Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães | |||
Processo: |
| ||
Relator: | CONCEIÇÃO SAMPAIO | ||
Descritores: | AQUISIÇÃO DO DIREITO DE PROPRIEDADE POSSE USUCAPIÃO ÁGUAS SINAIS VISÍVEIS E PERMANENTES | ||
![]() | ![]() | ||
Nº do Documento: | RG | ||
Data do Acordão: | 07/10/2025 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
![]() | ![]() | ||
Meio Processual: | APELAÇÃO | ||
Decisão: | APELAÇÃO IMPROCEDENTE | ||
Indicações Eventuais: | 3.ª SECÇÃO CÍVEL | ||
![]() | ![]() | ||
Sumário: | I - A propriedade sobre as águas pode ser adquirida por usucapião, nos termos dos artigos 1287.º e 1316.º do Código Civil. II - A especificidade no que concerne ao direito às águas, é que a usucapião só pode ser atendida quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio. III - Esta exigência de permanência e visibilidade das obras, que decorre do artigo 1390.º, n.º 2, do Código Civil, justifica-se pela possibilidade de, assim, presumir no dono do imóvel a renúncia ao direito de propriedade da água ou assunção de conduta consentânea com a constituição de correspondente servidão e, bem assim, na necessidade de salvaguardar a boa fé do comércio jurídico relativamente a eventual adquirente nos termos em que a lei pretende tutelá-la. | ||
![]() | ![]() | ||
![]() | ![]() | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM NO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE GUIMARÃES I- RELATÓRIO Nos presentes autos de procedimento cautelar comum, vieram os requerentes AA, BB e CC, pedir a condenação, sem audição prévia da parte contrária e com pedido de inversão de contencioso, da requerida EMP01..., LDA., em reconhecer os requerentes como proprietários de um imóvel que identificam, bem como a sua propriedade sobre água existente e nascida no terreno da requerida; subsidiariamente, que seja reconhecida a existência de um direito de servidão de água e/ou de aqueduto sobre as águas que correm pelo terreno da requerida até ao seu. Mais pedem a condenação da ré na reparação de poços de vigia danificados, a remoção de terras que taparam outros poços, e a abstenção da prática de qualquer ato que impeça o gozo, pelos requerentes, do seu direito. Alegam para o efeito que são proprietários de imóvel que confina com imóvel pertencente à requerente, e que, aquando da aquisição daquele imóvel, adquiriram também as águas que corriam no prédio que agora pertence à requerente, as quais utilizam de forma ininterrupta, pacífica e pública para as mais diversas utilidades no seu prédio, mais alegando que já assim era anteriormente sua aquisição pelos requerentes, há mais de 70, 80 e 90 anos. Mais alegam que a requerente iniciou diversas obras no seu imóvel, tendo abatido árvores e procedido a movimentações de terras, que levaram à tapagem e danificação dos poços de vigia, e em consequência reduziram o caudal de água que os requerentes obtêm no seu imóvel; e que a requerida, contactada, se recusou a cessar quaisquer obras, pelo que os requerentes não conseguem proceder à manutenção e vigias das águas, concluindo que existe um risco iminente de futuros danos e de impedimento total da respetiva utilização. Foi proferido despacho liminar admitindo a propositura do procedimento, mas indeferindo ao pedido de decisão sem audição prévia da requerida, e determinando em consequência a sua citação. Veio a requerida apresentar oposição, alegando em síntese que adquiriu o seu imóvel em venda judicial, livre de ónus e encargos, que nunca foi alertada pelos requerentes ou por qualquer pessoa de que existiam nascentes ou águas, tal como não existem sinais visíveis e permanentes de águas e/ou construções para captação das mesmas no terreno ou nos documentos oficiais – mais alegando que a nascente das águas não se situa no imóvel da requerida. Conclui alegando que age no exercício do seu direito de propriedade sobre o terreno onde se situam as águas e sobre as próprias, não lhe sendo exigível outro comportamento. * Foi proferida sentença com o seguinte dispositivo:«Por todo o exposto, o Tribunal julga o presente procedimento cautelar procedente, e: a) Reconhece os requerentes como proprietários do imóvel descrito em 1) da matéria de facto provada; b) Reconhece os requerentes como proprietários da água que nasce e corre no terreno descrito em 4) da matéria de facto provada; c) Condena a requerida EMP01..., LDA. a cessar, de imediato, todas as movimentações de terras sobre os poços de vigia e locais onde passam os canos condutores das referidas águas; d) Mais condena a requerida a reparar o poço de vigia descrito em 20) da matéria de facto provada, bem como a desobstruir o local onde se encontram os restantes poços, retirando as terras referidas em 18) da matéria de facto provada; e) Condena ainda a requerida a abster-se de praticar quaisquer atos que impeçam os requerentes de aceder aos poços de vigia para proceder à manutenção dos canos condutores de água e da mina. Mais se defere ao requerimento de inversão de contencioso, concedendo à presente decisão caráter definitivo e dispensando os requerentes do ónus de propor a ação principal.» * Inconformada com a sentença, a Requerida veio interpor recurso apresentando as seguintes conclusões:[…] 18. Pressuposto da aquisição por usucapião que esta seja “acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio” – cfr. Artigo 1390º do Código Civil. 19. A exigência da permanência e visibilidade das obras ou sinais equiparados justifica-se pela possibilidade de se presumir no dono do imóvel a renúncia ao direito de propriedade da água e ainda na necessidade de salvaguardar a boa-fé do comércio jurídico relativamente a eventual adquirente. 20.uma vez que os poços estavam tapados, não se encontra preenchido o requisito da aparência / publicidade. 21. Chama-se à colação o douto Acórdão proferido no processo nº. 1694/16.0T8VCT.G1, da ... secção cível do Tribunal da Relação de Guimarães, disponível em www.dgsi.pt, do qual se extrai o seguinte: “Dispõe o nº 2 do art° 1390° do CC que a usucapião só é atendida quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água prédio; sobre o significado das obras é admitida qualquer espécie de prova. A exigência da permanência e visibilidade das obras ou sinais equiparados, justifica-se pela possibilidade de, assim, se presumir no dono do imóvel a renúncia ao direito de propriedade da água ou a assunção de conduta consentânea com a constituição de correspondente servidão e, bem assim, na necessidade de salvaguardar a boa fé do comércio jurídico relativamente a eventual adquirente nos termos em que a lei pretende tutelá-la." 22. os requerentes não lograram provar a existência de um título capaz de transferir tal propriedade, na medida em que não existem quaisquer obras visíveis e permanentes no prédio da requerida que revelem a captação e posse de água. 23. A inexistência de sinais visíveis e permanentes implica que a servidão/posse invocada pelos requeridos seja não aparente, e, como tal, insuscetível de constituir título justo de aquisição. 24. Pois, como supra exposto a captação é feita fora dos limites da propriedade da requerida e os poços encontram-se tapados! 25. Neste sentido, andou mal o Tribunal a quo ao reconhecer a aquisição da água por usucapião, em violação do previsto no artigo 1390º do Código Civil. 26. O Tribunal a quo não pode reconhecer a propriedade das águas aos requeridos, afastando os verdadeiros proprietários dos terrenos onde existirá a captação de água. 27. E, não sendo provada a propriedade da água, uma vez que a servidão de aqueduto é um acessório do direito à água, a sua constituição pressupõe o direto à água a conduzir pelo aqueduto. 28. A requerida adquiriu o imóvel em sede de venda executiva, tendo adquirido o mesmo livre de ónus ou encargos. 29. Jamais poderia ser considerado que os requeridos adquiriram qualquer direito por usucapião. De facto, apenas a posse pública é suscetível de levar à aquisição por usucapião, o caso dos autos carece da necessária publicidade. 30. A requerida adquiriu a propriedade do solo e das águas que lá pudessem correr, sem qualquer limitação, ónus ou encargos. 31. Ao decidir como decidiu, o Tribunal, fez uma incorrecta apreciação da prova produzida em Julgamento, bem como uma errada aplicação do artigo 1390º do Código Civil. * Os Requerentes contra-alegaram pugnando pela improcedência do recurso e manutenção do decidido.* Foram colhidos os vistos legais.Cumpre apreciar e decidir. * II - DELIMITAÇÃO DO OBJETO DO RECURSOSão duas as questões a apreciar: - Da modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto; - Do mérito da decisão. * III- FUNDAMENTAÇÃO3.1. Os factos 3.1.1. Factos Provados Na primeira instância foram considerados indiciariamente demonstrados os seguintes factos: 1) Mostram-se registados a favor do requerente AA e de BB, pela AP ...7 de 1979/11/11, um prédio misto, composto por morada de casas torres e térreas, com suas dependências e junto terra a hora e lavradio, sito no Lugar ..., união das freguesias ..., concelho ..., inscrito na matriz urbana nos artigo ...73 urbano, tendo estado anteriormente inscrito na matriz urbana de ..., no artigo 45, e na antiga matriz rústica nos artigos 123, 125, 126, 127, 128, 129, 130 e 131, estando atualmente inscritos na matriz rústica nos artigos 298,292 e 244, descrito na conservatória sob o n.º ...25. 2) BB faleceu a ../../2023, deixando como herdeiros o primeiro requerente, seu cônjuge, e a segunda e terceiro requerentes, seus filhos. 3) Mostra-se registado a favor da requerida um prédio rústico, denominado “Campo e Bouça ...”, sito no Lugar ..., união das freguesias ..., concelho ..., inscrito na matriz no artigo ...28 e descrito na Conservatória sob o n.º ...22 – ... (...). 4) A requerida adquiriu o referido imóvel em venda judicial, no ano de 2022, tendo aquele antes pertencido a DD, que por sua vez o adquiriu por adjudicação em partilha judicial. 5) Os imóveis descritos em 1) e 3) são confinantes, situados ambos no Lugar ..., na freguesia ... (...), concelho ..., sendo separados apenas por uma estrada alcatroada denominada Rua .... 6) O imóvel descrito em 1) tem um ligeiro declive de cota, em relação à estrada e ao imóvel descrito em 4). 7) Aquando da aquisição do imóvel nos termos descritos em 1), no ano de 1979, os requerentes declararam adquirir e a anterior proprietária do imóvel declarou vender a água existente e nascida no imóvel descrito em 3). 8) Com efeito, nasce em vários pontos do imóvel descrito em 3) uma água, a qual é conduzida por meio de cano condutor e uma mina subterrâneos, instalado a cerca de seis a oito metros de profundidade. 9) A água é conduzida ao longo de todo o imóvel descrito em 3), iniciando-se na confrontação oposta à do imóvel descrito em 1) e em vários pontos do imóvel descrito em 3), atravessando-a e terminando no imóvel descrito em 1). 10) Ao longo do percurso do cano condutor existente no imóvel referido em 3), existem pelo menos quatro poços de vigia, os quais vão desde a superfície até à profundidade em que aquele se situa, destinados a permitir a manutenção do cano e a realização de obras e limpezas necessárias à condução da água. 11) Estes poços de vigia são protegidos no seu interior por argolas em cimento e têm no seu cimo, à superfície, uma tampa também em cimento, destinada a proteger o acesso e a manutenção do poço. 12) A cerca de cinco metros do limite do imóvel descrito em 3) com a estrada que divide ambos os prédios, inicia-se uma mina, em forma de capela, que passa debaixo da estrada e termina no início do imóvel referido em 1), local onde existe uma poça que armazena a água. 13) Dessa poça a água é conduzida para o imóvel referido em 1), dando-lhe os requerentes o destino que entendem, utilizando-a quer para regar os seus campos, quer para a casa de habitação ali situada. 14) A água já era utilizada deste modo pelos requerentes, bem como pelos seus antecessores, há mais de 70, 80, e 90 anos, em exclusivo pelos proprietários do imóvel descrito em 1), ninguém mais beneficiando do mesmo. 15) Quer os requerentes, quer os antecessores, sempre utilizaram a água provinda do imóvel referido em 1), à vista e com o conhecimento de toda a gente, de forma pacífica e sem qualquer oposição de quem quer que seja, nomeadamente dos proprietários do imóvel referido em 3). 16) Em finais de outubro de 2024, a requerida abateu todas as árvores existentes no terreno descrito em 3), e levou a cabo uma movimentação de terras significativa, utilizando maquinaria pesada. 17) Após tais obras e movimentações, a água que provinha do terreno referido em 3) para a poça existente no terreno referido em 1) reduziu o seu caudal. 18) No terreno referido em 3), três dos poços de vigia encontravam-se cobertos com terra provindos das movimentações. 19) Os requerentes contactaram a requerida, alertando-a para as obras e danos provocados, tendo aquela recusado qualquer responsabilidade. 20) Alguns dias mais tarde, foram feitas mais movimentações de terra e destruídas as tampas e argolas de um dos poços de vigia, mais concretamente visível no doc. 15 junto com o requerimento inicial e cujo teor se reproduz. 21) As obras e movimentações levadas a cabo pela requerida impedem os requerentes de se deslocarem e utilizar os poços para vigia e manutenção das águas. * 3.1.2. Factos Não ProvadosAo invés foram considerados como não provados: a) O prédio descrito em 1) tem acesso à rede de água pública. b) O caudal da água é atualmente correspondente a 10% do caudal anterior. * 3.2. O direitoDa modificabilidade da decisão sobre a matéria de facto Consideram os recorrentes que há erro de julgamento quanto à matéria dos pontos 8, 9, 11 e 15 dos factos provados. Defende que os factos 8 e 9 devem ser objeto de reapreciação e totalmente reformulados considerando-se provado que a água nasce fora dos limites do prédio da requerida, e a sua condução inicia-se igualmente fora desses mesmos limites. Para tanto baseia-se no documento nº 8 junto com o requerimento inicial e no depoimento da testemunha EE. Não assiste razão à impugnante. Em primeiro lugar, não decorre do depoimento da testemunha EE que a água nasce fora dos limites do prédio da requerida, nem que a sua condução se inicia fora dos limites desse prédio. Esta testemunha, que é mineiro, foi o responsável, juntamente com a testemunha FF, pela instalação, entubação e manutenção da mina que conduzia a água do terreno pertencente à requerida para o terreno dos requerentes, e descreveu a existência e localização dos poços e nascentes, que confirmou pela visualização das fotografias e mapas juntos aos autos, situando-os no terreno da requerida. Em segundo lugar, muita outra prova foi produzida no sentido da confirmação de que a água nasce em vários pontos do imóvel da requerida, a qual é conduzida por meio de cano condutor e uma mina subterrâneos, instalado a cerca de seis a oito metros de profundidade, sendo conduzida ao longo de todo o prédio da requerida, atravessando-o e terminando no prédio dos requerentes. Desde logo, as declarações de parte dos requerentes AA e CC. O primeiro explicou de forma clara e coerente o modo como adquiriu o imóvel em conjunto com a água provinda do imóvel hoje da requerida em 1979. Detalhou como sempre utilizou a água para todas as utilidades da sua propriedade (cultivo, animais, habitação) e como procedeu a encanações, entubações, reparações de tubos e canos, e limpeza das minas. Afirmou que esta era a única forma de obter água na quinta, que não tinha ligação à rede pública. O requerente CC, confirmou o relato do seu pai, o que fez de forma clara e concisa, recordando a chegada da água à quinta através de uma poça conectada a um tubo proveniente do “Campo e Bouça ...”. Demonstrou conhecimento dos terrenos e suas características, e foi quem elaborou o mapa (doc. 8), em conjunto com os mineiros responsáveis pela construção e manutenção da mina, explicando-o em audiência. Ambos os requerentes confirmaram a existência e utilização dos poços no terreno vizinho para manutenção e vigia das águas. Depois, a testemunha GG, caseiro ao serviço dos requerentes há mais de 20 anos, explicou a origem da água utilizada no terreno dos requerentes. Com recurso às fotografias, soube descrever os poços, os locais onde se situavam e o percurso das águas. A testemunha FF, mineiro, referiu ter procedido à entubação da mina que conduzia a água do terreno da requerida para o terreno dos requerentes, especificando a localização dos poços e nascentes. A testemunha HH, irmão do anterior proprietário do terreno da requerida, confirmou a versão dos requerentes, explicando a existência de poços e o percurso da água até chegar ao terreno dos requerentes. Donde, em face desta prova, impõe-se a manutenção dos factos 8º e 9º, nos termos em foram dados como provados. Quanto aos factos 11º e 15º os mesmos têm a seguinte redação: Facto 11: Estes poços de vigia são protegidos no seu interior por argolas em cimento e têm no seu cimo, à superfície, uma tampa também em cimento, destinada a proteger o acesso e a manutenção do poço. Facto 15: Quer os requerentes, quer os antecessores, sempre utilizaram a água provinda do imóvel referido em 1), à vista e com o conhecimento de toda a gente, de forma pacífica e sem qualquer oposição de quem quer que seja, nomeadamente dos proprietários do imóvel referido em 3). Para contrariar estes factos, vale-se a impugnante de excertos sincopados do depoimento da testemunha EE e II, presidente da junta de freguesia, afirmando ainda que a requerida, atual proprietária da "bouça" desconhecia a existência de quaisquer poços de vigia, pois adquiriu o imóvel numa venda executiva em 2022, estando o mesmo em estado de abandono e os poços completamente tapados. O excerto transcrito dos depoimentos das testemunhas não permite a conclusão extraída pela impugnante, pois que a testemunha II, referiu não ter conhecimento da existência de poços ou de captação ou condução de água, sem que daqui se possa concluir que os mesmos não existiam ou que a captação não era feita. O excerto transcrito do depoimento da testemunha EE, reporta-se ao segmento em que a testemunha demonstra preocupação pela segurança dos poços referindo que um dos poços tinha uma tampa de cimento, sendo os restantes cobertos com "pedaços de teiça" e "terrões" e que foram tapados por uma questão de segurança, para evitar acidentes com animais. Ora, nas fotografias juntas visualizavam-se com clareza poços, alguns dotados de tampas de cimento e argolas em cimento, mostrando-se alguns deles danificados. Os requerentes em declarações de parte confirmaram a existência dos poços no terreno vizinho, referindo que eram utilizados para manutenção e vigia das águas. Evidencia-se que o requerente CC foi quem elaborou o mapa (doc. 8), em conjunto com os mineiros responsáveis pela construção e manutenção da mina, e explicou-o em audiência. As testemunhas GG, EE e FF, mineiros, e HH descreveram os poços, os locais onde se situavam, com recurso às fotografias e mapas juntos aos autos. Assim, o facto 11 deve manter-se como provado. Quanto ao Facto Provado 15 quer as declarações sinceras, fluidas e espontâneas dos requerentes quer o depoimento das testemunhas por si arroladas foram claras em afirmar que os requerentes, como os seus antecessores, sempre utilizaram a água, à vista e com o conhecimento de toda a gente, sem que ninguém a tal se opusesse. A prova que foi produzida permitiu concluir que as águas que nascem e correm pelo terreno da requerida até ao terreno dos requerentes foram adquiridas por estes e são utilizadas há quase 100 anos. Nestes termos, julga-se improcedente a impugnação da matéria de facto. * Do mérito da decisão:Os requerentes através do presente procedimento reclamam a propriedade das aguas nascentes no prédio da requerida, invocando para o efeito a usucapião. A requerida, por sua vez, defende a inexistência de um título capaz de transferir a propriedade da água, na medida em que não existem quaisquer obras visíveis e permanentes no seu prédio que revelem a captação e posse de água. Vejamos. Em causa está a aquisição do direito de propriedade sobre águas. A água pode ser objeto do direito de propriedade, considerando-se título justo de aquisição da água das fontes e nascentes, conforme os casos, qualquer meio legítimo de adquirir a propriedade de coisas imóveis ou de constituir servidões (artigo 1390.º, n.º 1 do Código Civil). As águas subterrâneas podem ser adquiridas pelo mesmo modo (artigo 1395.º, n.º 2 do Código Civil). Daqui resulta que a propriedade sobre as águas pode ser adquirida por usucapião, nos termos dos artigos 1287.º e 1316.º do Código Civil. A posse do direito de propriedade, mantida por certo lapso de tempo, faculta ao possuidor a aquisição do direito a cujo exercício corresponde tal atuação. A posse, por sua vez, consiste no poder que se manifesta quando alguém atua por forma correspondente ao exercício do direito de propriedade, ou de outro direito real – artigo 1251.º do Código Civil. Consagrando a nossa lei substantiva a teoria subjetivista da posse, para que esta possa ser afirmada, não basta o mero exercício de poderes de facto sobre a coisa (corpus), sendo, ainda, necessário que a esse exercício corresponda uma particular intenção (animus possidendi), qual seja a de exercer o direito correspondente ao direito de propriedade ou outro direito real de gozo[1]. Nas palavras do professor Orlando de Carvalho a posse caracteriza-se como “o exercício de poderes de facto sobre uma coisa em termos de um direito real (rectius : do direito real correspondente a esse exercício). Envolve, portanto, um elemento empírico – exercício de poderes de facto – e um elemento psicológico-jurídico em termos de um direito real. Ao primeiro é que se chama corpus e ao segundo animus”[2]. Por consequência, para que haja posse é preciso alguma coisa mais do que o simples poder de facto (corpus); é preciso que haja por parte do detentor a intenção (animus) de exercer, como seu titular, um direito real sobre a coisa, e não um mero poder de facto sobre ela[3]. A especificidade no que concerne ao direito às águas, é que a usucapião só pode ser atendida quando for acompanhada da construção de obras, visíveis e permanentes, no prédio onde exista a fonte ou nascente, que revelem a captação e a posse da água nesse prédio. Como refere Tavarela Lobo, isto pressupõe a verificação de obra de homem e a irrelevância de tudo aquilo que configure mera obra da natureza[4], sendo com este sentido concludente a fórmula usada pela lei «construção de obras». Estas obras devem ser visíveis e permanentes. Sem a característica da visibilidade não poderiam as obras revelar a captação e a posse da água no prédio da nascente; e sem o requisito da permanência não poderiam revelar a posse pública e continua que fundamenta o título[5]. Esta exigência, que decorre do artigo 1390.º, n.º 2, do Código Civil de permanência e visibilidade das obras ou sinais equiparados, justifica-se pela possibilidade de, assim, presumir no dono do imóvel a renúncia ao direito de propriedade da água ou assunção de conduta consentânea com a constituição de correspondente servidão e, bem assim, na necessidade de salvaguardar a boa fé do comércio jurídico relativamente a eventual adquirente nos termos em que a lei pretende tutelá-la.[6] Logo, o adquirente do direito de propriedade sobre águas provenientes de nascentes em prédio alheio por usucapião deve, para além disso, demonstrar também a posse das obras, visíveis e permanentes nesse prédio reveladoras da captação e condução de água para o seu prédio. No caso concreto, os requerentes demonstraram que, aquando da aquisição do terreno, por negócio verbal, também declararam adquirir as águas que corriam pelo Campo e Bouça .... Demonstraram que tais águas nascem em parte neste terreno, em vários pontos, e que são captadas subterraneamente e conduzidas através de tubos ou canos até ao seu terreno, onde são recolhidas pelos requerentes para utilização em diversas lides de cariz agrícola e doméstico. Demonstraram, ainda, que existem, no terreno da requerida descrito em 3), diversos poços, visíveis e demarcados, destinados à vigilância e manutenção das águas, por si já utilizados em diversas ocasiões. Daqui resulta demonstrado o corpus e o animus da posse: demonstram ter praticado um ato de aquisição das águas, e agem como se titulares da mesma fossem, ao recolhê-las para seu proveito próprio, e mais provam a utilização desta água para todos as finalidades que necessitam no seu terreno; mais demonstram também a prática de outros atos materiais, como a vigilância, manutenção e limpeza dos poços de vigia. Por outro lado, tais atos foram sempre praticados por si desde a aquisição das águas em 1979, mas já antes o eram pelos anteriores proprietários dos prédios, de forma contínua, sempre à vista de todos e com a consciência de que o faziam no exercício de um direito – sendo assim a posse de boa fé, na medida em que os requerentes ignoravam lesar quaisquer direitos de outrem (artigo 1260.º, n.º 1 do Código Civil), pacífica, porque adquirida sem violência (artigo 1261.º do Código Civil), e pública, pois que exercida à vista de toda a gente (artigo 1262.º do Código Civil). A existência de poços de vigia, devidamente montados e visíveis, também constitui sinal visível e suficiente para permitir a formação da usucapião sobre as águas em questão. Por sua vez, a requerida não obteve êxito na sua oposição, já que não logrou demonstrar qualquer impedimento legal ou de facto ao direito de propriedade dos requerentes, legitimamente adquirido por usucapião. É certo que o direito sobre as águas das fontes ou nascentes está compreendido no direito de propriedade sobre o prédio, mas pode destacar-se deste, constituindo de per si objeto do direito de propriedade[7] e quando desintegradas adquirem autonomia e são consideradas de per si imóveis. A separação e desintegração das águas do domínio do prédio pode verificar-se na sequência de título de aquisição do direito à água a favor de terceiro, desde logo, porque o artigo 1389.º do Código Civil depois de reconhecer ao proprietário do prédio a faculdade de se servir da água de fonte ou nascente nela existente e dela dispor livremente, ressalva as restrições previstas na lei e os direitos que terceiro haja adquirido ao uso da água por título justo. A sustentação da inexistência de um título capaz de transferir a propriedade da água, na medida em que não existem quaisquer obras visíveis e permanentes no prédio que revelem a captação e posse de água, alicerça-se no pressuposto da alteração da matéria de facto provada, o que não se verificou. Por outro lado, a invocada aquisição do bem em venda executiva e a sua transmissão livre de ónus e encargos, não tem efeito no caso dos autos, face à parte final do artigo 824.º, n.º 2 do Código Civil. Em caso de venda executiva, os bens são de facto transmitidos para o adquirente livres dos direitos de garantia que os onerarem, bem como dos demais direitos reais que não tenham registo anterior ao de qualquer arresto, penhora ou garantia, mas excecionam-se aqueles que, constituídos em data anterior, produzam efeitos em relação a terceiros independentemente de registo – é o caso do direito de propriedade adquirido por usucapião, nos termos conjugados dos artigos 2.º, n.º 1, al. a) e 5.º, n.ºs 1 e 2, al. a), do Código de Registo Predial. Ou seja, o direito de propriedade dos requerentes, adquirido por usucapião no limite no ano de 1999, não caducou com a venda judicial ocorrida em 2022. Deste modo, provada a aquisição das águas que nascem e correm no terreno da requerida para o terreno dos requerentes, assiste aos requerentes o direito de defender a sua propriedade de qualquer ofensa da parte de terceiros, incluindo assim o proprietário do terreno onde a nascente e/ou águas se situam, nos termos dos artigos 1305.º e 1311.º do Código Civil. Do que fica exposto, resulta a total improcedência da apelação, com a necessária confirmação da decisão recorrida. * IV - DECISÃOPelo exposto, acordam os Juízes desta Relação em julgar improcedente a apelação, confirmando a decisão recorrida. Custas pela Recorrente. Guimarães, 10 de Julho de 2025 Assinado digitalmente por: Rel. – Des. Conceição Sampaio 1º Adj. - Des. Elisabete Coelho de Moura Alves 2º Adj. - Des. Luís Miguel Martins [1] Neste sentido, Orlando de Carvalho, RLJ, ano 122º, pag. 68. [2] Orlando de Carvalho, RLJ, nº 3781, pags. 104 e 105. [3] Pires de Lima e Antunes Varela, Código Civil Anotado, Vol. III, pag. 5. [4] In Manual do Direito de Águas, Volume II, pag. 46. [5] Neste sentido, Tavarela Lobo, in Manual do Direito de Águas, Volume II, pag. 48. [6] Neste sentido, Antunes Varela in RLJ Ano 115º /222. [7] Guilherme Moreira, in As Águas no Direito Civil Português, Livro I, pag. 501. |