11.2TBSTB-D.E1.
[12] Catarina Serra, “Lições de Direito da Insolvência”, ob. cit., pág. 565, onde defende que para que o requisito de indeferimento da al. d) fique perfetibilizado “é preciso que se verifiquem cumulativamente três requisitos negativos: a sua não apresentação atempada à insolvência (tendo ou não o devedor a obrigação de se apresentar), o prejuízo para os credores e o conhecimento ou o desconhecimento com culpa grave, por parte do devedor, da inexistência de qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica”.
[13] Carvalho Fernandes e João Labareda, ob. cit., págs. 86 e 87.
[14] Alexandre de Soveral Martins, “Um Curso de Direito da Insolvência”, vol. I, 4ª ed., Almedina, pág. 70.
No mesmo sentido, Marco Carvalho Gonçalves, “Processos de Insolvência e Processos Pré-Insolvenciais”, Almedina, 2023, págs. 82 e 83: “(...), para que se posse concluir pela insolvência do devedor, basta que a impossibilidade de satisfação de uma ou algumas das obrigações vencidas revele, no computo geral, seja pelo montante ou natureza das dívidas, seja pelo enquadramento dessas dívidas na totalidade do passivo, a impossibilidade de o devedor cumprir as suas obrigações. Importa, igualmente, ressaltar que, para que se considere preenchido este critério, a lei não exige que o passivo do devedor seja superior ao seu ativo. Na verdade, pode bem suceder que o passivo do devedor seja superior ao seu ativo, mas o devedor, mesmo assim, tenha total capacidade para solver os seus débitos. É o que sucede, por exemplo, se o devedor goza de liquidez ou se tem facilidade de recorrer ao crédito. Paralelamente, pode ocorrer que, apesar de ter um ativo superior ao passivo, o devedor se encontre, ainda assim, impossibilitado de cumpri as suas obrigações vencidas, pelo facto de não beneficiar da liquidez necessária para o efeito. Na verdade, no caso de o devedor possuir um ativo superior ao passivo, cabe-lhe, mesmo assim, demonstrar a sua “viabilidade económica”, isto é, de que tem capacidade bastante para assegurar o cumprimento das suas obrigações aquando do vencimento das mesmas”.
Ainda, Maria do Rosário Epifânio, “Manual de Direito da Insolvência”, 7ª ed., Almedina, págs. 26 a 28, em que conclui que o conceito de insolvência relaciona-se com o “conceito de solvabilidade”, adiantando, na nota 41 de pág. 28, que “Segundo Menezes Leitão, foi adotado o critério de fluxo de caixa, de acordo com o qual “o devedor é insolvente logo que se torne incapaz, por ausência de liquidez suficiente, de pagar as suas dívidas no momento em que estas se vencem”.
Na jurisprudência: Acs. RG., de 29/06/2017, Proc. 174/16.9T8VPC.G1; R.C., de 01/06/2020, Proc. 375/19.8T8GRD-C.C1; de 29/11/2011, Proc. 1774/11.9TBACB.C1; R.L., de 18/10/2012, Proc. 361/12.9TBCLD.L1-8; RE., de 29/04/2021, Proc. 364/21.28STB.E1; de 10/05/2018, Proc. 1153/17.4T8OLH-B.E1; de 31/10/2019, Proc. 5569/18.0T8STB.E1;
 
[15] Acs. STJ., de 27/03/2011, Proc. 331/13.0T2STC.E1.S1; RG., de 12/05/2011, Proc. 1870/10.0TBBRG-D.G1; R.C., de 13/09/2011, Proc. 579/11.1TBVIS-D.C1; R.E., de 07/04/2011, Proc. 2025/09.1TBCTX-D.E1
[16] Alexandre Soveral Martins, ob. cit., págs. 617 e 618, onde perfilha o seguinte entendimento: “Também é fundamento de indeferimento liminar o incumprimento do dever de apresentação à insolvência se daí resultou prejuízo para os devedores e sabendo o devedor, ou não podendo ignorar sem culpa grave, que não existia «qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica». Se o devedor não está sujeito ao dever de apresentação à insolvência, ainda assim será indeferido liminarmente o pedido de exoneração se não se apresentou à insolvência desde que, mais uma vez, disso tenha resultado prejuízo para os credores e o devedor soubesse ou não pudesse ignorar, sem culpa grave, que não existia «qualquer perspetiva séria de melhoria da sua situação económica» (al. d)). Em qualquer das duas hipóteses deve entender-se que o prejuízo para os credores tem de ser provado, não bastando o mero decurso do tempo. A lei exige uma relação causal entre o comportamento do devedor e o prejuízo dos credores. Para que se possa concluir pela existência desse prejuízo, será necessário fazer a comparação com o que seria a sua previsível situação se o devedor tivesse cumprido o dever de apresentação ou, não existindo esse dever, se tivesse apresentado nos seis meses seguintes à verificação da situação de insolvência” (sublinhado e destacado nosso).
No mesmo sentido, aparentemente Catarina Serra, ob. cit., pág. 566: “O prejuízo para os credores passa a consubstanciar um efeito necessário da não apresentação à insolvência. É verdade que o atraso na apresentação à insolvência conduz invariavelmente a um conjunto de consequências nefastas para os credores: o ativo reduz-se por força das execuções singulares dos credores e, em princípio, desvaloriza-se com o decurso do tempo; em contrapartida, o passivo aumenta, seja em virtude da contração de novas dívidas, seja do decurso de juros, seja da constituição do devedor na obrigação de pagamento das custas judiciais que fiquem a seu cargo como parte vencida. Mas se se considerar que isso é suficiente para configurar (mediante o funcionamento da presunção ou a produção de prova) o prejuízo para os credores, não se vê para que serviria a alusão (autónoma) da norma e ele?”.
Na jurisprudência: Ac. STJ., de 24/01/2012, Proc. 152/10.1TBRG-E.G1.S1: “O facto da lei não estabelecer qualquer critério para ajuizar do acréscimo de prejuízo, não autoriza que se conclua ser indiferente a sua expressão, bastando o facto objetivo em  si mesmo, não se pode sufragar – se porque seria desconsiderar a finalidade do instituto e não fazer prevalecer um juízo de equidade e proporcionalidade que a lei justa deve contemplar. De outro modo, um prejuízo avultadíssimo teria o mesmo tratamento que um prejuízo insignificante, “sumus jus suma insuria”. O prejuízo, entendemos, tem de ser tal que constitua patente agravamento da situação dos credores que assim ficariam onerados pela atitude culposa do insolvente. (…). O prejuízo a que se refere o art. 238º, n.º 1, al. d) do CIRE deve ser um prejuízo irreversível e grave, como aquele que resulta da contração de dívidas, estando já o devedor em estado de insolvência, a ocultação do seu património ou atos de dissipação dolosa. Para que se possa considerar prejuízo para os credores pelo facto do insolvente/requerente da exoneração do passivo restante, não basta que este se apresente a pedir a sua insolvência para lá do período de seis meses sequentes à verificação da situação de insolvência, essa tardia apresentação não implica, por si só, a presunção de prejuízo, que carece de demonstração efetiva” (destacado nosso)
No mesmo sentido Ac. STJ. de 03/11/2011, Proc. 85/10.1TBVCB-F.P1.S1: “O prejuízo para os credores previsto na al. d) do n.º 1 do art. 238º do CIRE não resulta automaticamente do atraso na apresentação à insolvência, mas abrange qualquer hipótese de redução da possibilidade de pagamento dos créditos, provocada por esse atraso, desde que concretamente apurado, em cada caso” (destacado nosso).
Ainda, Ac. RC., de 11/12/2012, Proc. 1194/11.5T2AVR-E.C1: “O prejuízo que releva para efeitos de indeferimento liminar do pedido de exoneração – e que, não podendo ser presumido -, tem que decorrer dos factos demonstrados ou evidenciados nos autos – não é o prejuízo que advém para os credores da situação de incumprimento e da insolvência do devedor; mas sim o prejuízo emergente do atraso na apresentação à insolvência, ou seja, o prejuízo sofrido pelos credores que teria sido evitado caso o devedor se tivesse apresentado à insolvência em tempo oportuno. A afirmação de tal prejuízo pressupõe a verificação de factos ou circunstâncias que permitam concluir que, no caso concreto, o atraso na apresentação à insolvência determinou uma impossibilidade ou dificuldade acrescida na satisfação dos créditos que existiam à data em que se verificou a insolvência decorrente do aumento do passivo (em virtude de o devedor ter contraído novas dívidas após a verificação da insolvência e o momento em que se devia apresentar) ou a diminuição do ativo (em virtude de o devedor ter praticado atos de dissipação ou delapidação do património entre a verificação da insolvência e o momento em que, tardiamente, a ele se vem apresentar). O mero vencimento de juros moratórios é insuficiente para integrar o conceito de prejuízo a que alude a norma em questão”.
No mesmo sentido: Acs. R.G., de 22/09/2016, Proc. 137/16.4T8MDL.G1; RC., de 07/09/2021, Proc. 3/21.1T8CBR-B.C1; de 11/07/2012, Proc. 1058/11.2TBCNT-C.C1; RL., de 28/11/2013, Proc. 9507/12.6TBCSC-C.L1-8; R.E., de 16/01/2014, Proc. 1098/13.7TBSTR-C.E1. 
[17] Acs. RG., de 18/01/2018, Proc. 1518/16.9T8BGC-E.G1; R.P., de 17/06/2015, Proc. 1102/24.3T8AMT-C.P1; de 09/05/2019, Proc. 2873/15.3T8VNG.P1.