Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
603/20.7T8LLE.E1
Relator: ANA MARGARIDA LEITE
Descritores: COMPETÊNCIA INTERNACIONAL
DOMICÍLIO
RESIDÊNCIA HABITUAL
Data do Acordão: 04/28/2022
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A competência internacional dos tribunais portugueses decorre, em primeira linha, do estabelecido em regulamentos europeus ou outros instrumentos internacionais, os quais prevalecem sobre as regras fixadas nos artigos 62.º, 63.º e 94.º do CPC;
II – Mostrando-se preenchido o âmbito (temporal, objetivo e subjetivo) de aplicação do Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro, tendo o réu domicílio em Portugal, os tribunais portugueses têm competência internacional para a ação, independentemente da nacionalidade do demandado;
III – Para efeitos do preenchimento do âmbito subjetivo de aplicação do regulamento, a determinação do domicílio do réu é efetuada à luz da lei interna do Estado-Membro a cujos tribunais foi submetida a questão;
IV - Assente que o réu tem habitação no Brasil, a qual constitui o seu domicílio fiscal e o principal local onde reside, e que tem também habitação em Loulé, na qual reside quando se encontra em Portugal, a habitação localizada em Portugal configura uma residência alternativa, devendo ambas as habitações ser consideradas como residências habituais, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 82.º do CC;
V – Sendo de considerar, à luz da lei portuguesa, que o réu tem residência habitual em Portugal, daqui decorre que se encontra domiciliado neste Estado-Membro, para efeitos do critério geral de competência estatuído no artigo 4.º do Reg. 1215/2012, cujo âmbito subjetivo de aplicação se mostra preenchido.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 603/20.7T8LLE.E1
Tribunal Judicial da Comarca de Faro
Juízo Local Cível de Loulé


Acordam na 2.ª Secção Cível do Tribunal da Relação de Évora:


1. Relatório

Câmara de Comércio (…), associação civil brasileira, com sede em São Paulo, no Brasil, intentou em 27-02-2020 a presente ação de prestação de contas, com processo especial, contra (…), cidadão nacional dos Países Baixos, indicando como domicílio do réu a Urbanização (…), n.º (…), 3.º andar, N, 8125 – 586 Quarteira.
Alega que o réu foi diretor executivo da autora de janeiro de 2000 a 22 de novembro de 2017, período em que exerceu a administração, movimentando contas e fundos bancários da autora; sustentando que a última vez que o mesmo prestou contas foi a 24-11-2016, pede que preste contas dos atos que praticou a partir dessa data.
Citado, o réu contestou, invocando, além do mais, a incompetência internacional dos tribunais portugueses, pelos motivos que expõe, sustentando que não tem residência oficial em Portugal e que se encontra neste país de forma acidental, residindo em São Paulo, no Brasil.
Notificada para o efeito, a autora apresentou articulado no qual se pronuncia sobre a exceção arguida.
Foram efetuadas diligências destinadas a apurar o domicílio do réu.
Por despacho de 13-01-2022, foi declarada a incompetência internacional do tribunal, por se ter entendido que os tribunais brasileiros são os internacionalmente competentes para a causa, em consequência do que foi o réu absolvido da instância e a autora condenada no pagamento das custas, pelos motivos seguintes:
Dispõe o artigo 59.º do Código de Processo Civil que, sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º de tal diploma, ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º de tal diploma.
Constata-se que a presente causa não se integra manifestamente nas matérias da competência exclusiva dos tribunais portugueses previstas no artigo 63.º do Código de Processo Civil.
Por outro lado, as partes também não atribuíram competência internacional aos tribunais portugueses para dirimir o presente litígio, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 94.º do Código de Processo Civil, antes pelo contrário, porquanto o contrato escrito assinado entre as partes (junto pelo Réu como doc. 2 da sua contestação, cfr. Cláusula 22.ª) atribuiu competência à comarca de São Paulo, no Brasil, para resolver litígios emergentes da relação contratual em causa.
Assim, os tribunais portugueses apenas seriam internacionalmente competentes para dirimir este litígio em caso de aplicação de alguma das alíneas do artigo 62.º do Código de Processo Civil.
A alínea b) de tal artigo 62.º é inaplicável, porquanto os factos subjacentes à pretensão da Autora foram praticados no Brasil, e não em Portugal.
Relativamente à alínea a) de tal artigo 62.º, apenas é eventualmente equacionável a sua aplicação caso se conclua pelo facto de o Réu ter domicílio em Portugal, conforme defende a Autora, por aplicação da regra geral e residual de competência territorial prevista no n.º 1 do artigo 80.º do Código de Processo Civil – única norma territorial com eventual relevo para o caso dos autos –, que dispõe que, em todos os casos não previstos nos artigos anteriores ou em disposições especiais, é competente para a acção o tribunal do domicílio do réu.
Sucede que o Réu na sua contestação alegou residir na Rua (…), n.º 484, Apartamento 72 C, CP 01238-010 São Paulo, Brasil, juntando com tal articulado um comprovativo de uma despesa de energia eléctrica com tal habitação relativa ao mês de Outubro de 2020, mês em que foi citado para a causa (e ainda um outro comprovativo bancário de tal residência por requerimento de 15/6/2021).
Mais comprovando o Réu, por requerimento de 15/6/2021, apresentar no Brasil a sua declaração de rendimentos pessoais (análoga ao nosso IRS) relativa aos anos fiscais de 2017 a 2020, declarações essas apresentadas no ano seguinte àquele a que diziam respeito (e que, portanto, dizem respeito a período que vai desde antes da instauração da presente acção até ao presente), e de onde se retira, naturalmente, que o Réu possui domicílio fiscal no Brasil, à luz das regras da experiência comum.
Ora, a nosso ver, para efeitos de aplicação do disposto no n.º 1 do artigo 80.º do Código de Processo Civil, o domicílio do réu diz respeito à sua residência habitual (conforme se retira do confronto do n.º 1 com o n.º 2 do mesmo artigo), não relevando, assim, residências secundárias ou ocasionais (como as de férias), mas antes o principal local de residência onde a vida pessoal e patrimonial do réu está centrada.
Assim, tendo o Réu comprovado nos autos possuir habitação e domicílio fiscal no Brasil, onde continua a apresentar até ao presente as suas declarações de rendimentos pessoais, consideramos que se encontra claramente indiciado nos autos que o Réu reside habitualmente no Brasil, que é o principal local onde a sua vida pessoal e patrimonial está centrada, e onde por isso, possui o respectivo domicílio nos termos e para os efeitos previstos no n.º 1 do artigo 80.º do Código de Processo Civil.
Sendo o seu local de residência conhecido nos autos em Portugal, aparentemente uma residência secundária ou ocasional, conforme alegado pelo Réu (o que não é de estranhar, à luz das regras da experiência comum, num homem de negócios com ligações internacionais como o Réu parece ser, segundo a sua nacionalidade e os factos alegados nos autos).
Pelo que é inaplicável a alínea a) do artigo 62.º do Código de Processo Civil para fundar a competência internacional dos tribunais portugueses para conhecer a presente acção.
Por último, também é inaplicável a alínea c) do artigo 62.º do Código de Processo Civil para atribuir competência aos tribunais nacionais para conhecer a presente acção, porquanto não existe qualquer elemento de conexão pessoal ou real do litígio dos autos com a ordem jurídica portuguesa (estando em causa uma relação contratual entre estrangeiros, domiciliados no estrangeiro, e exclusivamente estabelecida e executada no Brasil, sendo as testemunhas arroladas nos autos pelas partes também todas residentes no Brasil), sendo que não se vislumbra qualquer dificuldade à Autora, uma pessoa colectiva brasileira, em exercer os seus alegados direitos contra o Réu junto dos tribunais brasileiros (mais difícil sendo exercê-los em Portugal, mormente com necessidade de ouvir testemunhas domiciliadas no Brasil), sendo conhecida a sua residência brasileira (e também a portuguesa) onde o Réu poderá ser citado (pessoal ou editalmente) no âmbito de uma eventual acção junto do sistema judicial brasileiro; não tendo a Autora comprovado nestes autos ter demandado o Réu primeiro no Brasil, de forma frustrada, antes de instaurar a presente acção.
Termos em que se conclui, efectivamente, pela incompetência internacional dos tribunais portugueses (e logo, deste Juízo de Loulé) para julgar a presente causa, conforme pugnado pelo Réu.
Incompetência essa internacional que configura uma excepção dilatória que é de conhecimento oficioso pelo tribunal e que determina a absolvição do Réu da instância (cfr. artigos 96.º, alínea a), 97.º, n.º 1 e 99.º, n.º 1, todos do Código de Processo Civil).
O que se decidirá.

Inconformada, a autora interpôs recurso desta decisão, pugnando pela respetiva revogação e prolação de decisão que considere os tribunais portugueses internacionalmente competentes para julgar a presente ação, terminando as alegações com a formulação das conclusões que a seguir se transcrevem:
«a. O tribunal a quo declarou-se internacionalmente incompetente para apreciar os autos declarativos e, em consequência, absolveu o Réu da instância.
b. Entendeu o tribunal a quo que (…) o Réu na sua contestação alegou residir na Rua (…), n.º 484, Apartamento 72 C, CP 01238-010 São Paulo, Brasil, juntando com tal articulado um comprovativo de uma despesa de energia eléctrica com tal habitação relativa ao mês de Outubro de 2020, mês em que foi citado para a causa. (…) Mais comprovando o Réu (…) apresentar no Brasil a sua declaração de rendimentos pessoais (…) de onde se retira que o Réu possui domicílio fiscal no Brasil.
c. Sucede que para efeitos de determinação de domicílio do Réu, o critério deve ser aquele que resulta do Acórdão do Tribunal da Relação de Guimarães no âmbito do processo n.º 52/19.0T8PTL.G1, cujo relator é JOSÉ ALBERTO MOREIRA DIAS, datado de 06/02/20203, i. e., o critério geral é o domicílio do Réu à data da propositura da acção e a determinação desse domicílio é feita de acordo com a legislação interna do estado onde a acção foi proposta, ou seja, no caso português, atento o disposto no artigo 82.º do Código Civil.
d. O conceito de domicílio é densificado com recurso às normas constantes nos artigos 82.º e seguintes do Código Civil.
e. O tribunal a quo entendeu que o Réu não tem domicílio em Portugal, porquanto (1) na sua contestação alegou residir na Rua (…), n.º 484, Apartamento 72 C, CP 01238-010 São Paulo, Brasil, (2) juntando com tal articulado um comprovativo de uma despesa de energia eléctrica com tal habitação relativa ao mês de Outubro de 2020, mês em que foi citado para a causa. (…) (3) Mais comprovando o Réu (…) apresentar no Brasil a sua declaração de rendimentos pessoais (…) de onde se retira que o Réu possui domicílio fiscal no Brasil.
f. Sucede que, em primeiro lugar, o Réu na sua contestação declarou que tem o seu domicílio oficial no Brasil. O conceito de domicílio oficial não existe. As pessoas não têm domicílios oficiais: têm domicílio que é determinado nos termos do artigo 82.º do Código Civil e o qual não é determinado com referência à conveniência do Réu. O Réu declara que tem domicílio oficial no Brasil, porque lhe é conveniente declará-lo.
g. Em segundo lugar, o facto de o Réu ter procedido à junção aos autos de factura da electricidade é irrelevante. É-o porque nada impede que o Réu tenha a sua casa no Brasil arrendada ou que a tenha comodatada ou que mantenha uma casa no Brasil e ali tenha custos de electricidade, não sendo a factura de electricidade mais do que um indício de que ele ali reside. Contudo, é igualmente indiciário que aquele vive em Portugal, a informação prestada pela Câmara Municipal de Loulé que declarou ao processo (ofício com a referência 8893016) que existiu um contrato de fornecimento de água celebrado com o Réu.
h. Em terceiro lugar, o facto de o Réu apresentar no Brasil a sua declaração de rendimentos pessoais não tem qualquer relevância para efeitos de determinação de domicílio. Resulta do Acórdão do Tribunal Central Administrativo Sul no âmbito do processo n.º 803/05.0BESNT, datado de 08-07-2021, cujo relator foi Maria Cardoso o seguinte: (…) III. Saber de alguém é ou não residente em Portugal não está dependente do domicílio fiscal, por este não constituir, no plano internacional, qualquer presunção de residência.
i. Em quarto lugar, resulta do processo em 30-07-2020, uma comunicação da Sra. Agente de Execução responsável pelas diligências de citação do Réu que foi contactada pelo Sr. (…), proprietário do imóvel da morada indicada para a citação, o qual confirmou que o citando foi seu inquilino e que ali residiu até Dezembro de 2019.
j. A Sra. Agente de Execução utilizou o conceito de residência e não de residência de férias ou residência ocasional.
k. Resulta ainda daquela comunicação que o anterior senhorio comunicou ao processo que aquele actualmente residiria na zona do (…), em Loulé.
l. Em quinto lugar e em complemento daquilo que se disse anteriormente, o SEF indicou ao processo – na sequência de ofício para o efeito – que (…) em resposta ao solicitado, informa-se que, compulsados os sistemas existentes nos nossos serviços, a morada que consta sobre o cidadão nacional dos Países Baixos, (…), nascido aos 21/07/1960 é em (Jan./2020), (…). Rua do (…), n.º 73, 8100-295 Monte (…).
m. Em sexto lugar, o Réu é sócio-gerente de uma sociedade comercial em Portugal, sendo habitual e corriqueiro – pelas regras de experiência comum – que os serviços essenciais sejam prestados àquela sociedade comercial (como forma de dedução de despesas), até porque a referida sociedade comercial tem ali sede.
n. Assim, face à prova produzida nos presentes autos, não resulta qualquer dúvida que o Réu tem domicílio em Portugal, no local em que foi citado e que, consequentemente, é-lhe aplicável a al. a) do artigo 62.º do Código de Processo Civil, motivo pelo qual deverão os tribunais portugueses ser declarados internacionalmente competentes.
o. Neste sentido parece ir também o Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra, no âmbito do Processo n.º 4756/13.2TBLRA.C1, cujo relator foi Carlos Moreira.
p. Consequentemente, deverá reverter-se aquela decisão e, em consequência, ser declarado competente o Juízo Local Cível de Loulé para julgar a presente acção.»
O réu apresentou contra-alegações, pugnando pela manutenção do decidido.
Face às conclusões das alegações da recorrente e sem prejuízo do que seja de conhecimento oficioso, cumpre apreciar se se verifica infração das regras de competência internacional para a apreciação do presente litígio.
Corridos os vistos, cumpre decidir.

2. Fundamentos

2.1. Fundamentação de facto

2.1.1. Elementos factuais considerados assentes em 1.ª instância:
a) o réu tem habitação no Brasil, a qual constitui o seu domicílio fiscal e o principal local onde reside;
b) o réu tem habitação em (…), Loulé, na qual reside quando se encontra em Portugal.

2.1.2. Outros elementos constantes dos autos:
a) a 03-03-2020, foi enviada carta registada com aviso de receção para citação do réu, dirigida ao local indicado na petição inicial como residência do citando, tendo a carta sido devolvida com a menção “objeto não reclamado”;
b) foi nomeado solicitador de execução para proceder à citação, tendo o mesmo, por comunicação de 31-07-2020, informado o seguinte: (…) Venho informar que na sequência das diligências para citação de (…), foi a signatária contactada por telefone (…) por pessoa que se identificou como (…), proprietário do imóvel correspondente à morada indicada para citação, que confirmou que o Citando foi seu inquilino e ali residiu até Dezembro de 2019. Mais disse que actualmente reside na zona do (…), em Loulé, desconhecendo o número de polícia. Facultou ainda o número de telemóvel do mesmo (…);
c) na sequência de contacto telefónico efetuado pelo solicitador de execução, o réu deslocou-se ao escritório deste, onde foi citado no dia 26-10-2020, constando da certidão de citação que o mesmo declarou que não reside em Portugal, encontrando-se ocasionalmente neste país e residindo na Rua (…), n.º 484, Apartamento 72 C, CP 01238-010 São Paulo;
d) em cumprimento de despacho de 20-04-2021, foi solicitada a várias entidades informação sobre a residência do réu;
e) por ofício de 03-05-2021, o Serviço de Estrangeiros e Fronteiras informou o seguinte: (…) compulsados os sistemas existentes nos nossos serviços, a morada que consta sobre o cidadão nacional dos Países Baixos, (…), nascido aos 21/07/1960 é em (Jan./2020), (…), Rua do (…), n.º 73 , 8100-295 Monte (…);
f) por ofício de 05-05-2021, a Câmara Municipal de Loulé informou o seguinte: (…) após consulta junto dos serviços municipais desta Câmara, foi possível verificar que existiu um contrato de fornecimento de água celebrado com o réu (…) para a morada Rua (…), n.º (…), 3N, 8125 – 586 Quarteira, que foi rescindido no dia 17.DEZ.2019;
g) o réu apresentou no Brasil, para efeitos fiscais, declarações de rendimentos relativas aos anos de 2017 a 2020.

2.2. Apreciação do objeto do recurso
Vem impugnada na apelação a decisão que considerou verificada a exceção de incompetência absoluta e absolveu o réu da instância, por se ter entendido que os tribunais portugueses não são internacionalmente competentes para a presente causa, cabendo tal competência aos tribunais brasileiros.
Discordando deste entendimento, sustenta a recorrente que o réu tem domicílio em Portugal, pelo que se encontra verificado o fator de atribuição de competência internacional aos tribunais portugueses previsto na alínea a) do artigo 62.º do Código de Processo Civil, defendendo a revogação da decisão proferida e a prolação de decisão que considere o tribunal internacionalmente competente.
Está em causa uma ação de prestação de contas intentada por uma associação civil brasileira, respeitante à administração exercida entre 24-11-2016 e 22-11-2017 pelo réu, cidadão nacional dos Países Baixos, indicado pela autora como residente em Portugal, pelo que existem elementos de conexão com mais do que um ordenamento jurídico, cumprindo apreciar se os tribunais portugueses são internacionalmente competentes para conhecer do pleito.
Para o efeito, há que atender ao disposto no artigo 59.º do CPC, com a redação seguinte: Sem prejuízo do que se encontre estabelecido em regulamentos europeus e em outros instrumentos internacionais, os tribunais portugueses são internacionalmente competentes quando se verifique algum dos elementos de conexão referidos nos artigos 62.º e 63.º ou quando as partes lhes tenham atribuído competência nos termos do artigo 94.º.
Extrai-se deste preceito que a competência internacional dos tribunais portugueses decorre, em primeira linha, do estabelecido em regulamentos europeus ou outros instrumentos internacionais, os quais prevalecem sobre as regras fixadas nas normas processuais elencadas, os artigos 62.º, 63.º e 94.º do Código de Processo Civil.
Não se vislumbrando a existência, nem tal tendo sido invocado, de qualquer instrumento internacional que vincule simultânea e reciprocamente Portugal e o Brasil em sede de competência internacional dos tribunais quanto à matéria em apreço, há que ter em conta as normas jurídicas europeias, que vinculam Portugal como Estado-Membro da União Europeia.
Estando em causa a competência internacional, cumpre atender ao Regulamento (UE) n.º 1215/2012, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 12 de dezembro – alterado pelo Regulamento(UE) n.º 542/2014, de 15 de maio, e pelo Regulamento(UE) n.º 281/2015, de 25 de fevereiro –, relativo à competência judiciária, ao reconhecimento e à execução de decisões em matéria civil e comercial.
Tendo a presente ação sido intentada em 27-02-2020, encontra-se abrangida pelo âmbito temporal de aplicação do Reg. 1215/2012, dado dispor o artigo 81.º do diploma que o mesmo se aplica a partir de 10-01-2015 (com exceção dos artigos 75.º e 76.º, que se aplicam a partir de 10-01-2014), estatuindo o artigo 66.º, n.º 1, que se aplica, além do mais, às ações judiciais intentadas em 10-01-2015 ou em data posterior, conforme sucede com estes autos.
Tratando-se de uma ação de prestação de contas, no domínio de uma relação jurídica de direito privado, dúvidas não há de que se insere no âmbito objetivo de aplicação do Reg. 1215/2012, definido no artigo 1.º, o qual estabelece que o regulamento se aplica em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição, salvo quanto às matérias nele expressamente excluídas, elencadas na 2.ª parte do n.º 1 e no n.º 2 do preceito[1], que não estão em causa no caso presente.
Quanto ao âmbito subjetivo de aplicação do Reg. 1215/2012, cumpre atender ao critério geral estatuído no artigo 4.º, com a redação seguinte: 1. Sem prejuízo do disposto no presente regulamento, as pessoas domiciliadas num Estado-Membro devem ser demandadas, independentemente da sua nacionalidade, nos tribunais desse Estado-Membro. 2. As pessoas que não possuam a nacionalidade do Estado-Membro em que estão domiciliadas ficam sujeitas, nesse Estado-Membro, às regras de competência aplicáveis aos nacionais.
Este preceito consagra o princípio nos termos do qual, em geral, a competência tem por base o domicílio do réu. Sobre este critério geral de competência, consta do preâmbulo do diploma em apreciação, além do mais, o seguinte: (15) As regras de competência devem apresentar um elevado grau de certeza jurídica e fundar-se no princípio de que em geral a competência tem por base o domicílio do requerido. Os tribunais deverão estar sempre disponíveis nesta base, exceto nalgumas situações bem definidas em que a matéria em litígio ou a autonomia das partes justificam um critério de conexão diferente. No respeitante às pessoas coletivas, o domicílio deve ser definido de forma autónoma, de modo a aumentar a transparência das regras comuns e evitar os conflitos de jurisdição.
Decorre do disposto no citado artigo 4.º que, se o requerido for domiciliado num Estado-Membro, deve ser demandado nos tribunais desse Estado-Membro, independentemente da sua nacionalidade. Este critério, de fixação da competência em função do domicílio do réu, é aplicável ainda que se trate de pessoas que não possuam a nacionalidade do Estado-Membro em que estão domiciliadas, as quais ficam sujeitas, nesse Estado-Membro, às regras de competência aplicáveis aos nacionais.
Explica Marco Carvalho Gonçalves («Competência judiciária na União Europeia», Scientia Iuridica – Revista de Direito Comparado Português e Brasileiro, tomo LXIV, n.º 339, Setembro/Dezembro, 2015, Universidade do Minho, p. 423-424) que se trata “da consagração do princípio actor sequitur forum rei, o qual visa assegurar a proteção legal das pessoas domiciliadas na União Europeia”.
Face ao indicado âmbito subjetivo de aplicação do Reg. 1215/2012, cumpre averiguar se o réu tem domicílio em Portugal, sendo certo que, em caso afirmativo, a circunstância de ser nacional dos Países Baixos não impede a aplicação do regulamento.
Esclarece o artigo 62.º, n.º 1, do Reg. 1215/2012, que, para determinar se uma parte tem domicílio no Estado-Membro a cujos tribunais é submetida a questão, o juiz aplica a sua lei interna.
Tratando-se do domicílio de uma pessoa singular, releva, para o efeito, o domicílio voluntário geral, nos termos definidos pelo n.º 1 do artigo 82.º do Código Civil, com a redação seguinte: A pessoa tem domicílio do lugar da sua residência habitual; se residir alternadamente em diversos lugares, tem-se por domiciliada em qualquer deles.
Em anotação ao preceito, explica Clara Martins Pereira (Comentário ao Código Civil: Parte Geral [Coordenação de Luís Carvalho Fernandes, José Brandão Proença], Lisboa, Universidade Católica Editora, 2014, p. 205-206) o seguinte: “O CC português superou a ideia da unicidade de domicílio – ao abrigo da qual um indivíduo apenas pode ter, a cada momento, um único domicílio – em favor da possibilidade de existirem, para a mesma pessoa, vários domicílios suscetíveis de operar em situações jurídicas específicas, para as quais se encontrem melhor vocacionados. Para a generalidade das situações jurídicas, releva, porém, o domicílio geral voluntário, regulado pelo artigo 82.º. (…) Residindo o indivíduo em diversos lugares alternadamente, tem-se a pessoa por domiciliada em qualquer deles – podendo quem tratar com o indivíduo escolher, dentro dos limites da boa fé (…), a residência que prefere que presida às relações que com ele concretamente estabeleça”. Com especial relevo para o caso presente, esclarece a autora (loc. cit.) que “o n.º 1 do artigo 82.º permite ao indivíduo ter mais de um domicílio voluntário: deste modo, as residências alternativas a que se refere o n.º 1 do artigo 82.º devem ser consideradas, ainda, como residências habituais”.
Afirmam Pires de Lima/Antunes Varela (Código Civil Anotado, vol. I, 4.ª edição revista e atualizada, com a colaboração de Henrique Mesquita, Coimbra, Coimbra Editora, 1987, pág. 111), em anotação ao citado preceito, o seguinte: “Pode, na verdade, a pessoa ter dois ou mais domicílios voluntários (…). Em princípio, porém, e dentro dos limites da boa fé, podem os terceiros que tiverem relações com quem tenha dois ou mais domicílios escolher um deles”.
Esclarece Manuel Pita (CÓDIGO CIVIL: Anotado [Coord. Ana Prata], volume I, Coimbra, Almedina, 2017, págs. 124-125) o seguinte: “O critério utilizado para determinar o domicílio geral é o da residência habitual. A residência é o local onde a pessoa vive. Mas a lei admite que a pessoa possa viver em mais do que um lugar: se residir parte da semana em Lisboa e a outra parte da semana em Santarém, está, para efeitos legais, domiciliado em ambas as cidades. Note-se que neste aspeto a lei não atende à intenção da pessoa, fixando ela própria a regra de forma objetiva”.
No caso presente, encontra-se assente que o réu tem habitação no Brasil, a qual constitui o seu domicílio fiscal e o principal local onde reside; no entanto, mais se provou que tem também habitação em (…), Loulé, na qual reside quando se encontra em Portugal.
Decorre destes elementos que o réu reside alternadamente nestas duas habitações, o que se mostra conforme com a informação a que alude a alínea e) de 2.1.2., prestada pelo Serviço de Estrangeiros e Fronteiras a 03-05-2021, que comunicou o seguinte: (…) compulsados os sistemas existentes nos nossos serviços, a morada que consta sobre o cidadão nacional dos Países Baixos, (…), nascido aos 21/07/1960, é em (Jan./2020), (…), Rua do (…), n.º 73, 8100-295 Monte (…).
Assim sendo, a habitação localizada em Portugal não configura uma residência ocasional, conforme invocado pelo réu, mas sim uma residência alternativa, nos termos previstos no n.º 1 do artigo 82.º, devendo ambas as habitações – a localizada no Brasil e a localizada em Portugal – ser consideradas como residências habituais.
Assente que, à luz da lei portuguesa, é de considerar que o réu tem residência habitual em Portugal, daqui decorre que o mesmo se encontra domiciliado neste Estado-Membro, para efeitos do critério geral de competência estatuído no citado artigo 4.º do Reg. 1215/2012, cujo âmbito subjetivo de aplicação se mostra preenchido.
Mostrando-se aplicável o Reg. 1215/2012, a competência internacional dos tribunais portugueses para a apreciação do litígio decorre do estabelecido nesse regulamento, dado que prevalece sobre as regras fixadas na lei interna, designadamente nos artigos 62.º, 63.º e 94.º do Código de Processo Civil.
Nesta conformidade, preenchido o âmbito (temporal, objetivo e subjetivo) de aplicação do Reg. 1215/2012, tendo o réu domicílio em Portugal, os tribunais portugueses têm competência internacional para a presente causa, o que determina a improcedência da exceção dilatória de incompetência absoluta arguida pelo apelado e impõe a revogação da decisão recorrida.
Procede, assim, a apelação.

Em conclusão: (…)

3. Decisão

Nestes termos, na procedência da apelação, acorda-se em julgar improcedente a exceção de incompetência internacional dos tribunais portugueses, em consequência do que se revoga a decisão recorrida, determinando o prosseguimento dos autos.
Custas pelo apelado.
Notifique.
Évora, 28-04-2022
(Acórdão assinado digitalmente)
Ana Margarida Carvalho Pinheiro Leite
(Relatora)
Vítor Sequinho dos Santos
(1.ª Adjunto)
José Manuel Barata
(2.º Adjunto)


__________________________________________________
[1] O artigo 1.º do Reg. 1215/2012 tem a redação seguinte: 1. O presente regulamento aplica-se em matéria civil e comercial, independentemente da natureza da jurisdição. Não abrange, nomeadamente, as matérias fiscais, aduaneiras ou administrativas, nem a responsabilidade do Estado por atos ou omissões no exercício da autoridade do Estado («acta jure imperii»). 2. O presente regulamento não se aplica: a) Ao estado e à capacidade jurídica das pessoas singulares ou aos regimes de bens do casamento ou de relações que, de acordo com a lei que lhes é aplicável, produzem efeitos comparáveis ao casamento; b) Às falências, concordatas e processos análogos; c) À segurança social; d) À arbitragem; e) Às obrigações de alimentos decorrentes de uma relação familiar, parentesco, casamento ou afinidade; f) Aos testamentos e sucessões, incluindo as obrigações de alimentos resultantes do óbito.