Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
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| Relator: | ANTÓNIO BEÇA PEREIRA | ||
| Descritores: | INCUMPRIMENTO DE RESPONSABILIDADES PARENTAIS OBRIGAÇÃO DE ALIMENTOS COMPETÊNCIA INTERNACIONAL | ||
| Nº do Documento: | RG | ||
| Data do Acordão: | 10/16/2025 | ||
| Votação: | UNANIMIDADE | ||
| Texto Integral: | S | ||
| Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
| Decisão: | APELAÇÃO PROCEDENTE | ||
| Indicações Eventuais: | 2ª SECÇÃO CÍVEL | ||
| Sumário: | I - Num processo de incumprimento das responsabilidades parentais, relativo à obrigação de alimentos, em que na petição inicial se alega que o menor está confiado à guarda da requerente, esta, ao identificar-se, indica uma morada em Fafe e não alega onde vive aquele, somos conduzidos a concluir que dessa peça processual resulta que o menor reside nessa localidade, pelo que os tribunais portugueses são competentes internacionalmente. II - Se por hipótese o menor residisse na ... não era aplicável o Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, de 25 de junho de 2019, não só por que este país não integra a União Europeia, como também por que no seu artigo 1.º n.º 4 e) se estabelece que "o presente regulamento não é aplicável à obrigação de alimentos". | ||
| Decisão Texto Integral: | Acordam no Tribunal da Relação de Guimarães I AA instaurou o presente incidente de incumprimento da regulação das responsabilidades parentais, que corre termos no Juízo de Família e Menores de Fafe, contra BB, pedindo que: "(…) julgue o incumprimento do Progenitor Requerido e, seja o mesmo condenado no pagamento da quantia 5.651,94 € (…), relativamente às prestações de alimentos vencidas até à entrada da presente ação e quota parte das despesas médicas e de saúde a cargo do Requerido, bem como todas as que se vencerem até final. Caso se venha a apurar e confirme que o Requerido possui emprego remunerado e se encontra a trabalhar com vencimento regular, requer-se que seja ordenado o desconto dos alimentos vincendos no seu salário mensal, acrescido do desconto do valor que se vier a entender adequado para pagamento dos alimentos já vencidos; Mais se requer que, ante o absoluto desrespeito pelas decisões fixadas, o requerido seja condenado em multa nos termos do disposto no artigo 41.º, número 1 da Lei n.º 141/2015, de 08 de setembro". Alegou, em síntese, que "Requerente e Requerido contraíram casamento em ../../2007 e, na constância do matrimónio, nasceu o filho CC em ../../2009, na ...". Em 2017 divorciaram-se e regularam as responsabilidades parentais do menor CC, o qual foi "confiado à guarda da mãe, podendo com o mesmo residir em ..., 96 ..., ...". O requerido, a título de alimentos, ficou obrigado a pagar a quantia mensal de 100,00 €, valor esse que seria atualizado anualmente de acordo com a taxa de inflação, mas nunca em menos de 3% ao ano. Também ficou estipulado que as despesas de educação, com a aquisição de livros e materiais escolares, as inerentes a cuidados de saúde, médicas e medicamentosas devidamente comprovadas e na parte não comparticipada pelos serviços competentes, seriam suportadas na proporção de metade por cada um dos progenitores. Sucede que o requerido não pagou qualquer valor relativo aos alimentos devidos ao menor. Aberta vista ao Ministério Público, foi por este requerido que "seja declarada a exceção dilatória de incompetência internacional do Juízo de Família e Menores de Fafe, nos termos do artigo 9.º, n.º 1 do Regime Geral do Processo Tutelar Cível e do artigo 62.º, alínea a) do Código de Processo Civil, a contrario, indeferindo liminarmente o pedido". O Meritíssimo Juiz proferiu despacho em que decidiu: "Pelo exposto, ao abrigo do disposto nos artigos 59.º, 96.º, al. a), 576.º, n.º 2, 577.º, al. a), do Código de Processo Civil e artigo 7.º, n.º 1, do Regulamento (EU) 2019/1111 do Conselho de 25 de junho de 2019, julgo verificada a exceção dilatória de incompetência absoluta deste tribunal, em razão das regras de competência internacional, e em consequência, absolvo o Réu da instância". Inconformada com esta decisão, dela a requerente interpôs recurso, findando a respetiva motivação com as seguintes conclusões: I. Vem o presente recurso ser interposto da sentença proferido pelo Digno Tribunal a quo, que decidiu considerar verificada a exceção de incompetência absoluta em razão das regras de competência internacional e, em consequência absolveu o Réu da instância. (…) II. Salvo melhor opinião, mal andou o Tribunal "a quo", como infra melhor se expõe. III. A Recorrente deu entrada de incidente de incumprimento das responsabilidades parentais, requerendo a condenação do progenitor faltoso no pagamento dos valores devidos a título de prestações de alimentos vencidas e da sua quota parte das despesas médicas e de saúde. IV. Efetivamente, dispõe o artigo 9.º, n.º 1 do RGPTC que, para decretar as providências, é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado. V. Por sua vez, dispõe o artigo 41.º, n.º 1, do RGPTC que o tribunal que, no momento do incumprimento, for territorialmente competente é que realiza as diligências necessárias para o cumprimento coercivo. VI. Por outro lado, dispõe o artigo 9.º, n.º 7, do RGPTC, que se no momento da instauração do processo a criança residir no estrangeiro, é competente para apreciar e decidir a causa o tribunal da residência do Requerente ou da Requerida, desde que o tribunal português seja internacionalmente competente. VII. Sucede que, por força do disposto no artigo 59.º do Código de Processo Civil os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifiquem os elementos de conexão previstos nos artigos 62.º e 63.º, mas sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus ou instrumentos internacionais. VIII. Porém, o Tribunal "a quo", erroneamente, considerou que o Regulamento (EU) 2019/1111 do Conselho de 25 de junho de 2019 é aplicável ao caso concreto por força do seu art.º 7.º, n.º 1. IX. O citado Regulamento, no seu artigo 1.º, n.º 4, alínea e), expressamente estabelece que não é aplicável à obrigação de alimentos! X. Adicionalmente, o Tribunal "a quo" cita o, aliás douto, Acórdão da Relação do Porto de 10-07-2024, processo n.º 3041/23, in www.dgsi.pt, que – alegadamente – defende que tal regulamento é aplicável a cidadãos da União Europeia que residam na ..., nos incidentes de incumprimento da obrigação de alimentos. XI. Contudo, o mesmo não versou sobre incumprimento da obrigação de prestar alimentos mas, outrossim, quanto à competência para apreciar ação de divórcio e regulação de responsabilidades parentais. XII. Assim, a solução jurídica aplicada ao caso concreto não se mostra a mais justa ou conforme ao Direito. XIII. Os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifiquem os elementos de conexão previstos nos artigos 62.º e 63.º, sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus ou instrumentos internacionais. XIV. O Regulamento (EU) 2019/1111 do Conselho da União Europeia de 25 de junho de 2019 não é aplicável nos casos de incumprimento da obrigação de prestar alimentos, conforme expressamente resulta da alínea e) do n.º 4 do artigo 1.º XV. Por outro lado, não pertencendo a ... à União Europeia, também o Regulamento (CE) n.º 4/2009 do Conselho da União Europeia não é aplicável à situação dos presentes autos. XVI. E, ainda que se lançasse mão das Convenções de Haia, de 19.10.1996 e de 23.11.2007, as mesmas também não se aplicam ao caso concreto. XVII. A primeira porque o próprio art.º 4.º, alínea e), expressamente exclui do seu âmbito de aplicação o cumprimento de obrigações alimentícias; XVIII. A segunda conquanto não foi objeto de adesão por parte da .... XIX. Assim, teremos de recorrer à aplicação das normas de fonte interna vigentes na ordem jurídica Portuguesa, concretamente às disposições internas fixadoras da competência internacional. XX. Em concreto, no direito interno, estabelece o art.º 62.º do C.P.C., que os tribunais portugueses são internacionalmente competentes a. - quando a ação possa ser proposta em tribunal português segundo as regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa (al. a)) – critério da coincidência; b. -quando tiver sido praticado em território português o facto que serve de causa de pedir na ação, ou alguns dos factos que a integram (b)) - – critério da causalidade; c. -ou quando o direito invocado não possa tornar-se efetivo senão por meio de ação proposta em território português ou se verifique para o autor dificuldade apreciável na propositura da ação no estrangeiro, desde que entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa haja um elemento ponderoso de conexão, pessoal ou real (al. c)) - critério da necessidade; XXI. Basta a verificação de alguma das descritas circunstâncias ou fatores (princípio da autonomia ou da independência) para que ao tribunal português seja atribuída a competência. XXII. As regras de competência territorial estabelecidas na lei portuguesa em matéria de providências tutelares cíveis são as que constam do atual art.º 9.º do Regime Geral do Processo Tutelar Cível aprovado pela Lei 141/2015 de 8.9, a seguir designado por RGPTC. XXIII. Nos termos do art.º 9.º do RGPTC, para decretar providências tutelares cíveis é competente o tribunal da residência da criança no momento em que o processo foi instaurado. XXIV. No seu no seu n.º 7, prevê-se a situação de "no momento da instauração do processo acriança residir no estrangeiro e o tribunal português for internacionalmente competente", estabelecendo que, nessa situação, é competente para apreciar e decidir a causa "o tribunal da residência do requerente ou do requerido." XXV. Considerando que a única residência conhecida do Requerente se situa em território nacional, pela aplicação do critério da coincidência, sempre deverá este Tribunal considerar-se internacionalmente competente, nos termos conjugados dos artigos 41.º, n.ºs 1 e 2 e 9.º, n.º 7 do RGPTC. Sem prescindir, XXVI. Na alínea c) do citado art.º 62.º do C.P.C., mostra-se consagrado o critério ou princípio da necessidade que constitui caso excecional e subsidiário de alargamento da competência dos tribunais portugueses, visando evitar que o direito a exercitar fique desprovido de garantia judiciária, ou seja, que ocorra uma situação objetiva de denegação de justiça, incluindo a impossibilidade absoluta e relativa, que tanto podem ser jurídica ou prática ou a dificuldade em tornar efetivo o direito por meio de ação instaurada em tribunal estrangeiro. XXVII. Considerando que está em causa uma situação relacionada com a concretização do direito a alimentos duma criança, (cobrança coerciva da prestação de alimentos, através de procedimento pré-executivo), também garantirá mais facilmente os interesses do menor, a sua concretização no local da residência do requerido, país onde aquele possuirá bens ou a fonte de rendimentos. XXVIII. Ora, é em Portugal que o Requerido possui conta(s) bancária(s), conquanto, quando cumpriu com as obrigações, era de uma conta bancária portuguesa da qual procedia ao pagamento da pensão de alimentos; XXIX. Adicionalmente, é em Portugal que o Requerido possui bens móveis e imóveis. XXX. Tendo presente tal princípio orientador, pensamos ser aplicável o critério de necessidade, já que existe entre o objeto do litígio e a ordem jurídica portuguesa um elemento ponderoso de conexão pessoal e real, mostrando-se ainda, a par desse elemento, que a efetivação do direito a alimentos no país de residência do Requerido (devedor), é suscetível de facilitar a sua execução, afastando dificuldades apreciáveis que a propositura da ação no de cobrança no estrangeiro implicariam. XXXI. Concluímos assim, à luz das normas citadas, que tem competência internacional para apreciar a presente ação, o presente Juízo de Família e Menores. XXXII. A sentença proferida pelo Tribunal "a quo" violou assim, o disposto nos artigos 9.º e 41.º do Regime do Processo Tutelar Cível e artigos, 59.º, 62.º e 63.º do Código de Processo Civil. XXXIII. Pelo exposto, reconhecendo-se que não se verifica a invocada exceção, requer-se a revogação da sentença recorrida, que deverá ser substituída por outra que reconheça a competência internacional do Juízo de Família e Menores de Fafe. O Ministério Público contra-alegou sustentando que "deve o recurso ser julgado improcedente, mantendo-se a decisão recorrida". As conclusões das alegações de recurso, conforme o disposto nos artigos 635.º n.º 4, 637.º n.º 2 e 639.º n.os 1 e 2 do Código de Processo Civil[1], delimitam os poderes de cognição deste Tribunal e, considerando a natureza jurídica da matéria versada, a questão a decidir consiste em saber se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para a presente lide. II 1.º Para a decisão deste recurso importa ter presente que: - na petição inicial a requerente, ao identificar-se, diz que é "residente na Rua ..., freguesia ..., ... ..., Fafe"; - nessa mesma peça figura que o requerido reside "na Rua ..., freguesia ..., ... ..."; - na ata da conferência do divórcio por mútuo consentimento entre a requerente e o requerido, de 18-4-2017, consta que aquela residia em "... 96, ..., ..." e este "na Rua ..., ..."; - na regulação das responsabilidades parentais estabeleceu-se que o menor fica à guarda da requerente e que a sua (do menor) residência habitual é a desta em "... 96, ..., ...". 2.º A decisão recorrida assenta, fundamentalmente, em dois pressupostos: o menor reside na ... e ao caso aplica-se o disposto no Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, de 25 de junho de 2019. Como é sabido, "o tribunal que deve conhecer da ação é (…) determinado com base em certos fatores atributivos, de entre os quais avulta o objeto do processo, tal como é apresentado pelo autor no momento da propositura da ação."[2] Examinada a petição inicial constata-se que nela a requerente não diz onde o menor reside; nunca afirma, nomeadamente, que ele está a viver na .... Aí apenas se alega que, aquando da regulação das responsabilidades parentais, o menor ficou "confiado à guarda da mãe, podendo com o mesmo residir em ..., 96 ..., ..."[3]. E nessa data (2017), conforme consta na ata da conferência do divórcio, a requerente residia em tal morada na .... Sendo assim, fica sem se compreender onde é que se alicerça a afirmação do Meritíssimo Juiz, que é subscrita pelo Ministério Público, de que o menor reside na ... "há mais de 8 anos". Esta afirmação não tem suporte na matéria alegada. É uma mera conjetura. Voltando à petição inicial vemos que ao se identificar a requerente indica uma morada em Fafe; não na .... Nessa medida, na ausência de qualquer (outra) referência ao local onde o menor reside, uma vez que este foi confiado à guarda da requerente, somos levados a concluir que da petição inicial resulta que ele tem residência em Fafe[4]. Neste contexto, à luz do que emerge da petição inicial é evidente a competência internacional dos tribunais portugueses. De qualquer modo, se por hipótese o menor residisse na ... não era aplicável o disposto no Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, pela simples razão de este país não pertencer à União Europeia. «De facto, relativamente às "regras de competência internacional, para o Regulamento ser aplicável não é necessário que estejam em causa situações transfronteiriças no interior da União, ou seja, não se aplica apenas aos litígios que implicam relações entre órgãos jurisdicionais de Estados-Membros. É necessário, sim, que os fatores de competência nele previstos atribuam a jurisdição a um Tribunal de um Estado-Membro. De acordo com o TJUE, aquela delimitação territorial não resulta do Regulamento e "as regras uniformes de competência contidas no Regulamento (…) não se destinam a ser aplicadas unicamente a situações que tenham um vínculo efetivo e suficiente com o funcionamento do mercado interno que envolvam, por definição, vários Estados-Membros". (…) o Regulamento em causa visa regular a atribuição de competência aos tribunais dos Estados-Membros, não servindo, obviamente, para disciplinar e impor competências a Estados não membros ou exigir-lhes decisões neste conspecto.»[5] Mas, se porventura fosse aplicável Regulamento (UE) 2019/1111 do Conselho, como bem observa a requerente, "o citado Regulamento, no seu artigo 1.º, n.º 4, alínea e), expressamente estabelece que não é aplicável à obrigação de alimentos". Com efeito, este preceito dispõe que "o presente regulamento não é aplicável à obrigação de alimentos", que é aquela cujo incumprimento a requerente aqui invoca. Nesta parte, com o devido respeito, não encontramos na letra, espírito ou finalidade da norma nada que suporte a interpretação feita pelo Ministério Público no sentido de "que o legislador quis excluir do aludido diploma legal, o cumprimento da obrigação de alimentos stricto sensu, ou seja, a execução da obrigação de alimentos, deixando de fora as situações de incumprimento, em particular quando estão em causa despesas variáveis (de saúde e educação), como sucede no caso em apreço." Para além do facto de nesta ação não estarem em causa somente "despesas variáveis (de saúde e educação)", o certo é que este tipo de despesas também integra o conceito de alimentos. E não há qualquer motivo minimamente razoável para que, em termos de competência internacional, essa parte dos alimentos tenha um foro diferente daquela outra que os fixou em quantia certa. III Com fundamento no atrás exposto julga-se procedente o recurso, pelo que se revoga a decisão recorrida e se determina que os autos prossigam a sua marcha. Sem custas. Notifique. António Beça Pereira Alexandra Rolim Mendes Maria dos Anjos Nogueira [1] São deste código todos os artigos mencionados adiante sem qualquer outra referência. [2] Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, Código de Processo Civil Anotado, Vol. 1.º, 4.ª Edição, pág. 142. [3] Cfr. artigo 4.º da petição inicial. [4] Note-se que aquando da apresentação da petição inicial já tinham decorrido cerca de oito anos desde a data em que foi decretado o divórcio entre as partes. [5] Ac. Rel. Évora de 18-12-2023 no Proc. 816/23.0T8TMR.E1, www.dgsi.pt. |