Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
38/15.3YREVR.E1
Relator: MÁRIO SERRANO
Descritores: DECISÃO ARBITRAL
CONTRATO DE FORNECIMENTO
CÂMARA MUNICIPAL
Data do Acordão: 03/26/2015
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: Nos termos do regime da arbitragem voluntária (LAV, aprovada pela Lei nº 63/2011), a impugnação da sentença arbitral perante o tribunal estadual competente pode operar por duas vias: ou por recurso, mas neste caso as partes têm de prever expressamente essa possibilidade na convenção de arbitragem e a causa não pode ser decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável (conforme impõe o artº 39º, nº 4, da LAV); ou por pedido de anulação (que será a regra, e em exclusivo, salvo o referido acordo de recorribilidade, tudo conforme artº 46º, nº 1, da LAV).
Decisão Texto Integral: Proc. nº 38/15.3YREVR-1ª (2015)
Apelação-1ª
(Acto processado e revisto pelo relator signatário: artº 131º, nº 5 – NCPC)
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ACORDAM NA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA:


I – RELATÓRIO:

Nos presentes autos – em que (…), após ser confrontada, pelo Município de Lagos, com factura relativa a serviços de fornecimento de água prestados em Agosto de 2012, no montante de 19,68 €, intentou processo arbitral contra aquela entidade municipal, junto do «CIMAAL – Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Conflitos de Consumo do Algarve», e deste obteve sentença arbitral que julgou aquela dívida extinta por prescrição – vem a demandada impugnar essa decisão arbitral, pedindo a sua anulação, ao abrigo do artº 46º da Lei de Arbitragem Voluntária (LAV), aprovada pela Lei nº 63/2011, de 14/12.

Na petição (reclamação) apresentada no referido Centro de Arbitragem alegou a demandante que não foi informada de que alguma factura estivesse em dívida e que, por estar em causa fornecimento de água, tido como serviço público essencial para efeitos da Lei nº 23/96, de 26/7 (que rege sobre a protecção do utente de serviços públicos essenciais), a respectiva dívida, a existir, prescreveu no prazo de 6 meses, a contar da data da prestação do serviço (em Agosto de 2012), nos termos do artº 10º, nº 1, dessa Lei.

Na contestação da entidade municipal demandada argumentou esta que a factura em causa foi normalmente enviada para a morada conhecida da demandante, pelo que se deve presumir ter sido recebida (e sem que, caso não tivesse sido recebida, a demandante se tivesse questionado quanto à sua falta, como lhe impunha a boa fé contratual, por se tratar de factura de regular emissão mensal), e que o não-pagamento da factura fez a dívida transitar para execução fiscal (que prosseguiu com a citação da demandante dentro do referido prazo de 6 meses), pelo que o prazo de prescrição passou a ser de 8 anos, nos termos do artº 48º da Lei Geral Tributária (LGT), aprovada pelo Decreto-Lei nº 398/98, de 17/12.

Após o julgamento, foi proferida sentença, em que se entendeu: a) julgar o tribunal arbitral competente, atenta a vontade manifestada pela demandante, o litígio reportar-se a serviços públicos essenciais e esse litígio estar sujeito ao regime de arbitragem necessária, ao abrigo do artº 15º da Lei nº 23/96; b) dar como provado que a demandante foi avisada para efectuar o pagamento da dívida em Junho de 2013 e como não provado que a demandante tivesse sido citada ou notificada judicialmente para efectuar esse pagamento e que tivesse recebido o aviso de citação no âmbito de processo de execução fiscal. Nessa base, entendeu-se que a dívida em causa se referia a serviço público essencial (fornecimento de água), sendo o prazo de prescrição aplicável de 6 meses, previsto no artº 10º, nº 1, da Lei nº 23/96, e que operou essa prescrição, porquanto não se provaram factos integradores da sua interrupção (já que a demandada, que tinha o respectivo ónus da prova, não logrou demonstrar factos impeditivos da prescrição, i.e., a propositura de acção ou injunção, ou a citação ou notificação judicial da demandante, antes de decorrido esse prazo). Em conformidade, julgou-se procedente o pedido, declarando extinta por prescrição a dívida invocada pela demandada.

No subsequente pedido de impugnação dessa sentença arbitral [endereçado ao Tribunal Central Administrativo Sul (TCA Sul)], sustenta a entidade municipal demandada o seguinte: a) é admissível recurso da sentença, por o permitir a convenção de arbitragem celebrada entre o Centro de Arbitragem decisor («CIMAAL») e a associação de municípios de que faz parte a entidade municipal demandada («AMAL – Associação de Municípios do Algarve»), como decorre do Regulamento do «CIMAAL», em cujo artº 17º se estabelece que «qualquer das partes [em procedimento de arbitragem] tem o direito de requerer a anulação da decisão arbitral, nos termos dos artigos 27º e 28º da Lei nº 31/86, de 29 de Agosto» (disposições da anterior LAV, revogada pela actual, em que lhes correspondem os artos 39º e 46º); b) a dívida em causa, ao não ter sido paga no momento próprio, transitou para execução fiscal, nos termos do artº 148º do Código de Procedimento e de Processo Tributário [aprovado pelo Decreto-Lei nº 433/99, de 26/10 (CPPT)], e o seu prazo prescricional passou a ser de 8 anos, conforme artº 48º da LGT, pelo que a relação jurídica relativa ao fornecimento de água passou a integrar uma esfera de indisponibilidade, quanto aos poderes conferidos à demandada, e deixou de estar abrangida pela mencionada convenção de arbitragem, que não é assim válida para a resolução de conflitos entre consumidores de água e o Município de Lagos, com o que se preenche o artº 46º, nº 3, al. a), subalínea i), da LAV («convenção não é válida»); c) a sentença arbitral, ao pronunciar-se sobre litígio não abrangido pela convenção de arbitragem e que extravasa o seu campo de pronúncia, incorre no fundamento de anulabilidade previsto no artº 46º, nº 3, al. a), subalínea iii), da LAV («a sentença se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam o âmbito desta»); d) a sentença arbitral imiscui-se em matéria da exclusiva competência da entidade municipal e da jurisdição fiscal, pelo que integra o artº 46º, nº 3, al. b), subalínea i), da LAV («o objecto do litígio não é susceptível de ser decidido por arbitragem nos termos do direito português»); e) a sentença arbitral, ao não ter em conta o disposto nos artos 148º do CPPT e 48º da LGT, padece do vício de inconstitucionalidade.

Notificados a demandante e o tribunal arbitral para se pronunciarem sobre a impugnação, ao abrigo do artº 60º, nº 2, da LAV (ex vi do artº 59º, nº 7, com referência à al. g) do nº 1 do mesmo preceito, ambos da LAV), apenas o segundo respondeu, opondo-se ao provimento do pedido de anulação, para cujo efeito declarou o seguinte: a) a competência do tribunal arbitral decorreu, não de convenção de arbitragem, mas da sujeição do objecto do litígio a resolução por via arbitral necessária, conforme resulta do regime da Lei nº 23/96 (segundo o qual o litígio é dirimido por tribunal arbitral quando o utente do serviço público essencial o requerer); b) apesar do uso pela impugnante da expressão «recurso», o meio impugnatório pretendido é o do pedido de anulação, previsto no artº 46º da LAV; c) a questão da competência do tribunal arbitral não foi suscitada pela impugnante, e não o fez no prazo de 30 dias após a notificação da decisão, como impunha o artº 18º, nº 9, da LAV; d) o tribunal estadual não pode sindicar o mérito da sentença arbitral, mas apenas apreciar o pedido de anulação da mesma, como decorre do artº 46º, nº 9, da LAV; e) em todo o caso, reitera-se que a dívida em causa não é uma dívida fiscal (sujeita ao regime do artº 48º da LGT), mas antes uma dívida respeitante à prestação de serviço público essencial, a que se aplica a Lei nº 23/96, pelo que o prazo prescricional é de 6 meses, contado desde a prestação do serviço, e essa prescrição produziu-se, por não ter sido alegada ou demonstrada pela impugnante qualquer causa interruptiva da mesma.

Posteriormente, suscitou o MºPº a incompetência em razão da matéria do TCA Sul, a fim de ser reconhecida a competência deste Tribunal da Relação, por se estar perante dívida emergente de contrato de fornecimento de água, não referente a relação jurídico-tributária, cabendo essa matéria na esfera de jurisdição dos tribunais judiciais. A essa excepção se opôs a impugnante, com base na tese de que a dívida em causa terá natureza fiscal, o que situaria a questão na esfera de jurisdição dos tribunais administrativos. Decidindo a excepção, o TCA Sul entendeu estar em causa dívida relativa a consumo de água, que não reveste a natureza de dívida fiscal ou parafiscal, pelo que concluiu pela atribuição de competência a este Tribunal da Relação, nos termos do artº 59º, nº 1, da LAV – e assim foram os respectivos autos remetidos a este Tribunal.

Do teor da deduzida impugnação da sentença arbitral resulta que a matéria a decidir se resume a apurar se tem base legal o pedido de anulação dessa decisão, com referência a qualquer dos fundamentos invocados, e supra descritos, que aqui se sintetizam:

a) artº 46º, nº 3, al. a), subalínea i), da LAV («convenção não é válida»);
b) artº 46º, nº 3, al. a), subalínea iii), da LAV («a sentença se pronunciou sobre um litígio não abrangido pela convenção de arbitragem ou contém decisões que ultrapassam o âmbito desta»);
c) artº 46º, nº 3, al. b), subalínea i), da LAV («o objecto do litígio não é susceptível de ser decidido por arbitragem nos termos do direito português»).

Cumpre apreciar e decidir.
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II – FUNDAMENTAÇÃO:

1. Comece-se por salientar, como decorre do que já se enunciou supra quanto ao objecto do presente processo, que aquilo que está aqui em discussão não é apreciar o mérito da decisão arbitral (ou seja, saber se a dívida invocada está ou não prescrita), mas antes verificar se existe fundamento para a anulação da decisão arbitral (ou seja, se estavam ou não preenchidos os pressupostos de uma válida intervenção do tribunal arbitral no presente caso).

Nos termos do regime da arbitragem voluntária (LAV, aprovada pela Lei nº 63/2011), a impugnação da sentença arbitral perante o tribunal estadual competente pode operar por duas vias: ou por recurso, mas neste caso as partes têm de prever expressamente essa possibilidade na convenção de arbitragem e a causa não pode ser decidida segundo a equidade ou mediante composição amigável (conforme impõe o artº 39º, nº 4, da LAV); ou por pedido de anulação (que será a regra, e em exclusivo, salvo o referido acordo de recorribilidade, tudo conforme artº 46º, nº 1, da LAV).

No presente caso, a impugnante escolheu claramente esta segunda via, até porque nada se alegou quanto a um acordo expresso de recorribilidade, não obstante o litígio ter sido decidido segundo o direito constituído: é certo que o impugnante usa ocasionalmente, no seu pedido de impugnação, a expressão «recurso», mas, quando identifica a norma ao abrigo da qual deduz essa impugnação, menciona expressamente o artº 46º da LAV. Da utilização desse meio processual decorre, por sua vez, o seguinte regime, estabelecido no nº 9 do aludido artº 46º: «O tribunal estadual que anule a sentença arbitral não pode conhecer do mérito da questão ou questões por aquela decididas, devendo tais questões, se alguma das partes o pretender, ser submetidas a outro tribunal arbitral para serem por este decididas». Consequentemente, se se chegar à conclusão de que deve proceder o pedido de anulação da sentença arbitral, caberá a este Tribunal conhecer apenas do fundamento dessa anulação, nada podendo decidir quanto ao mérito da questão de prescrição julgada procedente pelo tribunal arbitral.

Passemos então a apreciar os argumentos invocados para fundamentar a anulabilidade da decisão arbitral.

Os fundamentos de anulação de sentença arbitral estão explicitados no nº 3 do artº 46º da LAV. Como vimos, a impugnante identifica 3 subalíneas dessa disposição legal que poderiam estar preenchidas in casu, e daí retira justificação para a procedência da sua pretensão de anulação. Porém, se bem atentarmos, a argumentação da impugnante, a propósito de qualquer dessas subalíneas invocadas, vai sendo repetida sob diversas fórmulas, mas com diferenças meramente semânticas, que permitem afirmar reconduzirem-se todas a uma única ideia essencial: o litígio em apreço não era susceptível de resolução por via arbitral (seja por não estar abrangido por convenção de arbitragem, seja por tal não ser admissível por lei).

Vejamos como enquadrar essa argumentação – não deixando, no entanto, de começar por fazer notar a curiosa circunstância de a entidade municipal impugnada não se ter “lembrado” de suscitar, nomeadamente na sua contestação do processo arbitral, a questão da incompetência do tribunal arbitral [designadamente com os fundamentos das subalíneas i) e iii) da alínea a) do nº 3 do artº 46º da LAV], como o poderia ter feito, ao abrigo do artº 18º, nº 4, da LAV. A este propósito, dir-se-á que a essa omissão poderá não ser alheio o teor da informação técnico-jurídica elaborada internamente, na Câmara Municipal de Lagos, e na sequência da notificação para apresentação de contestação no processo arbitral (e que foi junta a fls. 9-10 desse processo, ora apenso), na qual se afirma que a resolução do litígio por tribunal arbitral dependeria da «concordância de ambas as partes em se sujeitarem à sua jurisdição», acrescentando que «a concordância da particular foi demonstrada, sendo que a do município também, através da constituição da Associação via AMAL, havendo assim adesão ao Regulamento da CIMAAL para os devidos efeitos». Também por isto não deixa de causar alguma perplexidade todo o posterior afã processual da impugnante, com o que isso significa em termos de despesa pública (já que aquela se trata de entidade pública), para discutir uma quantia tão irrisória como a que está implicada no presente litígio…

Como vimos, a tese da impugnante assenta, em síntese, no pressuposto seguinte: o litígio refere-se a dívida emergente de relação jurídica (respeitante ao fornecimento de água pelo Município à demandante) que, após aquela ter transitado para execução fiscal por falta de pagamento, deixou de estar na esfera de disponibilidade da demandada, o que obsta a ser dirimida por via arbitral. Esta tese, diga-se desde já, não tem qualquer sustentação, quando confrontada com o regime de protecção dos utentes de serviços públicos essenciais, instituído pela Lei nº 23/96, como se passa a demonstrar.

No processo arbitral estava em causa um contrato de fornecimento de água e a questão da eventual prescrição de uma dívida relativa a consumo de água emergente desse contrato. Já o TCA Sul afirmou, na sua decisão sobre a excepção de incompetência, que não se trata de dívida fiscal ou parafiscal (cfr. fls. 59 da decisão de fls. 54-61) – e com esse juízo se concorda. Com efeito, a Lei nº 23/96 é inequívoca a incluir no seu âmbito o serviço público de fornecimento de água [artº 1º, nº 2, al. a)], ainda que o prestador desse serviço seja entidade pública e «independentemente da sua natureza jurídica, do título a que o faça ou da existência ou não de contrato de concessão» (artº 1, nº 4). Dessa caracterização decorre a sujeição de qualquer litígio respeitante à prestação de tal serviço público essencial a um regime de arbitragem necessária, admitida pelo artº 1º, nº 1, da LAV, e desde que o utente pessoa singular opte por recorrer a mecanismo de resolução extrajudicial de conflitos, conforme o disposto no artº 15º, nº 1, da Lei nº 23/96, na redacção conferida pela Lei nº 6/2011, de 10/3 («Os litígios de consumo no âmbito dos serviços públicos essenciais estão sujeitos a arbitragem necessária quando, por opção expressa dos utentes que sejam pessoas singulares, sejam submetidos à apreciação do tribunal arbitral dos centros de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizados»).

A demandante, no caso presente, ao submeter o litígio em causa ao tribunal arbitral do «CIMAAL – Centro de Informação, Mediação e Arbitragem de Conflitos de Consumo do Algarve» (que constitui centro de arbitragem de conflitos de consumo legalmente autorizado), cumpriu a exigência do artº 15º, nº 1, da Lei nº 23/96. Consequentemente, é de concluir ser o referido litígio susceptível de resolução por via arbitral segundo o direito português [não ocorrendo o fundamento previsto na subalínea i) da alínea b) do nº 3 do artº 46º da LAV] – e tanto basta para considerar válida a sentença arbitral em apreço, assim improcedendo a impugnação deduzida pela entidade municipal demandada.

Como já afirmara o próprio tribunal arbitral, ao pronunciar-se sobre a impugnação, ao abrigo do artº 60º, nº 2, da LAV, a competência do tribunal arbitral decorreu, não de convenção de arbitragem, mas da sujeição do objecto do litígio a resolução por via arbitral necessária, de acordo com o regime da Lei nº 23/96 – não tendo por isso cabimento apreciar os fundamentos previstos nas subalíneas i) e iii) da alínea a) do nº 3 do artº 46º da LAV, que pressupõem a existência de uma convenção de arbitragem (e que, in casu, não se mostra ter sido celebrada directamente entre a demandante utente e a entidade municipal demandada).

Com isso torna-se também desnecessário avaliar uma hipotética argumentação que pudesse fazer reportar a eventual existência dessa convenção de arbitragem à própria convenção celebrada entre o Centro de Arbitragem decisor («CIMAAL») e a associação de municípios de que faz parte a entidade municipal demandada («AMAL»), como se a demandante fosse, ela própria, e por via indirecta, parte dessa convenção – como parece, aliás, estar implícito na petição de impugnação da demandada, quando invoca tal convenção (e o Regulamento do «CIMAAL»), ainda que para depois suscitar a sua invalidade ou inaplicabilidade ao concreto litígio em apreço, como base do seu pedido de anulação (cfr. artº 2º dessa petição). É certo que o Regulamento do «CIMAAL» (junto a fls. 12-14), nos seus artos 10º a 19º, qualifica como «partes» as partes do procedimento de arbitragem (e não propriamente as partes da convenção), o que pareceria sugerir a adesão a esse conceito extensivo de «convenção de arbitragem» – e, a aceitar essa tese, até se poderia afirmar não estarem também verificadas as hipóteses previstas nas subalíneas i) e iii) da alínea a) do nº 3 do artº 46º da LAV, já que a convenção celebrada entre «CIMAAL» e «AMAL» seria compatível com o regime da Lei nº 23/96 e nela se enquadraria, pelo seu próprio objecto (como conflito de consumo), o litígio em presença. E até se poderia tentar inferir a existência dessa convenção de arbitragem da previsão de que a forma escrita desta se cumpriria pela «troca de uma petição e uma contestação em processo arbitral, em que a existência de tal convenção seja alegada por uma parte e não seja negada pela outra», como estatui o artº 2º, nº 5, da LAV (e tendo em conta que a impugnante não contrariou essa existência na sua contestação do processo arbitral). Em todo o caso, e ainda que pareça ser necessária uma efectiva celebração de convenção de arbitragem entre as partes do litígio (como resulta do artº 7º, nº 2, do Regulamento do «CIMAAL», ao referir-se a «documento do qual resulte inequivocamente a intenção das partes de submeter a resolução do conflito ao Tribunal Arbitral do Centro»), não se afigura necessário, já o dissemos, qualquer argumentação adicional para demonstrar a possibilidade de submissão do conflito em presença à resolução por via arbitral – e que resulta, como vimos, do regime da Lei nº 23/96.

Posto isto, resta regressar à conclusão já formulada de que o litígio em apreço era susceptível de resolução por via arbitral, não havendo por isso fundamento para considerar inválida a sentença arbitral impugnada. Daí decorre a improcedência da impugnação deduzida pela entidade municipal demandada e a subsistência da decisão substantiva contida naquela sentença arbitral.

2. Ainda que não caiba a este Tribunal decidir do mérito da questão tratada pelo tribunal arbitral (como resulta do artº 46º, nº 9, da LAV), sempre se reconhecerá que – a ser possível esse juízo – não poderia este Tribunal deixar de acolher a solução adoptada pela decisão arbitral.

Da plena aplicação ao caso do regime da Lei nº 23/96 decorreria a incidência, sobre a dívida invocada, do prazo prescricional de 6 meses previsto no artº 10º, nº 1, do referido diploma, contado desde a prestação do serviço respectivo (sendo de afastar a aplicação do prazo de prescrição de 8 anos, previsto para as dívidas tributárias no artº 48º da LGT). Em seguida, seria de considerar o teor da decisão de facto do tribunal arbitral, que se concretizou nos seguintes termos:

«Factos essenciais provados:
a) A demandante celebrou com o demandado um contrato com vista ao fornecimento de água e serviços afins (saneamento e recolha de resíduos sólidos), à sua residência;
b) A demandada foi avisada várias vezes pelos Serviços do demandado para efetuar o pagamento relativo aos consumos ocorridos em Agosto de 2012;
c) Em Junho de 2013 foi, pela última vez, avisada para efectuar o respetivo pagamento, não o tendo feito até esta data.
Factos essenciais não provados:
- a demandante nunca foi citada ou notificada judicialmente por causa da existência da sobredita dívida e, designadamente, para efectuar o seu pagamento;
- que a demandante tenha recebido o aviso de citação nº 28098 de 4out2012, no âmbito do processo de execução fiscal nº 10198/2012.»

E, quanto à motivação, destaque-se o seguinte trecho: «(…) a entidade demandada não comprovou, juntando os respetivos elementos documentais ao processo, o recebimento do aviso de citação em execução fiscal, com a respetiva data em que tal facto terá ocorrido».

Para essas conclusões quanto à matéria de facto não serão também alheias as regras relativas ao ónus da prova, estabelecidas no artº 11º da Lei nº 23/96: «Cabe ao prestador do serviço a prova de todos os factos relativos ao cumprimento das suas obrigações e ao desenvolvimento de diligências decorrentes da prestação dos serviços a que se refere a presente lei» (nº 1); e «Incide sobre o prestador do serviço o ónus da prova da realização das comunicações (…) relativas à exigência do pagamento e do momento em que as mesmas foram efectuadas» (nº 2).

Não tendo o demandado cumprido esses ónus, não poderia deixar de se entender, em sentido para ele desfavorável, que o mesmo não tinha demonstrado a ocorrência de factos interruptivos da prescrição. E, na falta de prova de que algum acto com esse significado tivesse sido praticado pelo demandado, dentro do período de 6 meses a contar da prestação do serviço (este ocorreu em Agosto de 2012 e o único acto posterior de exigência de pagamento devidamente concretizado é datado de Junho de 2013, ou seja, já depois de decorridos os referidos 6 meses), forçoso era concluir – em concordância com a sentença arbitral – ter operado a prescrição 6 meses após a prestação do serviço.

E também não podemos deixar de fazer um reparo, quanto à afirmação da impugnante, supra referenciada, de que a sentença arbitral estaria ferida de inconstitucionalidade: tal afirmação não tem qualquer cabimento, porquanto o vício de inconstitucionalidade se reporta apenas a normas – ou seja, não se pode dizer de uma sentença (arbitral ou outra) que esta é (ou será) inconstitucional.

3. Em suma: inexiste fundamento para considerar inválida a sentença arbitral impugnada, por o litígio em apreço ser susceptível de resolução por via arbitral, pelo que deve improceder a impugnação deduzida pela demandada, assim subsistindo a decisão substantiva contida naquela sentença arbitral.
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III – DECISÃO:

Pelo exposto, decide-se julgar improcedente o deduzido pedido de anulação da sentença arbitral proferida nos presentes autos, que assim se declara plenamente válida.

Custas pela impugnante (artº 527º do NCPC).

Évora, 26 / 03 / 2015
Mário António Mendes Serrano
Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes (dispensei o visto)
Mário João Canelas Brás (dispensei o visto)