Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | LUÍS MIGUEL MARTINS | ||
| Descritores: | INTERESSE EM AGIR IMPUGNAÇÃO JUSTIFICAÇÃO NOTARIAL QUESTÕES NOVAS | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 10/23/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 3.ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I - O interesse em agir não se confunde com a legitimidade, embora a pressuponha, pois tem como escopo impedir a prossecução de ações inúteis, pelo que a falta de verificação de interesse em agir consubstancia uma exceção dilatória inominada, que impede o conhecimento de mérito e implica a absolvição do réu da instância; II - O interesse em agir deve ser aferido em função da formatação que é conferida à ação pelo demandante; III - Os recursos têm por escopo a reapreciação de decisões já proferidas e não a sindicância de questões novas, exceto, conforme tem vindo a ser entendido, estas sejam de conhecimento oficioso e o processo tenha todos os elementos necessários para a sua apreciação. | ||
| Decisão Texto Integral: | Juízo de Competência Genérica de … – Tribunal Judicial da Comarca de Viana do Castelo Relator: Luís Miguel Martins Primeira Adjunta: Paula Ribas Segunda Adjunta: Fernanda Proença Fernandes * Acordam os Juízes da 3ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Guimarães: I - RELATÓRIO AA, residente em Rua ..., ... ..., concelho ..., intentou ação de simples apreciação negativa, em processo comum nos termos dos arts. 101º do Código do Notariado e 116º, do Código do Registo Predial, contra BB e mulher CC, residentes em Rua ..., ... ..., concelho ..., aduzindo, em suma, que: - Os Réus fizeram uma escritura de justificação notarial em 25 de fevereiro de 2025 relativa a um prédio rústico de que se arrogam donos e possuidores, inscrito na matriz predial rústica, da freguesia ..., sob o artigo ...45; - O impugnante, é o Cabeça de Casal da Herança aberta por óbito de DD, sendo que o prédio indicado não confronta do nascente, com o prédio de tal herança, como indicado na escritura, mas com caminho público desativado, sendo que os justificantes procuram, pela justificação notarial, apropriar-se de tal parcela do domínio público. - Por tal motivo, a área indicada de terreno do artigo justificado, não é de 52,28 metros quadrados, mas apenas de cerca de 32,28 metros quadrados. - Os RR.com tal justificação, causam danos quer ao domínio público, quer ao prédio da Herança de que o A. é cabeça de casal, pela confinação abusiva, criando uma vizinhança não pretendida. - Afirmam os justificantes que tal prédio, veio à sua posse, por compra verbal, não formalizada, sendo que os ditos vendedores, ainda, são vivos e podem proceder à formalização do título aquisitivo; - Por outro lado, quanto à posse alegada sobre o prédio justificado, não se verificou, pelo que o A. tendo conhecido o teor falso da dita escritura de justificação notarial, com a presente impugnação defende interesses particulares do prédio da herança de que é cabeça de casal, mas também interesses coletivos, que é o terreno de domínio público. Conclui pedindo que: “a) Se considere nulo ou caso, assim, não se entenda, impugnado, para todos os efeitos legais, o facto justificado na Escritura de 25 de fevereiro de 2025, referente à invocada aquisição pelos RR., pela usucapião, do prédio que identifica nos artigos 1º e 2º desta petição inicial. b) Se declare ineficaz e de nenhum efeito essa mesma escritura de justificação notarial, por forma a que os RR. não possam, através dela, registar qualquer direito, sobre o prédio nela identificado e objeto da presente impugnação; c) Se ordene o cancelamento e levantamento de quaisquer registos, provisórios ou definitivos, operados com base no documento aqui impugnado, caso hajam sido efetuados; e d) Os RR. serem condenados nas custas do processo.”. Os RR., citados, que foram, vieram contestar, referindo, em sinopse, na parte que ora importa considerar, que: - A ação tinha que ser intentada por todos os herdeiros, tratando-se de uma situação de litisconsórcio necessário ativo, verificando-se uma situação de ilegitimidade ativa; - O A. não quer que os RR. sejam vizinhos de um prédio de uma herança da qual o A. é herdeiro, o que não é um interesse digno de tutela jurídica, não tendo, assim, qualquer interesse em agir. Concluem dizendo que: “Devem as execpções suscitadas ser julgadas totalmente procedentes com todas as legais consequências. Em todo o caso, deve a acção improceder com todas as legais consequências.”. Notificado para o efeito, o A. veio pronunciar-se sobre as exceções deduzidas, dizendo, em síntese, o seguinte: - O A. foi indigitado cabeça de casal da herança e como tal tinha legitimidade para a presente ação; - Com a presente impugnação, o A. defende o interesse particular da herança, que é o direito de preferência, por ser proprietária de prédio confinante, daí, o interesse em agir; - Caso se entenda, como é afirmado pelos RR. que, o prédio justificado, confina com o prédio rústico da herança, estará afetado, em futura aquisição o direito de preferência, do direito declarado na escritura de justificação a favor dos RR./impugnados; - Tratando-se a presente ação da defesa de património de domínio público, o Autor tem também legitimidade para a presente ação. * Foi de seguida proferido despacho saneador, em que o A. foi considerado parte legítima, mas foi decidido que se mostrava verificada a exceção dilatória de falta de interesse em agir, tendo sido absolvidos os RR. da instância.* Inconformado, o A. interpôs recurso apresentando as suas alegações que terminam com as seguintes conclusões:“A – Sendo a impugnação da justificação notarial, uma ação de simples apreciação e improcedendo a exceção de ilegitimidade alegada pelos RR./apelados, determinando, o apelante, como parte legítima, este tem interesse em agir, mesmo preventivamente, impedindo o afastamento, pela justificação notarial, do exercício do direito de preferência. B – Declarando-se, a 1ª parte da decisão/sentença, recorrida, que as partes são legítimas, há contradição com a segunda parte em que considera a falta de interesse em agir, do apelante. C - A legitimidade prevista nos Art.os 30º e 31º, do C.P.C., na ação de simples apreciação a impugnar uma justificação notarial, por ser um ato preventivo, do apelante, verifica-se que a legitimidade encerra a necessidade e utilidade de atuação jurisdicional, pois não poderá, por outra forma, defender, mesmo que preventivamente, os direitos de que, legal e constitucionalmente, é titular. D – A decisão proferida na 2ª parte do saneador/sentença recorrida, além de contrária com o decidido na 1ª parte, constitui uma decisão surpresa. E – Perante tal decisão surpresa, sem ter sido cumprido o disposto, no Art.º 6º, n.º 2, do C.P.C., na eminência de se admitir a falta do pressuposto processual da falta do interesse em agir, violando o princípio do contraditório, verifica-se a nulidade de tal decisão, nos termos do Art.º 615º, n.º 1, al. d), do C.P.C.. Sem prescindir, F – Na presente ação não se verifica a falta de interesse em agir. G – Tratando-se de uma ação preventiva, a impugnação da justificação, tem por base a incerteza do direito que, os justificantes, pretendem ter sobre o bem imóvel, pois, adquirindo o direito de propriedade do bem pela usucapião (aquisição originária), fogem à aquisição translativa, por negócio, em que o apelante poderá exercer o direito de preferência, sendo que os ditos transmitentes são vivos e, só através da formalização da transmissão da propriedade, é que, os apelados, podem adquirir tal prédio e não pela justificação que se impugna. H – O direito de preferência não nasce coma alienação da coisa, como é afirmado na decisão recorrida, mas existe entre prédios confinantes com determinada área, o que só pode ser exercido, tal direito de preferência, perante a alienação, antes ou depois da formalização. I – Daí, o apelante, como herdeiro, na herança que, no acervo, tem prédio confinante com o justificado, tem interesse direto em agir, preventivamente, impugnando a justificação notarial outorgada pelos RR./apelados, verificando-se a utilidade e necessidade de tal ação de simples apreciação, para obter uma decisão jurisdicional preventiva ao exercício do direito de preferência, sobre a alienação do prédio, ilicitamente, justificado. J – Por outro lado, na incerteza de tal prédio ser constituído, por declaração dos apelados, com uma parte que é do domínio público (caminho público), o apelante revestido no interesse em agir na defesa do domínio público, que lhe é concedido legal e constitucionalmente, tem interesse em agir na presente ação de impugnação da justificação notarial. K – Além do mais, tal caminho público confina com o prédio pertencente à herança de que, o apelante, é herdeiro, e com a justificação ficará fora da disponibilidade de utilização de tal caminho público que bordeja o prédio da herança. L – O apelante, teve necessidade de buscar a tutela jurisdicional para um conflito, com a presente ação de impugnação da justificação notarial, outorgada, ilegalmente, pelos apelados, de forma a obter uma proteção que se apresenta útil e necessária. M – Sem tal impugnação, jamais poderia exercer o direito de preferência e o interesse público (coletivo) era prescindido, deixando que os apelados ilegalmente se apropriassem do domínio público, quando o mesmo, tinha interesse jurídico relevante e direito, pois o caminho público confina com o prédio pertencente à herança de que herdeiro, servindo tal prédio. N – A decisão de que se recorre (falta de interesse em agir), além de outros, infringiu os dispositivos dos Art.os 6º, n.º 2, 30º, 31º, 615º, n.º 1, al. d) do C.P.C., Art.º 89º, do Código do Notariado e Art.os 20º e 52º, n.º 3, da Constituição da República Portuguesa. Pelo exposto, Deve ser considerada a nulidade alegada, por o Tribunal conhecer de questão que não podia tomar conhecimento, se assim, não se entender, dar provimento á apelação interposta, revogando a decisão recorrida; Fazendo-se, assim, JUSTIÇA.”. * Os RR. apresentaram contra-alegações, pugnando pela improcedência do recurso.* Colhidos os vistos legais, cumpre decidir.* II- QUESTÕES A DECIDIRTendo em consideração que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões das alegações do recorrente (acima transcritas), sem prejuízo da apreciação de eventuais questões de conhecimento oficioso (artigos 635.º e 639.º do Código de Processo Civil), as questões a decidir no presente recurso de apelação são as seguintes – por ordem lógica de conhecimento: - A de saber se existe contradição na decisão que considerou inexistente a exceção de ilegitimidade e verificada a exceção da falta de interesse em agir; - A de saber se a decisão proferida é nula, por violação do princípio do contraditório; - A de saber se existe interesse em agir. * III- FACTUALIDADE A CONSIDERARA factualidade a considerar é a constante do relatório que antecede. * IV- FUNDAMENTAÇÃO1. Das nulidades A propósito da alegada existência de contradição na apreciação das exceções de ilegitimidade e da existência de nulidade por existir uma decisão surpresa, o Tribunal a quo pronunciou-se nos seguintes termos: “Das nulidades invocadas É manifesto que não se verificam porquanto legitimidade processual não se confunde com interesse em agir, ao contrário do que parece presumir o recorrente. Por outro lado, por despacho datado de 16/05/2025, notificado ao A. em 19/05/2025, foi o mesmo notificado para se pronunciar sobre a matéria de excepção, tendo o Tribunal apenas conhecido da mesma após pronúncia dos recorrentes. Ora, em face do exposto, entendo que não se verifica a apontada nulidade, uma vez que o Tribunal se pronunciou sobre todas as questões que tinha de conhecer para proferir uma decisão sobre a matéria trazida a juízo”. Concordamos, como é óbvio, com o despacho de sustentação em causa. Em primeiro lugar, quanto à suposta contradição na decisão das exceções deduzidas, não esclarece o Recorrente qual a consequência, ou seja, nada invoca designadamente que a decisão seja nula por virtude do que dispõe o art. 615.º, n.º 1 do Código de Processo Civil. Dispõe tal normativo que: “É nula a sentença quando: a) Não contenha a assinatura do juiz; b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão; c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível; d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento; e) O juiz condene em quantidade superior ou em objeto diverso do pedido.”. As nulidades da sentença são vícios formais e intrínsecos de tal peça processual e encontram-se taxativamente previstos no normativo legal supra transcrito. Os referidos vícios, designados como error in procedendo, respeitam unicamente à estrutura ou aos limites da sentença. As nulidades da sentença, como seus vícios intrínsecos, são apreciadas em função do texto e do discurso lógico nela desenvolvidos, não se confundindo com erros de julgamento (error in judicando), que são erros quanto à decisão de mérito explanada na sentença, decorrentes de má perceção da realidade factual (error facti) e/ou na aplicação do direito (error juris), de forma que o decidido não corresponde à realidade ontológica ou normativa, com a errada aplicação das normas jurídicas aos factos, erros de julgamento estes a sindicar noutro âmbito (cfr. a este respeito os acórdãos da Relação de Guimarães de 04/10/2018 e de 28/11/2024, consultáveis em www.dgsi.pt). Adiantamos desde já que analisando os fundamentos invocados pelo Recorrente se verifica que o que está em substância em causa na invocação das ditas nulidades é o inconformismo do Apelante quanto à decisão proferida e verdadeiramente não já quanto à existência de vício da decisão recorrida quanto à existência na contradição na decisão das exceções de legitimidade e de falta de interesse em agir, pois que a lei não comina a sua eventual existência com nulidade, que, aliás, diga-se, também não é adejada pelo Recorrente. Assim desde logo porque nada é invocado quanto às consequências de tal suposta contradição, também nada haveria a decidir a tal respeito, sendo que, sublinhe-se, tal não consubstanciaria em si qualquer nulidade decisória, nem matéria que seja suscetível de ser conhecida oficiosamente. De todo o modo, não assiste qualquer razão à Recorrente quanto à suposta contradição, pois que uma coisa é a legitimidade e outra distinta o interesse em agir, não se confundindo, constituindo este último um pressuposto processual autónomo, apesar de inominado, ou seja sem se encontrar gizado legalmente. O interesse em agir, igualmente denominado na doutrina e na jurisprudência de “interesse de agir”, “interesse processual”, “causa legítima da ação”, “motivo justificativo dela”, “necessidade de agir ou necessidade de tutela jurídica”, consiste assim na necessidade de recorrer ao processo, de utilizar a máquina judiciária, para obter a tutela judicial de um direito subjetivo legalmente consagrado. (cfrr. Manuel de Andrade, em Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, 1979, pág. 79 e segs.). Como referem Antunes Varela, Miguel Bezerra, e Sampaio e Nora, em Manual de Processo Civil, 2ª ed., pág. 134, distinguindo este pressuposto processual do pressuposto processual da legitimidade: "A pessoa pode ser o titular incontestável de certo direito e, nessa condição, ser parte legítima para discutir em juízo a validade ou o conteúdo da relação constituída, mas carecer de interesse em agir se, por exemplo, ninguém contestar a existência de tal direito". Na configuração deste pressuposto processual, alcançam-se duas vertentes jurídicas distintas, mas complementares, ou seja, a existência do direito subjetivo por parte do seu titular, mas para além disso a necessidade de o mesmo obter tutela judiciária para esse direito, decorrente de o mesmo lhe estar a ser negado ou perturbado por outrem. A existência do interesse em agir faz parte da essência do processo civil, que tem por base a necessidade de dirimir um conflito entre interesses opostos, pelo que como se refere no Acórdão do Tribunal da Relação de Lisboa, de 19/01/2017, disponível em www.dgsi.pt: “Quando o autor não configura, através dos factos que articula, a existência de um conflito de interesses com o réu, não existirá da sua parte interesse em agir.”. O interesse em agir não se confunde pois com a legitimidade, embora a pressuponha, pois tem como escopo impedir a prossecução de ações inúteis, pelo que a falta de verificação de interesse em agir consubstancia, como já deixámos dito, uma exceção dilatória inominada, que impede o conhecimento de mérito e implica a absolvição do réu da instância. No acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/10/2022, faz-se esta distinção, que consta do seu sumário, quando se diz que: “I - A legitimidade e o interesse em agir, sendo ambos pressupostos processuais, embora o último não previsto na lei, mas reconhecido na doutrina e jurisprudência, não se confundem: ser parte legítima significa que se é titular da relação jurídica, tal como o autor a delineou; já no interesse em agir está em causa a necessidade de recurso aos tribunais para tutela de um direito.” O interesse processual e legitimidade são, pois, diferentes porque o autor pode ser titular da relação material controvertida, tendo, por isso, um interesse potencial em demandar, e não ter, face às circunstâncias concretas da sua situação, necessidade efetiva de recorrer à tutela jurisdicional. Uma coisa é ser titular da relação material litigada, base da legitimidade das partes, outra coisa, diversa, é a necessidade de lançar mão da demanda, em que consiste o interesse em agir. Apesar dessa diversidade, têm em comum a necessidade de deverem ser aferidos objetivamente pela posição alegada pelo autor. (cfr., neste sentido os Acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 9/5/2018 e da Relação de Lisboa de 26/9/2024, consultáveis em www.dgsi.pt). Não há, pois, qualquer contradição na decisão proferida que considerou ser o A. parte legítima, por ser o titular do interesse material controvertido, na forma como configurou a ação, mas não ter qualquer interesse na demanda. Com isto não se quer significar que se esteja já tomar posição sobre se existe ou não falta de interesse em agir. Essa é outra questão que adiante abordaremos. Agora só se aprecia a invocada contradição entre o afirmar-se que a parte é legítima, mas não tem interesse em agir, que como deixámos já dito e sobejamente deixámos explanado inexiste. * Quanto à suposta decisão surpresa, alegadamente geradora de nulidade da decisão, nos termos do art. 615.º, n.º 1 al. d) do Código de Processo Civil, por não ter sido concedido o contraditório ao Recorrente para se pronunciar sobre a exceção de falta de interesse em agir, tal revela-se incompreensível, pois que tal contraditório não só foi concedido como também foi exercido pelo Apelante. Os Recorridos na sua contestação deduziram expressamente a exceção de falta de interesse em agir, mais especificamente nos seus arts. 16 a 24, precedidos expressamente da seguinte menção: “b) Falta de interesse em agir”. A 16/5/2025 foi proferido o seguinte despacho: “Ao abrigo do disposto no artigo 3.º, n.º 3, do CPC, notifique o A. para, no prazo de 10 dias, pronunciar-se sobre as excepções invocadas pelos RR. na sua contestação.”. Na sequência dessa notificação, veio o Recorrente pronunciar-se expressamente sobre as exceções deduzidas, máxime sobre a exceção da falta de interesse em agir. Não tem, pois, qualquer sentido factual nem lógico esta linha recursiva, invocando a existência de uma inexistente decisão surpresa, que assim claudica. * 2. Da falta do interesse em agirNo caso dos autos está em causa a impugnação de escritura de justificação notarial Conforme se refere no acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 25/06/2015, consultável em www.dgsi.pt, reportando-se à justificação notarial: “Uma elevada dose de pragmatismo e de eficácia que confluem para o objetivo da regularização registral de prédios, através da obtenção de um instrumento formal sem as exigências, os custos e as demoras inerentes quer à ação de justificação judicial, quer à ação de simples apreciação positiva para reconhecimento do direito real por usucapião, meios processuais de natureza contenciosa. Relativamente aos casos verdadeiramente patológicos, os efeitos negativos para os titulares inscritos, cujos interesses podem ser afetados pela justificação notarial, acabam por ser atenuados com a atribuição do direito de ação que lhes permite confrontar judicialmente o justificante e onerá-lo com a prova dos factos justificativos da usucapião, à semelhança do que ocorreria numa ação de reconhecimento do direito real pela mesma via. A experiência demonstra, aliás, que o uso razoável daquele mecanismo facilita e simplifica a regularização tabular dos prédios num sistema como o nosso em que, essencialmente fora dos grandes meios urbanos, ainda não está generalizada a perceção das vantagens do cumprimento dos requisitos formais no que concerne aos negócios que têm por objeto prédios rústicos e urbanos (outorga de escritura pública e registo predial dos factos) ou em que, com elevada frequência, se verifica uma desconformidade entre os aspetos de ordem substancial ou material e os aspetos de ordem formal atinentes ao património imobiliário.”. A justificação, a que se reporta o artigo 89.º nº 1 do Código do Notariado, para os termos do n.º1 do artigo 116.º do Código do Registo Predial, consiste na declaração, feita pelo interessado, em que este se afirme, com exclusão de outrem, titular do direito que se arroga, especificando a causa da sua aquisição, e referindo as razões que o impossibilitam de comprovar pelos meios normais. A ação de impugnação de escritura de justificação notarial prevista no art. 101.º n.º 1, do Código do Notariado, é uma ação de simples apreciação negativa (destina-se à declaração da inexistência de um direito ou de um facto), em conformidade com o disposto no artigo 10.º, n.º 3, al. a), do Código de Processo Civil, podendo ser intentada por qualquer interessado. Conforme se expressa no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29/6/2017, consultável em www.dgsi.pt: “Não limita a letra da lei a qualidade de interessado àquele que invoca ser proprietário do imóvel cuja justificação notarial pretende impugnar. (…) A impugnação da justificação notarial não está limitada apenas aos que afirmam ser os proprietários do imóvel ou que invocam direito real em colisão com o direito daqueles que justificaram notarialmente, reconhecendo-se também interesse em agir àqueles que invocam direito, diverso do direito de propriedade ou outro direito real cujo exercício pode ser afetado se a ação não for proposta. (…) “[o] interessado na impugnação da justificação notarial a que se alude no artigo 101.º do Código do Notariado pode ser quem invoque direito cujo exercício pode ser posto em causa se não for posto termo à situação de dúvida desencadeada pela inscrição no registo do direito reconhecido mediante justificação notarial”. Isto é, pode impugnar a justificação notarial quem se arrogar a titularidade de qualquer direito, desde que seja um direito suscetível de ser afetado pelo direito declarado naquela justificação (cfr. neste sentido, Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães de 28/11/2024, consultável em www.dgsi.pt). Munidos do que supra se deixou exposto também quanto ao que se considera ser o interesse em agir, torna-se claro que não assiste qualquer razão ao Recorrente. Quanto ao suposto direito de preferência, não se mostra sequer referido no petição inicial, sendo que como já vimos, o interesse em agir deve ser aferido em função da formatação que é conferida à ação pelo demandante no seu articulado inaugural. Tal menção a um putativo direito de preferência apenas surge no requerimento apresentado pela Recorrente em que na sequência da notificação do Tribunal de pronuncia sobre a matéria de exceção avançada pelos Recorrentes, em que se inclui a falta de interesse em agir, pelo que desse logo por esta via claudicaria a pretensão do recorrente em ver afirmado o interesse em agir por virtude um alegado direito de preferência. Porém ainda que assim não fosse, não percebe qual é o direito de preferência que lhe assiste, uma vez que não explicita o mesmo e muito menos elenca os requisitos. Poderia quando muito estar a cogitar o direito de preferência com assento no art. 1380.º, n.º 1 do Código Civil, que estabelece que: “1. Os proprietários de terrenos confinantes, de área inferior à unidade de cultura, gozam reciprocamente do direito de preferência nos casos de venda, dação em cumprimento ou aforamento de qualquer dos prédios a quem não seja proprietário confinante.”. Ora, para além de nada esclarecer a este respeito, o Recorrente nega inclusivamente a existência de qualquer direito de preferência por esta via, dado que refere expressamente na sua petição inicial que o seu prédio não confina com o que os Recorridos se arrogam proprietários, pois que entre ambos intercede um caminho público, que curiosamente, também serve para o Recorrente alicerçar a existência de interesse em agir, o que claramente configura uma antinomia argumentativa apenas compreensível pelo afã de vincar a verificação desse pressuposto. Não se pode também deixar de referir, que o Recorrente, de forma absolutamente infundada, atirou com a existência de contradição na apreciação pelo Tribunal a quo das exceções deduzidas, mas a verdade é que quem incorre em contradição clamorosa é o próprio Recorrente. Mas mais, contrariamente ao que refere, o direito de preferência apenas nasceria com a alienação do imóvel, claro está, verificados que se mostrassem todos os pressupostos legais, sendo certo que tal jamais podia ocorrer, sendo algo de mirífico, a que acresce que apesar de referir que os Recorrentes poderiam celebrar escritura pública de compra e venda com os alegados transmitentes do imóvel por estes estarem vivos, a verdade é que tal constitui uma argumento risível, pois que nada obriga os Recorrentes a seguir essa via, nem sequer sendo certo se tal se mostraria possível. Não há assim, qualquer interesse em agir com base no não alegado e, de acordo com os contornos que o Recorrente confere à ação, inexistente direito de preferência. Na sua petição inicial, o Recorrente invoca, como já deixámos dito, que parte do prédio objeto da escritura de justificação notarial abrange uma faixa de terreno que integra um caminho público desativado, e que não poderia ser adquirida por usucapião, dizendo que tal causa danos ao domínio público e a si próprio pela confinação abusiva com o prédio da herança de que é cabeça de casal, criando uma vizinhança não pretendida. A este respeito, disse-se na decisão recorrida que: “Quanto à circunstância de parte da área do prédio objecto da escritura de justificação notarial alegadamente abranger uma faixa de terreno que integra um caminho público, já vimos que apenas se pode dar por verificado o pressuposto do interesse em agir se o direito cuja existência ou inexistência se pretende que seja judicialmente declarada se encontrar numa situação de dúvida susceptível de causar prejuízos graves e objectivos ao seu titular. Ora, a este propósito a A. nada alega, a não ser que a parcela de terreno em questão não é usucapível.”. Nas suas alegações de recurso diz o Recorrente que pode agir no interesse público, o que lhe confere interesse em agir, aduzindo ainda inovatoriamente que com a justificação notarial fica fora da disponibilidade de utilização o caminho público que bordeja o prédio da herança. Ora, em primeiro lugar, cumpre esclarecer, como aliás o Recorrente disse no seu requerimento em que exerce o contraditório sobre as exceções deduzidas pelos Recorridos, este interesse público pode ser defendido nos termos da ação popular, em consonância com o art. 31.º do Código de Processo Civil, que nessa peça cita truncadamente, omitindo o que consta da parte final de tal normativo. Ora estabelece tal artigo que: “Têm legitimidade para propor e intervir nas ações e procedimentos cautelares destinados, designadamente, à defesa da saúde pública, do ambiente, da qualidade de vida, do património cultural e do domínio público, bem como à proteção do consumo de bens e serviços, qualquer cidadão no gozo dos seus direitos civis e políticos, as associações e fundações defensoras dos interesses em causa, as autarquias locais e o Ministério Público, nos termos previstos na lei.”. Sublinhado nosso. Ora, nos termos estabelecidos na Lei não é através de uma impugnação de escritura de justificação notarial, nos termos em que foi feito, mas antes através de ação popular, nos termos da Lei n.º 83/95, de 31/8, que no seu art. 1.º dispõe que: “1 - A presente lei define os casos e termos em que são conferidos e podem ser exercidos o direito de participação popular em procedimentos administrativos e o direito de acção popular para a prevenção, a cessação ou a perseguição judicial das infracções previstas no n.º 3 do artigo 52.º da Constituição. 2 - Sem prejuízo do disposto no número anterior, são designadamente interesses protegidos pela presente lei a saúde pública, o ambiente, a qualidade de vida, a protecção do consumo de bens e serviços, o património cultural e o domínio público.”. Por seu turno, o n.º 1 do art. 2.º de tal diploma prescreve que: “São titulares do direito procedimental de participação popular e do direito de acção popular quaisquer cidadãos no gozo dos seus direitos civis e políticos e as associações e fundações defensoras dos interesses previstos no artigo anterior, independentemente de terem ou não interesse directo na demanda.”. Sublinhado nosso. Ou seja, nestes casos não se exige qualquer interesse direto na ação, podendo estar em causa meramente o interesse público. Mas a ação popular tem regras e mecanismos próprios, apesar de poder revestir quaisquer das formas previstas no Código de Processo Civil, temos que claramente o Recorrente não a quis adotar, jamais tendo pretendido propor uma ação popular, nos termos em que se mostram regulados nos arts. 12.º e seguintes da Lei em referência, sendo aliás as alegações de recurso já omissas a tal respeito. Assim sendo, numa mera ação de impugnação de justificação de escritura notarial, teria que que existir um particular interesse em agir, enquadrado na petição inicial, sendo de que decorre desse articulado que o Recorrente apenas pretende evitar uma vizinhança indesejada, o que não que não confere qualquer interesse à ação tratando-se de um mero capricho não existindo por isso interesse em agir por parte do Recorrente. Poder-se-ia, no entanto, aduzir que o mesmo invoca agora em sede de alegações de recurso que com a apropriação pelos Recorridos de um caminho público através da escritura de justificação notarial, ficava inibido de o utilizar o que lhe conferiria interesse agir. Sem entrar no cerne da discussão, a verdade é que se trata de uma nova questão apenas suscitada em sede recursiva e inclusivamente em contradição com o que constava da petição inicial, em que se disse estar tal caminho desativado. Ora, os recursos têm por escopo a reapreciação de decisões já proferidas e não a sindicância de questões novas, exceto, conforme tem vindo a ser entendido, estas sejam de conhecimento oficioso e claro está, o processo tenha todos os elementos necessários para a sua apreciação. A diferença de graus de jurisdição leva a que, por via de regra, os Tribunais de recurso apenas devam ser confrontados com questões que as partes tiveram oportunidade de apresentar e discutir nos momentos apropriados, sendo que tal apreciação equivaleria a suprimir um ou mais órgão de jurisdição - Cfr., neste sentido, Abrantes Geraldes, Recursos em Processo Civil, 8ª ed., 2024, págs. 160, 161, 164 a 166 e a vasta jurisprudência aí recenseada. No caso dos autos, a matéria em causa não é obviamente de conhecimento oficioso, pelo que devia ter sido expressamente suscitada em primeira instância, o que não foi feito, pelo que em consonância nenhuma decisão foi proferida a tal respeito. Assim sendo, temos por verificada a exceção inominada de falta de interesse em agir, assim se confirmando a decisão recorrida Ficando o Recorrente vencido, deve suportar as custas do recurso –art. 527.º, n.ºs 1 e 2, do Código de Processo Civil. * V - DISPOSITIVOPelo exposto, acordam os Juízes do Tribunal da Relação em julgar o recurso improcedente, confirmando-se a decisão recorrida. Custas a cargo do Recorrente. * Guimarães, 23/10/2025 Relator: Luís Miguel Martins Primeira Adjunta: Paula Ribas Segunda Adjunta: Fernanda Proença Fernandes |