Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANABELA CARDOSO | ||
Descritores: | VÍTIMA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA | ||
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Data do Acordão: | 06/04/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | A prestação de declarações para memória futura da vítima especialmente vulnerável constitui um direito seu; durante o inquérito, o depoimento da testemunha especialmente vulnerável deverá ter lugar o mais brevemente possível, após a ocorrência do crime, para obter uma memória viva e próxima de tal ocorrência e, bem assim, para garantir a eficácia na obtenção de prova; a presença da vítima em julgamento deve ser, assim, assumida sempre como uma exceção, constituindo a regra a valoração da prova pré-constituída, traduzida nas declarações prestadas para memória futura. A prestação de declarações para memória futura da vítima revela-se, pois, essencial para a realização da justiça e por forma a acautelar o valor probatório futuro da mesma, a fim de, sendo necessário, ser tomada em conta no julgamento, mostrando-se imperioso acautelar a espontaneidade e genuinidade do depoimento, em tempo útil, ao mesmo tempo que protege a vítima do perigo de revitimização. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes Desembargadores da 1ª Subsecção criminal do Tribunal da Relação de Évora: 1. Nos autos de Inquérito (Actos jurisdicionais), na sequência da solicitação da Digna Magistrada do Ministério Público, para que se apresentasse o processo ao Mmº JIC, com a promoção de ser designada data para tomada de declarações para memória futura aos ofendidos, que se indicaram (1), foi, pela Mmª Juiz, em 6 de Novembro de 2023, proferido o seguinte despacho: “Considerando a informação dos OPC, aliás reproduzida em partes pela Ex.ª Magistrada do M.P., e não se vislumbrando que o estado mental dos ofendidos sofra melhorias significativas, não se afigura possível a realização da diligência, dado que os ofendidos não estarão capazes de prestar cabais declarações. Assim sendo, devolvam-se os autos”. * 2. Não se conformando com o teor desta decisão, dela recorreu a Digna Magistrada do Ministério Público. Da motivação de recurso extraiu as seguintes conclusões: “I. Por despacho judicial proferido nestes autos (em 06.11.2023, com a referência …) - em que se investiga a prática do crime de maus tratos (artigo 152º - A, n.º 1, alínea a), do Código Penal), por parte da arguida AA, nas pessoas (entre outras) de BB, CC, DD, EE, FF - foi rejeitada a tomada de declarações para memória futura aos referidos ofendidos. II. É desta decisão que discordamos, e daí a interposição do presente recurso. III. Nos presentes autos, em 13.10.2023 (com a referência …) e 27.10.2023 (com a referência …) o Ministério Público promoveu a tomada de declarações para memória futura aos ofendidos: BB, CC, DD, EE, FF, nos seguintes termos: Referência …: “ Nos presentes autos investiga-se a prática de factos suscetíveis de configurar, em abstrato, a prática, por parte da arguida AA, de um crime de violência doméstica (na pessoa de GG – falecido) (artigo 152º do Código Penal) e oito crimes de maus tratos (artigo 152º - A, n.º 1, alínea a), do Código Penal), Estes nas pessoas dos ofendidos: 1. HH, 2. BB, 3. CC, 4. II, 5. DD, 6. JJ (falecida), 7. EE, 8. FF. Assim, atendendo aos factos indiciados nos autos e aos elementos de prova recolhidos (remetendo-se, a este respeito, para a factualidade e prova já elencada/ indicada na promoção com a referência … de 21.04.2023, por uma questão de economia processual), resulta dos autos que os ofendidos contam já com alguma idade, apresentando-se especialmente vulneráveis, sendo particularmente indefesos, não só pelas suas idades, mas também pelos seus problemas de saúde. No âmbito das diligências de inquérito, foi efetuada busca, na sequência da qual foi elaborado relatório, em que o OPC referiu que «não foi possível proceder à inquirição de nenhum dos utentes, por se encontrarem numa fase de senilidade bastante avançada, com as suas capacidades cognitivas muito reduzidas, que apesar de se exprimirem de forma verbal, no entanto não tinham memória atual, aparentando nem perceber o que lhes era perguntado, apenas sorriam e encolhiam os ombros» (fls. 199). Ora, nos autos, foram ouvidos familiares dos ofendidos, que referiram nomeadamente que aqueles continuavam a perguntar pela ofendida (fls. 365 e seguintes). Assim, somos de entender que importa proceder à inquirição dos ofendidos, de modo a que eles possam esclarecer os factos, de forma a acautelar a prova e a possibilidade de realização de justiça. Importa proceder à audição dos ofendidos, em ambiente formal e sem a presença da arguida, de modo a assegurar que as mesmas seja o mais livre e imparcial possível. Assim, apresente aos autos ao Mmo JIC, com a promoção que seja designada data para tomada de declarações para memória futura aos ofendidos: 1. HH, 2. BB, 3. CC, 4. II, 5. DD, 6. EE, 7. FF, Nos termos dos artigos 1º, alínea j) e artigo 67.º-A, n.º 1, alínea a), ponto i), alínea b), n.º 3 e n.º 4 do Código de Processo Penal, 17º, 21º, al. d), 22º, 24º da lei n.º 130/2015 de 04 de setembro, a fim de as mesmas poderem ser tomadas em conta aquando do julgamento e bem assim para evitar a vitimização secundária decorrente de futuras inquirições dos ofendidos. Mais se promove, que as declarações sejam tomadas na ausência da arguida, a fim de garantir a espontaneidade dos seus depoimentos e bem assim que a documentação das declarações seja efetuada através de gravação audiovisual.” «Remeta os autos ao Mmo JIC, conforme despacho que antecede (com a ref.ª … de 13.10.2023, ponto 6), para tomada de declarações aos ofendidos: a. BB, b. CC, c. DD, d. EE, e. FF, Consignando-se que a ofendida II faleceu, na pendência dos autos, e, por ora, não é conhecido o paradeiro da ofendida HH (não se promovendo, nesta sequência, a sua inquirição), (…)». IV. Na verdade, está nomeadamente indiciado no presente inquérito (conforme promoção de interrogatório judicial, para onde se remeteu, na promoção com a referência … de 21.04.2023): «(…) 5. Desde data não apurada, mas pelo menos, desde março de 2022, a arguida detinha e explorava, naquele local, na Rua do… , … (…), um lar de idosos ilegal. (…) 12. Apesar de a arguida ter ao seu cuidado idosos, a mesma ausenta-se da residência por períodos prolongados e, por vezes, por vários dias consecutivos, 13. Deixando os idosos sozinhos. (…) 47. A arguida, desde data não concretamente apurada e até ao dia 20.04.2023, teve ao seu cuidado, no referido lar por si detido e explorado, em funcionamento na sua habitação, pessoas idosas e com problemas de saúde: i) HH (ofendida HH), (nascida em …1932) –a qual padece de problemas de saúde, sendo doente oncológica; ii) BB (ofendida BB), i) CC (nascida em …1929.), iii) II (nascida em ….1934), iv) DD, v) JJ, vi) EE (nascido em …1942) – o qual padece de problemas de saúde, utilizando diariamente aparelho de oxigénio, e vii) FF (nascido em …1955). 48. Ora, desde data não apurada e até ao dia 20.04.2023, todos os referidos ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF) padeciam de problemas de saúde que os impossibilitava de zelar, por si próprios, nomeadamente pela própria alimentação, higiene, cuidados de saúde e de vestuário. 49. Desde data não apurada e até ao dia 20.04.2023, todos os referidos ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF), padeciam de senilidade, numa fase bastante avançada, com as suas capacidades cognitivas muito reduzidas e sem memória atual. 50. Os referidos ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF), que estavam acolhidos pela arguida, eram pessoas idosas e inválidas, sendo particularmente indefesas, em virtude das suas avançadas idades e das doenças que padeciam. 51. Os referidos ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF) não se conseguiam movimentar pelos próprios meios, estando todos acamados. 52. À arguida, enquanto cuidadora daqueles ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF), cabia, prestar-lhes cuidados de higiene, saúde, alimentação, conforto, cabendo-lhe, entre outras, as seguintes funções: i) cuidar da higiene dos ofendidos, lavando-os, dando-lhes banho, auxiliando-os a tomar banho e a lavar-se (caso necessitassem), mudando-lhes as fraldas; ii) cuidar da sua saúde, dando-lhes a medicação correta e adequada, prestando-lhes assistência, levando-os ao médico, chamando o médico e/ou enfermeiro, quando necessário; iii) cuidar da alimentação e hidratação daqueles, confecionando comida, dando-lhes comida, alimentando-os adequadamente, ao nível da qualidade e quantidade dos alimentos. 53. Na verdade, atenta a idade e problemas de saúde e locomoção dos ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF), durante o período de tempo em que os mesmos estiveram ao cuidado da arguida, necessitaram: i) Do auxilio de terceiros na prestação de cuidados de saúde, como ida a médicos e administração de medicamentos, de cuidados de enfermagem; ii) Do auxilio de terceiros na prestação de cuidados de higiene pessoal, como para tomar banho e para mudar as fraldas, do tratamento da roupa, da higiene dos espaços; iii) Do auxílio de terceiros na confeção e fornecimento de refeições e da alimentação adequada às suas necessidades; iv) Da prestação de cuidados de bem-estar físico, como ser mudados, com frequência, de posição (por exemplo, da posição de deitado, para a posição de sentado), de forma a evitar o aparecimento de úlceras de pressão, v) Do convívio com terceiras pessoas. 54. Os referidos ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF) por si ou através de terceiros, pagavam à arguida quantia monetária, de valor não concretamente apurado, pelos referidos serviços, que lhes deveriam ser prestados, 55. Apesar de a arguida ter ao seu cuidado aqueles ofendidos, a mesma ausenta-se da residência por períodos prolongados e, por vezes, por vários dias consecutivos, deixando-os sozinhos. 56. Assim, nomeadamente no dia 20.04.2023, de manhã, ou antes, a arguida saiu do local: i) deixando os ofendidos sozinhos, sem supervisão e sem acompanhamento de terceira pessoa, ii) Deixando-os com a fralda suja iii) E sem lhes ter dado comida, sem lhes ter servido o pequeno almoço, 57. Apenas tendo regressado à habitação pelas 11:40 horas, próximo da hora de almoço 58. Ora, no dia 20.04.2023, entre as 11 horas e as 14 horas, foi efetuada busca domiciliária à habitação a arguida, na Rua do …, Lote…, …, … (…), 59. Tendo-se também procedido a fiscalização, em que estiveram presentes elementos no NIAVE, duas técnicas/ Inspetoras da Segurança Social, Autoridade de Saúde e Técnica de Saúde Ambiente. 60. Ora, quando aqueles elementos chegaram ao local, no âmbito da fiscalização e no cumprimento dos mandados de busca domiciliária, tocaram à campainha, por diversas vezes, sendo audível o toque do exterior, 61. Porém, não existiu qualquer resposta. 62. Nesta sequência, aqueles elementos bateram à porta exterior, assim como às janelas viradas para a via pública, 63. Ora, apercebendo-se da presença de terceiras pessoas, os ofendidos afirmaram: i) «estamos sozinhos, não conseguimos abrir a porta», ii) «quem são?» iii) «É para nos ajudar?». 64. Nesta sequência, os ofendidos foram tranquilizados, ocasião em que os militares se identificaram como GNR, referindo-lhe «que estava tudo bem». 65. Após, os militares, através de escalamento do muro exterior, acederam ao terreno adjacente à residência, 66. Em seguida, os militares entraram na habitação, pela porta traseira da habitação, que se encontrava aberta (apenas fechada e não trancada), assim acedendo à sala de estar, permitindo a realização das buscas e da mencionada fiscalização. 67. Naquelas circunstâncias, todos os ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF) se encontravam acamados, 68. Assim: i) As ofendidas HH e BB encontravam-se acamadas num quarto da habitação, no quarto do lado esquerdo por referência a quem entra pela porta principal da habitação, ii) As ofendidas CC, II e DD encontravam-se acamadas noutro quarto da habitação, o quarto do lado direito, por referência a quem entra pela porta principal da habitação, iii) Os ofendidos JJ, EE e FF encontravam-se acamados noutro quarto da habitação, o segundo quarto do lado direito, por referência a quem entra pela porta principal da habitação. 69. Ora, o quarto onde se encontravam JJ, EE e FF não possuía janela, nem qualquer sistema de ventilação, 70. Exalando um cheiro intenso de dejetos humanos. 71. Naquelas circunstâncias, todos os compartimentos da habitação, quartos dos idosos, corredor, sala de estar e cozinha apresentavam falta de higiene, 72. E bem assim odor/ cheiro desagradável de urina e dejetos. 73. Também naquelas circunstâncias, todos os ofendidos (Raquel, Maria Jesus, Idalina, Georgina, Maria Amélia, Maria Conceição, Valentim, Adriano) se encontravam sem a higiene pessoal realizada, 74. Na verdade, naquela ocasião, todos os ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF) usavam fralda e tinham a respetiva fralda suja. 75. Ainda naquelas circunstâncias, nenhum dos ofendidos havia ainda tomado a refeição da manhã, o pequeno almoço. 76. Aquando da fiscalização todos os ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF) padeciam de senilidade numa fase bastante avançada, com as suas capacidades cognitivas muito reduzidas, sem memória atual, respondendo ao que lhes era perguntado apenas com sorrisos e com encolher de ombros. 77. Ainda naquelas circunstâncias, a ofendida HH apresentava ferimentos, uma ferida exposta na perna esquerda e bem assim escaras nos dois calcanhares, carecendo de cuidados de enfermagem e médicos urgentes. 78. Também naquelas circunstâncias, a ofendida JJ não reagia a estímulos, estava prostrada e apática, carecendo igualmente de cuidados médicos urgentes. 79. Assim, as duas ofendidas, HH e JJ, necessitando de assistência médica imediata, foram, desde logo, encaminhadas para o Hospital de …, 80. Sendo que, posteriormente e ainda no mesmo dia, os demais ofendidos foram também encaminhados para o Hospital, a fim de serem observados, 81. Tendo todos os idosos sido realojados em equipamento da Segurança Social. 82. Quando eram cerca das 11:40 horas, compareceu no local a arguida. 83. Por vezes, a arguida ausentava-se do local, deixando os ofendidos sozinhos, sem cuidados e supervisão. 84. A arguida não mudava a ofendida HH, com frequência de posição, o que fez com que a mesmo ficasse com úlceras de pressão. 85. A arguida não diligenciou por encaminhar as ofendidas HH e JJ para unidade de saúde. (…)» V. Por seu turno, no despacho ora recorrido, decidiu-se do seguinte modo: “Considerando a informação dos OPC, aliás reproduzida em partes pela Ex.ª Magistrada do M.P., e não se vislumbrando que o estado mental dos ofendidos sofra melhorias significativas, não se afigura possível a realização da diligência, dado que os ofendidos não estarão capazes de prestar cabais declarações. Assim sendo, devolvam-se os autos” VI. Salvo o devido respeito, o Ministério Público não concorda com a decisão proferida pela Mmª. Juiz de Instrução Criminal (JIC). VII. Os ofendidos nestes autos têm idade avançada e padecem de problemas de saúde. VIII. Os ofendidos têm a saúde, integridade física e psicológica afetadas, encontrando-se numa posição de particular e especial vulnerabilidade, sendo de toda a importância, para a salvaguarda da integridade psíquica (e física) dos ofendidos que os mesmos possam, desde já, prestar declarações para memória futura, de forma rigorosa e esclarecedora, as quais poderão ser valoradas nas fases subsequentes do processo (inclusivamente de julgamento). IX. Em face da factualidade fortemente indiciada nos autos e bem assim em face da idade e problemas de saúde dos ofendidos, é de todo o interesse dos ofendidos ser ouvidos em declarações para memória futura, de modo a evitar a vitimização secundária em (eventual) julgamento e bem assim assegurar a valoração das suas declarações em todas as outras fases do processo. X. Não obstante a natureza prioritária dos autos, não se pode ignorar que os mesmos, muitas vezes, demandam uma investigação que acaba por ser demorada, e em que os depoimentos das vítimas são essenciais na descoberta da verdade material, importando que os seus depoimentos sejam tomados com celeridade (sob pena de se poderem perder factos essenciais). XI. A audição dos ofendidos nesta fase do processo e em sede de declarações para memória futura permitira evitar a perda de memória dos factos na sua plenitude (tanto o mais que estamos perante ofendidos de idade avançada, com problemas de saúde, nomeadamente demência). XII. O depoimento das vítimas é essencial na descoberta da verdade material, importando que os mesmos sejam tomados com celeridade (sob pena de se poderem perder factos essenciais) sobretudo quando estamos perante idosos com idade avançada e problemas de saúde, sendo que, alguns ofendidos já faleceram na pendência dos autos. XIII. Os ofendidos nestes autos são vítimas especialmente vulneráveis, sendo pessoas de idade já bastante avançada, padecendo de problemas de saúde, têm o direito de ser ouvidos em ambiente informal e reservado, o mais breve possível e sem atrasos injustificados e sem repetição de inquirições, tendo o direito de ser ouvidos em declarações para memória futura. XIV. Na promoção do Ministério Público fez-se referência a que os ofendidos questionavam os seus familiares sobre a arguida, motivo pelo qual, se entendeu que os mesmos poderiam estar em condições de prestar declarações nos autos, termos em que se solicitou que os mesmos fossem ouvidos formalmente, em sede de declarações para memória futura. XV. Em face das declarações prestadas pelos familiares dos ofendidos, que referiram que os mesmos «perguntavam - atualmente – pela arguida», resulta que os mesmos têm capacidade de verbalizar e bem assim que estão capazes de prestar declarações sobre factos referentes à própria arguida. XVI. Não poderia a Mmª JIC ter concluído, como o fez, que os ofendidos «não estão capazes de prestar declarações». Na verdade, nenhum elemento clínico/ pericial foi junto aos autos dando conta que os ofendidos não estavam capazes de prestar declarações, nem a Mmª JIC os tentou ouvir para formular tal conclusão. XVII. Tendo os familiares dos ofendidos dando conta que os mesmos «perguntavam pela arguida», resulta que os ofendidos estavam lúcidos e com capacidade de verbalização. XVIII. Assim, afigurando-se a possibilidade de audição dos ofendidos, deveria a Mmª JIC ter determinado a realização de tomada de declarações para memória futura aos ofendidos (pessoas particular e especialmente vulneráveis, atenta a sua muito avançada idade, problemas de saúde e dependência de terceiros). XIX. Ora, posteriormente à decisão da Mmª JIC foram juntos elementos clínicos dando conta expressamente que alguns dos ofendidos estavam capazes de prestar declarações. XX. Assim, foi junta documentação clínica dando conta que, após a diligência de buscas domiciliárias, quando os ofendidos deram entrada em hospital: HH estava «consciente e colaborante» (fls. 412); CC estava «consciente, orientada e colaborante» (fls. 428); EE estava «consciente; responde após insistência às perguntas efetuadas» (fls. 420). XXI. Estes elementos entretantos juntos reforçam o entendimento segundo o qual a Mmª JIC não poderia ter concluído que os ofendidos não estavam capazes de prestar declarações. XXII. É de toda a importância a audição dos ofendidos. A tomada de declarações para memória futura afigura-se de toda a importância para a descoberta da verdade e para a realização da justiça. XXIII. Na verdade, no caso, é fundamental ouvir os ofendidos, não se podendo ignorar que os mesmos são pessoas de idade particularmente avançada e padecem de problemas de saúde, sendo que, não se ouvindo, desde já, os ofendidos em sede de declarações para memória futura se poderá comprometer a sua audição futura e a inerente realização de justiça! XXIV. Ora, ainda que os ofendidos possam padecer de problemas de saúde que impossibilitem a deslocação a tribunal, sempre o tribunal se poderá deslocar ao local. XXV. Os ofendidos têm direito a ser ouvidos formalmente, de forma célere e livre, o que se impõe fazer. XXVI. Nos termos dos indicados artigos 1º, alínea j) e artigo 67.º-A, n.º 1, alínea a), ponto i), alínea b), n.º 3 e n.º 4, do CPP, 28º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, 17º, 21º, al. d), 22º, 24º da lei n.º 130/2015 de 04 de setembro, estão reunidos os pressupostos para a audição para memória futura da Ofendida nos autos. XXVII. Assim, ao ter decidido como decidiu, a Meritíssima Juiz de Instrução Criminal violou os artigos 1º, alínea j) e artigo 67.º-A, n.º 1, alínea a), ponto i), alínea b), n.º 3 e n.º 4, do CPP, 28º da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, 17º, 21º, al. d), 22º, 24º da lei n.º 130/2015 de 04 de setembro. XXVIII. Deve, em conformidade, o despacho recorrido ser revogado e ser em sua substituição proferido despacho que determine a prestação de declarações para memória futura aos ofendidos. XXIX. Assim, e nos termos de tudo o que foi supra exposto, substituindo o despacho recorrido por outro que determine a prestação de declarações para memória futura, farão V.as Exas. a habituada Justiça!” * 3. O recurso foi admitido, com subida imediata, em separado e com efeito suspensivo. * 4. Neste Tribunal da Relação, o Exmº. Senhor Procurador-Geral Adjunto proferiu fundamentado Parecer no sentido de o recurso dever obter provimento. * 5. Cumpridos os vistos, foi realizada a competente conferência. * 6. O objeto do recurso, tal como se mostra delimitado pelas respetivas conclusões, reconduz-se à questão de saber se, nos autos, em que se investiga a prática de um crime de maus tratos, p. e p. pelo art. 152º A nº 1 al a) do CP, estão reunidas as condições para a tomada de declarações para memória futura das vítimas. * 7. Apreciando: Observados os autos, verifica-se que se mostram indiciados os seguintes factos [conforme promoção de interrogatório judicial, para onde se remeteu, na promoção com a referência … de 21.04.2023]: «(…) 5. Desde data não apurada, mas pelo menos, desde março de 2022, a arguida detinha e explorava, naquele local, na Rua do …, …, … (…), um lar de idosos ilegal. (…) 12. Apesar de a arguida ter ao seu cuidado idosos, a mesma ausenta-se da residência por períodos prolongados e, por vezes, por vários dias consecutivos, 13. Deixando os idosos sozinhos. (…) 47. A arguida, desde data não concretamente apurada e até ao dia 20.04.2023, teve ao seu cuidado, no referido lar por si detido e explorado, em funcionamento na sua habitação, pessoas idosas e com problemas de saúde: i) HH (ofendida HH), (nascida em …1932) –a qual padece de problemas de saúde, sendo doente oncológica; ii) BB (ofendida BB), i) CC (nascida em …1929.), iii) II (nascida em ….1934), iv) DD, v) JJ, vi) EE (nascido em …1942) – o qual padece de problemas de saúde, utilizando diariamente aparelho de oxigénio, e vii) FF (nascido em …1955). 48. Ora, desde data não apurada e até ao dia 20.04.2023, todos os referidos ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF) padeciam de problemas de saúde que os impossibilitava de zelar, por si próprios, nomeadamente pela própria alimentação, higiene, cuidados de saúde e de vestuário. 49. Desde data não apurada e até ao dia 20.04.2023, todos os referidos ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF), padeciam de senilidade, numa fase bastante avançada, com as suas capacidades cognitivas muito reduzidas e sem memória atual. 50. Os referidos ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF), que estavam acolhidos pela arguida, eram pessoas idosas e inválidas, sendo particularmente indefesas, em virtude das suas avançadas idades e das doenças que padeciam. 51. Os referidos ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF) não se conseguiam movimentar pelos próprios meios, estando todos acamados. 52. À arguida, enquanto cuidadora daqueles ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF), cabia, prestar-lhes cuidados de higiene, saúde, alimentação, conforto, cabendo-lhe, entre outras, as seguintes funções: i) cuidar da higiene dos ofendidos, lavando-os, dando-lhes banho, auxiliando-os a tomar banho e a lavar-se (caso necessitassem), mudando-lhes as fraldas; ii) cuidar da sua saúde, dando-lhes a medicação correta e adequada, prestando-lhes assistência, levando-os ao médico, chamando o médico e/ou enfermeiro, quando necessário; iii) cuidar da alimentação e hidratação daqueles, confecionando comida, dando-lhes comida, alimentando-os adequadamente, ao nível da qualidade e quantidade dos alimentos. 53. Na verdade, atenta a idade e problemas de saúde e locomoção dos ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF), durante o período de tempo em que os mesmos estiveram ao cuidado da arguida, necessitaram: i) Do auxilio de terceiros na prestação de cuidados de saúde, como ida a médicos e administração de medicamentos, de cuidados de enfermagem; ii) Do auxilio de terceiros na prestação de cuidados de higiene pessoal, como para tomar banho e para mudar as fraldas, do tratamento da roupa, da higiene dos espaços; iii) Do auxílio de terceiros na confeção e fornecimento de refeições e da alimentação adequada às suas necessidades; iv) Da prestação de cuidados de bem-estar físico, como ser mudados, com frequência, de posição (por exemplo, da posição de deitado, para a posição de sentado), de forma a evitar o aparecimento de úlceras de pressão, v) Do convívio com terceiras pessoas. 54. Os referidos ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF) por si ou através de terceiros, pagavam à arguida quantia monetária, de valor não concretamente apurado, pelos referidos serviços, que lhes deveriam ser prestados, 55. Apesar de a arguida ter ao seu cuidado aqueles ofendidos, a mesma ausenta-se da residência por períodos prolongados e, por vezes, por vários dias consecutivos, deixando-os sozinhos. 56. Assim, nomeadamente no dia 20.04.2023, de manhã, ou antes, a arguida saiu do local: i) deixando os ofendidos sozinhos, sem supervisão e sem acompanhamento de terceira pessoa, ii) Deixando-os com a fralda suja iii) E sem lhes ter dado comida, sem lhes ter servido o pequeno almoço, 57. Apenas tendo regressado à habitação pelas 11:40 horas, próximo da hora de almoço 58. Ora, no dia 20.04.2023, entre as 11 horas e as 14 horas, foi efetuada busca domiciliária à habitação a arguida, na Rua do …, Lote…, …, … (…), 59. Tendo-se também procedido a fiscalização, em que estiveram presentes elementos no NIAVE, duas técnicas/ Inspetoras da Segurança Social, Autoridade de Saúde e Técnica de Saúde Ambiente. 60. Ora, quando aqueles elementos chegaram ao local, no âmbito da fiscalização e no cumprimento dos mandados de busca domiciliária, tocaram à campainha, por diversas vezes, sendo audível o toque do exterior, 61. Porém, não existiu qualquer resposta. 62. Nesta sequência, aqueles elementos bateram à porta exterior, assim como às janelas viradas para a via pública, 63. Ora, apercebendo-se da presença de terceiras pessoas, os ofendidos afirmaram: i) «estamos sozinhos, não conseguimos abrir a porta», ii) «quem são?» iii) «É para nos ajudar?». 64. Nesta sequência, os ofendidos foram tranquilizados, ocasião em que os militares se identificaram como GNR, referindo-lhe «que estava tudo bem». 65. Após, os militares, através de escalamento do muro exterior, acederam ao terreno adjacente à residência, 66. Em seguida, os militares entraram na habitação, pela porta traseira da habitação, que se encontrava aberta (apenas fechada e não trancada), assim acedendo à sala de estar, permitindo a realização das buscas e da mencionada fiscalização. 67. Naquelas circunstâncias, todos os ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF) se encontravam acamados, 68. Assim: i) As ofendidas HH e BB encontravam-se acamadas num quarto da habitação, no quarto do lado esquerdo por referência a quem entra pela porta principal da habitação, ii) As ofendidas CC, II e DD encontravam-se acamadas noutro quarto da habitação, o quarto do lado direito, por referência a quem entra pela porta principal da habitação, iii) Os ofendidos JJ, EE e FF encontravam-se acamados noutro quarto da habitação, o segundo quarto do lado direito, por referência a quem entra pela porta principal da habitação. 69. Ora, o quarto onde se encontravam JJ, EE e FF não possuía janela, nem qualquer sistema de ventilação, 70. Exalando um cheiro intenso de dejetos humanos. 71. Naquelas circunstâncias, todos os compartimentos da habitação, quartos dos idosos, corredor, sala de estar e cozinha apresentavam falta de higiene, 72. E bem assim odor/ cheiro desagradável de urina e dejetos. 73. Também naquelas circunstâncias, todos os ofendidos (Raquel, Maria Jesus, Idalina, Georgina, Maria Amélia, Maria Conceição, Valentim, Adriano) se encontravam sem a higiene pessoal realizada, 74. Na verdade, naquela ocasião, todos os ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF) usavam fralda e tinham a respetiva fralda suja. 75. Ainda naquelas circunstâncias, nenhum dos ofendidos havia ainda tomado a refeição da manhã, o pequeno almoço. 76. Aquando da fiscalização todos os ofendidos (HH, BB, CC, II, DD, JJ, EE, FF) padeciam de senilidade numa fase bastante avançada, com as suas capacidades cognitivas muito reduzidas, sem memória atual, respondendo ao que lhes era perguntado apenas com sorrisos e com encolher de ombros. 77. Ainda naquelas circunstâncias, a ofendida HH apresentava ferimentos, uma ferida exposta na perna esquerda e bem assim escaras nos dois calcanhares, carecendo de cuidados de enfermagem e médicos urgentes. 78. Também naquelas circunstâncias, a ofendida JJ não reagia a estímulos, estava prostrada e apática, carecendo igualmente de cuidados médicos urgentes. 79. Assim, as duas ofendidas, HH e JJ, necessitando de assistência médica imediata, foram, desde logo, encaminhadas para o Hospital de …, 80. Sendo que, posteriormente e ainda no mesmo dia, os demais ofendidos foram também encaminhados para o Hospital, a fim de serem observados, 81. Tendo todos os idosos sido realojados em equipamento da Segurança Social. 82. Quando eram cerca das 11:40 horas, compareceu no local a arguida. 83. Por vezes, a arguida ausentava-se do local, deixando os ofendidos sozinhos, sem cuidados e supervisão. 84. A arguida não mudava a ofendida HH, com frequência de posição, o que fez com que a mesmo ficasse com úlceras de pressão. 85. A arguida não diligenciou por encaminhar as ofendidas HH e JJ para unidade de saúde. (…)»).“ Perante a factualidade que se mostra indiciada, não temos dúvidas que estão reunidos os pressupostos para a audição para memória futura dos ofendidos, que se apresentam especialmente vulneráveis, por particularmente indefesos, não só pelas suas idades, mas, também, pelos seus problemas de saúde, nos termos dos seguintes preceitos legais: No art. 1.º al. j) do CPP, considera-se “criminalidade violenta” as condutas que dolosamente se dirigirem contra a vida, a integridade física, a liberdade pessoal, a liberdade e autodeterminação sexual ou a autoridade pública e forem puníveis com pena de prisão de máximo igual ou superior a 5 anos. Por sua vez, no art, 67º A do CPP: “1 - Considera-se: a) 'Vítima': i) A pessoa singular que sofreu um dano, nomeadamente um atentado à sua integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou um dano patrimonial, diretamente causado por ação ou omissão, no âmbito da prática de um crime; (…) b) 'Vítima especialmente vulnerável', a vítima cuja especial fragilidade resulte, nomeadamente, da sua idade, do seu estado de saúde ou de deficiência, bem como do facto de o tipo, o grau e a duração da vitimização haver resultado em lesões com consequências graves no seu equilíbrio psicológico ou nas condições da sua integração social; (…) 3 - As vítimas de criminalidade violenta, de criminalidade especialmente violenta e de terrorismo são sempre consideradas vítimas especialmente vulneráveis para efeitos do disposto na alínea b) do n.º 1. 4 - Assistem à vítima os direitos de informação, de assistência, de proteção e de participação ativa no processo penal, previstos neste Código e no Estatuto da Vítima. 5 - A vítima tem direito a colaborar com as autoridades policiais ou judiciárias competentes, prestando informações e facultando provas que se revelem necessárias à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.” Nos termos do art. 28º da Lei nº 93/99, de 14 de Julho [Lei de proteção de testemunhas]: “1 - Durante o inquérito, o depoimento ou as declarações da testemunha especialmente vulnerável deverão ter lugar o mais brevemente possível após a ocorrência do crime. 2 - Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito, podendo ainda ser requerido o registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal.” E nos termos do art. 17º da Lei nº 130/2015, de 4 de Setembro [Estatuto da Vítima]: “1 - A vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões. 2 - A inquirição da vítima e a sua eventual submissão a exame médico devem ter lugar, sem atrasos injustificados, após a aquisição da notícia do crime, apenas quando sejam estritamente necessárias às finalidades do inquérito e do processo penal e deve ser evitada a sua repetição.” O artigo 21.º do mesmo diploma legal estipula que: “Direitos das vítimas especialmente vulneráveis 1 - Deve ser feita uma avaliação individual das vítimas especialmente vulneráveis, a fim de determinar se devem beneficiar de medidas especiais de proteção. 2 - As medidas especiais de proteção referidas no número anterior são as seguintes: (…) d) Prestação de declarações para memória futura, nos termos previstos no artigo 24.º.” Por sua vez, refere-se no art. 24º da mesma lei: “Artigo 24.º Declarações para memória futura 1 - O juiz, a requerimento da vítima especialmente vulnerável ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento, nos termos e para os efeitos previstos no artigo 271.º do Código de Processo Penal. 2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor. 3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas. 4 - A tomada de declarações é efetuada, em regra, através de registo áudio ou audiovisual, só podendo ser utilizados outros meios, designadamente estenográficos ou estenotípicos, ou qualquer outro meio técnico idóneo a assegurar a reprodução integral daquelas, ou a documentação através de auto, quando aqueles meios não estiverem disponíveis, o que deverá ficar a constar do auto. 5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado pelo tribunal. 6 - Nos casos previstos neste artigo só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.” Resulta das citadas disposições legais que a prestação de declarações para memória futura da vítima especialmente vulnerável constitui um direito seu; durante o inquérito, o depoimento da testemunha especialmente vulnerável deverá ter lugar o mais brevemente possível, após a ocorrência do crime, para obter uma memória viva e próxima de tal ocorrência e, bem assim, para garantir a eficácia na obtenção de prova; a presença da vítima em julgamento deve ser, assim, assumida sempre como uma excepção, constituindo a regra a valoração da prova pré-constituída, traduzida nas declarações prestadas para memória futura. A prestação de declarações para memória futura da vítima revela-se, pois, essencial para a realização da justiça e por forma a acautelar o valor probatório futuro da mesma, a fim de, sendo necessário, ser tomada em conta no julgamento, mostrando-se imperioso acautelar a espontaneidade e genuinidade do depoimento, em tempo útil, ao mesmo tempo que protege a vítima do perigo de revitimização. No despacho recorrido, indeferiu-se a tomada de declarações para memória futura das vítimas, por se ter considerado, atenta a informação prestada pelos OPC, e tão só por isso, que não se vislumbrava que o estado mental das mesmas sofresse melhorias significativas, de forma a ser possível a realização da diligência, dado que os ofendidos não estavam capazes de prestar cabais declarações. Sucede, contudo, que só com a informação informal dos OPC, e sem mais, não poderia a Mmª JIC ter concluído, como o fez, que os ofendidos não estavam capazes de prestar declarações. Com efeito, e como bem se refere no recurso, nenhum elemento clínico / pericial foi junto aos autos, dando conta que os ofendidos não estavam capazes de prestar declarações, nem a Mmª JIC os tentou ouvir para formular tal conclusão. Para além da informação dos OPC, mencionada pela Mmª JIC, também consta dos autos informação dos familiares dos ofendidos (fls. 365 e ss), dando conta que estes continuavam a perguntar pela arguida, daqui resultando algum grau de lucidez e capacidade de verbalização, por parte dos mesmos, designadamente de factos referentes à própria arguida, que não foram minimamente testadas pela Mmª JIC. Como bem se refere no recurso, no caso, é fundamental ouvir os ofendidos, não se podendo ignorar que são pessoas de idade particularmente avançada e padecem de problemas de saúde, sendo que, não se procedendo, desde já, à sua audição, em sede de declarações para memória futura, se poderá comprometer a sua audição futura e a inerente realização de justiça. Em suma, sendo que a tomada de declarações para memória futura tem necessariamente que assentar no interesse da vítima, e não se podendo olvidar que os ofendidos, destes autos, têm idade avançada e padecem de problemas de saúde, é de toda a importância, por isso, para salvaguarda do interesse dos mesmos (desde logo da sua integridade psíquica e física), que possam, desde já, prestar declarações para memória futura, evitando, à partida, a repetição da sua audição, e, na medida em que pode, ainda, acautelar a genuinidade do seu depoimento, em tempo útil, e de forma a evitar a perda de memória de factos essenciais, deve ser deferido o requerimento feito pelo Digno Magistrado do Ministério Público e julgado procedente o recurso interposto. * - Decisão: Em conformidade, com o exposto, acordam os Juízes Desembargadores, neste Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso interposto pela Digna Magistrada do Ministério Público, revogando-se o despacho recorrido, que deverá ser substituído por outro que determine a prestação de declarações para memória futura aos ofendidos, nos termos solicitados. Sem custas. * (Texto elaborado em suporte informático e integralmente revisto) Évora, 4 de Junho de 2024 Os Juízes Desembargadores Anabela Simões Cardoso Artur Vargues António Condesso ............................................................................................................. 1 “6. Para o JIC: Nos presentes autos investiga-se a prática de factos suscetíveis de configurar, em abstrato, a prática, por parte da arguida AA, de um crime de violência doméstica (na pessoa de GG – falecido) (artigo 152º do Código Penal) e oito crimes de maus tratos (artigo 152º - A, n.º 1, alínea a), do Código Penal), Estes nas pessoas dos ofendidos: 1. HH, 2. BB, 3. CC, 4. II, 5. DD, 6. JJ ( falecida), 7. EE, 8. FF. Assim, atendendo aos factos indiciados nos autos e aos elementos de prova recolhidos (remetendo-se, a este respeito, para a factualidade e prova já elencada/ indicada na promoção com a referência … de 21.04.2023, por uma questão de economia processual), resulta dos autos que os ofendidos contam já com alguma idade, apresentando-se especialmente vulneráveis, sendo particularmente indefesos, não só pelas suas idades, mas também pelos seus problemas de saúde. No âmbito das diligências de inquérito, foi efetuada busca, na sequência da qual foi elaborado relatório, em que o OPC referiu que «não foi possível proceder à inquirição de nenhum dos utentes, por se encontrarem numa fase de senilidade bastante avançada, com as suas capacidades cognitivas muito reduzidas, que apesar de se exprimirem de forma verbal, no entanto não tinham memória atual, aparentando nem perceber o que lhes era perguntado, apenas sorriam e encolhiam os ombros» (fls. 199). Ora, nos autos, foram ouvidos familiares dos ofendidos, que referiram nomeadamente que aqueles continuavam a perguntar pela ofendida (fls. 365 e seguintes). Assim, somos de entender que importa proceder à inquirição dos ofendidos, de modo a que eles possam esclarecer os factos, de forma a acautelar a prova e a possibilidade de realização de justiça. Importa proceder à audição dos ofendidos, em ambiente formal e sem a presença da arguida, de modo a assegurar que as mesmas seja o mais livre e imparcial possível. Assim, apresente aos autos ao Mmo JIC, com a promoção que seja designada data para tomada de declarações para memória futura aos ofendidos: 1. HH, 2. BB, 3. CC, 4. II, 5. DD, 6. EE, 7. FF, Nos termos dos artigos 1º, alínea j) e artigo 67.º-A, n.º 1, alínea a), ponto i), alínea b), n.º 3 e n.º 4 do Código de Processo Penal, 17º, 21º, al. d), 22º, 24º da lei n.º 130/2015 de 04 de setembro, a fim de as mesmas poderem ser tomadas em conta aquando do julgamento e bem assim para evitar a vitimização secundária decorrente de futuras inquirições dos ofendidos. Mais se promove, que as declarações sejam tomadas na ausência da arguida, a fim de garantir a espontaneidade dos seus depoimentos e bem assim que a documentação das declarações seja efetuada através de gravação audiovisual.” |