Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
91/24.9T8VRM-A.G1
Relator: LUÍS MIGUEL MARTINS
Descritores: PROCEDIMENTO CAUTELAR COMUM
PERICULUM IN MORA
SANÇÃO PECUNIÁRIA COMPULSÓRIA
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO PROCEDENTE
Indicações Eventuais: 3.ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – O facto de o requerente ter levado dois anos a intentar o procedimento cautelar, após a violação do direito de usar e manter transitável com segurança caminho público, per si, não significa que não exista ainda periculum in mora, se essa impossibilidade se mantém.
II – É, por isso, de decretar a providência se se apura que o caminho se situa numa zona florestal, sendo uma ferramenta essencial no combate aos incêndios, porque para além de funcionar como uma barreira corta-fogo, impedindo a progressão dos incêndios, permite a circulação das equipas de combate aos fogos para uma atuação rápida e em segurança e que encontrando-se com densa vegetação e buracos não permite agora a circulação em segurança de qualquer veículo de combate a incêndios, concretamente dos veículos de socorro dos bombeiros voluntários e/ou dos veículos dos sapadores florestais.
Decisão Texto Integral:
Acordam na 3.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães:

I- Relatório (também com base na decisão recorrida)

Junta de Freguesia ... e ..., representada pelo Presidente da Junta, AA, com sede na Avenida ..., ..., ..., União de Freguesias ... e ..., concelho ..., intentou, por apenso à ação comum nº 91/24.9T8VRM a presente providência cautelar não especificada contra BB, residente na Rua ..., ..., União de Freguesias ... e ..., concelho ... pedindo que seja a Autora autorizada a proceder à realização de todos os trabalhos de limpeza e manutenção do caminho melhor identificado nos artigos 2º a 6º, inclusive com recurso a máquinas de rasto e/ou giratórias, maquinas de terraplanagem e/ou retroescavadoras, realizando- se todas as diligências necessárias ao efetivo cumprimento de tal decisão, com recurso à força policial se necessário for e seja o Réu condenado a abster-se, por si ou através de terceiras pessoas, de praticar qualquer ato que impeça a realização de tais obras ou trabalhos por parte da Autora e seja o Réu condenado em sanção pecuniária compulsória, nos termos do disposto no artigo 365º, nº 2 do Código de Processo Civil e no artigo 829º-A do Código Civil, no montante de € 2.500 (dois mil e quinhentos euros), por cada ato praticado, por si ou por interposta pessoa, de desrespeito pela decisão judicial a proferir no âmbito da presente providência cautelar.

Alegou para o efeito e, em síntese, que:
 - A 2 de abril de 2024 deu entrada de uma ação declarativa de condenação contra o aqui requerido, através da qual peticionou, a final, que se condene o réu a reconhecer que o caminho descrito nos artigos 1º a 5º da petição inicial, em toda a sua extensão e largura, é um caminho público e abster-se de todo e qualquer ato que possa limitar ou impedir a utilização por todos do referido caminho público.
- Nessa ação alegou que na freguesia ..., concelho ..., existe um caminho que liga a estrada municipal ...99 às freguesias de ..., de ... e de ... do concelho ..., caminho esse que, atendendo o sentido norte-sul, tem início na Rua ..., na freguesia ..., concelho ... e desenvolve-se por cerca de 3 km (três quilómetros) até chegar a uma bifurcação, já na freguesia ..., no concelho ....
- Nessa bifurcação, o caminho que diverge para a direita, atento o sentido norte-sul, segue em direção a poente para a freguesia ..., no concelho ..., concretamente para o parque aventura “...”, que fica a cerca de 2,4 km quilómetros.
- Por seu turno, o caminho que diverge para a esquerda segue em direção a sul para o Lugar ..., na freguesia ..., no concelho ..., que fica a cerca de 1,2 quilómetros do referido local.
- O referido caminho é em terra batida, perfeitamente visível e delimitado, com cerca de 3 metros de largura e dele derivam muitos outros caminhos que vão dar a outras estradas públicas, nomeadamente às estradas municipais números 600, 599 e 1380.
- O caminho em questão está localizado numa zona montanhosa e confronta em toda a sua extensão com terrenos agrícolas e florestais de particulares, sendo um desses terrenos confrontantes propriedade do requerido, que é proprietário do prédio rústico denominado “...”, sito na freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial desse concelho sob o n.º ...57, e inscrito na matriz da respetiva freguesia sob o artigo ...02.
- O prédio do Réu confronta a nascente e a sul com o referido caminho, confrontação essa que é perfeitamente definida e percetível em toda a extensão dessa cofinancia.
- Ora, desde data que excede a memória dos vivos, portanto há mais de 50, 70, 80, 90 e 100 anos, esse caminho, com a atual configuração, sempre foi utilizado pacificamente, sem qualquer interrupção no tempo, de forma direta, imediata e indistinta, por todas as pessoas da freguesia e por outras pessoas que no mesmo lugar circulavam.
- Seja para se deslocarem a pé, com animais, com carros de bois, com tratores agrícolas, com velocípedes ou com veículos automóveis, da freguesia ..., em ..., para as freguesias vizinhas de ..., ... e ..., na ..., e destas para aquela, totalmente convencidos de que se tratava e trata de caminho público sob a administração da freguesia e com a consciência de não estarem a lesar direito de quem quer que seja.
- Aliás, durante vários anos o caminho em questão fez parte do trajeto das competições de rali que aconteciam com bastante frequência naquela região.
- Destarte, há várias gerações que por tal caminho transitam livremente pessoas, sem a oposição de quem quer que seja, designadamente do Réu – pelo menos até ao ano de 2020 –, com a convicção de estarem a exercer direito próprio de uso de coisa pública.
- Sucede que, na sequência das chuvas fortes que se fizeram sentir no início do ano de 2023, tornou-se absolutamente necessário proceder à reparação das estradas e caminhos públicos, mormente dos caminhos em terra batida.
- A autora ordenou que se procedesse aos trabalhos de manutenção dos caminhos públicos mais afetados, nomeadamente à limpeza das valetas e à nivelação do terreno, utilizando, para o efeito, uma máquina cedida pela Câmara Municipal ....
- Nesse sentido, no dia 1 de junho de 2023, o operador da referida máquina andava a executar os trabalhos de manutenção do caminho em causa.
- Tudo decorria conforme previsto sem qualquer problema ou contratempo, quando se deparou com a carrinha do requerido atravessada no meio do caminho, impedindo que a máquina passasse e consequentemente procedesse à manutenção do caminho.
- O requerido estacionou a sua carrinha no meio do caminho, no local onde começa a confrontar com o seu prédio rústico, de forma a impedir que a requerente executasse os trabalhos de reparação do referido caminho.
- Não era a primeira vez que o requerido alegando erroneamente que o caminho é privado e de utilização exclusiva dos consortes que ali têm propriedades tentava impedir a passagem de pessoas e veículos por aquele trato de terreno.
- Isto porque, em meados do ano de 2020, o requerido colocou pedras a tapar o referido caminho, impedindo a circulação de pessoas e veículos, exatamente no mesmo local onde mais recentemente estacionou a sua carrinha impedindo que a realização dos trabalhos de manutenção e limpeza do caminho.
- Em face do sucedido, a Câmara Municipal ... fez deslocar uma equipa de pessoal que prontamente foi ao local retirar as pedras que se encontravam depositadas no meio do aludido caminho.
- No entanto e sem qualquer causa que o justificasse, o requerido voltou a colocar as pedras agora mais a norte na Rua ..., impedindo que a circulação de pessoas pelo caminho.
- Sempre foi a requerente que procedeu à manutenção e à limpeza do referido caminho, tendo inclusivamente procedido ao alargamento e melhoramento do mesmo, apenas com os acontecimentos mais recentes, isto é, a obstrução da passagem da máquina da Câmara Municipal, é que ficou impedida de fazer os competentes trabalhos de manutenção do caminho.
- A requerente encontra-se impedida de aceder ao caminho e, consequentemente, impedida de proceder à sua limpeza e principalmente à sua manutenção.
- O que levou ao crescimento descontrolado de vegetação densa ao longo do mesmo, com o perigo que daí derivará para o risco de incêndios no verão e, ainda, ao surgimento de diversos buracos ao longo do caminho, que é de terra batida, provocados pelas chuvas fortes que se fizeram sentir nos últimos meses.
- O caminho situa-se numa zona florestal, sendo uma ferramenta essencial no combate aos incêndios, isto porque, além de funcionar como uma barreira corta-fogo, impedindo a progressão dos incêndios, permite a circulação das equipas de combate aos fogos para uma atuação rápida e em segurança.
- Nas condições em que se encontra atualmente, não permite a circulação em segurança de qualquer veículo de combate a incêndios, concretamente dos veículos de socorro dos bombeiros voluntários e/ou dos veículos dos sapadores florestais do município ..., o que, atenta a aproximação da época de verão e do expectável calor que se fará sentir, muito preocupa a requerente e a população da freguesia.
- O período crítico de incêndios vigora de 1 de julho a 30 de setembro, sendo as ações de prevenção contra incêndios florestais da responsabilidade das entidades administrativas de cada localidade.
- Não estando o referido caminho limpo, numa hipotética, mas real, situação de incêndio, as chamas podem espalhar-se rapidamente, destruindo grandes áreas de floresta, matando animais, e colocando em risco a vida das pessoas que vivem nas proximidades.
-  A requerente teme que caso não se efetue uma limpeza que garanta a salubridade afaste o risco de incêndios e uma manutenção que assegure a circulação da carrinha dos bombeiros, numa situação de incêndio, o fogo se propague muito mais rapidamente.
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Foi proferido despacho a indeferir a dispensa de citação prévia e a ordenar a citação do requerido.
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Citado, o requerido deduziu oposição alegando para o efeito e, em síntese, que:
- O caminho em causa não é um caminho público e existem outros caminhos a circundar a propriedade do requerido que são públicos.
- O caminho que liga a estrada municipal ...99 às freguesias de ... e ... na ... não é o alegado pelos autores.
- Na realidade, existem diversos caminhos de serventia, de consortes, caminho públicos, camarários na localidade em questão, e a circundar os terrenos do Réu, bem como de outros proprietários.
- Não corresponde à verdade o alegado na petição inicial na localização do referido caminho, no seu percurso bem como nas suas serventias, na forma como se descreve.
- O requerido é dono e legitimo proprietário do prédio inscrito na matriz sob o artigo ...89 da União de Freguesias ... e ....
- Existe um caminho público que liga ao concelho ..., isto é, vem da Rua ..., chega a uma bifurcação, vira para o lado direito junto à linha de água, e segue pela parte inferior da propriedade do réu, isto é, junto à extrema do lado norte/poente até ao sul da propriedade do réu, caminho esse que se estende do ... até ao concelho ..., isto é entre as matas, até ao concelho ....
- Esse caminho sempre existiu de tempos imemoriais para serventia de carro e a pé, e sempre se manteve livre e desimpedido.
- Além desse caminho, existe um outro que vem sair na estrada camarária que liga ... a ..., que se inicia também na Rua ..., segue o mesmo trajeto do anterior referido e junto à linha de água deriva à esquerda e sobe pelo monte fora até chegar á estrada que liga ... a ..., que vai da ... à estradinha da ....
- Há cerca de dezoito anos, aproximadamente, quando pela única vez passou no local um rally, o então vereador, atual presidente Engenheiro CC, solicitou ao Réu autorização para passar o rally no local.
- Com vista à realização dessa prova alargou um caminho de servidão do Réu e fez uma ligação ao caminho de consortes existente na propriedade. Tal ato e passagem apenas ocorreu uma vez e visava única e exclusivamente a passagem do rally no local
- Tendo verificado que se queriam apoderar da passagem existente o requerido tentou por diversas vezes vedar a sua propriedade, tendo sido abusivamente retirada, da sua propriedade, diversas pedras.
- Aliás, o requerido, proprietário de uma propriedade de grandes dimensões no local, com bastante madeira tem todo o interesse em proteger dos incêndios.
- O requerido limpa sempre que pode o referido caminho e procede à sua manutenção pois também ele tem interesse na sua preservação.
- A falta de necessidade de limpeza é por demais evidente, quando como se constata da petição desde 2020 até agora apenas em 2023 tentaram limpar o caminho.
- Durante estes anos a requerente não realizou qualquer intervenção no local, houve épocas de incêndios graves e nunca houve a necessidade e urgência que se arroga da petição inicial, aliás durante mais de quinze anos nenhuma intervenção foi realizada.
Conclui, pela improcedência da presente providência cautelar, por falta de verificação dos respetivos pressupostos.
Foi realizada a audiência final, após o que foi proferida decisão a julgar improcedente o procedimento cautelar.

Inconformada com esta decisão, dela veio recorrer a requerente formulando as seguintes conclusões:
“[…]
12ª-) Porém, com o devido respeito, a aqui Recorrente entende que in casu se encontram preenchidos os dois pressupostos atinentes à providência cautelar não especificada requerida, motivo pelo qual a decisão teria de ser obrigatoriamente outra.
13ª-) Desde logo, quanto ao fumus boni iuris, está suficientemente indiciado nos autos que o caminho em causa tem natureza pública, sendo utilizado desde tempos imemoriais pelas populações das freguesias de ... e ... (cfr. pontos 12), 13) e 14) dos factos indiciariamente provados).
14ª-) Por outro lado, quanto ao periculum in mora, o agravamento das condições do caminho desde junho de 2023, aliado à aproximação do verão e ao risco de incêndios, justifica uma medida urgente para prevenir prejuízos graves.
15ª-) O argumento utilizado pelo Tribunal a quo de que não houve incêndios nos últimos anos não afasta o risco iminente da sua eclosão, antes o torna mais urgente, na medida em que a inação poderá traduzir-se numa catástrofe evitável!
16ª-) Aliás, o facto de não ter havido fogos recentemente pode significar uma maior acumulação de vegetação seca e outro material combustível nas matas e florestas, tornando o território ainda mais vulnerável.
17ª-) A natureza não queimada não desaparece, acumula-se, pelo que confiar na ausência de incêndios passados como sinal de segurança futura é ignorar a verdadeira natureza do risco!
18ª-) O principal mecanismo de prevenção e combate a incêndios é precisamente a limpeza e manutenção dos caminhos públicos em zonas florestais, que funciona como uma medida estratégica de gestão do território.
19ª-) Isto porque, quando devidamente limpos, atuam como verdadeiras barreiras ao avanço das chamas, desempenhando a função de corta-fogos naturais.
20ª-) Além disso, os caminhos limpos e desobstruídos são essenciais para facilitar o acesso dos meios de combate e emergência aos fogos, cujo tempo de chegada aos focos de incêndio é absolutamente decisivo nos primeiros momentos, quando o fogo ainda é mais facilmente controlável.
21ª-) Por fim, a manutenção dos caminhos florestais limpos é também uma questão de segurança para as populações, na medida em que permitem uma monitorização mais eficaz por parte das autoridades e, em situações de emergência, garantem rotas de evacuação seguras.
22ª-) Quanto ao facto de a providência cautelar apenas ter sido intentada após a audiência prévia da ação principal, note-se que tal não descaracteriza a sua necessidade: ela surge como resposta à progressiva degradação da situação no terreno e à urgência ditada pela aproximação do período crítico!
23ª-) O andamento natural dos autos principais, na qual está ordenada a realização de uma peritagem e ainda não se encontra designada data para a realização da audiência de discussão e julgamento, fará com a presente situação se agrave nos anos seguintes até que se verifique o trânsito em julgado da decisão que vier a ser proferida
24ª-) Nesta senda, entende a Recorrente que os factos indiciariamente provados permitem afirmar com objetividade e distanciamento a seriedade e atualidade do risco de incêndio e, bem assim, a necessidade de serem adotadas medidas urgentes pela Recorrente tendentes a evitar o prejuízo.
25ª-) Prejuízo esse que, a verificar-se, é grave e de difícil reparação, na medida em que estamos a falar da segurança de pessoas e bens.
26ª-) Face ao vindo de expender, encontram-se preenchidos todos os pressupostos legais da providência cautelar não especificada, motivo pelo qual deve a douta decisão ser substituída por acórdão que decrete a providência cautelar requerida pela aqui Recorrente.
27ª-) O douto acórdão, ao decidir como decidiu, violou os artigos 362º, 368º e 607º do Código de Processo Civil.

TERMOS EM QUE, reapreciando-se a matéria de facto nos termos expostos deve ser dado total provimento ao presente recurso e, em consequência, ser a decisão recorrida substituída por acórdão que julgue o procedimento cautelar comum não especificado procedente, por provado e, em consequência, decrete a providência cautelar não especificada.
Assim se fazendo a habitual JUSTIÇA! .”.
*
Não foi apresentada resposta às alegações por parte do requerido.
*
Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.
*
II – Objeto do recurso

A – Sendo o objeto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente, bem como das que forem do conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras, sendo de salientar que, de todo o modo, o tribunal não está vinculado a apreciar todos os argumentos apresentados pelas partes para sustentar a sua posição, atenta a liberdade do julgador na interpretação e aplicação do direito.

B – Deste modo, considerando a delimitação que decorre das conclusões formuladas pelos recorrentes, cumpre apreciar, por ordem lógica de conhecimento:
- Da pretendida alteração da matéria de facto;
- Se, em consequência do decidido quanto à alteração da matéria de facto, deve ser revogada a decisão, nos termos alegados no recurso, por se verificarem os pressupostos para que fosse decretada a providência cautelar não especificada requerida.

III – Fundamentação de facto

A - Matéria de facto julgada indiciariamente provada:
“1) Em 02.04.2024 a requerente intentou acção declarativa de condenação contra o aqui requerido, a qual corre termos neste Tribunal sob o número 91/24.9T8VRM, da qual a presente providência constitui apenso.
2) No processo referido em 1) a aqui requerente peticiona que seja a acção julgada procedente por provada e, em consequência: a) Declarar-se e ser o Réu condenado a reconhecer que o caminho descrito nos artigos 1º a 5º da presente petição, em toda a sua extensão e largura, é um caminho público; e; b) Ser o Réu condenado a abster-se de todo e qualquer ato que possa limitar ou impedir a utilização por todos do referido caminho.
3) Na freguesia ..., concelho ..., existe um caminho que liga a estrada municipal ...99 às freguesias de ..., de ... e de ... do concelho ....
4) Caminho esse que, atendendo o sentido norte-sul, tem início na Rua ..., na freguesia ..., concelho ... e desenvolve-se por cerca de 3 km (três quilómetros) até chegar a uma bifurcação, já na freguesia ..., no concelho ...;
5) Nessa bifurcação, o caminho que diverge para a direita, atendo o sentido norte-sul, segue em direção a poente para a freguesia ..., no concelho ..., concretamente para o parque aventura “...”, que fica a cerca de 2,4 km;
6) Por seu turno, o caminho que diverge para a esquerda segue em direção a sul para o Lugar ..., na freguesia ..., no concelho ..., que fica a cerca de 1,2 km (um quilómetro e duzentos metros) do referido local;
7) O referido caminho é em terra batida, perfeitamente visível e delimitado, com cerca de 3 metros de largura e dele derivam muitos outros caminhos que vão dar a outras estradas públicas, nomeadamente às estradas municipais números 600, 599 e 1380;
8) O caminho em questão está localizado numa zona montanhosa e confronta em toda a sua extensão com terrenos agrícolas e florestais de particulares;
9) Sendo um desses terrenos confrontantes propriedade do requerido;
10) O requerido é proprietário do prédio rústico denominado “...”, sito na freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial desse concelho sob o n.º ...57, e inscrito na matriz da respetiva freguesia sob o artigo ...02;
11) O prédio do requerido confronta a nascente e a sul com o referido caminho, confrontação essa que é perfeitamente definida e percetível em toda a extensão dessa confinância;
12) Desde data que excede a memória dos vivos, portanto há mais de 50, 70, 80, 90 e 100 anos, esse caminho, com a atual configuração, sempre foi utilizado pacificamente, sem qualquer interrupção no tempo, de forma direta, imediata e indistinta, por todas as pessoas da freguesia e por outras pessoas que no mesmo lugar circulavam;
13) Seja para se deslocarem a pé, com animais, com carros de bois, com tratores agrícolas, com velocípedes ou com veículos automóveis, da freguesia ..., em ..., para as freguesias vizinhas de ..., ... e ..., na ..., e destas para aquela;
14) Totalmente convencidos de que se tratava e trata de caminho público sob a administração da freguesia e com a consciência de não estarem a lesar direito de quem quer que seja;
15) Na sequência das chuvas fortes que se fizeram sentir no início do ano de 2023, tornou-se absolutamente necessário proceder à reparação das estradas e caminhos públicos, mormente dos caminhos em terra batida;
16) A Junta de Freguesia, aqui Autora, ordenou que se procedesse aos trabalhos de manutenção dos caminhos públicos mais afetados, nomeadamente à limpeza das valetas e à nivelação do terreno, utilizando, para o efeito, uma máquina cedida pela Câmara Municipal ...;
17) No dia 1 de junho de 2023, o operador da referida máquina andava a executar os trabalhos de manutenção do caminho;
18) Tudo decorria conforme previsto sem qualquer problema ou contratempo, quando, para sua surpresa, se deparou com a carrinha do Réu atravessada no meio do caminho, impedindo que a máquina passasse e consequentemente procedesse à manutenção do caminho.
19) O Réu estacionou a sua carrinha no meio do caminho, no local onde começa a confrontar com o seu prédio rústico descrito em 10) de forma a impedir que a Autora executasse os trabalhos de reparação do referido caminho;
20) O maquinista da Câmara Municipal contactou imediatamente para o Presidente da Junta de ... dando-lhe conta do ocorrido.
21) Na verdade, não era a primeira vez que o Réu, alegando erroneamente que o caminho é privado e de utilização exclusiva dos consortes que ali têm propriedades, tenta impedir a passagem de pessoas e veículos por aquele trato de terreno.
22) Em meados do ano de 2020, o Réu colocou pedras a tapar o referido caminho, impedindo a circulação de pessoas e veículos;
23) Exatamente no mesmo local onde estacionou a sua carrinha impedindo que a realização dos trabalhos de manutenção e limpeza do caminho;
24) Em face do sucedido, a Câmara Municipal ... fez deslocar uma equipa de pessoal que prontamente foi ao local retirar as pedras que se encontravam depositadas no meio do aludido caminho;
25) No entanto e sem qualquer causa que o justificasse, o Réu voltou a colocar as pedras agora mais a norte na Rua ..., impedindo que a circulação de pessoas pelo caminho descrito;
26) As pedras foram novamente retiradas;
27) Em face destes acontecimentos, as ocorrências foram abordadas na Reuniões da Assembleia de Freguesia com vista a discutir-se qual seria a melhor forma de lidar com a situação;
28) Tendo inclusivamente sido colocada a votação, na reunião do dia 2 de julho de 2023, a proposta de dar entrada com uma ação judicial para reconhecer aquele caminho como público, a qual foi aprovada pela maioria dos membros da Assembleia;
29) Sempre foi a Autora que procedeu à manutenção e à limpeza do referido caminho, tendo inclusivamente procedido ao alargamento e melhoramento do mesmo.
30) Com a obstrução da passagem da máquina da Câmara Municipal, em 01.06.2023 é que a Autora ficou impedida de fazer os competentes trabalhos de manutenção do caminho.
31) O que levou ao crescimento descontrolado de vegetação densa ao longo do mesmo;
32) E, ainda, ao surgimento de diversos buracos ao longo do caminho, que é de terra batida, provocados pelas chuvas fortes que se fizeram sentir nos últimos meses;
33) O caminho em discussão nos autos principais situa-se numa zona florestal, sendo uma ferramenta essencial no combate aos incêndios, porque para além de funcionar como uma barreira corta-fogo, impedindo a progressão dos incêndios, o referido caminho permite a circulação das equipas de combate aos fogos para uma atuação rápida e em segurança.
34) Em data não concretamente apurada, quando pela única vez passou no local um rally, o então vereador, atual presidente da Câmara Municipal ... solicitou ao Réu autorização para passar o rally no local.
35) Com vista à realização dessa prova alargou um caminho de servidão do Réu e fez uma ligação ao Caminho de consortes existente na propriedade.
36) Tal ato e passagem apenas ocorreu uma vez e visava única e exclusivamente a passagem do rally no local.
Resultou ainda indiciariamente demonstrado que:
37) Em 20.03.2025 nos autos principais foi realizada audiência prévia tendo sido proferido despacho saneador, enunciado o objecto do litígio e os temas da prova, tendo sido determinada a realização de perícia que inclua a realização de levantamento topográfico aos caminhos existentes no local e prédio do Réu (verificando assim a localização do caminho objeto dos autos em confronto com tal prédio), bem como prédios vizinhos, tendo por objeto as características dos caminhos existentes: início e fim (nomeadamente esclarecendo se terminam em prédios particulares ou entroncam/cruzam com outros caminhos/ruas/estradas), confrontações, dimensões (largura e distância) e demais características, nomeadamente do solo, bem como sinais de utilização dos mesmos, e ainda se se encontram registados no cadastro de caminhos municipais.
38) As partes apresentaram os respectivos quesitos na sequência de convite para o efeito, tendo sido fixado o objecto da perícia.”.
B - Matéria de facto julgada indiciariamente não provada:
“a) Durante vários anos o caminho em questão fez parte do trajeto das competições de rali que aconteciam com bastante frequência naquela região;
b) O caminho em questão não permite a circulação em segurança de qualquer veículo de combate a incêndios, concretamente dos veículos de socorro dos bombeiros voluntários e/ou dos veículos dos sapadores florestais do município ....”.
*
IV -  Da impugnação da matéria de facto

Cabe aqui apreciar desde logo se o tribunal cometeu algum erro da apreciação da prova na decisão sobre a matéria de facto, conforme lhe é imputado pela recorrente, ou seja, e na expressão legal, indagar sobre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados (art. 640.º, n.º 1, al. a) do Código de Processo Civil).
Note-se que a reapreciação da matéria de facto, em sede de recurso, tendo por base a gravação dos depoimentos prestados em sede de audiência, não pode  por em crise o princípio da livre apreciação da prova com assento no art. 607.º, n.º5 do Código de Processo Civil, sendo que na formação da convicção do julgador não intervêm apenas elementos racionalmente demonstráveis, já que podem entrar também elementos que em caso algum podem ser importados para a gravação vídeo ou áudio, pois que a valoração de um depoimento é algo absolutamente impercetível na gravação/transcrição (cfr. neste sentido, Abrantes Geraldes in Temas de Processo Civil, II Vol., pág. 201).
O art. 607.º, n.º4, do Código de Processo Civil prevê expressamente a exigência de objetivação, através da imposição da fundamentação da matéria de facto, devendo o tribunal analisar criticamente as provas e especificar os fundamentos que foram decisivos para a convicção do julgador.
*
A motivação da decisão recorrida, no que se reporta à matéria de facto recursivamente impugnada, foi a seguinte:

“O Tribunal fundou a sua convicção, para toda a matéria ponderada, indiciariamente provada e não provada, no teor dos documentos juntos ao presente procedimento cautelar e à acção principal da qual estes constituem apenso, e os depoimentos das testemunhas inquiridas, tudo analisado, conjugado e valorado de acordo com as regras da experiência comum.
 (…)
As declarações de parte do Presidente da Junta de Freguesia ... e ..., confirmaram no essencial o alegado no requerimento inicial, acrescentando que é Presidente da Junta de Freguesia desde 2017, e anteriormente foi Tesoureiro da Junta de Freguesia ... durante 12 anos, residindo há 30 na freguesia. Confirmou ser da sua autoria os registos fotográficos juntos aos autos, mais referindo que ao nível do leito do caminho, está pior, referindo que não passam os veículos de socorro, nomeadamente os carros de bombeiros.
 (…)
A testemunha DD referiu que foi Presidente da Junta de Freguesia ..., durante três mandatos e um mandato após a união das freguesias. Descreveu o caminho em causa, referindo que o mesmo é público, sempre a foi a Junta de Freguesia que fez as intervenções no caminho, limpeza das bermas e manutenção do leito. Mais referiu que passou lá a última vez em Dezembro de 2024, na altura da caça e o piso não estava muito bom, mas asseverou que os carros de bombeiros, com tracção às quatro rodas conseguem transitar. Disse também que existem mais dois caminhos que circundam o prédio do requerido, mas os mesmos não são limpos.
 (…)
Quanto ao vertido em b) refira-se que, não obstante a bondade das declarações do Presidente da Junta, AA e dos registos fotográficos juntos, o certo é que não ficou indiciariamente demonstrado que os veículos de socorro, nomeadamente carros de bombeiros, estão impedidos de nele circular. Diga-se que as fotografias não se mostram datadas, nem o declarante referiu quando as captou. Se foram imediatamente antes da instauração da presente providência cautelar, não cremos que volvidos quase dois meses, a situação piorasse de forma "descontrolada". Por outro lado, a testemunha DD, passou no local em Dezembro e afirmou que os carros de combate a incêndios, mercê da circunstância de possuírem tracção às quatro rodas, passam por ali.
Por sua vez, resultou demonstrado que o caminho é importante no combate a incêndios, quer a nível de acesso, quer a nível de contenção da propagação. Porém, não resultou demonstrado que os veículos estão impedidos de aceder ao caminho.
É esta, pois, a convicção, meramente indiciária do Tribunal.”.
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É a seguinte a redação da matéria de facto indiciariamente não provada aqui em questão:

“b) O caminho em questão não permite a circulação em segurança de qualquer veículo de combate a incêndios, concretamente dos veículos de socorro dos bombeiros voluntários e/ou dos veículos dos sapadores florestais do município ....”.
Ouvidas na íntegra as declarações de parte, bem como todos os depoimentos das testemunhas inquiridas nos autos, conjugando os mesmos com os documentos constantes dos autos, julga-se ser de alterar a matéria de não provada, inserida na alínea b) dos factos indiciariamente dados como não provados, fazendo transitar tal matéria para os factos indiciariamente provados.
Chegamos, assim, a conclusão divergente do tribunal a quo, no que a esta matéria diz respeito.
De facto, as declarações do Presidente da Junta de Freguesia são absolutamente elucidativas do estado em que se encontra o caminho em questão, de que tem conhecimento recente, inclusivamente bastante mais recente do que as fotografias juntas aos autos, que disse serem deste ano, sem, contudo, precisar a data. Disse que o caminho tem buracos profundos, tem mato que quase passa de um lado para o outro, que não passam sequer carros de socorro, sendo que “horrível” e “caos” foram expressões por si utilizadas para descrever a situação. Asseverou ainda que um carro pesado de combate a incêndios e os carros dos sapadores florestais não passa pelo caminho. Exibidas que foram as fotografias, constatando a existência de sulcos no caminho, deu nota que neste momento o estado do caminho é ainda pior.
Para infirmar estas declarações, considerou a decisão recorrida o depoimento de DD, antigo Presidente da Junta, que disse ter estado no caminho por volta de dezembro de 2024, isto é sensivelmente meio ano antes da prestação do seu depoimento.  Disse tal testemunha que o piso não estava muito bom, mais disse que carros não transitavam, mas referiu que os carros de bombeiros passam e que um trator também, mas isto reportado a dezembro de 2024. Confrontado que foi com as fotografias que estão nos autos, que são posteriores a dezembro de 2024, infere-se que mesmo ficou impressionado com o estado do caminho…nessa altura e que as fotografias documentam algo de distinto da sua perceção.
Ora, assim sendo, tal depoimento acaba coonestar, pelo menos parcialmente as declarações do legal representante da requerente, sendo certo que, de todo o modo, as não contrariam.
De todo o modo, a matéria que foi dada como não provada indiciariamente, decalcada do art. 45.º do requerimento inicial não se reporta absoluta impossibilidade de circulação dos veículos dos bombeiros e dos sapadores, mas antes à circulação em segurança desses veículos.
Ora, de tudo o que se vem de expor, podemos concluir que o estado de deterioração do caminho em causa não permite evidentemente a circulação em segurança como se o caminho estivesse tratado.

Tal decorre também dos itens 31, 32 e 33 dos factos indiciariamente dados por provados:
“31) O que levou ao crescimento descontrolado de vegetação densa ao longo do mesmo;
32) E, ainda, ao surgimento de diversos buracos ao longo do caminho, que é de terra batida, provocados pelas chuvas fortes que se fizeram sentir nos últimos meses;
33) O caminho em discussão nos autos principais situa-se numa zona florestal, sendo uma ferramenta essencial no combate aos incêndios, porque para além de funcionar como uma barreira corta-fogo, impedindo a progressão dos incêndios, o referido caminho permite a circulação das equipas de combate aos fogos para uma atuação rápida e em segurança.”.
Ou seja, ainda que seja possível a circulação de carros dos bombeiros e sapadores, tal será sempre feito em condições precárias que põe em causa a segurança, quer pelas condições da vegetação (com o risco de incêndio que agrava essas condições de segurança), quer do piso deteriorado, sendo ainda que de todo o modo, como se extrai também dessa factualidade, ainda que pudessem circular os veículos em causa, jamais o poderiam fazer com a mesma eficiência.
Assim sendo, deve eliminar-se dos factos indiciariamente não provados e passar a constar dos factos indiciariamente provados que:
“O caminho em questão não permite a circulação em segurança de qualquer veículo de combate a incêndios, concretamente dos veículos de socorro dos bombeiros voluntários e/ou dos veículos dos sapadores florestais do município ....”.
Assim sendo, procede na íntegra a impugnação da matéria de facto.
*
Passa a ser, assim, a factualidade indiciária a considerar:

1) Em 02.04.2024 a requerente intentou acção declarativa de condenação contra o aqui requerido, a qual corre termos neste Tribunal sob o número 91/24.9T8VRM, da qual a presente providência constitui apenso.
2) No processo referido em 1) a aqui requerente peticiona que seja a acção julgada procedente por provada e, em consequência: a) Declarar-se e ser o Réu condenado a reconhecer que o caminho descrito nos artigos 1º a 5º da presente petição, em toda a sua extensão e largura, é um caminho público; e; b) Ser o Réu condenado a abster-se de todo e qualquer ato que possa limitar ou impedir a utilização por todos do referido caminho.
3) Na freguesia ..., concelho ..., existe um caminho que liga a estrada municipal ...99 às freguesias de ..., de ... e de ... do concelho ....
4) Caminho esse que, atendendo o sentido norte-sul, tem início na Rua ..., na freguesia ..., concelho ... e desenvolve-se por cerca de 3 km (três quilómetros) até chegar a uma bifurcação, já na freguesia ..., no concelho ...;
5) Nessa bifurcação, o caminho que diverge para a direita, atendo o sentido norte-sul, segue em direção a poente para a freguesia ..., no concelho ..., concretamente para o parque aventura “...”, que fica a cerca de 2,4 km;
6) Por seu turno, o caminho que diverge para a esquerda segue em direção a sul para o Lugar ..., na freguesia ..., no concelho ..., que fica a cerca de 1,2 km (um quilómetro e duzentos metros) do referido local;
7) O referido caminho é em terra batida, perfeitamente visível e delimitado, com cerca de 3 metros de largura e dele derivam muitos outros caminhos que vão dar a outras estradas públicas, nomeadamente às estradas municipais números 600, 599 e 1380;
8) O caminho em questão está localizado numa zona montanhosa e confronta em toda a sua extensão com terrenos agrícolas e florestais de particulares;
9) Sendo um desses terrenos confrontantes propriedade do requerido;
10) O requerido é proprietário do prédio rústico denominado “...”, sito na freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial desse concelho sob o n.º ...57, e inscrito na matriz da respetiva freguesia sob o artigo ...02;
11) O prédio do requerido confronta a nascente e a sul com o referido caminho, confrontação essa que é perfeitamente definida e percetível em toda a extensão dessa confinância;
12) Desde data que excede a memória dos vivos, portanto há mais de 50, 70, 80, 90 e 100 anos, esse caminho, com a atual configuração, sempre foi utilizado pacificamente, sem qualquer interrupção no tempo, de forma direta, imediata e indistinta, por todas as pessoas da freguesia e por outras pessoas que no mesmo lugar circulavam;
13) Seja para se deslocarem a pé, com animais, com carros de bois, com tratores agrícolas, com velocípedes ou com veículos automóveis, da freguesia ..., em ..., para as freguesias vizinhas de ..., ... e ..., na ..., e destas para aquela;
14) Totalmente convencidos de que se tratava e trata de caminho público sob a administração da freguesia e com a consciência de não estarem a lesar direito de quem quer que seja;
15) Na sequência das chuvas fortes que se fizeram sentir no início do ano de 2023, tornou-se absolutamente necessário proceder à reparação das estradas e caminhos públicos, mormente dos caminhos em terra batida;
16) A Junta de Freguesia, aqui Autora, ordenou que se procedesse aos trabalhos de manutenção dos caminhos públicos mais afetados, nomeadamente à limpeza das valetas e à nivelação do terreno, utilizando, para o efeito, uma máquina cedida pela Câmara Municipal ...;
17) No dia 1 de junho de 2023, o operador da referida máquina andava a executar os trabalhos de manutenção do caminho;
18) Tudo decorria conforme previsto sem qualquer problema ou contratempo, quando, para sua surpresa, se deparou com a carrinha do Réu atravessada no meio do caminho, impedindo que a máquina passasse e consequentemente procedesse à manutenção do caminho.
19) O Réu estacionou a sua carrinha no meio do caminho, no local onde começa a confrontar com o seu prédio rústico descrito em 10) de forma a impedir que a Autora executasse os trabalhos de reparação do referido caminho;
20) O maquinista da Câmara Municipal contactou imediatamente para o Presidente da Junta de ... dando-lhe conta do ocorrido.
21) Na verdade, não era a primeira vez que o Réu, alegando erroneamente que o caminho é privado e de utilização exclusiva dos consortes que ali têm propriedades, tenta impedir a passagem de pessoas e veículos por aquele trato de terreno.
22) Em meados do ano de 2020, o Réu colocou pedras a tapar o referido caminho, impedindo a circulação de pessoas e veículos;
23) Exatamente no mesmo local onde estacionou a sua carrinha impedindo que a realização dos trabalhos de manutenção e limpeza do caminho;
24) Em face do sucedido, a Câmara Municipal ... fez deslocar uma equipa de pessoal que prontamente foi ao local retirar as pedras que se encontravam depositadas no meio do aludido caminho;
25) No entanto e sem qualquer causa que o justificasse, o Réu voltou a colocar as pedras agora mais a norte na Rua ..., impedindo que a circulação de pessoas pelo caminho descrito;
26) As pedras foram novamente retiradas;
27) Em face destes acontecimentos, as ocorrências foram abordadas na Reuniões da Assembleia de Freguesia com vista a discutir-se qual seria a melhor forma de lidar com a situação;
28) Tendo inclusivamente sido colocada a votação, na reunião do dia 2 de julho de 2023, a proposta de dar entrada com uma ação judicial para reconhecer aquele caminho como público, a qual foi aprovada pela maioria dos membros da Assembleia;
29) Sempre foi a Autora que procedeu à manutenção e à limpeza do referido caminho, tendo inclusivamente procedido ao alargamento e melhoramento do mesmo.
30) Com a obstrução da passagem da máquina da Câmara Municipal, em 01.06.2023 é que a Autora ficou impedida de fazer os competentes trabalhos de manutenção do caminho.
31) O que levou ao crescimento descontrolado de vegetação densa ao longo do mesmo;
32) E, ainda, ao surgimento de diversos buracos ao longo do caminho, que é de terra batida, provocados pelas chuvas fortes que se fizeram sentir nos últimos meses;
33) O caminho em discussão nos autos principais situa-se numa zona florestal, sendo uma ferramenta essencial no combate aos incêndios, porque para além de funcionar como uma barreira corta-fogo, impedindo a progressão dos incêndios, o referido caminho permite a circulação das equipas de combate aos fogos para uma atuação rápida e em segurança.
34) Em data não concretamente apurada, quando pela única vez passou no local um rally, o então vereador, atual presidente da Câmara Municipal ... solicitou ao Réu autorização para passar o rally no local.
35) Com vista à realização dessa prova alargou um caminho de servidão do Réu e fez uma ligação ao Caminho de consortes existente na propriedade.
36) Tal ato e passagem apenas ocorreu uma vez e visava única e exclusivamente a passagem do rally no local.
Resultou ainda indiciariamente demonstrado que:
37) Em 20.03.2025 nos autos principais foi realizada audiência prévia tendo sido proferido despacho saneador, enunciado o objecto do litígio e os temas da prova, tendo sido determinada a realização de perícia que inclua a realização de levantamento topográfico aos caminhos existentes no local e prédio do Réu (verificando assim a localização do caminho objeto dos autos em confronto com tal prédio), bem como prédios vizinhos, tendo por objeto as características dos caminhos existentes: início e fim (nomeadamente esclarecendo se terminam em prédios particulares ou entroncam/cruzam com outros caminhos/ruas/estradas), confrontações, dimensões (largura e distância) e demais características, nomeadamente do solo, bem como sinais de utilização dos mesmos, e ainda se se encontram registados no cadastro de caminhos municipais.
38) As partes apresentaram os respectivos quesitos na sequência de convite para o efeito, tendo sido fixado o objecto da perícia.
39) O caminho em questão não permite a circulação em segurança de qualquer veículo de combate a incêndios, concretamente dos veículos de socorro dos bombeiros voluntários e/ou dos veículos dos sapadores florestais do município ....

B - Matéria de facto julgada indiciariamente não provada:

a) Durante vários anos o caminho em questão fez parte do trajeto das competições de rali que aconteciam com bastante frequência naquela região.
*
V – Fundamentação de direito

Mostrando-se procedente a impugnação da matéria de facto, incumbe verificar se a solução alcançada na decisão recorrida é de manter.

Dispõe o art. 362.º do Código de Processo Civil que:

“1 - Sempre que alguém mostre fundado receio de que outrem cause lesão grave e dificilmente reparável ao seu direito, pode requerer a providência conservatória ou antecipatória concretamente adequada a assegurar a efetividade do direito ameaçado.
 2 - O interesse do requerente pode fundar-se num direito já existente ou em direito emergente de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor.
 3 - Não são aplicáveis as providências referidas no n.º 1 quando se pretenda acautelar o risco de lesão especialmente prevenido por alguma das providências tipificadas no capítulo seguinte. “

Por seu turno, estabelece o art. 365.º, n.º 1 do mesmo diploma legal que:
“Com a petição, o requerente oferece prova sumária do direito ameaçado e justifica o receio da lesão.”.
Por fim o art. 368.º, ainda do mesmo diploma legal, rege, na parte que ora importa convocar, que:
“1 - A providência é decretada desde que haja probabilidade séria da existência do direito e se mostre suficientemente fundado o receio da sua lesão.
2 - A providência pode, não obstante, ser recusada pelo tribunal quando o prejuízo dela resultante para o requerido exceda consideravelmente o dano que com ela o requerente pretende evitar.”.

Tendo por base os referidos normativos, vem-se generalizadamente entendendo que o decretamento de uma providência cautelar não especificada (ou comum) depende da concorrência dos seguintes requisitos:
- que muito provavelmente exista o direito tido por ameaçado, ou que venha a emergir de decisão a proferir em ação constitutiva, já proposta ou a propor;
- que haja fundado receio de que outrem antes de proferida decisão de mérito, ou porque a ação não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito;
- que ao caso não convenha nenhuma das providências tipificadas;
- que a providência requerida seja adequada a remover o periculum in mora concretamente verificado e a assegurar a efetividade do direito ameaçado; e
- que o prejuízo resultante da providência não exceda o dano que com ela se quis evitar (cfr., a título de exemplo, o acórdão desta Relação, de 25/1/2024, processo n.º 2187/23.5T8BCL.G).
No caso em análise, considerou-se na decisão que:
“No caso vertente resultou indiciariamente provado que o caminho em discussão nos autos é público, está afecto ao uso das populações das freguesias de ... e ..., desde tempos imemoriais, pelo que se mostra preenchido o 1.º requisito de que depende o decretamento da presente providência.
Relativamente aos demais requisitos – periculum in ora e lesão grave e dificilmente reparável – entendemos que os mesmos não se encontram preenchidos, desde logo, atendendo aos factos resultaram indiciariamente demonstrados.
Com efeito resultou demonstrado, que a requerente está impedida de efectuar a limpeza e manutenção desde Junho de 2023, data em que o maquinista da Câmara Municipal que levava a efeito a limpeza e manutenção do leito do caminho ter sido "barrado" pelo requerente que atravessou a carrinha e não o deixou prosseguir.
Resultou igualmente demonstrado que as condutas do requerido já vinham sendo discutidas em reunião de Assembleia de Freguesia, tendo esta em 2 de Julho de 2023 aprovado a proposta de instauração da acção judicial que veio a ser instaurada em 02.04.2024.
"O periculum in mora refere-se ao perigo no retardamento na tutela jurisdicional, procurando-se evitar que, por causa do tempo necessário para o julgamento definitivo do mérito da causa, o direito que se pretende fazer valer em juízo acabe por ficar irremediavelmente comprometido.
Caberá, assim, ao requerente provar que não pode aguardar a decisão do processo principal sem sofrer um prejuízo de consequências graves e irreparáveis.
Não basta a prova sumária no que respeita ao periculum in mora, que deve revelar-se excessivo: a gravidade e a difícil reparabilidade da lesão receada apontam para um excesso de risco relativamente àquele que é inerente à pendência de qualquer ação; trata-se de um risco que não seria razoável exigir que fosse suportado pelo titular do direito" (Acórdão da Relação de Évora de 11.07.2024, disponível em www.dgsi.pt)
Ora, a requerente só após a realização da audiência prévia é que instaurou o presente procedimento cautelar comum, alegando que a situação se agravou e com a chegada do período crítico de incêndios, o receio de eclodirem fogos florestais e colocarem em perigo bens e vidas humanas agrava-se.
Porém, salvo o devido respeito, a requerente já há dois anos que está impedida de limpar e o risco dos incêndios já existia em 2023 e em 2024, cujo Verão foi considerado pelos especialistas como o último mais quente de sempre (pelo menos desde que há registos) a nível global. É certo que não existiram incêndios na zona em 2023 e 2024, todavia o risco existiu e se tivermos em linha de conta que o Inverno de 2022/2023 foi muito intenso a nível de chuvas no concelho, pelo menos entre Outubro de 2022 e Janeiro 2023, a situação já se agrava desde 2023, sendo certo que a acção principal entrou em juízo em 02 de Abril de 2024.
Assim, impõe-se concluir que não se encontram preenchidos os restantes requisitos de que depende o decretamento da presente providência.
Termos em que não se mostrando verificados todos os pressupostos atinentes providência cautelar não especificada, deve a mesma, em consequência não ser decretada.”.
Descendo ao caso concreto, não se colocam dúvidas quanto à existência do bónus fumus iuris quanto à existência do direito, ou seja que o caminho é público, conforme ressalta dos factos dados indiciariamente por provados e foi reconhecido na decisão recorrida, não se tratando, por isso de questão aqui a sindicar.
Também inexiste qualquer procedimento cautelar especificado apto a cautelar os interesses em apreço.
Por outro lado, a providência requerida, no sentido de se permitir o acesso ao caminho em causa para o limpar e reparar é obviamente adequado para afastar o alegado periculum in mora, tendente a permitir o adequado combate aos incêndios que venham a deflagrar na zona, assim se assegurando a efetividade do direito a usar um caminho público, tendo por escopo tal fim.
Por último, também resulta evidente que com a limpeza e reparação do caminho não se gera dano superior ao que se quis evitar com o acautelar de eventuais incêndios que venham a deflagrar com potencial lesivo para uma multiplicidade de pessoas e bens.
O que está aqui em questão e que fez soçobrar o presente procedimento cautelar comum foi o facto de se entender que não se mostra verificado o requisito do periculum in mora, ou seja fundado receio de que pode ocorrer lesão grave e dificilmente reparável ao invocado direito.
Quanto a este requisito relativo ao fundado receio de que outrem antes de proferida decisão de mérito, ou porque a ação não está sequer proposta ou porque ainda se encontra pendente, cause lesão grave e dificilmente reparável a tal direito – não é toda e qualquer consequência que possa ocorrer antes da decisão definitiva que justifica o decretamento da providência: só as lesões graves e dificilmente reparáveis.
Como refere Abrantes Geraldes, in Temas de Reforma do Processo Civil – Procedimento Cautelar Comum, Almedina, 4ª edição, pág. 100, “a gravidade da lesão previsível deve ser aferida tendo em conta a repercussão que determinará na esfera jurídica do interessado” e na pág. 102 “na avaliação da gravidade da lesão deve o juiz verter para a decisão os valores que considere mais adequados em determinados momentos, tendo sempre em conta, no entanto, que a apreciação dos requisitos se deve pautar por um critério tão objectivo quanto possível”.

Conforme se escreveu no sumário acórdão da Relação do Porto 7/6/2021, processo: 296/20.1T8AVR.P1, relator Miguel Baldaia:
“I - O procedimento cautelar comum constitui um meio processual destinado a obter uma decisão conservatória ou antecipatória que permita afastar o receio de que alguém se possa ver prejudicado pela conduta de um terceiro suscetível de causar lesão a um seu direito.
II - Não basta, porém, a invocação de um mero receio, assim como não se mostra suficiente a verificação de uma simples lesão do direito que se pretenda ver acautelado para que, desde logo, possa ser judicialmente desencadeado o procedimento cautelar.
III - Para que tal possa suceder, mostra-se necessário que se esteja perante a probabilidade séria da existência de um direito e que haja um justificado receio de que a conduta de um terceiro seja suscetível de causar uma lesão grave e dificilmente reparável ao titular desse direito.
IV- Assim, apenas merecem a tutela provisória consentida pelo procedimento cautelar comum as lesões graves e de difícil reparação, ficando arredadas do círculo de interesses acautelados pelo procedimento, ainda que se mostrem de difícil reparação, as lesões sem gravidade ou de gravidade reduzida, do mesmo modo que são afastadas as lesões que, apesar de serem graves, sejam facilmente reparáveis.”.

No caso vertente, ao contrário do que disse na decisão recorrida, julga-se que se verifica também este requisito.
Ficou provado, em suma, que em 2023, a requerente ficou impedida de fazer os competentes trabalhos de manutenção do caminho, o que levou ao crescimento descontrolado de vegetação densa ao seu longo e ao surgimento de diversos buracos. Mais se apurou indiciariamente que o caminho situa-se numa zona florestal, sendo uma ferramenta essencial no combate aos incêndios, porque para além de funcionar como uma barreira corta-fogo, impedindo a progressão dos incêndios, permite a circulação das equipas de combate aos fogos para uma atuação rápida e em segurança e que não permite agora a circulação em segurança de qualquer veículo de combate a incêndios, concretamente dos veículos de socorro dos bombeiros voluntários e/ou dos veículos dos sapadores florestais.
Efetivamente, apesar de estar demonstrado indiciariamente que a requerente está impedida de realizar a limpeza e manutenção do caminho desde junho de 2023 e só ter instaurado o presente procedimento cautelar depois da realização da audiência prévia nos autos principais, mais propriamente em 26/3/2025, não é por isso que fica afastada a existência o perigo da consumação das lesões em pessoas, animais e bens derivados da possibilidade da eclosão de incêndios e da impossibilidade de utilização e em segurança do caminho público em questão para o seu combate. Tal perigo, obviamente, mantém-se e agrava-se no período estival, pelo que a anterior inércia da requerente não lhe retira o direito de acautelar os riscos que derivam da impossibilidade de utilização do caminho público e em segurança por não se encontrar limpo e reparado, antes impõe que o faça em nome do interesse público que lhe subjaz. Ou seja, apesar dos riscos não se terem concretizado – felizmente – em qualquer incêndio que não pudesse ser eficazmente combatido devido à atitude obstrutiva do requerido na utilização do caminho público, os mesmos mantêm-se e acrescidos nesta época do ano, pelo que o decretamento desta providência se impõe por forma a prevenir efetivamente lesão dificilmente reparável ou mesmo irreparável, assim se verificando todos os requisitos necessários para o decretamento do presente procedimento cautelar inominado nos termos requeridos.

Tendo em conta o disposto no art. 365.º, n.º 2, que dispõe que:
“É sempre admissível a fixação, nos termos da lei civil, da sanção pecuniária compulsória que se mostre adequada a assegurar a efetividade da providência decretada.”.

Por sua vez, dispõe o art. 829.º-A do Código de Processo Civil, na parte que agora importa reter, que:
“1 - Nas obrigações de prestação de facto infungível, positivo ou negativo, salvo nas que exigem especiais qualidades científicas ou artísticas do obrigado, o tribunal deve, a requerimento do credor, condenar o devedor ao pagamento de uma quantia pecuniária por cada dia de atraso no cumprimento ou por cada infracção, conforme for mais conveniente às circunstâncias do caso.
2 - A sanção pecuniária compulsória prevista no número anterior será fixada segundo critérios de razoabilidade, sem prejuízo da indemnização a que houver lugar.”.

Estando nós perante uma prestação de facto infungível de cariz negativo – abster-se o requerente por si, ou através de terceiras pessoas, de praticar qualquer ato que impeça a realização de obras ou trabalhos por parte da requerente no caminho público, tal normativo é aqui aplicável.
Julga-se, no entanto, exagerado o valor de € 2.500,00 por infração, julgando-se justo e adequado o valor de € 1.000,00 por cada infração, que reputamos de suficientemente dissuasor, atentos os concretos contornos da providência e os interesses em jogo.
Procede, pois, o recurso.
As custas serão suportadas pelo apelado, uma vez que ficou vencido (art. 527.º, n.º 1 do Código de Processo Civil).
*
VI - Decisão

Nestes termos, acordam os juízes desta Relação em julgar procedente a apelação, revogando-se a decisão recorrida e decidindo-se:
- autorizar a requerente a proceder à realização de todos os trabalhos de limpeza e manutenção do caminho melhor identificado nos artigos 2º a 6.º do requerimento inicial, com recurso a máquinas de rasto e/ou giratórias, máquinas de terraplanagem e/ou retroescavadoras, realizando-se todas as diligências necessárias ao efetivo cumprimento de tal decisão, com recurso à força policial se necessário for.
- mais se condena o requerido a abster-se, por si ou através de terceiras pessoas, de praticar qualquer ato que impeça a realização de tais obras ou trabalhos por parte da requerente;
- aplica-se ainda ao requerido sanção pecuniária compulsória no montante de € 1.000,00 (mil euros), por cada ato praticado, por si ou por interposta pessoa, de desrespeito pela decisão proferida.
Custas pelo recorrido.
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Guimarães, 10/7/2025

Relator: Luís Miguel Martins
Primeira Adjunta: Maria Amália Santos
Segunda Adjunta: Anizabel Sousa Pereira