Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
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Relator: | BRÁULIO MARTINS | ||
Descritores: | SENTENÇA ALTERAÇÃO NÃO SUBSTANCIAL DOS FACTOS PRINCÍPIO DO CONTRADITÓRIO | ||
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Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 06/25/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Meio Processual: | RECURSO PENAL | ||
Decisão: | PROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | SECÇÃO PENAL | ||
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Sumário: | 1. O princípio da identidade do objeto do processo, intimamente ligado aos princípios da unidade ou indivisibilidade do objeto do processo, não impede, em absoluto, diferente modelação deste, desde que respeitados determinados procedimentos, de acordo com a dimensão da aludida alteração. 2. Assumindo a audiência de julgamento feição marcadamente dinâmica, e sendo a atividade do tribunal também norteada pelo princípio da investigação, sempre em busca da verdade material, podem dela, eventualmente, resultar dessincronizações factuais em relação ao que consta da acusação. 3. Alteração não substancial de factos será toda a modificação ou alteração da matéria de facto constante da acusação ou da pronúncia, com relevo para a decisão da causa, que se contenha dentro dos limites do objeto do processo ou que apenas se traduza numa diferente qualificação jurídica do acervo factual apurado no âmbito das balizas assim definidas. 4. O conceito de alteração pode materializar-se em acrescentar, modificar ou eliminar factos, sendo sempre o critério orientador da sua relevância processual a plenitude da defesa do arguido. 5. O tempo, o local e o modo de cometimento da ação (quando alegados na acusação/pronúncia) constituem vetores essenciais, se bem que não substanciais, do segmento histórico pretérito submetido à cognição do tribunal, e, consequentemente, aos procedimentos probatórios alcançáveis pelo arguido na estruturação da sua defesa (que pode até ser apenas o silêncio). 6. Desfasamentos temporais dos factos de um e até de dois anos, bem como acrescentos de lesões, e alterações de locais do seu cometimento e transmutações dos meios empregues para tal fim, constituem assaz significativa amálgama retificadora da primordial imputação factual, que a aludida plenitude da defesa do arguido exige, de modo claro, que seja depurada pelo mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal. 7. O princípio do contraditório não se realiza, nestes casos, apenas mediante o seu sentido estrito, porque o arguido presenciou (diretamente e/ou através do defensor) a produção de prova e o seu defensor teve oportunidade de interrogar, examinar e alegar. O que releva é o real alcance que se atribuiu àquele estruturante princípio, o qual só pode ser plenamente atingido se aquele que pretende contraditar puder dispor, por um lado, da notícia sobre a modificação do objeto do processo, e, caso pretenda, do tempo razoável para se preparar em relação à atitude a tomar em relação a isso. 8. O despacho de comunicação de alteração de factos, seja substancial ou não substancial, constitui uma decisão de informação aos sujeitos processuais da alteração do objeto do processo em face da prova produzida em julgamento. Assim, o tribunal comunica aos sujeitos processuais que o objeto do processo passa a incluir diferente e/ou acrescida (mais raramente, reduzida) factualidade, o que não quer dizer que este adicionamento se considere, desde logo, aquando da prolação da dita comunicação, como provado, podendo, eventualmente, vir a receber decisão de não provado na sentença. 9. Atenta a ingente adstringência da plenitude da defesa do arguido e do correlativo princípio do contraditório, em caso de dúvida, deve efetuar-se a comunicação relativa à alteração de factos. | ||
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Decisão Texto Integral: | I RELATÓRIO 1 No processo n.º 88/23.6T9BCL, do Juízo Local Criminal de Barcelos – Juiz ..., do Tribunal Judicial da Comarca de Braga, teve lugar a audiência de julgamento durante a qual foi proferida sentença como o seguinte dispositivo: a) condenar o arguido ... como autor material de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período de tempo; b) determinar que a suspensão da execução da pena de prisão aplicada ao arguido seja acompanha de um regime de prova, assente num plano de reinserção social, a elaborar pelos serviços competentes. c) condenar o arguido ..., ao abrigo do disposto no artigo 82.º-A, n.º 1, do Código Penal e no artigo 21.º, da Lei 112/2009, de 16 de Setembro, a pagar a AA a quantia de € 1.500,00 a título de reparação dos danos por esta sofridos com a prática do crime de violência doméstica. 2 Não se tendo conformado com a decisão, o arguido apresentou recurso, formulando as seguintes conclusões: I. Vem o presente recurso interposto da sentença que antecede, a qual condenou o arguido como autor material de um crime de violência doméstica, previsto e punido pelo artigo 152.º, n.º 1, alínea b) e n.º 2, alínea a), do Código Penal, na pena de 2 anos e 6 meses de prisão, suspensa na sua execução por igual período, e a pagar a AA a quantia de € 1.500,00 a título de reparação de danos pela prática do crime de violência doméstica. II. São as seguintes as seguintes questões objeto do presente recurso: - Da nulidade da sentença nos termos da alínea b) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP; - Da nulidade da sentença nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 379.º do CPP; - Da nulidade da sentença nos termos da alínea c) do n.º 1 do artigo 615.º do CPC (ex vi art. 4º do CPP); - Da impugnação da decisão quanto à matéria de facto. III. Dispõe o art. 379.º/1, b), do CPP que é nula a sentença que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º. IV. Nos presentes autos não teve lugar a fase de instrução, pelo que objeto do processo ficou fixado na acusação deduzida pelo Ministério Público contra o arguido. V. Comparando o teor da sentença recorrida com o teor da acusação, verifica-se que o Tribunal a quo condenou por factos diversos dos descritos na acusação. VI. Assim, quanto ao episódio “apertar o pescoço”, a acusação situou-o em 2017; já a sentença recorrida imputou-lhe data situada entre 2015 e 2016, pelas 22:00 horas, acrescentando que tal episódio deixou uma marca no corpo da ofendida, facto este que não constava da acusação (cfr. item 5º da acusação e item 5º da matéria de facto dada como provada pela sentença recorrida). VII. Quanto ao “episódio da faca”, a acusação situou-o temporalmente em agosto de 2019; já a sentença recorrida situou-o em 2017 (cfr. itens 6º e 7º da acusação e item 6º da matéria de facto dada como provada pela sentença recorrida). VIII. Mais determinou a acusação que, no período temporal compreendido entre agosto de 2022 e 15.01.2023, o arguido sempre residiu com a AA, de forma permanente e ininterrupta, sendo que as expressões “puta”, “vaca” e “se eu te apanhar com outro homem, mato-te” foram, nesse período temporal, proferidas pessoal, verbalmente e no interior da residência comum; já a sentença recorrida determinou que o arguido foi trabalhar para o ... em 2021, data a partir do qual passou a dirigir, através de mensagens telefónicas escritas, e não pessoalmente/diretamente, a AA aquelas expressões (cfr. itens 9º e 10º da acusação e itens 7º e 8º da matéria de facto dada como provada pela sentença recorrida). IX. Quanto ao episódio de 24.12.2024, a acusação atribuiu-lhe como localização espacial o interior da residência comum, tendo tal episódio ocorrido com o arguido e AA frente a frente; já a sentença recorrida descreveu tal episódio como tendo acontecido à distância, isto é, através de telefone (cfr. item 11º da acusação e item 9. da matéria de facto dada como provada pela sentença recorrida). X. O Tribunal a quo não comunicou ao arguido (nem ao seu defensor) a alteração dos factos descritos na acusação nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 358º e 359º do CPP, o que o impossibilitou de preparar a sua defesa. XI. Não tendo o Tribunal a quo dado cumprimento às normas sobre alteração dos factos descritos na acusação (358º e 359º do CPP), impossibilitado estava de condenar o arguido nos termos em que o fez. XII. A Tribunal a quo violou os artigos 358.º e 359.º do CPP e o artigo 32º/1 e 5 da Constituição da República Portuguesa. XIII. Por conseguinte, a sentença recorrida é nula nos termos da alínea b) do n.º 1 do art. 379º do CPP, o que deve ser reconhecido e decretado, com as legais consequências. XIV. Sem prejuízo do exposto, dispõe o artigo 379º/1, c), do CPP que é nula a sentença quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. XV. A sentença recorrida é totalmente omissa quanto ao facto sob o item 5º da acusação, o qual descreve um episódio ocorrido em 2017 em que o arguido apertou o pescoço da vítima, pois tal matéria não consta, nem do elenco dos factos provados, nem do elenco dos factos não provados. XVI. A sentença recorrida é omissa quanto aos factos sob os itens 6º e 7º da acusação, os quais descrevem um episódio ocorrido em 2019 em que o arguido usou uma faca, porquanto tal matéria não consta, nem do elenco dos factos provados, nem do elenco dos factos não provados. XVII. A sentença recorrida é omissa quanto à factualidade sob os itens 9º e 10º da acusação, segundo os quais entre agosto de 2022 e 15.01.2023, no interior da residência comum, o arguido proferiu ofensas verbais e ameaças dirigidas à vítima, porquanto tal matéria não consta, nem do elenco dos factos provados, nem do elenco dos factos não provados. XVIII. A sentença recorrida é omissa quanto ao facto sob o item 11º da acusação, o qual descreve um episódio ocorrido no interior da residência comum, com o arguido e a vítima frente a frente, no dia 24.12.2022, porquanto tal matéria não consta, nem do elenco dos factos provados, nem do elenco dos factos não provados. XIX. A referida factualidade, sob os itens 5º, 6º, 7º, 9º, 10º e 11º da acusação, integra matéria submetida à apreciação do Tribunal a quo, sobre a qual este tinha de emitir pronúncia, inserindo-a, ou no elenco dos factos provados, ou no elenco dos factos não provados. XX. Não constando tal matéria (essencial) do elenco dos factos provados nem do elenco dos factos não provados, a sentença recorrida é nula nos termos do art. 379º/1, c), 1ª parte, o que deve ser reconhecido e decretado com as legais consequências. XXI. Por outro lado, analisada a sentença recorrida, verifica-se que o Tribunal a quo se pronunciou sobre factualidade que não adveio, nem da acusação, nem da contestação apresentada nos autos. XXII. Não consta da acusação, nem da contestação apresentada nos autos, a factualidade constante da sentença recorrida sob o item 5. da matéria de facto dada como provada, o qual descreve um episódio ocorrido entre 2015 e 2016 em que o arguido apertou com as mãos o pescoço da vítima. XXIII. Não consta da acusação, nem da contestação apresentada nos autos, a factualidade constante da sentença recorrida sob o item 6. da matéria de facto dada como provada, o qual descreve um episodio ocorrido 2017 em que o arguido exibiu uma faca de cozinha. XXIV. Não consta da acusação, nem da contestação apresentada nos autos, a factualidade constante da sentença recorrida sob os itens 7. e 8. da matéria de facto dada como provada, os quais referem que em 2021 o arguido foi trabalhar para o ..., momento a partir do qual passou a dirigir a AA expressões ofensivas através de mensagens escritas. XXV. Não consta da acusação, nem da contestação apresentada nos autos, a factualidade constante da sentença recorrida sob o item 9. da matéria de facto dada como provada, o qual descreve um episódio ocorrido em 24.12.2022 entre o arguido e a AA através de telefone. XXVI. A referida factualidade, dada como provada pela sentença recorrida sob os itens 5., 6., 7., 8., e 9., constitui matéria passível de integrar ilícito(s) criminais(s) e, consequentemente, passível de determinar a aplicação de pena(s). XXVII. Tal matéria não adveio da acusação, nem da contestação apresentada nos autos, pelo que, ao conhecê-la, o Tribunal a quo conheceu de questões de que não podia tomar conhecimento. XXVIII. Por conseguinte, a sentença recorrida é nula nos termos do art. 379º/1, c), 2ª parte, o que deve ser reconhecido e decretado com as legais consequências. XXIX. Sem prejuízo do exposto, dispõe o art. 615.º/1, c), do CPC, aplicável ao processo penal por força do artigo 4º do CPP, que é nula a sentença quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível. XXX. De acordo com o item 3. da matéria dada como provada pela sentença recorrida, o arguido sempre residiu com a vítima, de forma permanente e ininterrupta, entre 2015 (cinco anos após o início da coabitação – cfr. item 2 da matéria dada como provada pela sentença recorrida) e, pelo menos, novembro de 2022, de modo que as expressões “puta”, “vaca” e “se eu te apanhar com outro homem, mato-te” eram dirigidas pessoal, direta e verbalmente. XXXI. De acordo com os itens 7. e 8. da matéria dada como provada pela sentença recorrida, entre 2021 - data em que o arguido foi trabalhar para o ... - e novembro de 2022, as expressões “puta”, “vaca” e “se eu te apanhar com outro homem, mato-te” eram dirigidas através de mensagens telefónicas escritas. XXXII. Verifica-se, portanto, que a factualidade sob o item 3. da matéria dada como provada pela sentença recorrida é incompatível com a factualidade sob os itens 7. e 8. da matéria dada como provada pela sentença recorrida, o que torna a decisão ininteligível. XXXIII. Assim, a sentença recorrida é nula nos termos do art. 615.º/1, c), do CPP (ex vi artigo 4.º do CPP), o que deve ser reconhecido e decretado com as legais consequências. XXXIV. Sem prejuízo do exposto, o arguido/recorrente discorda da factualidade dada como provada sob os itens 3., 4., 5., 6., 8., 9., 11., 12. e 13 da sentença recorrida, porque deveria ter sido dada como não provada. XXXV. Quanto ao facto dado como provado sob o item 6., as provas que impõem decisão diversa são o auto de queixa-crime (Ref. Citius 13989159), o documento com a referência Citius 14065001, as declarações de AA prestadas em julgamento, as declarações da testemunha BB prestadas em julgamento, conjugados com regras da experiência e critérios de razoabilidade. XXXVI. Da conjugação dos referidos meios de prova resultam incoerências inexplicáveis e inultrapassáveis quanto ao evento “da faca”, subsistindo a dúvida se esse evento aconteceu e/ou os termos em que aconteceu. XXXVII. Deste modo, deverá julgar-se a factualidade sob o item 6. como NÃO PROVADA. XXXVIII. Quanto aos factos dados como provados sob os itens 3., 4., 5., 8., 9., 11., 12. e 13., as provas que impõem decisão diversa são o auto de queixa-crime (Ref. Citius 13989159), o documento com a referência Citius 14065001, as declarações de AA prestadas em julgamento, as declarações da testemunha BB prestadas em julgamento, as declarações da testemunha CC prestadas em julgamento, a ata de audiência de julgamento com a referência Citius 194658130, conjugados com regras da experiência e critérios de razoabilidade. XXXIX. Da conjugação dos referidos meios de prova, verifica-se a inexistência de prova credível a propósito dos factos sob os itens 3., 4., 5., 8., 9., 11., 12. e 13. da matéria dada como provada pela sentença recorrida. XL. Assim sendo, por aplicação dos princípios da presunção de inocência e in dubio pro reo, essa factualidade deverá ser julgada NÃO PROVADA. XLI. Deve ser alterada a decisão quanto à matéria sob os itens 3., 4., 5., 6., 8., 9., 11., 12. e 13. dando-se como NÃO PROVADO que decorridos cerca de cinco anos após o início da coabitação e até, pelo menos, novembro de 2022, com frequência praticamente semanal, por força dos ciúmes e sentimento de posse que nutria em relação à vítima, no interior da residência comum, o arguido apelidou-a de “puta” e “vaca” e disse-lhe “se eu te apanhar com outro homem, mato-te” (item 3.); NÃO PROVADO que no decurso do referido período temporal, por diversas vezes, em datas e número não concretamente apurados, o arguido acusou ainda a vítima de manter relacionamentos amorosos com outras pessoas (item 4.); NÃO PROVADO que em data não concretamente apurada situada entre os anos de 2015 e 2016, após terem jantado na ..., pelas 22h, no trajeto de regresso à residência que partilhavam, o arguido imobilizou o automóvel que tripulava e motivado por ciúmes, apertou com as duas mãos o pescoço da vítima, provocando-lhe dor e deixando-lhe uma marca (item 5.); NÃO PROVADO que em dia não concretamente apurado do ano de 2017, no interior da residência comum, no decorrer de uma discussão, desagradado com o pedido de AA de que abandonasse a residência, o arguido muniu-se de uma faca de cozinha, de dimensão não concretamente apurada, e exibindo-a disse-lhe que a matava (item 6.). NÃO PROVADO que a partir de então, e até novembro de 2022, data em que regressou a Portugal para a casa do casal, para gozo de férias, quando se encontrava fora do país o arguido continuava a dirigir a AA as expressões suprarreferidas em 3. e 4. desta feita através de mensagens telefónicas escritas (item 8.); NÃO PROVADO que no dia 24.12.2022, o arguido, desagradado pelo facto de a vítima se ter ausentado para celebrar o Natal casa de pessoas amigas contactou através de telefone AA dizendo-lhe que ia pegar fogo no apartamento onde viviam (item 9.); NÃO PROVADO que o arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito reiterado e concretizado de, através das condutas descritas, molestar física e psicologicamente a vítima, causando-lhe dor e fazendo com que a mesma se sentisse desprezada, diminuída e humilhada na sua dignidade pessoal, o que quis e conseguiu (item 11.); NÃO PROVADO que não obstante estar ciente de que tinha para com a vítima especiais deveres de cuidado, respeito e solidariedade, atenta a relação existente, o arguido não se coibiu de agir como agiu, sabendo que lesava a vítima na sua saúde física e mental e na sua honra e consideração pessoal, o que quis e conseguiu (item 12.); NÃO PROVADO que mais sabia o arguido que as suas condutas eram, como são proibidas por lei e criminalmente punidas (item 13.). XLII. A sentença recorrida deve ser substituída por outra que absolva o arguido/recorrente do crime que lhe vem imputado. 3 O Ministério Público respondeu ao recurso, pugnando pela sua improcedência, concluindo pelo modo seguinte: 1. A decisão judicial recorrida é insusceptível de qualquer juízo de censura, encontrando-se fundamentada de forma irrepreensível, tendo sido feita pelo Meritíssimo Juiz a quo uma correcta apreciação dos factos e adequada aplicação do direito, não tendo sido violadas as normas constantes dos artigos 152.º, n.º 1 e n.º 4 do Código Penal e 127.º do C.P.P. 2. O Tribunal a quo apreciou e valorou correctamente as provas produzidas e examinadas em audiência à luz do princípio da livre apreciação da prova, nos termos do disposto no art. 127.° do C.P.P. 3. A sentença encontra-se perfeitamente fundamentada e é consentânea com a prova produzida e, bem assim, com a decisão tomada, não estando em causa qualquer insuficiência para a decisão da matéria de facto provada (al. a) do n.º 2 do art. 410.º do C.P.P.) ou erro na apreciação da prova. 4. A sentença não padece de nenhuma nulidade, nomeadamente das previstas nos artigos 379.º, n.º 1, als. b) e c) do C.P.P. e 615.º, n.º 1, al. c) do C.P.C. (aplicável ex vi do art. 4.º do C.P.P.). 5. Inexiste qualquer discrepância entre os factos constantes da acusação e os factos insertos na matéria dada como provada susceptível de violar o direito à defesa do arguido, assim como não se deteta qualquer contradição ou inteligibilidade e falta de coerência lógica na factualidade considera assente, pelo que não colhem os argumentos vertidos na peça recursiva. 6. Foi produzida prova em julgamento que permitiu, de modo cabal, dar como assente que o arguido praticou o acervo de factos constantes da factualidade provada. 7. De resto, os depoimentos em que se estribou a convicção do julgador foram praticamente unânimes, revelando-se, também, coesos e credíveis, sendo que a circunstância de as testemunhas terem presenciado segmentos de factos diferentes do mesmo episódio permite conferir credibilidade aos depoimentos. 8. Por outro lado, a convicção não se ancorou unicamente do depoimento das testemunhas, mas sim na prova vista como um todo que, ponderada no seu conjunto, foi de sentido unívoco, confirmando a prática dos factos pelo arguido. 9. Em suma, não merece censura ou reparo a sentença colocada em crise, pelo que se pugna pela sua manutenção nos seus precisos e exactos termos. Termos em que, e nos melhores de Direito, não dando provimento ao recurso e, concomitantemente, mantendo a douta decisão recorrida, farão V.ªs Ex.ªs, ora como sempre, JUSTIÇA. 4 Recebidos os autos neste Tribunal da Relação de Guimarães, o Ministério Público emitiu parecer no sentido de que a sentença recorrida padece da nulidade estatuída no art.º 379.º, n.º 1, al. b), do CPP, já que se deram como provados factos que não constavam da acusação, tendo sido alterados outros, sem que tivesse sido dado cumprimento ao n.º 1 do art.º 358.º do Código de Processo Penal, propondo que seja concedido nesta parte provimento ao recurso interposto pelo arguido, devendo ser ordenada a reabertura da audiência de julgamento para cumprimento do disposto no n.º 1 do art.º 358.º do Código de Processo Penal. 5 Cumprido o disposto no artigo 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, nada mais foi acrescentado. 6 Colhidos os vistos, foram os autos à conferência. II FUNDAMENTAÇÃO 1 Objeto do recurso: A A decisão recorrida é nula, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alíneas b), e c), do Código de Processo Penal, e 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil (ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal)? B Ocorre erro de julgamento em relação à factualidade dada como provada sob os itens 3., 4., 5., 6., 8., 9., 11., 12. e 13 da sentença recorrida? 2 Decisão recorrida (excertos relevantes): II Fundamentação de Facto Matéria de facto provada Discutida a causa e com interesse para a decisão da mesma, resultaram provados os seguintes factos: 1. ... e AA iniciaram um relacionamento de namoro no ano de 2009. 2. Em meados do ano de 2010 o arguido e AA passaram a viver juntos, como se de marido e mulher se tratassem, partilhando mesa, cama e habitação, tendo fixado residência no Largo ..., ..., em ..., morada onde já residia a vítima. 3. Decorridos cerca de cinco anos após o início da coabitação e até, pelo menos, novembro de 2022, com frequência praticamente semanal, por força dos ciúmes e sentimento de posse que nutria em relação à vítima, no interior da residência comum, o arguido apelidou-a de “puta” e “vaca” e disse-lhe “se eu te apanhar com outro homem, mato-te”. 4. No decurso do referido período temporal, por diversas vezes, em datas e número não concretamente apurados, o arguido acusou ainda a vítima de manter relacionamentos amorosos com outras pessoas. 5. Em data não concretamente apurada situada entre os anos de 2015 e 2016, após terem jantado na ..., pelas 22h, no trajeto de regresso à residência que partilhavam, o arguido imobilizou o automóvel que tripulava e motivado por ciúmes, apertou com as duas mãos o pescoço da vítima, provocando-lhe dor e deixando-lhe uma marca. 6. Em dia não concretamente apurado do ano de 2017, no interior da residência comum, no decorrer de uma discussão, desagradado com o pedido de AA de que abandonasse a residência, o arguido muniu-se de uma faca de cozinha, de dimensão não concretamente apurada, e exibindo-a disse-lhe que a matava. 7. No ano de 2021 o arguido foi trabalhar para o .... 8. A partir de então, e até novembro de 2022, data em que regressou a Portugal para a casa do casal, para gozo de férias, quando se encontrava fora do país o arguido continuava a dirigir a AA as expressões suprarreferidas em 3. e 4. desta feita através de mensagens telefónicas escritas. 9. No dia 24.12.2022, o arguido, desagradado pelo facto de a vítima se ter ausentado para celebrar o Natal casa de pessoas amigas contactou através de telefone AA dizendo-lhe que ia pegar fogo no apartamento onde viviam. 10. No dia 15.01.2023 o arguido saiu da residência referida em 2., cessando nessa data o relacionamento que mantinha com a vítima. 11. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito reiterado e concretizado de, através das condutas descritas, molestar física e psicologicamente a vítima, causando-lhe dor e fazendo com que a mesma se sentisse desprezada, diminuída e humilhada na sua dignidade pessoal, o que quis e conseguiu. 12. Não obstante estar ciente de que tinha para com a vítima especiais deveres de cuidado, respeito e solidariedade, atenta a relação existente, o arguido não se coibiu de agir como agiu, sabendo que lesava a vítima na sua saúde física e mental e na sua honra e consideração pessoal, o que quis e conseguiu. 13. Mais sabia o arguido que as suas condutas eram, como são proibidas por lei e criminalmente punidas. * Mais se provou que:14. Em sede de inquérito, nos presentes autos, foi aplicado o instituto da suspensão provisória do processo pelo período de 12 (doze) meses, mediante o cumprimento, por parte do arguido, das seguintes injunções e regras de conduta: i.) Não praticar atos idênticos aos denunciados (agressões físicas ou psicológicas, ameaças ou injúrias, mormente contra a ofendida); ii.) Não ser portador de objetos perigosos, com potencial agressor, nomeadamente, facas ou armas de fogo; iii.) Submeter-se a acompanhamento por parte da DGRSP para frequência de sessões que visem a prevenção de comportamentos violentos. 15. Por decisão datada de 13.07.2024 o Ministério Público revogou a suspensão provisória do processo por incumprimento pelo arguido das regras e injunções determinadas nos pontos i.) e iii.) do ponto precedente. 16. No último relatório de avaliação de risco da vítima, elaborado em 19.11.2024, foi atribuído ao caso concreto um nível de risco baixo. 17. O arguido encontra-se a residir e a trabalhar, como empresário, no .... 18. Aufere uma remuneração mensal de aproximadamente € 2.800,00. 19. Reside sozinho em casa arrendada pelo valor mensal de cerca de € 1.800,00, quantia que é paga através prestação de serviços pela empresa que detém. 20. O arguido já sofreu as seguintes condenações: a) por sentença transitada em julgado em 02.05.2013, proferida no Processo n.º 135/10.1GEVCT, pela prática, em 27.05.2010, de um crime de emissão de cheque sem provisão, na pena de 130 dias de multa, à taxa diária de € 5,00; b) Por sentença transitada em julgado em 25.03.2015, proferida no Processo n.º 402/12.0GBCHV, pela prática, em 01.07.2012, de um crime de burla simples, na pena de 220 dias de multa, à taxa diária de € 5,50; c) Por sentença transitada em julgado em 29.05.2017, proferida no Processo n.º 1286/12.3TABCL, pela prática, em 05.2012, de um crime de burla simples, na pena de 180 dias de multa, à taxa diária de € 5,50; d) Por sentença transitada em julgado em 08.05.2018, proferida no Processo n.º 1577/15.1T9BRG, pela prática, em 16.08.2016, de um crime de abuso de confiança fiscal, na pena de 140 dias de multa, à taxa diária de € 6,00; e) Por sentença transitada em julgado em 13.03.2024, proferida no Processo n.º 56/22.5PZPRT, pela prática, em 02.08.2022, de um crime de abuso de confiança, na pena de 4 meses de prisão, substituída por 120 dias de multa, à taxa diária de € 12,00; f) Por sentença transitada em julgado em 27.11.2024, proferida no Processo n.º 41/24.2PABCL, pela prática, em 27.01.2024, de um crime de violência doméstica contra cônjuge ou análogos, na pena de 2 anos e 3 meses de prisão, suspensa na execução pelo período de 3 anos, mediante a condição de cumprir a pena acessória aplicada e frequentar programa específico para agressores de violência doméstica. * Matéria de facto não provada:Com interesse para a boa decisão da causa não resultou provado que: 1. O arguido apelidasse AA de “vagabunda” e lhe dissesse “eu não tenho medo da polícia e se me traíres eu mato-te”. 2. Nas circunstâncias descritas no ponto 6 dos factos provados o arguido tivesse acusado AA de manter um relacionamento amoroso com outra pessoa e tivesse anunciado que mataria os filhos desta. 3. Na sequência dos factos constantes do ponto 6 dos factos provados o arguido tivesse abandonado a residência comum, só aí regressando três dias depois. * Motivação da decisão:Cumpre, em obediência ao disposto no artigo 374.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, indicar as provas que serviram para fundar a convicção do tribunal. Em julgamento estavam factos enquadráveis no contexto da dita “violência doméstica”, sabendo-se que, na grande maioria destas situações, as condutas criminosas ocorrem dentro de quatro paredes, preservadas da observação alheia, só sendo presenciadas pelo próprio agressor e pela vítima. Por assim ser, as declarações da vítima devem merecer a devida ponderação do julgador na livre apreciação que faça da prova produzida. Poder-se-á então afirmar que foi precisamente das declarações prestadas por AA que o tribunal partiu para formar a sua convicção no que respeita à factualidade atinente a essa realidade, relato que se revelou esclarecedor e convincente quanto à ocorrência dos factos dados como provados. O relato da ofendida foi, desde logo, determinante para a cronologia da generalidade dos factos, confirmando o início do seu relacionamento amoroso com o arguido em 2009, passando em 2010 a residir juntos na casa onde já vivia na companhia dos seus dois filhos CC e DD, e da sua neta, filha de CC. AA afirmou sem hesitação que o arguido, decorridos cerca de cinco a seis anos após iniciarem a coabitação, movido por ciúmes e desconfiança, com periodicidade semanal, a acusava de ter amantes, a apelidava de “puta” e “vaca” e lhe dizia que a matava se a encontrasse com outro homem. Acrescentou que se apercebeu de o arguido tentar ver o seu telemóvel, reforçando credibilidade no seu discurso pelo pormenor e espontaneidade com que narrou o acontecer das coisas. Também disse que mesmo após se ter ausentado para trabalhar no ..., – o que nas palavras do arguido, quando atestou a sua situação socioeconómica, ocorreu em 2021 –, o arguido continuou a dirigir-lhe tais expressões através de mensagens escritas, pelo menos, até novembro de 2022, data em que o arguido voltou a Portugal e que ela quis pôr termo ao relacionamento. Diretamente questionada sobre o uso de outros impropérios quanto à sua pessoa por parte do arguido, a ofendida não confirmou a expressão “vagabunda” e também não atestou que o arguido lhe tenha dito que a matava se o traísse por não recear a polícia, o que serve de explicação para a factualidade constante do ponto 1 dos factos não provados. Relativamente ao episódio ocorrido em data não apurada no ano de 2015 ou 2016, a ofendida explicou que um dia pelas 22h, na viagem de regresso a casa, provindos da ..., onde jantaram, no âmbito de uma discussão relacionada com ciúmes do arguido, este imobilizou de repente o veículo e a agarrou pelo pescoço com as duas mãos, o que lhe causou dor, detalhando ainda que esse conduta lhe deixou uma marca do fio que envergava ao pescoço. A forma sincera e circunstanciada com que a ofendida contou o episódio, em conjugação com a demonstração das demais situações que, como se verá adiante, foram também percecionadas por terceiros, convenceu o Tribunal sobre a sua veracidade e efetiva ocorrência, tal como consta da factologia assente. No que se refere ao incidente ocorrido no ano de 2017, para além do depoimento da ofendida, foi determinante para o apuramento do sucedido, o depoimento do seu filho, DD, o qual, como salientou, viveu com o casal desde 2010 e até se deslocar para Coimbra onde frequentou o ensino superior, por volta de 2020/2021. No que se refere às situações que, até então, percecionou direta e pessoalmente, disse que ouviu várias discussões entre o arguido e a mãe, até porque utilizava o quarto contíguo ao deles, as quais ocorriam semanalmente, sendo recorrente o arguido revelar ciúmes excessivos e chamar a ofendida de “puta” e dizendo-lhe que a matava se a descobrisse a traí-lo. Referiu-se a uma concreta situação ocorrida quando teria cerca de 19 anos recordando-se que frequentava o 12.º ano (permitindo, assim, situar o ano de 2017), na qual, no âmbito de uma discussão entre o casal, o arguido se muniu de uma faca da cozinha e a apontou na direção da ofendida. Pese embora a ofendida tenha dito, a propósito deste episódio, que “achava” que se encontrava sozinha com o ofendido, o certo é que evidenciou que não se recordava ao certo se os seus filhos estavam ou não em casa. Em contrapartida, DD explicou de forma séria e assertiva o episódio nos mesmos moldes que a ofendida quanto ao contexto e à mera exibição da faca pelo arguido em direção àquela, não sobrando dúvidas de que essa situação aconteceu, tal como por ambos narrada. Também a filha da ofendida CC mostrando-se sincera e até contida no seu depoimento, foi explicando a ocorrência de várias discussões entre a mãe e o arguido ao longo dos anos que com eles viveu, que ocorriam com periodicidade semanal, salientando que procurou sempre não se envolver para proteção da sua filha (atualmente com apenas 13 anos). Pormenorizou que o arguido nutria ciúmes da ofendida e insinuava que ela tinha outros homens, ao ponto de controlar se ela estava ou não online no WhatsApp, por onde andava e com quem. E, apesar de não se ter referido aos concretos episódios em discussão, fez referência a três situações específicas reveladoras das condutas de violência psicológica e supremacia do arguido sobre a ofendida as quais, apesar de extravasarem o objeto do processo, caracterizam a personalidade do arguido assim permitindo, numa ponderação global da prova produzida, acalentar a convicção do Tribunal acerca da ocorrência dos factos que ora importam. Por fim, no que se refere à situação sucedida no Natal de 2022, explicou a ofendida, no seguimento de em novembro de 2022 ter comunicado ao arguido que queria terminar o relacionamento, que foi celebrar o Natal na companhia dos filhos em casa de pessoas amigas. Nesse contexto, referiu que durante o jantar o arguido lhe comunicou, através de mensagem escrita ou de um telefonema, não sabendo precisar esse aspeto, mas sem ter dúvidas de que foi através de contacto por telemóvel, que ia pegar fogo ao apartamento (isto é, à casa onde ainda os dois viviam). Receosa do que o arguido pudesse fazer, foi a casa acompanhada pela amiga de nome EE, e constatou que o arguido estava deitado no sofá. A corroborar, também nesta parte, o depoimento da ofendida, DD confirmou que estava com a mãe no jantar de Natal em casa de pessoas amigas, e se apercebeu de a ofendida ficar de semblante preocupado e quase a chorar, a qual por ele questionada lhe contou o que o arguido dissera sobre pegar fogo ao apartamento. Bem assim, confirmou que a mãe saiu do jantar e foi a casa apurar o que se passava, ficando mais tarde a saber que o arguido estaria deitado no sofá. Por fim, a ofendida confirmou a data em que terminou a coabitação e o relacionamento com o arguido, não se vislumbrando qualquer motivo para questionar a fiabilidade do seu depoimento também neste circunspeto. No que concerne às consequências que advieram física e psicologicamente para a ofendida AA, como resultado das condutas perpetradas pelo arguido, designadamente, dor física, sentimentos de desprezo, diminuição e humilhação na sua dignidade pessoal, aferem-se, desde logo, através das normais regras da experiência comum, sendo consabido e inequívoco que os atos perpetrados pelo arguido são idóneos a causar dor no corpo da ofendida (quando a agarrou pelo pescoço) e a criar-lhe vexame e humilhação (entre o mais, ao ser apelidada de “puta” e “vaca”). Além disso, foram corroboradas por DD que expressou ter presenciado o notório o sofrimento da mãe causado pelo arguido. A valoração conjugada destes elementos de prova apontava, de forma clara e inequívoca, para a efectiva ocorrência dos factos dados como assentes, sendo certo que o arguido, apesar de ter estado presente em audiência de julgamento, optou por se remeter ao silêncio, abdicando assim de apresentar a sua versão dos factos, não contrariando também, de nenhuma outra forma, aquilo que a referida prova evidenciava. Naturalmente que neste contexto o dolo do arguido dado como assente extraiu-se das mais elementares regras da experiência comum, tendo como referência os comportamentos por si concretamente adoptados. A pretérita suspensão provisória deste processo e posterior revogação resultam devidamente documentadas nos autos - fls. 149 a 152, 216 e 217. Foi considerado o teor da última ficha de avaliação do risco relativa ao presente caso concreto - ref.ª eletrónica ...92. Os factos atinentes às actuais condições de vida do arguido têm como referência o teor das declarações que o mesmo se mostrou disponível para prestar a esse respeito. Os antecedentes criminais do arguido extraem-se do respetivo certificado do registo criminal - ref.ª eletrónica ...25. O depoimento de FF, ex-namorado de CC, foi absolutamente inócuo para a formação da convicção do tribunal uma vez que a testemunha se limitou a atestar a ocorrência de factos posteriores a 15.01.2023. Finalmente, os factos não provados em 2 e 3 assim foram julgados por completa ausência de prova sobre os mesmos, uma vez que não foram confirmados pela própria AA, nem foram referenciados nos depoimentos das testemunhas ouvidas em julgamento. * 3 Despacho de acusação (excerto relevante):* 1º. ... e AA (doravante, AA) iniciaram um relacionamento de namoro no final do ano de 2009. 2º. Em meados do ano de 2010 o arguido e AA passaram a viver juntos, como se de marido e mulher se tratassem, partilhando mesa, cama e habitação, tendo fixado residência no Largo ..., ..., em ..., morada onde já residia a vítima. 3º. Desde o início do relacionamento e até, pelo menos, o episódio referido no artigo 5.º, com frequência praticamente semanal, por força dos ciúmes e sentimento de posse que nutria em relação à vítima, no interior da residência comum, o arguido apelidou-a de “puta”, “vaca” e “vagabunda” e disse-lhe “se eu te apanhar com outro homem, mato-te”, “eu não tenho medo da polícia e se me traíres eu mato-te”. 4º. No decurso do referido período temporal, por diversas vezes, em datas e número não concretamente apurados, o arguido acusou ainda a vítima de manter relacionamentos amorosos com outras pessoas. 5º. Em data não concretamente apurada do ano de 2017, após terem jantado na ..., no trajeto de regresso à residência que partilhavam, o arguido, motivado por ciúmes, apertou com as mãos o pescoço da vítima, provocando-lhe dor. 6º. Em dia não concretamente apurado do mês de agosto de 2019, no interior da residência comum, o arguido dirigiu-se à cozinha, onde se encontrava a vítima, e acusou-a de manter um relacionamento amoroso com outra pessoa. 7º. De seguida, desagradado com o pedido de AA de que abandonasse a residência, o arguido muniu-se de uma faca de cozinha, de dimensão não concretamente apurada, e disse-lhe que os matava a todos, referindo-se à vítima e aos filhos da mesma com ambos residentes. 8º. Nessa sequência, o arguido abandonou a referida residência, regressando cerca de três dias depois, altura em que a vítima acedeu a retomar o relacionamento. 9º. Em agosto de 2022 o arguido retomou os comportamentos descritos no artigo 3.º. 10º. A partir de então e até, pelo menos, o dia 15.01.2023, com frequência praticamente semanal, no interior da residência comum, o arguido apelidou a vítima de “puta”, “vaca” e “vagabunda” e disse-lhe “se eu te apanhar com outro homem, mato-te”, “eu não tenho medo da polícia e se me traíres eu mato-te”. 11º. No dia 24.12.2022, no interior da residência comum, o arguido, desagradado pelo facto de a vítima ter transmitido que ia passar o natal com os seus filhos em casa de pessoas amigas, o arguido disse-lhe que ia pegar fogo no apartamento onde viviam. 12º. No dia 15.01.2023 o arguido saiu da referida residência, cessando nessa data o relacionamento que mantinha com a vítima. 13º. O arguido agiu sempre de forma livre, deliberada e consciente, com o propósito reiterado e concretizado de, através das condutas descritas, adotadas no decurso do relacionamento de namoro e, posteriormente, análogo ao dos cônjuges que mantiveram, essencialmente no interior do domicílio comum, molestar física e psicologicamente a vítima, ofendê-la na sua honra, consideração e liberdade pessoal, fazendo com que a mesma se sentisse desprezada, diminuída e humilhada na sua dignidade pessoal, o que quis e conseguiu. 14º. Não obstante estar ciente de que tinha para com a vítima especiais deveres de cuidado, respeito e solidariedade, atenta a relação outrora existente, o arguido não se coibiu de agir como agiu, sabendo que lesava a vítima na sua saúde física e mental e na sua honra e consideração pessoal, o que quis e conseguiu. 15º. Mais sabia o arguido que as suas condutas eram, como são, proibidas por lei e criminalmente punidas. ** O direito.A A decisão recorrida é nula, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alíneas b), e c), do Código de Processo Penal, e 615.º, n.º 1, alínea c), do Código de Processo Civil (ex vi artigo 4.º do Código de Processo Penal)? Comecemos por reproduzir as normas processuais invocadas pelo recorrente: Artigo 379.º do Código de Processo Penal: Nulidade da sentença 1 - É nula a sentença: a) Que não contiver as menções referidas no n.º 2 e na alínea b) do n.º 3 do artigo 374.º ou, em processo sumário ou abreviado, não contiver a decisão condenatória ou absolutória ou as menções referidas nas alíneas a) a d) do n.º 1 do artigo 389.º-A e 391.º-F; b) Que condenar por factos diversos dos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, fora dos casos e das condições previstos nos artigos 358.º e 359.º; c) Quando o tribunal deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento. 2 - As nulidades da sentença devem ser arguidas ou conhecidas em recurso, devendo o tribunal supri-las, aplicando-se, com as necessárias adaptações, o disposto no n.º 4 do artigo 414.º 3 - Se, em consequência de nulidade de sentença conhecida em recurso, tiver de ser proferida nova decisão no tribunal recorrido, o recurso que desta venha a ser interposto é sempre distribuído ao mesmo relator, exceto em caso de impossibilidade. Artigo 615.º do Código de Processo Civil: Causas de nulidade da sentença 1 - É nula a sentença quando: a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido. 2 - A omissão prevista na alínea a) do número anterior é suprida oficiosamente, ou a requerimento de qualquer das partes, enquanto for possível colher a assinatura do juiz que proferiu a sentença, devendo este declarar no processo a data em que apôs a assinatura. 3 - Quando a assinatura seja aposta por meios eletrónicos, não há lugar à declaração prevista no número anterior. 4 - As nulidades mencionadas nas alíneas b) a e) do n.º 1 só podem ser arguidas perante o tribunal que proferiu a sentença se esta não admitir recurso ordinário, podendo o recurso, no caso contrário, ter como fundamento qualquer dessas nulidades. A este respeito, afirma-se nas conclusões que: V. Comparando o teor da sentença recorrida com o teor da acusação, verifica-se que o Tribunal a quo condenou por factos diversos dos descritos na acusação. VI. Assim, quanto ao episódio “apertar o pescoço”, a acusação situou-o em 2017; já a sentença recorrida imputou-lhe data situada entre 2015 e 2016, pelas 22:00 horas, acrescentando que tal episódio deixou uma marca no corpo da ofendida, facto este que não constava da acusação (cfr. item 5º da acusação e item 5º da matéria de facto dada como provada pela sentença recorrida). VII. Quanto ao “episódio da faca”, a acusação situou-o temporalmente em agosto de 2019; já a sentença recorrida situou-o em 2017 (cfr. itens 6º e 7º da acusação e item 6º da matéria de facto dada como provada pela sentença recorrida). VIII. Mais determinou a acusação que, no período temporal compreendido entre agosto de 2022 e 15.01.2023, o arguido sempre residiu com a AA, de forma permanente e ininterrupta, sendo que as expressões “puta”, “vaca” e “se eu te apanhar com outro homem, mato-te” foram, nesse período temporal, proferidas pessoal, verbalmente e no interior da residência comum; já a sentença recorrida determinou que o arguido foi trabalhar para o ... em 2021, data a partir do qual passou a dirigir, através de mensagens telefónicas escritas, e não pessoalmente/diretamente, a AA aquelas expressões (cfr. itens 9º e 10º da acusação e itens 7º e 8º da matéria de facto dada como provada pela sentença recorrida). IX. Quanto ao episódio de 24.12.2024, a acusação atribuiu-lhe como localização espacial o interior da residência comum, tendo tal episódio ocorrido com o arguido e AA frente a frente; já a sentença recorrida descreveu tal episódio como tendo acontecido à distância, isto é, através de telefone (cfr. item 11º da acusação e item 9. da matéria de facto dada como provada pela sentença recorrida). X. O Tribunal a quo não comunicou ao arguido (nem ao seu defensor) a alteração dos factos descritos na acusação nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos 358º e 359º do CPP, o que o impossibilitou de preparar a sua defesa. XI. Não tendo o Tribunal a quo dado cumprimento às normas sobre alteração dos factos descritos na acusação (358º e 359º do CPP), impossibilitado estava de condenar o arguido nos termos em que o fez. É absolutamente unânime nos autos o acerto da narração que consta das conclusões, supratranscritas, tal como se reconhece no parecer elaborado nos autos pelo Ministério Público, podendo validar-se tais asserções pela análise comparativa da decisão e acusação, também acima transcritas. Na verdade, lê-se no aludido parecer que: Efetivamente, o episódio de “apertar o pescoço” é situado temporalmente na acusação no ano de 2017, tendo sido dado como provado na sentença que, afinal, tal episódio ocorreu “entre os anos de 2015 e 2016” e acrescentando-se que, ao apertar o pescoço da vítima, o arguido “deixou-lhe uma marca”. Por outro lado, o episódio da ameaça com a faca é situado temporalmente na acusação em agosto de 2019, sendo que na sentença dá-se como provado que, afinal, ocorreu em 2017. Acresce que na acusação diz-se que o arguido injuriou e ameaçou a ofendida entre “agosto de 2022 e 15.01.2023”, na residência comum do casal, porém, na sentença, acrescenta-se que o arguido foi trabalhar para o ... em 2021, data em que passou a injuriar e a ameaçar a ofendida através de mensagens escritas de telemóvel “até novembro de 2022”. Por fim, quanto ao episódio de 24/12/2022, a acusação situa a ameaça “no interior da residência comum”, sendo que na sentença dá-se como provado que o arguido proferiu a ameaça “através de telefone”. Note-se ainda a diferente referência temporal constante do ponto 3.º da decisão recorrida, quando comparada com o teor do artigo 3.º da acusação: protrai-se o início da ação, é certo, mas também o seu termo, com aumento significativo da duração do ilícito. Visto isto, cumpre analisar as suas consequências, sendo certo que em nenhuma das três sessões da audiência de julgamento (6/01/2025, 28/01/2025 e 05/02/2025) se deu cumprimento a qualquer dos mecanismos previstos no Código de Processo Penal a respeito da alteração de factos – 358.º e 359.º. Devemos ter em linha de conta, por um lado, o princípio acusatório, ou da acusação, ou, no dizer de outros, separatista, previsto no artigo 32.º, n.º 5, da Constituição da República Portuguesa, que preceitua que “ (…) a entidade que investiga e acusa deve ser distinta da que julga (…)” – cfr. Maria João Antunes, Direito Processual Penal, Almedina, 4.ª Edição, pag. 92. Por outro lado, cumpre lembrar que “Pela acusação se define e fixa o objeto do processo - o objeto do julgamento, e, portanto, da possível condenação ou absolvição tão-só da infração e autor acusados. Todo o sentido do princípio da acusação seria anulado se esta se limitasse a ser pressuposto formal da intervenção judicial, permitindo-se que quanto ao conteúdo e objeto da investigação e julgamento o juiz pudesse atuar e decidir inquisitoriamente sem limites – voltaria ele a encontrar-se «pessoalmente» interessado na investigação e repressão de quaisquer infrações, não apenas da que lhe é acusada, e ainda que só relativa ao mesmo agente.” – cfr. Castanheira Neves, Sumários de Processo Criminal, Coimbra 1968, pag. 34. Com tudo isto se relaciona, ainda, o princípio da identidade do objeto do processo – o objeto do processo deve manter-se idêntico desde a acusação (em sentido material, incluindo o requerimento de abertura da instrução do assistente e o despacho de pronúncia) até à sentença definitiva; relaciona-se também com o princípio da unidade ou indivisibilidade do objeto do processo – o objeto do processo deverá ser conhecido na sua totalidade, unitária e indivisivelmente – cfr. Paulo Sousa Mendes, Lições de Direito Processual Penal, Almedina, pag. 144. Não podemos, contudo, alijar do nosso pensamento que o processo penal em geral, e a audiência de julgamento em especial, assume feição marcadamente dinâmica, e que a atividade do tribunal também é norteada pelo princípio da investigação, sempre em busca da verdade material, tal como claramente resulta do disposto no artigo 340.º do Código de Processo Penal: CAPÍTULO III Da produção da prova Artigo 340.º Princípios gerais 1 - O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa. 2 - Se o tribunal considerar necessária a produção de meios de prova não constantes da acusação, da pronúncia ou da contestação, dá disso conhecimento, com a antecedência possível, aos sujeitos processuais e fá-lo constar da acta. (…). E do decurso da dinâmica própria da produção de prova, ou da inserção nesta do dever investigatório do tribunal, podem, eventualmente, resultar dessincronizações factuais em relação ao que consta da acusação, que a lei processual penal, não obstante afirmar vigorosamente a vigência dos princípios acima enunciados, não enjeita de imediato e de forma absoluta, autorizando, pelo contrário, diferente modulação do objeto do processo, desde que respeitados determinados procedimentos, de acordo com a dimensão da aludida alteração. Os mecanismos em causa são os seguintes: Artigo 358.º Alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia 1 - Se no decurso da audiência se verificar uma alteração não substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia, se a houver, com relevo para a decisão da causa, o presidente, oficiosamente ou a requerimento, comunica a alteração ao arguido e concede-lhe, se ele o requerer, o tempo estritamente necessário para a preparação da defesa. 2 - Ressalva-se do disposto no número anterior o caso de a alteração ter derivado de factos alegados pela defesa. 3 - O disposto no n.º 1 é correspondentemente aplicável quando o tribunal alterar a qualificação jurídica dos factos descritos na acusação ou na pronúncia. * Artigo 359.ºAlteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia 1 - Uma alteração substancial dos factos descritos na acusação ou na pronúncia não pode ser tomada em conta pelo tribunal para o efeito de condenação no processo em curso, nem implica a extinção da instância. 2 - A comunicação da alteração substancial dos factos ao Ministério Público vale como denúncia para que ele proceda pelos novos factos, se estes forem autonomizáveis em relação ao objecto do processo. 3 - Ressalvam-se do disposto nos números anteriores os casos em que o Ministério Público, o arguido e o assistente estiverem de acordo com a continuação do julgamento pelos novos factos, se estes não determinarem a incompetência do tribunal. 4 - Nos casos referidos no número anterior, o presidente concede ao arguido, a requerimento deste, prazo para preparação da defesa não superior a 10 dias, com o consequente adiamento da audiência, se necessário. A lei processual penal diz-nos, ainda, o que se deve entender por alteração substancial de factos: Artigo 1.º Definições legais Para efeitos do disposto no presente Código considera-se: (…) f) «Alteração substancial dos factos» aquela que tiver por efeito a imputação ao arguido de um crime diverso ou a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis; (…). Não oferecendo especiais dificuldades a alteração de factos que implique a agravação dos limites máximos das sanções aplicáveis, pode dizer-se que “A imputação de um crime diverso significa, isso sim, que os novos factos conhecidos pelo tribunal vão além do objeto do processo fixado pela acusação ou pela pronúncia, o que envolve a questão de saber o que é afinal, o objeto do processo. Esta questão tem tido várias respostas na doutrina portuguesa. Para Eduardo Correia, o objeto do processo é uma concreta e hipotética violação jurídico-criminal acusada; para Cavaleiro de Ferreira, o objeto do processo é o facto da sua existência histórica, que importa averiguar no decurso do processo; para Castanheira neves, o objeto do processo é o caso jurídico concreto trazido pela acusação, para Figueiredo Dias, o objeto do processo é um recorte, um pedaço de vida, um conjunto de factos em conexão natural. Para Germano Marques da Silva, o crime será diverso quando implique alteração do juízo base de ilicitude.” – cfr. Maria João Antunes, ob. cit., pag. 219. Assim sendo, alteração não substancial de factos será toda a modificação ou alteração da matéria de facto constante da acusação ou da pronúncia, com relevo para a decisão da causa, que se contenha dentro dos limites do objeto do processo ou que apenas se traduza numa diferente qualificação jurídica do acervo factual apurado no âmbito das balizas assim definidas. Não há qualquer dúvida de que a modificação fáctica que a decisão recorrida apresenta relativamente à acusação não se reconduz ao conceito de substancial, tal como o descrevemos: o segmento de vida dos intervenientes é exatamente o mesmo, a juízo de ilicitude em causa é também o mesmo, não se tratando, assim, de crime diverso, sendo certo que nenhuma das aludidas vicissitudes sofridas pelo objeto do processo implica um agravamento dos limites máximos das sanções aplicáveis. Tratar-se-á, então, de alteração não substancial? Antes disso, será mesmo uma alteração, em sentido técnico-jurídico e, portanto, geradora de efeitos processuais? “Estaremos sempre perante uma alteração de factos quando se subtraiam ou aduzam aos factos conhecidos – independentemente do momento processual em que tal modificações e operem – algum ou alguns factos, ou outros factos, quer estes se relacionem com o tempo do cometimento, com o lugar, com o evento, com o nexo de causalidade, com o agente, com elementos subjetivos da imputação, etc.” – cfr. Frederico Isasca, Alteração Substancial dos Factos e sua relevância no processo penal português, Almedina, 1992, pag. 99. “O problema não pode, contudo, ser reduzido a uma operação de aditamento ou eliminação de factos, pois a correspondência entre o acusado e o decidido não tem de ser aritmética e formal, mas sim substancial. Isto é, relevante para tutelar os valores essenciais do sistema. O que importa, por isso, é saber se a modificação que ocorre é relevante, no plano do seu objeto e dos seus efeitos: quer por dizer respeito aos factos probandos que constituem a matéria da proibição (do facto típico imputado ao arguido) quer por a modificação não poder ser livremente conhecida sem por em causa valores essenciais do sistema penal, designadamente a plenitude da defesa do arguido. (…) Assim, cabe perguntar: no âmbito do objeto do processo como é que se podem identificar as situações que motivam a aplicabilidade do regime da alteração substancial e não substancial de factos? O denominador comum a estes dois conceitos resulta dos artigos 358.º e 359.º do Código de Processo Penal e corresponde a variações factuais ocorridas no julgamento que exigem no mínimo o respeito pelo princípio do contraditório (direito à informação, possibilidade de pronúncia, direito de impugnação) pois essa é a parte comum aos dois regimes legais citados. A variação que motiva o contraditório pode ser identificada à luz deste princípio: permitir que os sujeitos processuais conheçam e se pronunciem sobre aspetos relevantes do caso, pois o que se pretende vir a conhecer na decisão é diverso do que se tinha avançado na acusação. Neste sentido, existirá um «alteração de factos» quando a variação do conteúdo factual do processo exigir contraditório quanto aos novos factos, o que pode acontecer em três situações: (i) são acrescentados factos que não estavam na acusação e, por isso, a defesa não se poderia ter pronunciado sobre eles (omissão de contraditório); (ii) são modificados factos que vinham da acusação e, por isso, a defesa pronunciou-se sobre uma versão diferente de tais factos (inutilização do contraditório), sendo necessário que conheça e se possa pronunciar sobre a nova versão dos factos; (iii) são eliminados factos que vinham da acusação que, por terem sido conhecidos pela defesa, geraram ou poderiam gerar uma pronúncia sobre essa realidade e, por isso, uma legítima expectativa sobre o uso dos mesmos na decisão (expectativa do contraditório). Ou seja, trata-se em todas as situações de «factos diversos» daqueles que eram conhecidos até aí, para usar a expressiva linguagem do artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal. A correção de erros ou simples lapsos da acusação ou da pronúncia pode estar em princípio fora do âmbito da alteração de factos se – e apenas se – forem, cumulativamente, inócuos no plano da imputação a realizar, neutros quanto ao facto inicial referido e não tiverem relevância para a defesa. Contudo, sempre que o arguido se tenha pronunciado sobre factos que, por estarem errados, são corrigidos em decisão judicial posterior será necessário garantir o contraditório em relação à nova versão dos factos, caso a correção ponha em causa a defesa anteriormente exercida. Diversamente, se a defesa percebeu o lapso e o teve em conta na sua intervenção processual torna-se desnecessário o contraditório. O facto de o artigo 32.º, n.º 1, da Constituição determinar que o processo penal assegura todas as garantias de defesa constitui um apoio hermenêutico decisivo para resolver os casos duvidosos: sempre que existam dúvidas sobre se a correção, especificação ou concretização realizada é ou não uma «alteração de factos», o respeito pelo artigo 32.º, n.º 1, da Constituição exige que se garanta o contraditório quanto à mesma.” – cfr. Teresa Pizarro Beleza/Frederico de Lacerda da Costa Pinto, Alteração de Factos e Vinculação Temática em Processo Penal, in Prof. Doutor Augusto Silva Dias, In Memoriam, AAFDL, Vol. II, pag. 583 e segs., que na nota de rodapé n.º 26, pag. 584, dão conta da sua discordância relativamente a “ (…) alguma (discutível) permissividade (…)” da nossa Jurisprudência no que concerne a estes tipos de correções, entre as quais referem “(…) a alteração da data, hora ou local do facto (…), arrolando em favor da sua posição o Acórdão do Tribunal Constitucional n.º 674/99, de 15 de Dezembro, e Ivo Miguel Barroso, in Estudos Sobre o Objeto do Processo, Lisboa, Vislis, 2003, pag. 19-28, e Objeto do Processo Penal, Lisboa, AAFDL, 2013, pag. 42 e segs. Ora, compaginando o que consta da acusação com o que consta da decisão, verificamos que esta discrepa daquela em relevantes vetores de tempo e espaço, tal como acima se fez notar, o que é, inclusivamente, aceite pelo Ministério Público nesta instância – na verdade, na resposta ao recurso apresentada na primeira instância, entendeu-se que nenhum direito de defesa se pôs em causa, afirmando-se mesmo que inexiste qualquer discrepância entre os factos constantes da acusação e os factos insertos na matéria dada como provada susceptível de violar o direito à defesa do arguido, assim como não se deteta qualquer contradição ou inteligibilidade e falta de coerência lógica na factualidade considera assente, pelo que não colhem os argumentos vertidos na peça recursiva (conclusão 5.ª). Todavia, desfasamentos temporais dos factos de um e até de dois anos, bem como acrescentos de lesões, e alterações de locais do seu cometimento e transmutações dos meios empregues para tal fim, constituem assaz significativa amálgama retificadora da primordial imputação factual, que a aludida plenitude da defesa do arguido exige, de modo claro, que seja depurada pelo mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal. Na verdade, o tempo, o local e o modo de cometimento da ação (quando alegados na acusação/pronúncia) constituem vetores essenciais, se bem que não substanciais, do segmento histórico pretérito submetido à cognição do tribunal, e, consequentemente, aos procedimentos probatórios alcançáveis pelo arguido na estruturação da sua defesa (que pode até ser apenas o silêncio). Deste modo, vir a ser o arguido surpreendido na leitura da decisão condenatória com as aludidas metamorfoses fácticas constitui desconsideração do mecanismo previsto no artigo 358.º do Código de Processo Penal. E o problema não é tanto de contraditório em sentido estrito, porque o arguido presenciou (diretamente e/ou através do defensor) a produção de prova e o seu defensor teve oportunidade de interrogar, examinar e alegar; o problema tem que ver com o real alcance que se atribuiu àquele estruturante princípio, o qual só pode ser plenamente atingido se aquele que pretende contraditar puder dispor, por um lado, da notícia sobre a modificação do objeto do processo, e, caso pretenda, do tempo razoável para se preparar em relação à atitude a tomar em relação a isso. Ocorre, portanto, uma alteração de factos, que deve ser qualificada como não substancial. E a relevância para a decisão da causa de tudo isto, a que se refere o artigo 358.º, n.º 1, do Código de Processo Penal, radica, precisamente, na plena realização do contraditório e na satisfação integral das garantias de defesa constitucionalmente previstas, pois se estas de algum modo claudicarem no procedimento global, não se logrou uma justa decisão da causa. A este respeito, não podemos esquecer um dado fundamental da questão processual que nos ocupa: o despacho de comunicação de alteração de factos, seja substancial ou não substancial, constitui uma decisão de informação aos sujeitos processuais da alteração do objeto do processo em face da prova produzida em julgamento. Assim, o tribunal comunica aos sujeitos processuais que o objeto do processo passa a incluir diferente e/ou acrescida (mais raramente, reduzida) factualidade, o que não quer dizer que este adicionamento se considere, desde logo, aquando da prolação da dita comunicação, como provado, podendo, eventualmente, vir a receber decisão de não provado na sentença. Nesta conformidade, perante a prova produzida, o tribunal (oficiosamente ou a requerimento) pode entender ou não que é necessário alterar o objeto do processo, e se entender que o é, tem que o dar a conhecer nos termos previstos na lei, pois só deste modo o arguido e os restantes sujeitos processuais podem ficar sintonizados com a forma como o tribunal enquadra o tema a decidir. Par evitar todos estes inconvenientes processuais, basta seguir o avisado conselho dos autores atrás citados: atenta a ingente adstringência da plenitude da defesa do arguido e do correlativo princípio do contraditório, em caso de dúvida, deve efetuar-se a comunicação relativa à alteração de factos. Concordamos, por tudo isto, com a posição expendida pelo Ministério Público nos autos nesta instância, e reconhecemos que no julgamento efetuado foi indevidamente postergado o cumprimento do disposto no artigo 358.º do Código de Processo Penal, o que constitui nulidade da sentença, tal como igualmente propõe o recorrente, o que acarreta a nulidade da decisão cominada pelo artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal. É ainda claro que não é possível suprir a nulidade em causa nesta instância, uma vez que deve ser reaberta a audiência de julgamento em primeira instância, efetuada a aludida comunicação, bem como, eventualmente, levado a cabo o que for tido por necessário ou conveniente. Assim sendo, ficam prejudicadas, por ora, as restantes questões que constituem objeto do recurso. III DISPOSITIVO Pelo exposto, acordam os juízes da Secção Penal do Tribunal da Relação de Guimarães em declarar a nulidade da decisão recorrida, nos termos do artigo 379.º, n.º 1, alínea b), do Código de Processo Penal, devendo devolver-se os autos à primeira instância para efetivação da comunicação da alteração não substancial de factos descritos na acusação, nos termos do artigo 358.º do Código de Processo Penal, de acordo com o que consta da fundamentação da presente decisão, bem como posterior tramitação. Sem tributação. Guimarães, 25 de Junho de 2025 Os Juízes Desembargadores Bráulio Martins Paulo Correia Serafim Paula Albuquerque |