Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães
Processo:
2145/12.5TBPVZ-R.G1
Relator: JOSÉ CARLOS PEREIRA DUARTE
Descritores: DIREITO DE RETENÇÃO
DIREITO DE REMIÇÃO
PREVALÊNCIA
TEMPESTIVIDADE
Nº do Documento: RG
Data do Acordão: 07/10/2025
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: APELAÇÃO
Decisão: APELAÇÃO IMPROCEDENTE
Indicações Eventuais: 1ª SECÇÃO CÍVEL
Sumário:
I – A lei não estabelece que o titular do direito de retenção tem preferência na aquisição do bem objecto de tal direito, pelo que não há concurso do mesmo com o direito de remição, este sim, funcionalmente, um direito de preferência.
II - Ainda que a lei estabelecesse que o direito de retenção conferia um direito de preferência na aquisição do bem objecto de tal direito, o mesmo seria postergado dado o que decorre do disposto no art.º 844º n.º 1 do CPC: o direito de remição prevalece sobre qualquer direito de preferência, legal ou convencional.
III – É intempestiva a (nova) proposta de aquisição de um bem, ainda que por um valor superior, após o exercício tempestivo e regular do direito de remição.
IV – No caso de venda por negociação particular é tempestivo o exercício do direito de remição quando o mesmo é exercido antes da assinatura do título que documenta a transmissão.
Decisão Texto Integral:
ACORDAM OS JUÍZES DA 1ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES

1. Relatório

Por sentença de 08/01/2013, transitada em julgado, foi declarada a insolvência de AA e mulher, BB, casados sob o regime da comunhão geral de bens.

A 31/01/2013 o Sr. AI juntou aos autos – apenso “A” – apreensão de bens - auto de apreensão de “½ do prédio urbano: lote ...9 – sito no Aldeamento..., da freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...99/... e inscrito na respectiva matriz urbana sob o art.º ...07º…”

A 16/11/2023 o Sr. AI juntou aos autos de apreensão de bens:
- escritura de divisão de coisa comum outorgada a 26/09/2023 pelo Sr. AI e CC e DD, escritura da qual resulta a adjudicação aos insolventes da totalidade do lote ...9 e,
- auto de apreensão, datado de 02/11/2023, onde consta, além do mais, a apreensão para a massa de ½ do prédio urbano – lote ...9 sito no Aldeamento..., da freguesia ..., concelho ..., descrito na CRPredial ... sob o n.º ...99/... e inscrito na respectiva matriz urbana sob o art.º ...07.

EE e FF intentaram, por apenso ao processo de insolvência, acção de verificação ulterior de créditos, que constitui o apenso “L”.

Nos referidos autos, a 31 de Março de 2015 foi proferida sentença, já transitada em julgado, com o seguinte decisório:
Pelo exposto, julgo a presente ação totalmente procedente e, em consequência:
a) condeno os RR. AA e BB a pagar aos AA., EE e FF, a quantia de € 46.959,12, reconhecendo, assim, o crédito dos AA. sobre os insolventes;
b) considero verificado o direito de retenção dos AA. sobre o lote nº ...9 do novo projeto de loteamento, com a área de 492,30 m2, loteamento este que tinha o projeto de arquitetura devidamente aprovado pela Câmara Municipal ..., e que correspondia ao processo nº ...9, do loteamento urbano que estava a ser desenvolvido em dois prédios rústicos, sitos no lugar de ... ou ..., freguesia ..., ..., inscritos na matriz respetiva sob os artºs ...13 e ...14, sendo o crédito dos AA. garantido nestes termos.
Custas pela massa insolvente.

Nos autos de insolvência, a 26/09/2023 GG, na qualidade de filha dos insolventes, veio declarar exercer o direito de remição nos termos do art.º 842º do CPC quanto aos lotes ..., ..., ..., ..., ..., ...0, ...1, ...2, ...3, ...4 e ...9, juntando certidão do assento de nascimento.

A 06/10/2023 EE e FF apresentaram requerimento dizendo que por sentença de 01/04/2015 foram os insolventes condenados a pagar-lhes a quantia de € 46.959,12 e julgado verificado o direito de retenção dos mesmos sobre o lote ...9; propõem pelo “seu lote” a quantia de € 46.959,12, dispensando-se os mesmos do depósito do preço considerando a natureza do seu crédito; estão graduados em 1º lugar quanto ao bem em causa.

A 25/10/2023 EE e FF requereram que o Sr. AI fosse notificado para se pronunciar quanto ao requerido pelos mesmos a 06/10/2023.

Foi proferido despacho a ordenar a notificação do Sr. AI para se pronunciar.

A 16/11/2023 o Sr. AI pronunciou-se quanto ao requerimento de GG, dizendo que a 26/09/2023 a mesma juntou o requerimento acima referido, visando o exercício do direito de remição e na mesma data recebeu comunicação daquela com a mesma finalidade; à data não havia sido tomada qualquer decisão quanto à venda, pelo que o exercício de tal direito seria sempre extemporâneo, do que foi dado conhecimento à requerente a 02/10/2023; nos termos das informações juntas ao apenso de liquidação, recentemente foi aceite a proposta para o lote ...9, pelo montante de € 13.000,00, apresentada pelos credores garantidos por direito de retenção EE e FF; foi dado conhecimento a GG da decisão de venda  do lote ...9.

E quanto aos requerimentos de EE e FF declarou que a 25/10/2023 não havia sido notificado de qualquer requerimento junto aos autos pelos mesmos; em todo o caso não podia concordar com o entendimento exposto quanto à dispensa do depósito do preço, por contrariar o CIRE, no que respeita à necessidade de salvaguardar as dívidas da massa insolvente; a proposta do credor só é válida se for acompanhada de cheque visado à ordem da massa Insolvente no valor de 10% do montante da proposta; foi solicitado aos proponentes que esclarecessem o pretendido e sendo caso disso apresentassem proposta, sem a cláusula de dispensa da totalidade do preço; foi já recebida a proposta rectificada quanto ao lote ...9 de € 13.000,00, acompanhada de cheque bancário de € 2.600,00; foi aceite a referida proposta e solicitada emissão de certidão para outorgar a respectiva escritura de compra e venda.

A 21/11/2023 GG apresentou requerimento na qualidade de filha dos insolventes dizendo que foi apresentada ao Sr. AI uma proposta de aquisição do lote ...9 pelo valor de € 13.000,00; a requerente pretende exercer o direito de remição, ficando a aguardar a notificação com a emissão de guias para efeitos de depósito do valor da adjudicação ou de parte dele.

A 12/12/2023 EE e FF vieram dizer ter sido notificados do requerimento apresentado pela filha dos insolventes e que apresentaram uma nova proposta.

A 04/01/2024 foi proferido despacho a determinar que as questões supra referidas seriam decididas no apenso de liquidação.

No apenso “O”, que corresponde ao apenso de Liquidação, a 25/09/2023 o Sr. AI apresentou informação quanto ao estado da liquidação em que, além do mais, refere que HH havia apresentado uma proposta para aquisição dos lotes ... a ...4 e ...9, pelo montante global de € 90.100,00, sendo o valor unitário do lote ...9 de € 12.145,00; foram notificados os titulares do direito de retenção sobre o lote ...9 para se pronunciarem, estando, então, em curso, prazo de pronúncia.

A 16/11/2023 o Sr. AI veio dizer, no que releva, que na sequência da notificação que havia endereçado a EE e FF, recebeu dos mesmos uma proposta de aquisição do lote ...9 pelo valor de € 12.500,00; entretanto HH melhorou a sua proposta, passando para o valor global de € 90.504,00, sendo o valor unitário do lote ...9 de € 12.500,00; notificou de novo os titulares do direito de retenção sobre o lote ...9 para se pronunciarem; recebeu dos mesmos a comunicação que junta sob o doc 2 – e que constitui requerimento enviado via Citius pelo Ilustre mandatário de EE e FF ao Sr. AI, a 25/10/2023, em que os mesmos declaram pretender que o lote ...9 lhes seja adjudicado pelo valor de 46.959,12€, dispensando-se o depósito do preço, considerando a natureza do seu crédito, requerimento esse ao qual está junto o requerimento apresentado no processo de insolvência a 06/10/2023; refere o Sr. AI que à data da comunicação dos credores ainda não havia sido notificado de qualquer requerimento junto aos autos; em qualquer caso não pode concordar com a dispensa total do depósito do preço, por contrariar o CIRE; por outro lado a proposta do credor garantido só será eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 10% do montante da proposta; foi solicitado aos proponentes que se dignassem esclarecer o pretendido e, sendo caso disso, apresentassem proposta sem a cláusula de dispensa do depósito do preço, de molde a cumprir os requisitos legais, para que, em caso afirmativo, se possam ouvir os restantes membros da comissão de credores e o anterior proponente; recebeu proposta rectificada de EE e FF para a aquisição do lote ...9, pelo valor de € 13.000,00, acompanhada de cheque bancário no valor de € 2.600,00, juntando: i) sob doc. 3 uma comunicação dos mesmos, embora discordando do entendimento do Sr. AI, apresentam uma proposta de € 13.000,00 e referem que “caso o lote ...9 não lhes seja adjudicado, não farão entrega do mesmo lote, sem que o eventual comprador lhes pague os 49.959,12 € acrescidos dos juros legais, de acordo com a decisão judicial proferida.”; ii) sob doc. 4 um requerimento enviado via Citius pelo Ilustre mandatário de EE e FF ao Sr. AI, a 08/11/2023, em que os mesmos referem “esclarecer que a proposta de aquisição que fazem do lote nº ...9 é no valor de 13.000,00 € tendo junto cheque solicitado no valor de 20% do valor da proposta, ou seja, no valor de 2.600,00 €”; ao abrigo do art.º 164º aceitou a referida proposta; foi dado conhecimento da informação à Comissão de Credores.

E terminou requerendo fosse ordenada a emissão de certidão tendo em vista outorgar a escritura de compra e venda do lote ...9 com os credores com direito garantido por retenção, EE e FF, pelo valor de € 13.000,00.

A 02/12/2023 veio o Sr. AI dizer que tendo sido aceite a proposta de venda do lote ...9 a EE e FF, pelo valor de € 13.000,00 e tendo sido dado conhecimento a GG da referida proposta veio a mesma exercer o direito de remição e comprovar o pagamento integral do preço.
Terminou requerendo que fosse dado sem efeito o pedido de certidão constante do requerimento de 16/11/2023 e fosse autorizada a vender o lote ...9 a GG, ao abrigo do direito de remição, pelo valor de € 13.000,00 e fosse ordenada a emissão de certidão para o efeito e o levantamento de € 2.600,00 da conta da massa insolvente, para entrega aos anteriores proponentes EE e FF.

A 11/12/2023 veio o Sr. AI dizer o que já consta do requerimento de 02/12/2023, acrescentando que os proponentes EE e FF apresentaram uma proposta de aquisição do lote ...9 pelo montante de € 46.959,12, juntando cheque de € 6.791,83; já tinha sido decidida a aceitação da proposta de € 13.000,0, sendo que posteriormente foi exercido o direito  de remição por parte de GG, pelo que a referida proposta é extemporânea.

E com este requerimento juntou o requerimento que lhe foi endereçado pelo Ilustre mandatário de EE e FF em que os mesmos propõem a aquisição do lote ...9 pelo montante de € 46.959,12, juntando cheque de € 6.791,83, o cheque que lhe foi enviado com data de emissão a 30/11/2023 e cópia do envelope com registo a 30/11/2023.

E terminou nos exactos termos em que terminou o requerimento de 02/12/2023.

Foi proferido despacho a ordenar que os credores se pronunciassem.

Nenhum o fez.

Foi proferido despacho a ordenar a notificação dos credores EE e FF, e GG para se pronunciarem, querendo.

A 26/03/2024 pronunciou-se GG dizendo concordar na integra com o requerimento do Sr. AI; o direito de remição foi exercido em tempo, modo e lugar [próprios] e já após ter sido ultrapassado o prazo de apresentação de propostas para aquisição do lote ...9 por parte dos credores, pelo que não podem agora os credores EE e FF apresentar uma nova proposta, com base em direito de retenção, que não se pode sobrepor ao exercício do direito de remição nem pode servir como forma de exercício extemporâneo da apresentação de uma nova proposta de aquisição do lote ...9.

A 27/03/2024 vieram os credores EE e FF dizer que o exercício do direito de remição por parte da filha dos insolventes configura, perante a proposta apresentada pelos requerentes, uma acção que prejudica a massa insolvente; não foi proferido despacho de adjudicação do lote ...9; inexiste decisão final de venda; o lote deve ser adjudicado aos requerentes pelo montante de € 46.959,12.

Com este requerimento juntaram, além do mais, email que foi endereçado pelo Sr. AI ao seu Ilustre mandatário a 30/10/2023, em que o mesmo refere que não foi notificado do requerimento de 06/10/2023; não pode concordar com a dispensa total do depósito do preço, por contrariar o CIRE; nos termos do art.º 164º do CIRE a proposta do credor garantido só será eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 10% do montante da proposta; solicita que seja esclarecido o pretendido e, sendo caso disso, apresentada proposta com retirada da cláusula de dispensa do depósito do preço, de molde a cumprir os requisitos legais, para que, em caso afirmativo, se possam ouvir os restantes membros da comissão de credores e o anterior proponente.

A 21/05/2024 veio o Sr. AI insistir por uma decisão do tribunal quanto à venda do lote ...9.

A 23/05/2024 foi proferido o seguinte despacho:
Por requerimento de 16-11-2023, com a referência ...87, veio o senhor Administrador da Insolvência dizer que foi aceite a proposta para o lote ...9 sito no Aldeamento..., da freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...99/... e inscrito na respetiva matriz urbana sob o art.º ...07, pelo montante de € 13.000,00 apresentada pelos credores garantido por direito de retenção, EE e FF, os quais apresentaram cheque bancário de € 2.600,00.
 Assim, nessa data foi solicitada a emissão de certidão, com o objetivo do administrador da insolvência poder outorgar a escritura de compra e venda do lote ...9 sito no Aldeamento..., da freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...99/... e inscrito na respetiva matriz urbana com o art.º ...07, aos credores com direito garantido por retenção, EE e FF, pelo valor de € 13.000,00.
Por requerimento de 26-09-2023 apresentado nos autos principais, a filha dos insolventes exerce o direito de remição informando que pretende exercer esse direito pelo preço que tiver sido feita a adjudicação ou venda.
Por requerimento de 06-10-2023, apresentado no[s] autos principais, os aqui Requerentes propuseram pelo seu lote a quantia de 46.959,12 Euros, requerendo a dispensa do depósito do preço considerando a natureza do seu crédito.

Em 2 de Dezembro de 2023, foi solicitado fosse dado sem efeito o pedido de certidão constante do requerimento de 16 de Novembro de 2023, e solicitada autorização no sentido do senhor AI efetuar a venda do lote ...9, ao abrigo do direito de remição, nos moldes propostos, e requerida a emissão de certidão, com o objetivo do administrador da insolvência poder outorgar a escritura de compra e venda do lote ...9 sito no Aldeamento..., da freguesia ..., concelho ..., descrito na Conservatória do Registo Predial ... sob o n.º ...99/... e inscrito na respetiva matriz urbana com o art.º ...07, a GG, pelo valor de € 13.000,00, certidão essa onde constasse a data do trânsito em julgado da decisão da nomeação do administrador da insolvência, bem como o levantamento de € 2.600,00 da conta da massa insolvente, para entrega aos anteriores proponentes EE e FF.
Em 30-11-2023 vieram EE e FF apresentar proposta de aquisição do lote ...9 pelo montante de € 46.959,12, juntando cheque de € 6.791,83.
Refere o senhor AI que tinha sido já decidido a aceitação da proposta de € 13.000,00 sendo que, posteriormente, foi exercido o direito de remição por parte de GG, pelo que a presente proposta será extemporânea.
Em 02-12-2023 veio o senhor AI pedir seja autorizado a efetuar:
a) A venda do lote ...9, ao abrigo do direito de remição, nos moldes propostos, e, nesse pressuposto.
b) O levantamento de € 2.600,00 da conta da massa insolvente, para entrega aos anteriores proponentes EE e FF.
Posteriormente o senhor AI solicita a devolução do cheque de € 6.791,82 aos proponentes EE e FF.
EE e mulher FF vieram dizer que o exercício do direito de remição por parte da filha dos insolventes configura, perante a proposta apresentada pelos aqui Requerentes, uma ação que prejudica a massa insolvente.
Decidindo.
Apesar de não expressamente previsto no CIRE, nada deve obstar ao exercício do direito de remição em processo de insolvência.
Considerando a ordem cronológica dos factos que supra se deixou consignada, afigura-se-nos que já havia sido aceite pelo senhor AI o direito de remição, pelo valor de € 13.000,00, exercido por parte de GG, pelo que a proposta apresentada por EE e mulher FF é extemporânea.
Assim, autorizo o senhor AI a efetuar a venda do lote ...9, ao abrigo do direito de remição, nos moldes propostos.
Notifique.

A 11/06/2024 EE e FF interpuseram recurso, tendo terminado as suas alegações com as seguintes conclusões:

I. Vem o presente recurso interposto do despacho proferido a 23.05.2024, que declarou “que a proposta apresentada por EE e mulher FF é extemporânea” e, consequentemente “autorizou o senhor AI a efetuar a venda do lote ...9, ao abrigo do direito de remição, nos moldes propostos”.
II. Os Recorrentes jamais poderão aceitar o despacho recorrido, dado que entendem que o mesmo, além de não aplicar corretamente a lei à matéria de fato, a decisão nele proferida, representaria uma imoralidade e injustiça absolutamente inaceitável para os recorrentes.
III. Entre os insolventes e os Recorrentes foi celebrado contrato promessa, mediante o qual os insolventes declaram prometer vender à Recorrente mulher o lote nº ...9 do novo projecto de loteamento, com a área de 492,30 m2, loteamento este que tinha o projecto de arquitectura devidamente aprovado pela Câmara Municipal ..., e que correspondia ao processo nº ...9.
IV. Os Recorrentes entregaram 23.479,56 € (vinte e três mil, quatrocentos e setenta e nove euros e cinquenta e seis cêntimos) aos insolventes a título de sinal (artº 441º do Código Civil). Sucedeu que,
V. Os insolventes jamais cumpriram o contrato promessa que outorgaram  com os Recorrentes, apesar das variadíssimas insistências dos Recorrentes que queriam celebrar a escritura respectiva e pagar o restante do preço em falta; só que os insolventes diziam não poder ainda celebrar a escritura porque não tinham toda a documentação necessária pronta, que estivessem descansados, pois já estavam a fazer o prédio e brevemente se faria a escritura.
VI. Desde o ano de 1999, e até à presente data, os Recorrentes estão, ininterruptamente, na posse do lote de terreno, que fica contiguo à sua habitação, nele plantando, colhendo e fazendo seus, os mais diversos produtos hortícolas, tendo até aberto uma porta na sua casa que dá directamente para o lote em causa.
VII. Os Recorrentes peticionaram o recebimento da quantia de 46.959,12 € (quarenta e seis mil, novecentos e cinquenta e nove euros e doze cêntimos) de sinal em dobro, caso a massa insolvente não honrasse o contrato promessa celebrado.
VIII. Porque houve a tradição do lote dos insolventes para os Recorrentes, que o possuem ininterruptamente há 25 anos, estes têm direito de retenção sobre o mencionado lote, até que lhe seja entregue a quantia de 46.959,12 € a que têm direito, nos termos do nº 1, alínea f), do artº 755º do Código Civil, 442.º do CC e nº 1 e 2 do artº 759º do mesmo diploma legal.
IX. “In casu”, encontramo-nos perante o direito de retenção considerado no artº 755º do Código Civil, pois os Recorrentes adquiriram o “corpus” e têm, também, o “animus possidendi”,
X. Por sentença proferida a 31.03.2015 os Insolventes foram condenados a pagar aos Recorrentes a quantia de € 46.959,12, reconhecendo, assim, o Tribunal o crédito dos mesmos sobre os insolventes e foi considerado verificado o direito de retenção dos Recorrentes sobre o lote nº ...9 do novo projeto de loteamento, com a área de 492,30 m2, loteamento este que tinha o projeto de arquitetura devidamente aprovado pela Câmara Municipal ..., e que correspondia ao processo nº ...9, do loteamento urbano que estava a ser desenvolvido em dois prédios rústicos, sitos no lugar de ... ou ..., freguesia ..., ..., inscritos na matriz respetiva sob os artºs ...13 e ...14, sendo o crédito dos Recorrentes garantido nestes termos.
XI. Assim, os Recorrentes viram o seu crédito reconhecido e foi constituído a seu favor um direito de retenção sobre o imóvel.
XII. A 26 de setembro de 2023, a filha dos insolventes manifestou a sua intenção em exercer o seu direito de remição - a qual foi tida por extemporânea pelo Sr. AI e não foi objeto de qualquer impugnação.
XIII. A 06.10.2023 e a 25.10.2023, os Recorrentes apresentaram junto do Sr. Administrador de Insolvência proposta de adjudicação do imóvel pelo valor de 46.959,12 Euros, requerendo a dispensa de depósito do preço, considerando a natureza do seu crédito, nos termos do art. 815.º do CPC, por expressa remissão do art. 165.º do CIRE.
XIV. O Sr. AI requereu, ao Tribunal, a emissão de certidão para efeitos de outorga da escritura de compra e venda do lote ...9.
XV. A 21.11.2023, veio a filha dos insolventes exercer o seu direito e remição.
XVI. O que mereceu a impugnação dos Recorrentes porquanto, além de intempestiva, sempre deveria haver preferência dos Recorrentes considerando o direito de retenção dos mesmos.
XVII. Ora, não pode o direito de remição da filha dos insolventes ser prioritário face ao direito de retenção dos recorrentes.
XVIII. No caso sub judicie, os Recorrentes invocaram o incumprimento do contrato-promessa e tendo sido dado como provado que ocorreu a tradição da coisa.
XIX. Pelo que, os Recorrentes gozam do direito de retenção sobre o lote ...9, prometido comprar pelo crédito resultante do não cumprimento imputável aos insolventes nos termos aos artigos 755º, n° 1 alínea f) e 442 do Código Civil.
XX. Ademais, estão investidos na posse do lote, que lhes foi entregue como contrapartida do pagamento do sinal.
XXI. O direito de retenção consiste na faculdade que tem o detentor de uma coisa de a não entregar a quem lha pode exigir, enquanto este não cumprir uma obrigação a que está adstrito para com aquele (art.º 754º do Código Civil), ou seja, é um direito real de garantia que consiste na faculdade de uma pessoa reter ou não restituir uma coisa alheia que possui ou detém até ser paga do que lhe é devido por causa dessa coisa, pelo respetivo proprietário.
XXII. São pressupostos do direito de retenção do promitente comprador a aquisição, a traditio do objeto mediato do contrato prometido, o incumprimento definitivo do contrato-promessa pelo promitente da alienação, e a existência contra este, por virtude daquele incumprimento, de um direito de crédito da titularidade do primeiro.
XXIII. Recaindo o direito de retenção sobre coisa imóvel, o respetivo titular, enquanto não entregar a coisa retida, tem a faculdade de a executar, nos mesmos termos em que o pode fazer o credor hipotecário, e de ser pago com preferência aos demais credores do devedor (art.º 759º, nº 1, do Código Civil). O direito de retenção prevalece neste caso sobre a hipoteca, ainda que esta tenha sido registada anteriormente (art.º 759º, nº 2, do mesmo código).
XXIV. No caso de existir tradição da coisa para o promitente-comprador, especialmente quando a promessa tem eficácia real (art.º 413º do Código Civil) não parece ser possível a recusa de cumprimento por parte do administrador da insolvência, devendo ser reconhecida no âmbito da graduação dos créditos a garantia do direito de retenção, prevista no art.º 755º, nº l, al. f), do Código Civil.
XXV. Vigorando, mas não estando cumprido o contrato-promessa, os Recorrentes mantiveram-se e mantém-se na posse do lote.
XXVI. A traditio basta-se com a detenção material da coisa, não sendo necessária uma verdadeira posse.
XXVII. O art.º 754º do Código Civil limita-se a pressupor a detenção da coisa, sem curar de como a ela acedeu o detentor, só excluindo o art.º 756º o direito de retenção àqueles que tenham obtido conscientemente por meios ilícitos a coisa que devem entregar.
XXVIII. Nesse sentido, a traditio projeta-se no corpus, possibilita uma relação com e sobre o objeto e compõe-se de dois elementos: negativo (o abandono pelo anterior possuidor) e a apprehensio ou entrega ao novo possuidor.
XXIX. Verificada a traditio do lote, objeto mediato do contrato definitivo prometido, o incumprimento definitivo do contrato-promessa pelo promitente alienante e a titularidade pelo promitente-adquirente do lote, por virtude do incumprimento, de um direito de crédito, preenchem-se os requisitos previstos na al. f) do nº 1 do art.º 755º do Código Civil relativamente ao lote ...9 que foi entregue e é possuído pelos recorrentes, podendo estes retê-lo, recusando a sua restituição enquanto não forem pagos do seu crédito, designadamente pelo produto da sua venda, com preferência sobre os demais credores.
XXX. O contrato-promessa que está na origem do crédito dos Recorrentes envolve o lote ...9 que estes usam há mais de 25 anos.
XXXI. Assim, os Recorrentes são consumidores e como aponta o acórdão uniformizador nº 4/2014, está em causa a proteção dos consumidores no mercado da habitação, por serem a parte mais débil.
XXXII. Com efeito, o crédito dos Recorrentes está garantido pelo direito de retenção.
XXXIII. E este direito de retenção tem que prevalecer perante o direito de remição da filha dos insolventes.
XXXIV. Isto porque os Recorrentes anuem em ficar com o lote ...9 pelo valor da dívida.
XXXV. Face ao antes exposto, não andou bem o despacho recorrido ao declarar “que a proposta apresentada por EE e mulher FF é extemporânea” e ao “autorizar o senhor AI a efetuar a venda do lote ...9, ao abrigo do direito de remição, nos moldes propostos”.
XXXVI. Pelo que deve ser declarado nulo o despacho nos termos dos artigos 615.º, n.º1, “b)”, “c)” e “d)”, C.P.C., (considerando os vícios existentes de contradição entre os fundamentos do despacho e a decisão, obscuridade geradora de ininteligibilidade, omissão de pronúncia e falta de fundamentação), ou, caso assim se não entenda, e tendo em consideração a violação dos artigos art. 815.º do CPC, por expressa remissão do art. 165.º do CIRE, 755.º e 759.º do C.C., ser a mesma revogada por outra que decida no sentido defendido pelos Recorrentes, isto é, que julgue verificado o seu direito de retenção e a tempestividade da sua proposta de 46.959,12 Euros, com consequente adjudicação da mesma.

Não consta tenham sido apresentadas contra-alegações.

A Sra. Juiz a quo pronunciou-se dizendo que “[f]oram invocadas nulidades que não vislumbramos, antes se nos afigura que a recorrente discorda frontalmente da solução jurídica por nós encontrada, tendo proposto outra. Contudo, o tribunal superior melhor decidirá.”

E admitiu o recurso a subir imediatamente, em separado e com efeito devolutivo, o que não foi objecto de alteração por parte do relator.

Remetidos os autos a esta Relação a 19/05/2025 e conclusos ao ora Relator a 21/05/2025 foi proferido despacho a ordenar a baixa à 1ª instância para fixação do valor da causa.

Em 1ª instância foi fixado à causa o valor de € 46.959,12.

2. Questões a apreciar

O objecto do recurso é balizado pelo teor do requerimento de interposição (artº 635º nº 2 do CPC), pelas conclusões (art.ºs 608º n.º 2, 609º, 635º n.º 4, 637º n.º 2 e 639º n.ºs 1 e 2 do CPC), pelas questões suscitadas pelo recorrido nas contra-alegações em oposição àquelas, ou por ampliação (art.º 636º CPC) e sem embargo de eventual recurso subordinado (art.º 633º CPC) e ainda pelas questões de conhecimento oficioso, cuja apreciação ainda não se mostre precludida.

O Tribunal ad quem não pode conhecer de questões novas (isto é, questões que não tenham sido objecto de apreciação na decisão recorrida), uma vez que “os recursos constituem mecanismos destinados a reapreciar decisões proferidas, e não a analisar questões novas, salvo quando… estas sejam do conhecimento oficioso e, além disso, o processo contenha elementos imprescindíveis (cfr. António Abrantes Geraldes, in Recursos em Processo Civil, 7ª edição, Almedina, p. 139, sendo o sublinhado nosso).

Pela sua própria natureza, os recursos destinam-se à reapreciação de decisões judiciais prévias e à consequente alteração e/ou revogação, pelo que não é lícito invocar nos recursos questões que não tenham sido objecto de apreciação da decisão recorrida.

São três as questões que cabe apreciar de acordo com a sua ordem de precedência lógica:
i) a sentença é nula à luz das alíneas b), c) e d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC?
ii) o direito de retenção prevalece sobre o direito de remição na aquisição do bem objecto daquela garantia?
iii) o exercício do direito de remição pela filha dos insolventes é extemporâneo?

3. Das nulidades da sentença
3.1. Enquadramento jurídico

Dispõe o art.º 615º do CPC:
1. É nula a sentença quando:
(…)
b) Não especifique os fundamentos de facto e de direito que justificam a decisão;
c) Os fundamentos estejam em oposição com a decisão ou ocorra alguma ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível;
d) O juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento;
(…)”

Este normativo também é aplicável aos despachos como decorre do disposto no art.º 613º n.º 3 do CPC.

A sentença pode ser vista como trâmite ou como acto.

Enquanto trâmite, fica sujeito às nulidades processuais (art.º 195º).

Enquanto acto, pode ser perspectivado pelo seu conteúdo formal ou pelo seu conteúdo material: no que diz respeito à primeira perspectiva, fica sujeito às nulidades da sentença (art.º 615º do CPC), aplicável aos despachos (art.º 613º, n.º 3 do CPC) e aos acórdãos (666º, n.º 1); no que diz respeito à segunda perspectiva, pode incorrer em erro de julgamento, ficando, então, sujeito a ser anulado, revogado ou alterado.

A alínea b) está relacionada com o disposto:
- no art.º 205º n.º 1 da CRP, que dispõe que as decisões dos tribunais que não sejam de mero expediente são fundamentadas na forma prevista na lei;
 - no art.º 154º do CPC, que dispõe, no n.º 1, que as decisões proferidas sobre qualquer pedido controvertido ou sobre alguma dúvida suscitada no processo são sempre fundamentadas e, no n.º 2, que a justificação não pode consistir na simples adesão aos fundamentos alegados no requerimento ou na oposição, salvo, quando, tratando-se de despacho interlocutório, a contraparte não tenha apresentado oposição ao pedido e o caso seja de manifesta simplicidade;
- e especificamente, no que respeita à sentença, com o disposto no art.º 607º do CPC, cujo n.º 3 dispõe que nos fundamentos, deve o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes;
- e ainda com o disposto no n.º 4, o qual dispõe que na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.

De referir que a situação prevista nesta alínea b) só se verifica quando exista falta absoluta:
- da enunciação dos factos provados e dos factos não provados (art.º 607º, n.º 3);
- da motivação do julgamento de facto (art.º 607º n.º 4);
- ou da fundamentação de direito (art.º 607º, n.º 3).

Na jurisprudência e a título meramente exemplificativo, o Ac. do STJ de 02/03/2021,  processo 835/15.0T8LRA.C3.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj - “Só a absoluta falta de fundamentação - e não a errada, incompleta ou insuficiente fundamentação - integra a previsão da nulidade do artigo 615.º, n.º 1, al. b), do Código de Processo Civil”.

Quanto à fundamentação de direito, a medida da mesma dependerá da complexidade da questão objecto da decisão, do grau e natureza da controvérsia entre as partes e, até, eventualmente, da controvérsia doutrinal e jurisprudencial quanto à mesma.

Como referem Jorge Miranda e Rui Medeiros, in Constituição da República Portuguesa Anotada, Tomo III, Coimbra, 2007, págs. 72 e 73, a fundamentação das decisões judiciais, além de ser expressa, clara, coerente e suficiente, deve também ser adequada à importância e circunstância da decisão. Quer isto dizer que as decisões judiciais, ainda que tenham que ser sempre fundamentadas, podem sê-lo de forma mais ou menos exigente (de acordo com critérios de razoabilidade) consoante a função dessa mesma decisão.

A alínea c) tem dois fundamentos distintos - a contradição e a ininteligibilidade – que não se confundem.

A primeira (contradição): verifica-se quando ocorre incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão, ou seja, em que a fundamentação aponta num sentido que contradiz o resultado final (Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, CPC Anotado, I, 2ª edição, pág. 763).

A contradição entre fundamentos e a decisão é estritamente no plano lógico da construção da decisão. Coisa diversa é o próprio silogismo estar errado no seu mérito, por conter uma contradição com os factos ou com o direito: trata-se, então, de erro de julgamento, por o juiz decidir contra os factos ou contra “lei” que lhe impunha uma decisão diversa (Rui Pinto, Manual do Recurso Civil, AAFDL Editora, pág. 83).

Se a decisão sobre determinados pontos da matéria de facto for contraditória, a solução passa pela aplicação do disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 662º do CPC.

A este respeito afirmam Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC Anotado, Vol. 2, 3ª edição, pág. 736-737;
“Entre os fundamentos e a decisão não pode haver contradição lógica; se, na fundamentação da sentença, o julgador seguir determinada linha de raciocínio, apontando para determinada conclusão, e, em vez de a tirar, decidir noutro sentido, oposto ou divergente, a oposição será causa de nulidade da sentença. Esta oposição não se confunde com o erro na subsunção dos factos à norma jurídica ou, muito menos, com o erro na interpretação desta: quando, embora mal, o juiz entende que dos factos apurados resulta determinada consequência jurídica e este seu entendimento é expresso na fundamentação, ou dela decorre, encontramo-nos perante erro de julgamento e não perante oposição geradora de nulidade; mas já quando o raciocínio expresso na fundamentação aponta para determinada consequência jurídica e na conclusão é tirada outra consequência, ainda que esta seja a juridicamente correcta, a nulidade verifica-se.”

A ininteligibilidade verifica-se quando ocorre alguma ambiguidade ou obscuridade, ou seja, respectivamente, quando da decisão se puder extrair mais de um sentido ou quando não se puder retirar um sentido lógico, racional e coerente.

Cabe aqui perguntar qual o sentido da expressão “decisão” e, concretamente, se tem em vista o decisório e/ou também os fundamentos.

Referia Alberto dos Reis in CPC Anotado, Vol. V, pág. 151 que “a sentença é obscura quando contém algum passo cujo sentido seja ininteligível; é ambígua quando alguma passagem se preste a interpretações diferentes. (...) É evidente que, em última análise, a ambiguidade é uma forma especial de obscuridade. Se determinado passo da sentença é suscetível de duas interpretações diversas, não se sabe ao certo, qual o pensamento do juiz”.

Lebre de Freitas e Isabel Alexandre in CPC Anotado, I, pág. 734 entendem que a ininteligibilidade apenas tem em vista “a parte decisória da sentença”, referindo mais adiante (pág. 735) que “[n]o regime actual, a obscuridade ou ambiguidade, limitada à parte decisória, só releva quando um declaratário normal, nos termos dos art.ºs 236-1 CC e 238-1 CC, não possa retirar da decisão um sentido unívoco, mesmo depois de recorrer à fundamentação para a interpretar”; e ainda (pág. 741) que “[o] actual Código (…) passou a considerar causa de nulidade da sentença a ambiguidade ou obscuridade que torne a decisão ininteligível (art. 615-1-c), o que significa, (…) que a ambiguidade ou obscuridade da respectiva fundamentação (…) não pode ser arguida nos termos do art. 615 “.

Já Francisco Ferreira de Almeida in Direito Processual Civil, II, 3ª edição, pág. 454 refere que “a sentença padece de obscuridade quando algum dos seus passos enferma de ambiguidade, equivocidade ou falta de inteligibilidade:  de ambiguidade quando alguma das suas passagens se presta a diferentes interpretações ou pode comportar mais do que um sentido, quer na fundamentação, quer na decisão; de equivocidade quando o seu sentido decisório se perfile como duvidoso para um qualquer destinatário normal. Mas só ocorre a causa de nulidade do 2º segmento da al. c) do n.º 1 do art.º 615º, se tais vícios tornarem a decisão ininteligível ou incompreensível.”

E Remédio Marques in Ação Declarativa à Luz Do Código Revisto, 3ª edição, pág. 667 refere que a ambiguidade da sentença “exprime a existência de uma plurissignificação ou de uma polissemia de sentidos (dois ou mais) de algum trecho, seja da sua parte decisória, seja dos respetivos fundamentos” e, quanto à obscuridade, “traduz os casos de ininteligibilidade da sentença”.

Em primeiro lugar, não há dúvidas que a sentença é um acto jurídico (é um acto a que a lei atribui relevância e efeitos jurídicos), a que se aplicam as regras reguladoras dos negócios jurídicos (ex vi art.º 295º do Código Civil), pelo que as normas que disciplinam a interpretação da declaração negocial (artigos 236º, nº 1 e 238º, nº 1, do CC), são igualmente válidas para a interpretação daquela.

Assim, a interpretação da sentença deve fazer-se de acordo com o sentido que um declaratário normal, colocado na situação do real declaratário, possa deduzir do conteúdo nela expresso, ainda que menos perfeitamente (artºs 236º, nº. 1 e 238º, nº. 1 do Código Civil)

Mas sendo um acto formal, não pode a mesma valer com um sentido que não tenha na respectiva letra um mínimo de correspondência verbal, ainda que imperfeitamente expresso (cfr. Ac. do STJ de 03/02/2011, proc. 190-A/1999.E1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj). Ou seja: a interpretação tem como limite o texto decisório, apenas sendo lícito extrair dele o significado permitido pelas normas sobre interpretação dos actos processuais.

Além disso, a sua interpretação não pode assentar, apenas, no teor literal da respetiva parte decisória, impondo-se, também, considerar os respectivos fundamentos, os quais são constitutivos e determinantes da decisão, ou seja, a decisão só se compreende à luz dos respectivos fundamentos (no sentido de tudo o até aqui exposto, os Acs. do STJ de 23/01/2019, proc. 4568/13.3TTLSB.L2.S1 e de  01/07/2021, proc. 726/15.4T8PTM.E1.S1, ambos consultáveis in www.dgsi.pt/jstj).

Assim também Francisco Ferreira de Almeida, in Direito Processual Civil, II, 3ª edição, pág. 765:
 “É da sentença no seu todo que hão-de extrair-se os verdadeiros sentido, conteúdo e objeto do julgado; importa, por isso, ponderar e sopesar devidamente os motivos, isto é, a parte justificativa (motivatória) da decisão, em ordem a surpreender nela uma qualquer restrição ou ampliação do dispositivo, ou mesmo a concluir que determinadas questões não foram objeto de resolução explícita ou sequer implícita (apesar da amplitude da redação da parte dispositiva) ou ainda, e ao invés, que foram consideradas e decididas questões não compreendidas na parte dispositiva. No fundo, tornar-se-á, amiúde, necessário recorrer ao arrazoado da sentença para captar o verdadeiro pensamento do julgador.”

Neste contexto, a ambiguidade ou obscuridade tanto se pode verificar nos fundamentos, como no próprio decisório.

Mas verificando-se nos fundamentos, não pode ser objecto de invocação autónoma para efeitos da alínea c) do n.º 1 do art.º 615º. Só se a ambiguidade ou obscuridade “torn[ar] a decisão ininteligível”, ou seja, só se se alguma delas se projectar, repercutir no decisório.

Neste sentido o Ac. do STJ de 31.03.2022, processo 812/06.1TBAMT.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj onde se afirma:
“A ambiguidade ou obscuridade relevante não é apenas aquela que possa afectar a decisão (o dispositivo), podendo encontrar-se nos respectivos fundamentos. No entanto, e conforme resulta da construção verbal da disposição legal, não é qualquer ambiguidade ou obscuridade que provoca a nulidade da sentença, mas apenas aquela que torna a decisão ininteligível. Ou seja, quando a decisão e o raciocínio que lhe está subjacente (o silogismo judiciário) não se logra entender, por surgir como enigmático, impenetrável, inacessível.”

De notar que apenas se tem em vista os fundamentos de direito, porquanto se estiver em causa uma obscuridade ao nível dos factos, não é aplicável o disposto na alínea c) do n.º 1 do art.º 615º do CPC, mas sim a alínea c) do n.º 2 do art.º 662º do CPC: o tribunal ad quem suprirá a obscuridade se tiver elementos para tal ou anulará a decisão de facto.

A alínea d) contempla duas situações: a) quando o juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar (omissão de pronúncia) ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento (excesso de pronúncia).

A primeira está relacionada com a 1ª parte do n.º 2 do art.º 608º do CPC, onde se dispõe: “O juiz deve resolver todas as questões que as partes tenham submetido à sua apreciação, exceptuadas aquelas cuja decisão esteja prejudicada pela solução dada a outras;…”

O normativo tem em vista as questões essenciais, ou seja, o juiz deve conhecer todos os pedidos, todas as causas de pedir e todas as excepções invocadas e as que lhe cabe conhecer oficiosamente (desde que existam elementos de facto que as suportem), sob pena da sentença ser nula por omissão de pronúncia.

Mas, como tem vindo a ser afirmado, quer pela doutrina, quer pela jurisprudência, as questões essenciais não se confundem com os argumentos invocados pelas partes nos seus articulados.

Não podem confundir-se “as questões que os litigantes submetem à apreciação e decisão do tribunal com as razões (de facto ou de direito), os argumentos, os pressupostos em que a parte funda a sua posição na questão” (Alberto dos Reis, Código de Processo Civil Anotado, Volume V, Coimbra Editora, Limitada, pág. 143).

O que a lei impõe, sob pena de nulidade, é que o juiz conheça as questões essenciais e não os argumentos invocados pelas partes (sendo abundante a jurisprudência em que esta questão é suscitada, vd., a título meramente exemplificativo o Ac. do STJ de 21/01/2014, proc. 9897/99.4TVLSB.L1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jst).

Por outro lado, o facto de, eventualmente, o tribunal a quo não se ter pronunciado quanto a factos alegados, não constitui nulidade nos termos e para os efeitos do disposto no art.º 615º, n.º 1, alínea d) do CPC.

É que as questões essenciais que a 1ª parte do n.º 2 do art.º 608º do CPC impõe que o juiz conheça, também não se confundem com “factos”.

Como refere Alberto dos Reis, in CPC Anotado, Volume V, 1984, pág. 145: “Uma coisa é tomar em consideração determinado facto, outra conhecer de questão de facto de que não podia tomar conhecimento; o facto material é um elemento para a solução da questão, mas não é a própria questão.”

E como decidido pelo Ac. do STJ de 23/07/2017, processo 7095/10.7TBMTS.P1.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj, “o não atendimento de um facto que se encontre provado ou a consideração de algum facto que não devesse ser atendido”: são situações que “não se traduzem em vícios de omissão ou de excesso de pronúncia, dado que tais factos não constituem, por si, uma questão a resolver nos termos do artigo 608.º, n.º 2, do CPC, antes se tratando de situações que se reconduzem “a erros de julgamento passíveis de ser superados nos termos do artigo 607.º, n.º 4, 2.ª parte, aplicável aos acórdãos dos tribunais superiores por via dos artigos 663.º, n.º 2, e 679.º do CPC”.

Destarte e quando muito, estar-se-á perante uma deficiência da matéria de facto, patologia a suprir nos termos do disposto na alínea c) do n.º 2 do art.º 662º do CPC.

A segunda verifica-se quando o tribunal conhece de questões que não foram invocadas pelas partes e de que não podia conhecer oficiosamente.

Naturalmente, que tal conhecimento há-de importar consequências para a decisão da causa, ou seja, desse conhecimento hão-de ser extraídos efeitos jurídicos.

Caso assim não suceda, caso o juiz conheça de uma questão que é desnecessária para a boa decisão da causa, no sentido em que o seu conhecimento se revela inconsequente para a decisão final, o juiz terá praticado um acto inútil (art.º 130º), mas não ocorre nulidade da sentença por excesso de pronúncia.

Por outro lado, não há excesso de pronúncia se o juiz para decidir usar de fundamentos jurídicos diferentes dos invocados pelas partes (Ac. do STJ de 27/04/2017, proc. 685/03.6TBPRG.G1.SI, consultável in www.dgsi.pt/jstj).

Já Alberto dos Reis, in ob. cit. pág. 56 afirmava: “Não basta que haja coincidência ou identidade entre o pedido e o julgado; é necessário, além disso, (…) que haja identidade entre a causa de pedir (causa petendi) e a causa de julgar (causa judicandi).”

E depois de analisar situações em que o que ocorreu foi uma diferente qualificação jurídica dos factos, afirma (pág. 58) que: “quando o juiz julga procedente a acção com fundamento em causa de pedir diversa da alegada pelo autor, conhece de questão que o autor não submeteu à sua apreciação, isto é, de questão de que não podia tomar conhecimento”, considerando que a sentença incorria na nulidade prevista na 2ª parte do n.º 4 do art.º 668º do CPC então vigente, ou seja, em excesso de pronúncia e que hoje integra a 2ª parte da alínea d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC.

Também Miguel Teixeira de Sousa, in Estudos… pág. 223 refere que “se o tribunal condena no pedido formulado, mas utiliza um fundamento que excede os seus poderes de conhecimento, a hipótese cabe na nulidade prevista no art.º 668º, n.º 1 alínea d), 2ª parte” e que corresponde hoje à 2ª parte da alínea d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC.

E Lebre de Freitas e Isabel Alexandre, in CPC anotado, II volume, pág. 737 referem: “Não podendo o juiz conhecer de causas de pedir não invocadas, nem de excepções não deduzidas na exclusiva disponibilidade das partes (art.º 608-2) é nula a sentença que o faça.”

Na jurisprudência o Ac do STJ de 07/04/2016, processo 842/10.9TBPNF.P2.S1, consultável in www.dgsi.pt/jstj refere:
“… para além de o processo só se iniciar sob o impulso do autor ou requerente – tem este o ónus de delimitar adequadamente o thema decidendum, formulando o respectivo pedido, ou seja , indicando qual o efeito jurídico, emergente da causa de pedir invocada, que pretende obter e especificando ainda qual o tipo de providência jurisdicional requerida, em função da qual se identifica, desde logo, o tipo de acção proposta ou de incidente ou providência cautelar requerida - definindo ainda o núcleo essencial da causa de pedir em que assenta a pretensão deduzida .
Daqui decorre naturalmente um princípio de correspondência ou congruência entre o pedido deduzido e a pronúncia jurisdicional obtida pela parte, devendo o decidido pelo juiz adequar-se às pretensões formuladas, ser com elas harmónico ou congruente, sob pena de se verificar a nulidade da sentença por excesso de pronúncia”

Também o Ac. do STJ de 05/12/2019, processo 5940/16.2T8GMR.G1.S2, consultável in www.dgsi.pt/jstj, conclui que “incorre em nulidade por excesso de pronúncia o acórdão que conhece de um pedido com base em causa de pedir diversa da que o havia fundado.”

3.2. Em concreto

Na conclusão XXXVI os recorrentes referem:
Pelo que deve ser declarado nulo o despacho nos termos dos artigos 615.º, n.º1, “b)”, “c)” e “d)”, C.P.C., (considerando os vícios existentes de contradição entre os fundamentos do despacho e a decisão, obscuridade geradora de ininteligibilidade, omissão de pronúncia e falta de fundamentação)..

Percorridas as alegações verifica-se que, para além de idêntica referência no ponto 85 das mesmas, os recorrentes nada mais alegam para consubstanciar a nulidade da sentença à luz das citadas normas, bem se podendo afirmar que é manifesta a respectiva falta de “causa de pedir”.

No entanto sempre se dirá que:
- a decisão não padece de falta absoluta de fundamentação de facto ou de direito;
- não se vislumbra qualquer incompatibilidade entre os fundamentos e a decisão nem desta se pode extrair mais de um sentido, sendo que o sentido que dela se extrai  é perfeitamente inteligível, tendo os recorrentes compreendido inequivocamente a mesma, como, aliás, decorre do recurso;
- finalmente, o tribunal a quo conheceu das questões que tinha de conhecer, não estando obrigado a conhecer de todos os argumentos invocados, não se vislumbrando, minimamente, que o tribunal a quo tenha conhecido de questão que não tenha sido invocada pelas partes e de que não podia conhecer oficiosamente.
           
Improcede assim, sem necessidade de outras considerações, por desnecessárias, a invocada nulidade da sentença à luz das alíneas b), c) e d) do n.º 1 do art.º 615º do CPC.

4. Fundamentação de facto
As incidências fácticas relevantes para a decisão são as indicadas no antecedente relatório, que aqui se dão por reproduzidas, apenas cabendo acrescentar que de acordo com a certidão do assento de nascimento junta com o requerimento de 26/09/2023 apresentado por GG, esta é filha dos insolventes.

5.  Fundamentação de direito
5.1. Enquadramento jurídico
Aos juízes está cometida a tarefa de dirimir os conflitos entre privados (art.º 202º, n.º 1 da CRP).

E desempenham tal tarefa subordinados, única e exclusivamente, às normas que constituem a ordem jurídico-constitucional e não a outras ordens, como a moral (art.º 203º da CRP).

E desempenham ainda essa tarefa aplicando as normas que constituem a ordem jurídico-constitucional que forem concretamente convocáveis, aos factos.

Vejamos então e antes de mais qual a normação jurídica convocável para a situação em apreço.

5.1.1. Reclamação e graduação de créditos
Dispõe o art.º 1º do CIRE que o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a satisfação dos credores pela forma prevista num plano de insolvência, baseado, nomeadamente, na recuperação da empresa compreendida na massa insolvente, ou, quando tal não se afigure possível, na liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores.

Decorre da primeira parte deste normativo que preside ao procedimento de insolvência um princípio de universalidade, o que significa, em primeira linha, a aglutinação de toda a vida patrimonial activa e passiva do insolvente e em segunda linha que todas as responsabilidades do mesmo são apreciadas no procedimento de insolvência, mais concretamente na verificação do passivo.

E por isso dispõe o art.º 90º do CIRE que “[o]s credores da insolvência apenas poderão exercer os seus direitos em conformidade com os preceitos do presente Código, durante a pendência do processo de insolvência”.

Destarte, “para poderem beneficiar do processo de insolvência e aí obterem, na medida do possível, a satisfação dos seus interesses, os credores têm de nele exercer os direitos que lhes assistem, procedendo nomeadamente, à reclamação dos créditos de que sejam titulares, ainda que eles se encontrem reconhecidos em outro processo”, como afirmam Carvalho Fernandes e João Labareda, CIRE Anotado, 3ª edição, pág. 438.

E por isso dispõe o art.º 128.º, n.º 1 do CIRE, que, “[d]entro do prazo fixado para o efeito na sentença declaratória da insolvência, devem os credores da insolvência, incluindo o Ministério Público na defesa dos interesses das entidades que represente, reclamar a verificação dos seus créditos por meio de requerimento, acompanhado de todos os documentos probatórios de que disponham, no qual indiquem:…”

E o n.º 3 que “[a] verificação tem por objecto todos os créditos sobre a insolvência, qualquer que seja a sua natureza e fundamento, e mesmo o credor que tenha o seu crédito reconhecido por decisão definitiva não está dispensado de o reclamar no processo de insolvência, se nele quiser obter pagamento.”

Mas e como decorre do disposto no art.º 146º n.º 1 do CIRE, cuja impressiva epígrafe é “Verificação ulterior de créditos ou de outros direitos”, terminado o prazo para as reclamações de créditos - ou não vendo o credor o seu crédito incluído na lista de credores reconhecidos pelo administrador da insolvência -, é possível aos credores pedir o reconhecimento dos respectivos créditos, por forma a que sejam, ainda, atendidos no processo de insolvência.

Tal reconhecimento é feito por meio de ação proposta contra a massa insolvente, os credores e o devedor (ainda o n.º 1 do art.º 146º do CIRE), acção esta que corre por apenso aos autos da insolvência e que segue os termos do processo comum (art.º 148º do CIRE).

A graduação dos créditos significa “a definição de prioridade entre os créditos quanto à sua satisfação pelo produto dos bens do devedor” (cfr. Rui Pinto Duarte in Classificação dos créditos sobre a massa insolvente no projecto de Código da Insolvência e Recuperação de Empresas in CIRE, Ministério da Justiça, 2004, pág. 54).

Em termos gerais o art.º 604º do CC estabelece no n.º 1 que não existindo causas legítimas de preferência, os credores têm o direito de ser pagos proporcionalmente pelo preço dos bens do devedor, quando ele não chegue para integral satisfação dos débitos e o n.º 2 estabelece que são causas legítimas de preferência, além de outras admitidas na lei, a consignação de rendimentos, o penhor, a hipoteca, o privilégio e o direito de retenção.

O CIRE estabelece no n.º 4 do art.º 47º que os créditos sobre a insolvência são:
a) os créditos “garantidos” ou “privilegiados”;
b) os créditos subordinados;
c) os créditos comuns.

E define os créditos ‘Garantidos’ e ‘privilegiados’ nos seguintes termos: os créditos que beneficiem, respectivamente, de garantias reais, incluindo os privilégios creditórios especiais, e de privilégios creditórios gerais sobre bens integrantes da massa insolvente, até ao montante correspondente ao valor dos bens objecto das garantias ou dos privilégios gerais, tendo em conta as eventuais onerações prevalecentes.

Isto sem prejuízo do disposto no art.º 97º do CIRE que determina a extinção com a declaração da insolvência dos privilégios creditórios e garantias reais ali enunciadas.

De referir que a aparente hierarquização que resulta do art.º 47º é desde logo contrariada pelo corpo do art.º 48º do CIRE, que determina que os créditos subordinados são graduados depois de todos os créditos sobre a insolvência, ou seja, em último lugar.

Finalmente e nos termos do n.º 2 do art.º 140º do CIRE a graduação é geral para os bens da massa insolvente e é especial para os bens a que respeitem direitos reais de garantia e privilégios creditórios, determinando o n.º 3 que na graduação de créditos não é atendida a preferência resultante de hipoteca judicial, nem a proveniente da penhora, mas as custas pagas pelo autor ou exequente constituem dívidas da massa insolvente.

5.1.2. Da liquidação
No que à liquidação diz respeito, o n.º 1 do art.º 158º do CIRE dispõe que:
Transitada em julgado a sentença declaratória da insolvência e realizada a assembleia de apreciação do relatório, o administrador da insolvência procede com prontidão à venda de todos os bens apreendidos para a massa insolvente, independentemente da verificação do passivo, na medida em que a tanto se não oponham as deliberações tomadas pelos credores na referida assembleia, apresentando nos autos, para o efeito, no prazo de 10 dias a contar da data de realização da assembleia de apreciação do relatório, um plano de liquidação de venda dos bens, contendo metas temporalmente definidas e a enunciação das diligências concretas a encetar.”

No âmbito da liquidação, dispõe o art.º 164º n.º 1 do CIRE, na redacção que lhe foi conferida pelo DL 79/2017, de 30/06, que o administrador da insolvência procede à alienação dos bens preferencialmente através de venda em leilão eletrónico, podendo, de forma justificada, optar por qualquer das modalidades admitidas em processo executivo ou por alguma outra que tenha por mais conveniente.

O n.º 1 do art.º 164º estabelece uma forma preferencial de o administrador  alienar os bens que compõem a massa, mas o mesmo pode, justificadamente, optar por outra modalidade de venda.

O n.º 2 do art.º 164º dispõe que o credor com garantia real sobre o bem a alienar é sempre ouvido sobre a modalidade da alienação, e informado do valor base fixado ou do preço da alienação projectada a entidade determinada.

E o n.º 3 dispõe que, se, no prazo de uma semana, ou posteriormente mas em tempo útil, o credor garantido propuser a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada ou ao valor base fixado, o administrador da insolvência, se não aceitar a proposta, fica obrigado a colocar o credor na situação que decorreria da alienação a esse preço, caso ela venha a ocorrer por preço inferior.

Na 1ª parte deste n.º 3 encontra-se a finalidade do n.º 2: facultar ao credor garantido – entenda-se, ao credor com garantia real - a possibilidade de no prazo de uma semana, ou posteriormente mas em tempo útil, propor a aquisição do bem, por si ou por terceiro, por preço superior ao da alienação projectada.

Finalmente, o n.º 4 dispõe que a proposta prevista no número anterior só é eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 10 /prct. do montante da proposta, aplicando-se, com as devidas adaptações, o disposto nos artigos 824.º e 825.º do Código de Processo Civil.

5.1.3. Direito de retenção
O direito de retenção está previsto no art.º 754º do CC o qual dispõe:
“O devedor que disponha de um crédito contra o seu credor goza do direito de retenção se, estando obrigado a entregar certa coisa, o seu crédito resultar de despesas feitas por causa dela ou de danos por ela causados.”

 Como refere Miguel Pestana de Vasconcelos in Direito das Garantias, 3ª edição, pág. 387 o “direito de retenção consiste ao mesmo tempo num direito real de garantia de origem legal e de um meio de compelir o devedor ao cumprimento através da recusa lícita de cumprir a obrigação de entrega de uma coisa que lhe pertence, por parte do seu credor que a tem (a coisa) em seu poder, enquanto o primeiro não realizar a sua prestação.”

Um dos casos especiais do direito de retenção é, nos termos da alínea f) do n.º 1 do art.º 755º do CC, do beneficiário da promessa de transmissão ou constituição de direito real que obteve a tradição da coisa a que se refere o contrato prometido, sobre essa coisa, pelo crédito resultante do não cumprimento imputável à outra parte, nos temos do artigo 442.º.

Por outro lado, nos termos do disposto no art.º 759º n.º 2 do CC o direito de retenção prevalece sobre a hipoteca ainda que tenha sido anteriormente registada.

Mas no domínio insolvencial o direito de retenção apresenta contornos específicos (sobre a questão cfr. Miguel Pestana de Vasconcelos in Direito das Garantias, 3ª edição, pág. 419 e segs.).

Assim e desde logo, uma vez proferida a sentença declaratória de insolvência, procede-se à imediata apreensão de todos os bens integrantes da massa insolvente (cfr. art.º 36.º, alínea g) do CIRE) ainda que estes tenham sido penhorados, ou por qualquer forma apreendidos ou detidos (artigo 149º do CIRE), devendo o administrador de insolvência diligenciar no sentido de os bens lhe serem imediatamente entregues para que deles fique depositário, com a aplicação das regras que regem o depósito judicial de bens penhorados (artigo 150º nº 1 do CIRE), destinando-se a massa insolvente, que abrange todo o património do devedor e que os bens apreendidos vão integrar, à satisfação dos credores da insolvência (artigo 46º do CIRE).

Daqui decorre, nomeadamente, que o direito de retenção não impede a apreensão (tal como não impediria a penhora em execução singular) para a massa insolvente dos bens que tenha como objecto, embora tal direito também não se extinga.

O direito de retenção não possibilita, assim, ao seu titular manter-se na detenção do bem pertença da massa insolvente, o qual deve ser apreendido para a massa.

O credor titular do direito de retenção, terá, apenas, o direito de se fazer pagar, com a preferência estabelecida na lei, pelo valor do bem objecto do direito de retenção.

Destarte, tal direito apenas releva para efeitos de reclamação, graduação e satisfação do crédito do respectivo titular, não autorizando, de forma alguma, a eventual detenção do bem sobre que incida.

O credor titular de tal direito terá de exercer o seu direito, como titular de um crédito garantido (art.º 47º, n.º 4, al. a) do CIRE), no processo de insolvência, reclamando-o nos termos já referidos ou intentando acção de verificação ulterior de créditos.

No sentido referido Miguel Pestana de Vasconcelos in ob. cit., pág. 419 e Alexandre Soveral Martins in Um Curso de Direito da Insolvência, I, 4.ª ed., p. 274 quando afirma: “Existindo direito de retenção, isso não afasta a apreensão da coisa pelo administrador da insolvência. O que permite, isso sim, é reclamar um crédito garantido que será assim tratado no processo de insolvência”.

E na jurisprudência cite-se, a título meramente exemplificativo:
- o Ac. da RC de 15/01/2015, processo n.º 511/10.0TBSEI-E.C1, consultável in www.dgsi.pt/jtrc sumariado nos seguintes termos;
XXV -Declarada a insolvência do dono da coisa, o retentor terá que a entregar ao administrador, dado que tratando-se de bem do insolvente, e, portanto, integrante da massa, aquele terá que a apreender, mas sem que aquele direito real de extinga (artºs 46º, nº 1, 149º e 150º do CIRE).
XXVI - O retentor terá, pois, de reclamar o seu direito de crédito (artº 47º, nº 4 a) do CIRE).

- o Ac. da RL de 20/12/2018, processo 317/13.4 TYLSB-L.L1-6, consultável in www.dgsi.pt/jtrl sumariado nos seguintes termos:
1- Declarada a insolvência do devedor, devem ser apreendidos para a massa insolvente todos os seus bens para liquidação e satisfação dos direitos dos credores, incluindo os bens objecto de direito de retenção.
2- A entrega ao administrador de insolvência do imóvel ocupado a título direito de retenção não faz extinguir este direito, desde que, para além dos demais pressupostos legais, tal ocupação exista à data da declaração de insolvência e, sendo o crédito reconhecido como garantido com direito de retenção na sentença de verificação e graduação de crédito, será o mesmo graduado de acordo com esta garantia, no lugar que lhe compete.

- e de forma lapidar o Ac. do STJ de 30/04/2019, processo 2164/11.9TBSTR.E1.S2, consultável in www.dgsi.pt/jstj, sumariado nos seguintes termos (negrito nosso):          
I - O direito de retenção que assiste ao beneficiário de promessa de transmissão de coisa que foi traditada pelo insolvente não impede a apreensão dessa coisa pelo administrador da insolvência nem confere ao beneficiário o direito de a reter ou deter.
II - Tal beneficiário goza da garantia conferida pelo direito de retenção, mas os respetivos efeitos resumem-se à prioridade, nos termos da competente decisão de graduação dos créditos, na satisfação do seu crédito.

E compreende-se que assim seja: só com tal apreensão e entrega se cumprem as finalidades próprias do processo de insolvência, e que são (a menos que haja aprovação de um plano de insolvência) a liquidação do património do insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores (art.º 1.º do CIRE).

E apreendido o mesmo para a massa, o direito de retenção não impede a venda, eventualmente, a terceiro e a entrega do mesmo ao comprador.

5.1.4. Direito de remição
Como decorre do disposto no art.º 17º do CIRE, o processo de insolvência rege-se pelo Código de Processo Civil em tudo o que não contrarie o disposto no CIRE.

Decorre deste normativo que o processo de insolvência rege-se pelas normas que lhe são próprias e pelas disposições do processo civil relativas ao processo comum de declaração, quando estejam em causa aspectos de índole declarativa, e pelas disposições relativas ao processo comum executivo, quando estejam em causa aspectos de índole executiva, como já decorreria do disposto no art.º 549º n.º 1 do CPC, em virtude de o processo de insolvência ser um processo especial.

O processo ordinário da execução para pagamento de quantia certa (capítulo I do título III) contém uma secção que rege sobre o “pagamento”, que se inicia no art.º 795º e cujo n.º 1 dispõe que o pagamento pode ser feito pela entrega de dinheiro, pela adjudicação dos bens penhorados, pela consignação dos seus rendimentos ou pelo produto da respetiva venda.

E na secção imediatamente a seguir, que comporta quatro normativos – art.ºs 842º a 845º -, rege sobre a “Remição”.

Dispõe o art.º 842º do CPC:
Ao cônjuge que não esteja separado judicialmente de pessoas e bens e aos descendentes ou ascendentes do executado é reconhecido o direito de remir todos os bens adjudicados ou vendidos, ou parte deles, pelo preço por que tiver sido feita a adjudicação ou a venda.

É entendimento comum que o direito de remição é um direito de preferência especial ou qualificado, de formação processual, que se constitui no contexto da liquidação judicial de bens, visando proteger a integridade do património familiar, permitindo impedir que os bens da família passem para as mãos de estranhos. A protecção do património familiar é potenciada pela atribuição de um direito de preferência qualificado às pessoas enunciadas no preceito, a quem é atribuída a faculdade de se substituírem ao adjudicatário ou ao comprador na aquisição dos bens penhorados, mediante o pagamento do preço por eles oferecido (cfr. Lebre de Freitas in A Acção Executiva, 7ª edição, pág. 387 e segs; Abrantes Geraldes, Paulo Pimenta e Luís Sousa, in CPC Anotado, II, anotação ao art.º 842º, pág. 262-263; Marco Carvalho Gonçalves in Lições de Processo Executivo, 5ª edição, pág. 543 e Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo in A Acção Executiva Anotada e Comentada, 4ª edição, pág. 593 e segs e na jurisprudência, vasta, sobre o tema, a titulo exemplificativo, o Ac. do STJ de 12/03/2024, processo 23597/09.5T2SNT-B.L1.S1, consultável in www,dgsi.pt/jstj).

Direito de preferência porque, como referem João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa in Manual de Processo Civil II, pág. 936, “permite que o remidor faça seus os bens adjudicados ou vendidos pelo preço que tiver sido oferecido pelo adjudicatário ou comprador.”
 
Ou como se referiu no Ac. da RC de 17/12/2014, processo 306/05.2TBPCVF.C1, consultável in www.dgsi.pt/jtrc “o direito de remição encontra a sua origem na ideia de protecção do património familiar, sendo um direito com origem processual, que se constitui no momento da venda ou da adjudicação dos bens e que no seu exercício tem os mesmos efeitos do direito real de preferência.”
Como resulta da letra da norma, o exercício do direito de remição está sujeito a duas condições: uma de ordem subjectiva – ser alguma das pessoas referidas no art.º 842º, a que haverá de acrescentar o unido de facto, sob pena de inconstitucionalidade de uma interpretação do art.º 842º do CPC que o excluísse – neste sentido o Ac. desta RG de 03/12/2020, processo 335/17.3T8CHV-D.G1, consultável in www.dgsi.pt/jtrg; e uma de ordem objectiva - o pagamento do preço acordado para a adjudicação ou a venda.

Por outro lado, quanto ao momento até ao qual pode ser exercido o direito de remição, dispõe o n.º 1 do art.º 843º do CPC:
1 - O direito de remição pode ser exercido:
a) No caso de venda por propostas em carta fechada, até à emissão do título da transmissão dos bens para o proponente ou no prazo e nos termos do n.º 3 do artigo 825.º;
b) Nas outras modalidades de venda, até ao momento da entrega dos bens ou da assinatura do título que a documenta.

A parte final da alínea b) abrange, nomeadamente, a venda por negociação particular de imóvel, situação em que a remição pode ter lugar até à outorga do título de transmissão (cfr. Ac. da RE de 28/03/2019, processo 419/08.9TBPTG-O.E1, consultável in www.dgsi.pt/jtre e o já citado Ac. do STJ de 12/03/2024, processo 23597/09.5T2SNT-B.L1.S1, consultável in www,dgsi.pt/jstj).

Por outro lado, ainda no âmbito da referida modalidade de venda, para que o direito de remição seja exercido, a venda tem de estar determinada, ou seja, no âmbito da insolvência, o AI há-de ter tomado a decisão de aceitar a proposta mais alta oferecida e à luz da qual o direito de remição irá ser exercido (adaptado de Virgínio da Costa Ribeiro e Sérgio Rebelo in A Acção Executiva Anotada e Comentada, 4ª edição, pág. 599, tomando como referência o agente de execução).

Finalmente e ainda para compreensão do instituto, dispõe o n.º 1 do art.º 844º do CPC, cuja epígrafe é “Predomínio da remição sobre o direito de preferência”, que o direito de remição prevalece sobre o direito de preferência.

Decorre deste normativo, como referem João de Castro Mendes e Miguel Teixeira de Sousa in ob. cit., pág. 938 “que o direito de remição pode ser exercido pelo remidor contra o titular de um direito de preferência oponível na execução, ou seja, contra o titular de um direito legal de preferência ou de um direito convencional de preferência com eficácia real. Desta prevalência também decorre que, uma vez exercido o direito de remição, nenhum direito de preferência é susceptível de ser exercido no processo executivo.”

5.2. Em concreto
5.2.1. Reconhecimento da qualidade de credores e do direito de retenção
Resulta do relatório supra que EE e FF intentaram, por apenso ao processo de insolvência, constituindo o seu apenso “L”, acção de verificação ulterior de crédito, na qual, a 31 de Março de 2015, foi proferida sentença com o seguinte decisório:
Pelo exposto, julgo a presente ação totalmente procedente e, em consequência:
a) condeno os RR. AA e BB a pagar aos AA., EE e FF, a quantia de € 46.959,12, reconhecendo, assim, o crédito dos AA. sobre os insolventes;
b) considero verificado o direito de retenção dos AA. sobre o lote nº ...9 do novo projeto de loteamento, com a área de 492,30 m2, loteamento este que tinha o projeto de arquitetura devidamente aprovado pela Câmara Municipal ..., e que correspondia ao processo nº ...9, do loteamento urbano que estava a ser desenvolvido em dois prédios rústicos, sitos no lugar de ... ou ..., freguesia ..., ..., inscritos na matriz respetiva sob os artºs ...13 e ...14, sendo o crédito dos AA. garantido nestes termos.

Destarte não sofre qualquer contestação de que os recorrentes são credores dos insolventes e que o seu crédito é garantido por direito de retenção.

Mas como já se deixou referido, dada a natureza e finalidades do processo de insolvência, o direito de retenção tem nesta sede uma específica configuração a qual não é devidamente considerada pelos recorrentes e que se traduz no seguinte:  os seus efeitos resumem-se à prioridade, nos termos da competente decisão de graduação dos créditos, na satisfação do seu crédito, não impedindo a apreensão do bem sobre que incida pelo administrador da insolvência, nem conferindo ao beneficiário o direito de a reter ou deter (cfr. o já citado Ac. do STJ de 30/04/2019, processo 2164/11.9TBSTR.E1.S2).

Os recorrentes citam vários acórdãos sobre o direito de retenção.
Mas nenhum deles tem em vista a exacta configuração do direito de retenção no processo de insolvência pelo que e em função disso, não têm relevância para a questão objecto do recurso.

5.2.2. O direito de retenção prevalece sobre o direito de remição na aquisição do bem objecto daquela garantia?
Como já se deixou dito, estabelecer a prioridade entre os créditos significa estabelecer a ordem por que os mesmos são satisfeitos pelo produto da venda dos bens do devedor.

E desde logo e em geral os créditos garantidos têm prioridade no pagamento sobre os créditos comuns e no domínio insolvencial os créditos comuns têm prioridade sobre os créditos subordinados.

De referir que os créditos garantidos não são pagos proporcionalmente.

Mas os créditos não têm todos a mesma prioridade. A lei estabelece prioridades entre eles, relevando, no caso, a prioridade do direto de retenção sobre a hipoteca – 759º, n.º 2 do CC.

Neste caso compreende-se a necessidade de estabelecer a referida prioridade porque a hipoteca é, também ela, uma garantia real que assegura o pagamento de um crédito, conferindo ao credor que dela beneficie o direito a ser pago pelo valor de certa coisa imóvel ou equiparada.

No caso dos autos não está em causa a referida prioridade.

Mas sempre se dirá que não estando subjacente ao direito de remição um crédito (ou, pelo menos, não sendo necessário que tal ocorra), não teria qualquer sentido aferir da existência de uma relação de prioridade com outros direitos e nomeadamente o direito de retenção.

O que está em causa é a alegada, pelos recorrentes, prevalência do direito de retenção sobre o direito de remição na aquisição do bem objecto daquela garantia.

Desde logo impõe-se observar que, muito embora os recorrentes invoquem tal prevalência, nunca indicam a fonte legal da mesma.

A ordem jurídica só tem necessidade de estabelecer uma ordem de prioridade entre direitos quando se trata de direitos que podem concorrer entre si, como sucede no n.º 2 do art.º 845º do CPC: concorrendo à remição vários descendentes ou vários ascendentes, preferem os de grau mais próximo aos de grau mais remoto; em igualdade de grau, abre-se licitação entre os concorrentes e prefere-se o que oferecer maior preço.

A solução da 2ª parte do n.º 2 do art.º 845º do CPC é, aliás, semelhante à do n.º 2 do art.º 419º do CC: quando o direito de preferência pertence a vários titulares, mas haja de ser exercido apenas por um deles, abre-se licitação entre eles.

Ora, tal situação de concurso não ocorre no caso pois os direitos em causa são estruturalmente diferentes:
- o primeiro é um direito real de garantia de um crédito, cujos efeitos, no domínio insolvencial, se resumem à prioridade, nos termos da competente decisão de graduação dos créditos na satisfação do crédito que lhe está subjacente, não conferindo ao beneficiário o direito de reter ou deter a coisa nem estabelecendo a lei, para ele, qualquer preferência na aquisição do bem sobre o objecto da garantia;
- o segundo é funcionalmente um direito de preferência, que não tem subjacente qualquer crédito, que opera seja quem for o adjudicatário ou adquirente do bem, pelo que pode operar sendo o adjudicatário ou comprador o titular de um direito de retenção ou de qualquer outro direito real de garantia e pelo preço que algum deles tiver oferecido.

Não estabelecendo a lei que o titular do direito de retenção tem preferência na aquisição do bem objecto de tal direito, não há concurso do mesmo com o direito de remição, o qual como referido, é funcionalmente um direito de preferência e, como tal, não faz sentido qualquer pretensão de prioridade do primeiro sobre o segundo.

Aliás, ainda que a lei estabelecesse que o direito de retenção conferia um direito de preferência na aquisição do bem objecto de tal direito, tal preferência seria postergada dado o disposto no art.º 844º n.º 1 do CPC: o direito de remição  prevalece sobre qualquer direito de preferência, legal ou convencional.

Em face do exposto, a resposta à referida questão é negativa, pelo que improcede o recurso na parte em que se pretendia estabelecer uma prevalência do direito de retenção sobre o direito de remição.

5.2.3. O exercício do direito de remição pela filha dos insolventes é extemporâneo?
Importa cotejar os factos emergentes dos elementos coligidos no relatório supra.

A 26/09/2023 GG, na qualidade de filha dos insolventes, declarou ao Sr. AI exercer o direito de remição nos termos do art.º 842º do CPC quanto aos lotes ..., ..., ..., ..., ..., ...0, ...1, ...2, ...3, ...4 e ...9, juntando certidão do assento de nascimento.

A 02/10/2023 o Sr. AI comunicou à mesma que o exercício de tal direito era “extemporâneo” porque à data ainda não havia sido tomada qualquer decisão quanto à venda.

Os recorrentes invocam estes factos.

Nada há a objectar à comunicação do Sr. AI, que, aliás, não foi contestada – se não havia sido decidida qualquer venda, é prematuro e inconsistente o exercício do direito de remição, porque desde logo nem sequer há preço.

Mas importa considerar o sentido da expressão “extemporânea”, que é, no caso, de prematuridade, ou seja, ainda não estavam reunidos os pressupostos para o exercício do direito de remição.

E, sendo assim, não há qualquer preclusão da possibilidade de, estando reunidos os pressupostos, a remidora voltar a exercer o seu direito.

Para tal importa considerar que a questão teve desenvolvimentos, que os recorrentes não referem cabalmente.

A 06/10/2023 EE e FF apresentaram requerimento nos autos de insolvência dizendo que por sentença de 01/04/2015 foram os insolventes condenados a pagar-lhes a quantia de € 46.959,12 e julgado verificado o direito de retenção dos mesmo sobre o lote ...9, propondo pelo “seu lote” a quantia de € 46.959,12, dispensando-se os mesmos do depósito do preço considerando a natureza do seu crédito; estão graduados em 1º lugar quanto ao bem em causa.

Esta comunicação devia ter sido endereçada ao Sr. AI, pois como resulta do disposto no art.º 158º n.º 1 do CIRE, é o mesmo que está encarregado da venda dos bens, não tendo o tribunal qualquer interferência na mesma.

Isso não sucedeu.

A 25/10/2023 o Sr. AI recebeu uma comunicação dos referidos EE e FF em que os mesmos declaram pretender que o lote ...9 lhes seja adjudicado pelo valor de 46.959,12€, dispensando-se o depósito do preço, considerando a natureza do seu crédito, requerimento esse ao qual está junto o requerimento apresentado no processo de insolvência a 06/10/2023.

A 30/10/2023 o AI envia email ao Ilustre mandatário dos referidos EE e FF em que o mesmo refere que não foi notificado do requerimento de 06/10/2023; não pode concordar com a dispensa total do depósito do preço, por contrariar o CIRE; nos termos do art.º 164º do CIRE a proposta do credor garantido só será eficaz se for acompanhada, como caução, de um cheque visado à ordem da massa insolvente, no valor de 10% do montante da proposta; solicita que seja esclarecido o pretendido e, sendo caso disso, apresentada proposta com retirada da cláusula de dispensa do depósito do preço, de molde a cumprir os requisitos legais, para que, em caso afirmativo, se possam ouvir os restantes membros da comissão de credores e o anterior proponente.

Em data não concretamente apurada, mas posterior a 30/10/2023 e antes de 08/11/2023 os referidos EE e FF comunicaram ao Sr. AI que discordam do entendimento do Sr. AI mas apresentam uma proposta para a aquisição do lote ...9, pelo valor de € 13.000,00, acompanhada de cheque bancário no valor de € 2.600,00, referindo ainda que “caso o lote ...9 não lhes seja adjudicado, não farão entrega do mesmo lote sem que o eventual comprador lhes pague os 49.959,12 € acrescidos dos juros legais, de acordo com a decisão judicial proferida.”.

E a 08/11/2023 os referidos EE e FF remetem requerimento ao Sr. AI em que dizem “esclarecer que a proposta de aquisição que fazem do lote nº ...9 é no valor de 13.000,00 € tendo junto cheque solicitado no valor de 20% do valor da proposta, ou seja, no valor de 2.600,00 €”.

De referir que os recorrentes olvidam estes dois últimos factos.

E decorre dos mesmos que os recorrentes deixaram cair a proposta de aquisição do lote ...9 pelo valor de 46.959,12€, tendo em sua substituição apresentado a proposta de aquisição por € 13.000,00, que passou a vigorar.

A 16/11/2023 o Sr. AI declara ter aceite a proposta de aquisição do lote ...9, pelos credores com direito garantido por retenção, EE e FF, pelo valor de € 13.000,00 (e não pelo valor de 46.959,12€, como os recorrentes parecem sugerir no recurso) e requer seja ordenada a emissão de certidão tendo em vista permitir-lhe outorgar a escritura de compra e venda.

A 16/11/2023 o Sr. AI comunicou a GG a apresentação da proposta de aquisição por parte EE e FF.

A 21/11/2023 GG apresentou requerimento na qualidade de filha dos insolventes, dizendo que foi apresentada ao Sr. AI uma proposta de aquisição do lote ...9 pelo valor de € 13.000,00, pretende exercer o direito de remição, ficando a aguardar a notificação com a emissão de guias para efeitos de depósito do valor da adjudicação ou de parte dele, do que deu conhecimento ao Sr. AI.

A 30/12/2023 EE e FF apresentam ao Sr. AI proposta de a aquisição do lote ...9 pelo montante de € 46.959,12, juntando cheque de € 6.791,83.

Tendo o Sr. AI declarado a 16/11/2023 ter aceite a proposta de aquisição do lote ...9, pelos credores com direito garantido por retenção, EE e FF, pelo valor de € 13.000,00 e requerido fosse ordenada a emissão de certidão tendo em vista permitir-lhe outorgar a escritura de compra e venda e tendo nessa sequência, a 21/11/2023 GG exercido o direito de remição que a qualidade de filha dos insolventes lhe atribui, a apresentação daquela nova proposta por parte dos titulares do direito de retenção é intempestiva.

A desconsideração do exercício do direito de remição por parte da filha dos insolventes traduzir-se-ia numa absoluta arbitrariedade e contrariedade à lei.

Por outro lado, o exercício do direito de remição por parte da filha dos insolventes nada tem de extemporâneo, carecendo de fundamento fáctico tal invocação, porquanto a lei estabelece que, no caso da venda por negociação particular, tal direito pode ser exercido até a assinatura do titulo que documenta a transmissão e no caso aquele direito foi exercido antes desse momento.

Em face do exposto, a resposta à questão em referência é também ela negativa.

5.2.4. Conclusão
É tempo de concluir.

Como ficou referido no início da apreciação jurídica, aos juízes está cometida a tarefa de dirimir os conflitos entre privados.

E desempenham tal tarefa subordinados, única e exclusivamente, às normas que constituem a ordem jurídico-constitucional e não a outras ordens, como a moral.

E desempenham, ainda, essa tarefa aplicando as normas que constituem a ordem jurídico-constitucional que forem concretamente convocáveis, aos factos.

Foi colocada ao tribunal a quo a questão de saber se o Sr. AI podia vender o lote ...9 a GG, por a mesma ter exercido o direito de remição.

O tribunal a quo decidiu afirmativamente.

Reapreciada tal questão à luz das questões suscitadas pelos recorrentes, a conclusão que se impõe é que o tribunal a quo decidiu de forma correcta e sensata, isto é, de acordo com o direito aplicável e os factos, pelo que a decisão recorrida não merece qualquer censura e muito menos a censura áspera expressa no recurso.

5.3. Custas
Dispõe o art.º 527º n.º 1 do CPC que a decisão que julgue a ação ou algum dos seus incidentes ou recursos condena em custas a parte que a elas houver dado causa ou, não havendo vencimento da ação, quem do processo tirou proveito.

E o n.º 2 dispõe que “dá causa às custas do processo a parte vencida, na proporção em que o for.”

Tendo ficado vencidos os apelantes são responsáveis pelas custas da apelação.

6. Decisão

Termos em que acordam os juízes da 1ª Secção desta Relação em manter a decisão recorrida e, em consequência, julgar improcedente o recurso.

Custas da apelação pelos recorrentes.

Notifique-se
*
Guimarães, 10/07/2025
(O presente acórdão é assinado electronicamente)

Relator: José Carlos Pereira Duarte
Adjuntos: José Alberto Martins Moreira Dias
Susana Raquel Sousa Pereira