Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2003/23.8T9VRL-A.G1
Relator: ANABELA VARIZO MARTINS
Descritores: ESCUSA
INTERVENÇÃO EM PROCESSO CONEXO
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 06/25/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: INCIDENTE DE ESCUSA
Decisão: DEFERIMENTO
Indicações Eventuais: SECÇÃO PENAL
Sumário:
I- A regra da independência dos tribunais, consagrada no artigo 203.º da Constituição da República Portuguesa, bem como o princípio da imparcialidade dos juízes, constituem pilares essenciais do princípio constitucional do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 20.º, n.º 1, do mesmo diploma.
II- O artigo 43.º do Código de Processo Penal exige, como requisito substantivo para o deferimento do pedido de escusa, que a intervenção do juiz no processo corra o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar dúvidas sobre a sua imparcialidade — ou quando tenha tido intervenção anterior no processo, fora dos casos previstos no artigo 40.º (cf. n.ºs 1, 2 e 4).
III- O que se exige é que o motivo invocado seja objectivamente relevante, de tal modo que possa ser percepcionado — não apenas pelo visado pela decisão, mas também por um cidadão médio, informado, razoável e desinteressado da situação — como susceptível de afectar, ainda que apenas na aparência, a garantia da boa administração da justiça, por poder gerar desconfiança quanto à imparcialidade do julgador.
IV- Tal sucede quando o juiz requerente presidiu ao julgamento de um processo conexo com aquele em que agora requer a escusa — sendo ambos relativos a factos ocorridos no mesmo episódio espaço-temporal e com os mesmos intervenientes processuais, correspondendo ao mesmo “pedaço de vida'” — e, nessa decisão anterior, manifestou uma convicção firme quanto à credibilidade das declarações da assistente e dos arguidos (os quais, neste novo processo, ocupam posições inversas), tendo valorizado a versão apresentada pela assistente e desconsiderado as declarações dos arguidos (por as considerar ilógicas, incoerentes e desprovidas de sentido, à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida).
V- Essa mesma linha argumentativa foi, posteriormente, reproduzida no requerimento para a abertura da instrução, com o objectivo de obter a não pronúncia da aqui arguida — anteriormente assistente — constituindo, assim, fundamento sério e grave para deferir a escusa, ao abrigo do disposto no artigo 43.º, nºs 1, 2 e 4, do Código de Processo Penal.
Decisão Texto Integral:
Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães:

I – RELATÓRIO

I.1 O Exmº Sr. Dr. AA, Juiz de Direito a exercer funções no Juízo Local Criminal de Vila Real [J...], do Tribunal Judicial da Comarca de Vila Real, veio requerer, ao abrigo do disposto no artigo 43º, n.ºs 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal, que lhe seja concedida escusa de intervenção no processo nº 2003/23.8T9VRL, invocando os seguintes fundamentos:
- Os referidos autos encontram-se na fase de admissão do requerimento de abertura de instrução, aí figurando, como arguidos BB e CC e como ofendidos/demandantes DD e EE;
- Sucede que no Processo Comum Singular n.º 314/23.1GCVRL, que corre termos no mesmo Juízo Local Criminal – J... onde são arguidos DD e EE [os citados ofendidos/demandantes no processo n.º 2003/23.8T9VRL] e assistente BB [arguida nesse mesmo processo], o requerente proferiu aí sentença, em 19-12-2024, ainda não transitada em julgado;
- Os factos constantes dos dois processos ocorreram especificamente no mesmo dia, hora e local e com os mesmos intervenientes processuais, correspondendo ao mesmo “pedaço de vida”;
- Na fundamentação da matéria de facto da sentença por si proferida no Processo n.º 314/23.1GCVRL, o requerente não deu credibilidade às declarações dos aí arguidos, os citados DD e EE, declarações essas que se referem aos factos que aqui estão imputados a BB e a CC;
-No requerimento de abertura de instrução apresentado no processo n.º 2003/23.8T9VRL [cf. pontos n.ºs 12; 20; 22; 25; 27; 29; 30; 31; 32; 33; 34; 36; 37; 38; 40; 45; 54; 61; etc.] é citada, por diversas ocasiões, a sentença proferida pelo requerente no âmbito do processo n.º 314/23.1GCVRL, sendo ainda reproduzidos excertos da mesma [designadamente no âmbito da matéria de facto] e requeridas diligências probatórias atinentes ao mencionado processo – tendo sido junta, inclusivamente, a sentença do processo n.º 314/23.1GCVR, a qual consta, aliás, como meio de prova na acusação pública proferida no processo n.º 2003/23.8T9VRL;
- Assim, tendo já formado a sua convicção quanto a tal realidade factual, a sua intervenção no âmbito no processo de instrução n.º 2003/23.8T9VRL pode ser considerada suspeita, i.e. susceptível de gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade, designadamente, pelos ofendidos/demandantes DD e EE.
*
Juntou duas certidões, sendo uma referente, além do mais, ao despacho acusação proferido nos presentes autos e subsequente requerimento para abertura da instrução e, outra, da sentença proferida no âmbito do processo nº 314/23.1GCVRL.

I.2. Nesta Relação a Exmª Procuradora-Geral Adjunta teve vista nos autos e pronunciou-se no sentido de que, perante os motivos invocados e o disposto no art.º 43.º 2 do Código de Processo Penal, existe, em seu entender, fundamento para a escusa suscitada pelo Mmº Juiz, Dr. AA, devendo, nessa conformidade, deferir-se o requerido.

I.3. Não se mostra necessária, a produção de outras provas.

I.4. Colhidos os vistos legais, procedeu-se à conferência.

II. FUNDAMENTAÇÃO

Cumpre aquilatar da verificação, ou não, dos requisitos legais da concessão de escusa requerida pelo Meritíssimo Juiz para intervir nos ulteriores termos processuais dos autos n.º 2003/23.8T9VRL.
A regra da independência dos tribunais, prevista constitucionalmente no art.º 203º da Constituição da República Portuguesa, bem como o princípio da imparcialidade dos juízes, constituem pilares essenciais do princípio constitucional do acesso ao direito e da tutela jurisdicional efectiva, previsto no artigo 20.º, n.º 1, do mesmo diploma.
Nesta matéria, o legislador consagrou, como princípio fundamental, o princípio do juiz natural, que assenta no pressuposto da intervenção na causa penal do juiz que o deva ser de acordo com as regras da competência legalmente preconizadas para o efeito.
Tal princípio tem, aliás, consagração no n.º 9 do art.º 32º da Constituição da República Portuguesa, segundo o qual «nenhuma causa pode ser subtraída ao tribunal cuja competência esteja fixada em lei anterior».
Uma das dimensões fundamentais desse princípio é a exigência de que o juiz chamado a proferir decisões num caso concreto esteja prévia e inequivocamente individualizado através de lei geral, proibindo-se, assim, não só os tribunais “ad hoc” ou a atribuição de competência a um tribunal diferente do que era legalmente competente à data do crime, mas também que a fixação da competência fique dependente de uma qualquer apreciação discricionária [1].
Daí que o afastamento do juiz (natural) do processo só possa ser determinado quando outros princípios ou regras, porventura de maior ou igual dignidade, o ponham em causa, como o princípio da imparcialidade e isenção.
Tendo em vista assegurar a efectiva imparcialidade do julgador, o Código de Processo Penal regula, no seu Livro I, Título I, Capítulo VI, o regime dos impedimentos, recusas e escusas do juiz.
No que concerne ao pedido de escusa, prescreve o n.º 4 do art.º 43º do Código de Processo Penal que o juiz pode pedir ao tribunal competente que o escuse de intervir quando se verificarem as condições dos nºs. 1 e 2.
Assim, para além dos requisitos formais previstos no artigo 44º do Código de Processo Penal, a concessão da escusa depende da verificação, em concreto, dos requisitos substantivos previstos nos n.ºs 1 ou 2 do artigo 43º do mesmo diploma, que são os seguintes:
-" (…) quando correr o risco de ser considerada suspeita, por existir motivo sério e grave, adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade" (cfr. nº 1 do citado art.º 43º). (sublinhado nosso)
“Pode constituir fundamento de recusa, nos termos do n.º 1, a intervenção do juiz noutro processo ou em fases anteriores do mesmo processo fora dos casos do artigo 40.º” (cfr. nº 2 da mesma disposição legal).

Dai decorre que para que possa ser concedida escusa a um juiz é necessário que:
- A sua intervenção no processo corra risco de ser considerada suspeita;
- Por se verificar motivo sério e grave;
- Adequado a gerar desconfiança sobre a sua imparcialidade.
Quanto aos requisitos formais, estabelece o artigo 44º do Código de Processo Penal: “O requerimento de recusa e o pedido de escusa são admissíveis até ao início da audiência, até ao início da conferência nos recursos ou até ao início do debate instrutório. Só o são posteriormente, até à sentença, ou até à decisão instrutória, quando os factos invocados como fundamento tiverem tido lugar, ou tiverem sido conhecidos pelo invocante, após o início da audiência ou do debate.”
No caso vertente, como resulta da consulta dos autos principais, o pedido em apreciação, foi deduzido antes do início do debate instrutório, mais concretamente na fase de admissão do requerimento para abertura de instrução.
Por seu turno, os factos invocados pelo requerente como constitutivos dos fundamentos do seu pedido de escusa, assentam na circunstância ter proferido sentença no Processo Comum Singular n.º 314/23.1GCVRL, que corre termos no mesmo Juízo Local Criminal – J.... Nesse processo figuram como arguidos DD e EE [os ofendidos/demandantes no presente processo] e assistente BB [arguida neste processo]. Além disso, os factos em causa nos dois processos ocorreram especificamente ao mesmo dia, hora e local e com os mesmos intervenientes [embora com posições processuais distintas], correspondendo ao mesmo “pedaço de vida”.
Em causa está, pois, a noção de imparcialidade do Tribunal.
É, pois, “o dever de imparcialidade” que determina o pedido de escusa do juiz requerente, imparcialidade essa que impõe o exercício de facto das suas funções com “total transparência (…). Não basta ser é preciso parecer. Assim o exige o princípio da confiança dos cidadãos na justiça[2].
A imparcialidade do juiz constitui uma garantia essencial para quem submeta a sua causa à apreciação de um tribunal encare a decisão que venha a ser proferida como resultado de um julgamento objectivo e imparcial.
A este propósito escreveu Cavaleiro de Ferreira[3], «Importa considerar sobretudo que, em relação ao processo, o juiz possa ser reputado imparcial, em razão dos fundamentos da suspeição verificados, sendo este também o ponto de vista que o próprio juiz deve adoptar, para voluntariamente declarar a sua suspeição. Não se trata de confessar uma fraqueza; a impossibilidade de vencer ou recalcar questões pessoais, ou de fazer justiça, contra eventuais interesses próprios, mas de admitir ou de não admitir o risco de não reconhecimento público da sua imparcialidade pelos motivos que constituem fundamento da sua suspeição.»
Não obstante o nosso ordenamento jurídico não defina explicitamente o que se deve entender por tal conceito, o artigo 6º da Convenção Europeia dos Direitos do Homem [4], contém, no seu n.º 1, uma referência à imparcialidade do tribunal, dispondo que “Qualquer pessoa tem direito a que a sua causa seja examinada, equitativa e publicamente, num prazo razoável por um tribunal independente e imparcial, estabelecido pela lei, (…)”.
A imparcialidade, enquanto atributo do juiz, vem sendo concebida pelo Supremo Tribunal de Justiça[5], numa perspectiva subjectiva e numa perspectiva objectiva.
Também a jurisprudência do Tribunal Europeu dos Direitos do Homem, tem defendido que a imparcialidade deve apreciar-se segundo critérios subjectivos e objectivos[6].
Igualmente entre nós, o Tribunal Constitucional[7] tem vindo a reconhecer as duas vertentes, objectiva e subjectiva, do conceito de “imparcialidade”.
A perspectiva subjectiva respeita à posição pessoal do juiz sobre qualquer circunstância que possa favorecer ou desfavorecer qualquer interessado na decisão.
 Como afirma Paulo Pinto de Albuquerque « o teste subjetivo da imparcialidade visa apurar se o juiz deu mostras de um interesse pessoal no destino da causa ou de um preconceito sobre o mérito da causa»[8] .
Esta imparcialidade presume-se, pelo que só a existência de provas da parcialidade, podem afastar a presunção.
Na perspectiva objectiva, como se escreveu no Ac. da Relação de Coimbra de 10-01-2018 [9]« relevam as aparências – circunstâncias de carácter orgânico e funcional, ou circunstâncias externas – que, sob o ponto de vista do cidadão comum, e não tanto do destinatário directo da decisão, possam afectar a imagem do juiz e, nessa medida, suscitar dúvidas sobre a sua imparcialidade. Aqui, a dúvida sobre a imparcialidade do juiz resulta de uma especial relação sua com algum dos sujeitos processuais, ou com o processo
Revertendo ao caso concreto, o pedido de escusa do Senhor Juiz de Direito é feito com a invocação de motivos que têm a ver inteiramente com a referida dimensão objectiva, estando, pois, em causa as aparências, que podem afectar, não rigorosamente a boa justiça, mas sim a compreensão externa sobre a garantia da boa justiça.
Do que se trata é averiguar se a projecção externa da imparcialidade do juiz é susceptível de suscitar reparos no público em geral e, particularmente, nos destinatários da decisão que o mesmo venha a proferir na causa.
Para tanto é necessário, como vimos, que os motivos invocados sejam sérios, graves e adequados a gerar a desconfiança na imparcialidade do juiz.
A lei também não define os conceitos de seriedade e gravidade do motivo da escusa, pelo que terão eles que ser densificados, em cada caso, a partir de regras de razoabilidade e do senso comum.
Como se escreveu no Ac. do STJ de 06/07/2005[10], «os motivos que podem afectar a garantia da imparcialidade objectiva, que mais do que juiz e do “ser” relevam do “parecer”, têm de se apresentar, nos termos da lei, “sério” e “grave”. (…) não basta um qualquer motivo que impressione subjectivamente o destinatário da decisão relativamente ao risco de algum prejuízo ou preconceito que possa ser tomado contra si, mas, antes, que o motivo invocado tem de ser de tal modo relevante que, objectivamente, pelo lado não apenas do destinatário da decisão, mas também de um homem médio, possa ser entendido como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder ser externamente (…) como susceptível de afectar (gerar desconfiança) a imparcialidade. »
Em igual sentido também o Ac. do STJ de 13 de Fevereiro de 2013[11] «A seriedade e gravidade do motivo resultam de um estado de forte verosimilhança (desconfiança) sobre a imparcialidade do juiz (propósito de favorecimento de certo sujeito processual em detrimento de outro), formulado com base na percepção que um cidadão médio tem sobre o reflexo daquele facto concreto na imparcialidade do julgador.»
A gravidade e a seriedade dos motivos têm, pois, de resultar de uma determinada situação concreta, reveladora dos elementos processuais (intervenções anteriores) ou pessoais (relação de proximidade, amizade ou inimizade, confiança ou desconfiança com interessados na decisão) que sejam de molde a suscitar dúvidas ou apreensões a um homem médio inserido na comunidade onde o juiz exerce a sua função quanto à existência de qualquer prejuízo ou preconceito deste sobre a matéria da causa ou sobre a posição de algum destinatário da decisão.
O que se exige é que o motivo invocado seja de tal modo relevante que, objectivamente, não só pelo destinatário da decisão, mas também pelo homem médio, com conhecimento, desinteressado da situação, possa ser entendido como susceptível de afectar, na aparência, a garantia da boa justiça, por poder gerar desconfiança sobre a imparcialidade do juiz.
E analisadas as peças processuais em que o requerente sustenta o ora analisado pedido de escusa constata-se que, de facto, tal como alega: 
1 - No âmbito do Processo n.°314/23.1GCVRL, os aí arguidos EE e DD foram ambos condenados, pelo Mmº Juiz requerente, por sentença proferida em 19 de Dezembro de 2024, nos seguintes termos:
- pela prática, cada um, de um crime de ofensa à integridade física simples, previsto e punido pelo art. 143.º, n.º 1 do Código Penal, cometido no dia 19 de Setembro de 2023, cerca das 19h54m, no logradouro da residência de sita na Rua ..., ..., em ..., na pessoa da assistente BB, respectivamente, na pena de 100 (cem) dias de multa, à razão diária de €6,00 (seis euros) e 105 (cento e cinco) dias de multa, à razão diária de €6,00 (seis euros), sendo ainda a arguida DD pela prática, em autoria material e na forma consumada, de 1 (um) crime de injúria, previsto e punido pelo art. 181.º, n.º 1 do C.P., relativamente à mesma assistente, na pena de 55 (cinquenta e cinco) dias de multa, à razão diária de €6,00 (seis euros) e, em cúmulo jurídico das penas de multa, a arguida DD na pena única de 135 (cento e trinta e cinco) dias de multa, à razão diária de €6,00 (seis euros);
- solidariamente, no pagamento àquela assistente, da quantia de €800,00 (oitocentos euros), a título de danos não patrimoniais [referentes aos crimes de ofensa à integridade física simples, previstos e punidos pelo art. 143.º, n.º 1 do C.P. por eles praticados], acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal, a contar desde a data da sentença até efetivo e integral pagamento;
- a arguida/demandada DD no pagamento à mesma assistente, da quantia de €250,00 (duzentos e cinquenta euros), a título de danos não patrimoniais [referentes ao crime de injúria, previsto e punido pelo art. 181.º, n.º 1 do C.P. por si praticado], acrescida dos respetivos juros de mora, à taxa legal, a contar desde a data da sentença até efetivo e integral pagamento;
2- No Inquérito n.º 2003/23.8T9VRL, iniciado através de certidão extraída do mesmo Processo n.º 314/23.1GCVRL, o Ministério Público deduziu acusação contra BB e CC, imputando-lhes a prática de um crime de ofensa à integridade física simples, p. e p. pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal, alegadamente cometido naquele mesmo dia 19 de Setembro de 2023, cerca das 19h54m, na Rua ..., ..., em ..., na freguesia ... e ..., na pessoa de DD, e a arguida BB em concurso real com um crime de dano, p. e p. pelo artigo 212.º, n.º 1, do Código Penal, cuja ofendida é a mesma DD;
3-Na sequência de tal acusação, os arguidos BB e CC requereram a abertura de instrução, negando os factos que lhes são imputados, invocando, além do mais, que estes representam uma tentativa da assistente DD e EE se defenderem dos factos pelos quais foram acusados e condenados no âmbito do processo de inquérito n.º 314/23.1GCVRL, fundamentando em parte essa sua posição em considerações do Mmº Juiz extraídas da motivação da sentença deste processo e requerendo a não pronúncia de ambos pelos crimes que lhes são imputados;
4- Na motivação da decisão de facto da sentença proferida no citado processo nº 314/23.1GCVRL, o Mmº Juiz  considerou que a versão dos factos que merece maior credibilidade é a apresentada pela assistente BB – e que é corroborada pelo depoimento da testemunha CC – pois que as suas declarações e o depoimento da testemunha foram prestados de forma precisa, clara, pormenorizada, objectiva, real e sem incongruências, apresentado ainda respaldo na demais prova existente nos autos, designadamente no relatório da perícia de avaliação do dano corporal em direito penal de fls. 17 e 18 atinente à assistente, de onde se extraem as lesões por esta sofridas, que se mostram compatíveis com as agressões que alega ter sido alvo por parte da arguida DD[atente-se ainda às fotografias de fls. 103 e 104 e onde é passível de se ver as lesões sofridas pela assistente].
5-Por outro lado, considerou que as declarações prestadas pelos arguidos em audiência de discussão e julgamento se mostram ilógicas, incoerentes e desprovidas de sentido, à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida.
Assim, face ao circunstancialismo descrito e sem colocar em questão a concreta idoneidade do Mm.º Juiz, cremos que ao intervir nos presentes autos de instrução, a sua actuação poderia efectivamente colocar em crise o reconhecimento público da sua imparcialidade enquanto juiz do processo, na perspectiva do homem comum e do cidadão médio.
Na verdade, não podemos ignorar que no Processo n.º 314/23.1GCVRL, já julgado, o mesmo formou a convicção expressa na sentença proferida, na qual valorou a versão apresentada pela ali assistente BB e desconsiderou as declarações dos arguidos EE e DD, por as considerar ilógicas, incoerentes e desprovidas de sentido, à luz das regras da experiência comum e da normalidade da vida. Essa mesma argumentação foi, posteriormente, apresentada no requerimento para a abertura de instrução com a finalidade de obter a não pronúncia dos aqui arguidos.
Essas circunstâncias, numa compreensão razoável dos limites das aparências, poderão, aos olhos dos outros intervenientes processuais, mormente dos aqui ofendidos/demandantes, ou de terceiros, gerar apreensão, dúvidas e desconfiança sobre a imparcialidade do Exmº Srº Juiz requerente.
Figueiredo Dias[12] considera que o que interessa «não é tanto o facto de, a final, o juiz ter conseguido ou não manter a imparcialidade, mas sim, defendê-lo da suspeita de a não ter conservado, não dar azo a qualquer dúvida, por esta via reforçando a confiança da comunidade nas decisões dos seus magistrados.» Por isso, continua este autor[13], o que importa determinar no processo de escusa não é «se o juiz se encontra realmente impedido de se comportar com imparcialidade, mas se existe perigo de a sua intervenção ser encarada com desconfiança e suspeita pela comunidade.»
Pode, pois, concluir-se que a motivação aduzida é susceptível de consubstanciar motivo, sério e grave, para que, segundo as regras da experiência comum e da lógica, um homem médio possa colocar em causa a imparcialidade do Exmº Sr.º Juiz requerente.
Assim, mostram-se verificados os pressupostos previstos no artigo 43º, nºs 1, 2 e 4 do Código de Processo Penal, e, em consequência, defere-se o pedido de escusa formulado pelo Exmº Senhora Juiz de Direito, Dr. AA, que deve ser substituído por outro Juiz de harmonia com as leis da organização judiciária (artigo 46º do Código de Processo Penal).

III- DECISÃO

Pelo exposto, acordam os Juízes na Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães, em deferir o pedido de escusa formulado pelo Exmº Senhora Juiz de Direito, Dr. AA.
Sem tributação.
(Texto elaborado pela relatora e revisto pelos seus signatários - art. 94º, n.º 2, do CPP)
Guimarães, 25 de Junho de 2025

Anabela Varizo Martins (relatora)
Armando Rocha Azevedo (1º adjunto)
Paula Albuquerque (2ª adjunta)


[1] cfr. FF e GG, “Constituição da República Portuguesa Anotada”, Coimbra Editora, 2007, pág. 525
[2] HH, A ... no Processo Penal Português, Coimbra Editora, 2005, p. 87,
[3] Curso de Processo Penal, I, pág.237-239.
[4] “Convenção para a Protecção dos Direitos do Homem e das Liberdades Fundamentais”, ..., 4.11.1950, com entrada em vigor na ordem jurídica portuguesa a 09 de Novembro de 1978 - (Lei n.º 65/78, de 13 de Outubro, publicada no Diário da República, I Série, n.º 236/78).
[5] Entre outros Acórdãos de 6 de Setembro de 2013, proc. n.º ...6, de 13 de Fevereiro de 2013, proc. n.º 1475/11.... e de 13 de Abril de 2016, processo nº324/14.... .
[6] entre outros, o acórdão de 13 de Novembro de 2012 no caso II c. ..., Queixa n.º ...94/02 e o acórdão de 26/07/2007, no caso De Margus c. ..., Queixa n.º 4455/10.
[7] Nomeadamente nos acórdãos n.º 124/90, de 19-04-1990 (processo n.º ...9), n.º 935/96, de 10-07-1996 (processo n.º ...2) e n.º 186/98, de 18-02-1998 (processo n.º ...7), todos disponíveis em http://www.tribunalconstitucional.pt.
[8] Comentário do Código de Processo Penal, 2007, Universidade Católica Editora, pág. 127.
[9] Processo 66/16...., disponível em www.dgsi.pt.
[10] CJ, S, XIII, II, 236.
[11] processo nº 1475/11...., disponível em www.dgsi.pt.
[12] Direito Processual Penal – 1º Vol. – Coimbra Editora – 1974, pág.315.
[13] Obra citada, pág.319