Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | MARIA JOSÉ CORTES | ||
Descritores: | DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA VIOLÊNCIA DOMÉSTICA VÍTIMA ESPECIALMENTE VULNERÁVEL MENOR | ||
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Data do Acordão: | 06/18/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | I - Na situação em que se investiga a eventual prática, pelo arguido, de um crime de violência doméstica, impõe-se a tomada de declarações para memória futura de uma criança (filha comum do casal) que assistiu às ofensas praticadas pelo seu pai sobre a sua mãe. II - Importa ponderar, por um lado, não apenas a fragilidade da menor, em virtude da sua tenra idade, mas também a gravidade dos factos a provar, que se reconduzem à existência de violência no seu seio familiar, sendo certo que, a ter de ser confrontada com tais situações, e a ter de relatar, ponto por ponto, as situações de que eventualmente se recorde, tudo aconselha a que esse momento seja único e irrepetível, assim se evitando uma desnecessária revitimização da criança. III - Neste tipo de criminalidade (fruto do ascendente que, em muitos casos, o agressor tem sobre a vítima) ocorre uma contaminação do depoimento ou, em certos casos, uma omissão do mesmo, sendo a tomada de declarações para memória futura o mecanismo necessário a evitar que tal suceda, permitindo garantir a genuinidade do depoimento em tempo útil. IV - Não está na disponibilidade do Juiz de Instrução realizar, em sede de inquérito, um juízo de oportunidade acerca do momento mais adequado para a tomada de declarações para memória futura, desde que tenham fundamento legal e que hajam sido solicitadas pelo Ministério Público, por esse juízo competir exclusivamente a quem detém a titularidade, direção e realização do inquérito (o Ministério Público), sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal. | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, os Juízes que integram a 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora: I – RELATÓRIO 1.1. No âmbito do Inquérito n.º 590/23.0PBSTB, a correr termos na 3.ª Secção do DIAP de Setúbal, por despacho de 13 de fevereiro de 2024, a Exa. Magistrada do Ministério Público que conduzia o inquérito, determinou o seguinte (transcrição): “DAS DECLARAÇÕES PARA MEMÓRIA FUTURA Nos presentes autos investiga-se a prática de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e e) do Código Penal, nas pessoas de D e da filha que esta tem em comum com o arguido: N, nascida a 15.07.2016. Compulsados os elementos probatórios coligidos para os autos – mormente, a inquirição da vítima C, de fls. 37, e das testemunhas id. a fls. 81 e 84 – verifica-se que a criança presenciou conflitos entre os seus pais, presenciando não só discussões, mas também agressões do seu pai sobre a sua mãe, chorando e gritando para que o mesmo parasse de agredir a sua progenitora. Estamos, assim, perante uma evidente exposição a atos que integram a prática de um crime de violência doméstica perpetrados pelo arguido, pai da menor, sobre a mãe da mesma, pelo que importa tomar em linha de conta o disposto no artigo 2.º, alínea a), da Lei n.º 112/2009, de 16 de Setembro e no artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, com a redação que lhe foi conferida pela Lei n.º 57/2021, de 16-08. Com efeito, de acordo com tais diplomas, considera-se vítima quem sofre um dano, nomeadamente um atentado à integridade física ou psíquica, um dano emocional ou moral, ou uma perda material, causada por ação ou omissão no âmbito do crime de violência doméstica. E conforme resulta evidente da nova alínea iii a) do referido artigo 67.º-A do Código de Processo Penal, vítima é toda a “criança ou jovem até aos 18 anos que sofreu um dano causado por ação ou omissão no âmbito da prática de um crime, incluindo os que sofreram maus tratos relacionados com a exposição a contextos de violência doméstica” (sublinhado nosso). A chamada “vítima indireta”, quando menor de idade, é hoje considerada, também ela, vítima das condutas do agressor, pois que a exposição à violência interparental é suscetível de ofender a saúde da criança, provocando-lhe danos emocionais diretos que afetam o seu normal desenvolvimento. Por outro lado, a menor em causa é, além de vítima, uma vítima especialmente vulnerável, pois que se trata de uma criança com 7 (sete) anos de idade que, durante o seu curto período de vida, vem vivenciado e presenciando uma relação conflituosa entre os seus pais, ficando exposta às constantes discussões, insultos e agressões físicas levadas a cabo pelo seu pai contra a sua mãe. Pela sua tenra idade, a criança não tem (nem tem de ter) maturidade suficiente para se distanciar e gerir a tensão existente entre os seus progenitores, acabando por adotar uma postura de medo face ao seu ai, mostrando-se relutante até em estar com o mesmo, o que, a médio e longo prazo, certamente trará consequências psíquicas e lacunas emocionais que só o tempo poderá revelar. A este propósito, também o regime jurídico vigente a nível nacional e internacional é claro quando estatui que as crianças/menores que testemunhem e vivenciem contexto de violência doméstica, são vítimas especialmente vulneráveis. Ora, a nível processual, existem diversas medidas destinadas a proteger testemunhas especialmente vulneráveis, nas quais se inclui a possibilidade de “registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal”, conforme ao disposto no artigo 28.º, n.º 2, da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, na decorrência de que “Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito” e, acrescenta-se, “a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento”, de harmonia com o n.º 1 daquele artigo 271.º. Não se olvida ainda que, no Código Processual Penal vigente, a vítima foi elevada ao estatuto de sujeito jurídico processual penal e, ainda, que no nosso ordenamento vigora o princípio do superior interesse da criança (cf. ainda artigo 3.º da Convenção sobre os Direitos da Criança, acolhida na ordem jurídica nacional pela Resolução da Assembleia da República n.º 20/90, de 8 de junho de 1990 e pelo Decreto do Presidente da República n.º 49/90, de 12 de setembro) e o direito de audição da mesma (cf. artigo 12.º da aludida Convenção e Convenção Europeia sobre o exercício dos Direitos da Criança, adotada em Estrasburgo, em 25 de janeiro de 1996, nos artigos 3.º e 6.º, acolhida na nossa ordem jurídica pela Resolução da Assembleia da República n.º 7/2014, de 13 de dezembro de 2013 e pelo Decreto do Presidente da República n.º 3/2014, de 27 de janeiro). No caso dos autos, reputamos que se mostra premente a inquirição da menor N, pois que a mesma é filha da vítima e do arguido e os autos indiciam que a criança presenciou os factos em investigação, sendo ela a principal testemunha do crime em apreço. Impõe-se, contudo, ponderar em que circunstâncias devem ser tomadas declarações à menor em causa, sendo certo que, em nosso entendimento, dúvidas não restam de que a criança merece beneficiar do regime de declarações para memória futura, enquanto medida de proteção aplicável às vítimas especialmente vulneráveis que, cfr. já tivemos oportunidade de explanar, é o caso desta criança. Com efeito, importa ponderar, por um lado, não apenas a fragilidade da menor, em virtude da sua tenra idade, mas também a gravidade dos factos a provar, que se reconduzem à existência de violência no seu seio familiar, sendo certo que, a ter de ser confrontada com tais situações, e a ter de relatar, ponto por ponto, as situações de que eventualmente se recorde, tudo aconselha a que esse momento seja único e irrepetível, assim se evitando uma desnecessária revitimização da criança. Essa é, também, a interpretação comummente aceite pelos tribunais superiores, que alinha no entendimento que sendo as crianças vítimas especialmente vulneráveis, quando expostas à violência no âmbito doméstico, têm de ser protegidas da revitimização inerente à prestação de depoimento em julgamento, em especial quando são chamadas a depor sobre factos praticados por um dos progenitores contra o outro. Por outro lado, diz-nos a experiência comum que neste tipo de criminalidade - fruto do ascendente que, em muitos casos, o agressor tem sobre a vítima - ocorre uma contaminação do depoimento ou, em certos casos, uma omissão do mesmo, sendo a tomada de declarações para memória futura o mecanismo necessário a evitar que tal suceda e, ainda, de garantir a genuinidade do depoimento em tempo útil, a fim de esclarecer se a criança assistiu, alguma vez, a algum tipo de violência verbal ou física por parte do seu pai contra a sua mãe, designadamente mediante ameaças, insultos ou agressões, devendo a mesma concretizar aquilo que viu/ouviu, contextualizando os factos, tanto quanto possível, espácio-temporalmente, e esclarecer se também a sua mãe ofendia/agredia o seu pai, ou se se tratava de uma conduta levada a cabo apenas pelo arguido. Deverá ainda esclarecer se se recorda de o seu pai usar uma arma (de ar comprimido) para brincar consigo e, na afirmativa, que tipo de brincadeira se tratava. Por todo o exposto, o Ministério Público desde já requer a tomada de declarações para memória futura à menor N, por se tratar de vítima especialmente vulnerável, nos termos e para efeitos das disposições conjugadas dos artigos 21.º, n.º 2, alínea d) e 24.º, ambos do Estatuto da Vitima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 04-09, dos artigos 2.º, alínea b) e 33.º, n.ºs 1 a 5 da Lei n.º 112/2009, de 16-09, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 129/2015, de 3/09, e ainda do artigo 67.º-A, n.º 1, alíneas a) i) e iii) e b) e n.º 3 e artigo 271.º, ambos do Código de Processo Penal. Porque assim, apresente os autos ao M.mo Juiz de Instrução Criminal, a quem se requer que: i) seja designada data para tomada de declarações para memória futura de N, a fim de a mesma se pronunciar sobre todos os factos objeto dos presentes autos, maxime factos denunciados no auto de notícia e no auto de inquirição de fls. 37; ii) seja determinada a presença de técnico especializado de serviço social ou outra pessoa especialmente habilitada para o acompanhamento da menor, a quem caberá proporcionar o apoio psicológico necessário – artigo 33.º, n.º 3 da Lei n.º 112/2009, de 16-09, com as alterações introduzidas pela Lei n.º 129/2015, de 3-09; iii) seja dado conhecimento à legal representante da menor do despacho judicial que determinar a realização da diligência; iv). nos termos do artigo 352.º, n.º 1, alínea a) do Código de Processo Penal ex vi artigo 271.º, n.º 6 do mesmo diploma legal, seja vedada a presença, em tal ato, do arguido, por existirem razões para crer que a audição das vítimas na presença do mesmo pode ter efeitos graves na aquisição da prova e que a podem prejudicar gravemente a nível psicológico, ficando o contraditório do mesmo assegurado pela presença da sua Il. Defensora; v). a prestação das declarações fique registada através da gravação de imagem e som com recurso a meios técnicos ao dispor deste Tribunal, nos termos do disposto nos artigos 101.º, n.º 1, 271.º, n.º 6, e 364.º, n.º 1 todos do Código de Processo Penal.” 1.2. Concluídos os autos ao Senhor Juiz do Juízo de Instrução Criminal de Setúbal, pelo mesmo foi proferida, em 19 de fevereiro de 2024, a seguinte decisão (transcrição): “Veio o Ministério Público requerer a tomada de declarações para memória futura da menor N com os fundamentos que constam do despacho que antecede — de folhas 109 e seguintes — e que se dão por reproduzidos. Temos como manifesto a ser qualquer menor exposto — direta um indiretamente — a um crime de violência doméstica também ele uma vítima, em maior ou menor medida, da sua prática. Da mesma forma, é um menor, pela simples natureza da sua idade, uma vítima (também em abstrato) especialmente vulnerável quando contra ele (ou mesmo meramente na sua presença) sejam perpetrados ilícitos criminais que envolvam ou perturbem o seu ambiente, meio e espaço, porquanto são estes necessários ao seu adequado desenvolvimento e crescimento pessoal. O crime de violência doméstica constituirá, neste contexto, um exemplo paradigmático da (muito provável) perturbação daqueles; e, portanto, do próprio menor. Paralelamente, podem as testemunhas especialmente vulneráveis (menores de idade ou não) serem inquiridas no âmbito de declarações para memória futura: o artigo 28.º da Lei n.º 93/99 de 14 de julho expande a regra geral prevista no artigo 271.º do Código de Processo Penal de forma a incluir tais testemunhas. Mas — conforme já anteriormente defendemos — explicitam os artigos 271.º n.º 1do Código de Processo Penal, 24.º n.º 1 da Lei n.º 130/2015, de 4 de Setembro e 33.º n.º 1 da Lei 112/2009 de 16 de setembro poder o juiz de instrução proceder, na fase de inquérito, à inquirição de testemunhas — por contraposição, no caso de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual do menor, à expressa imposição da inquirição deste prevista no n.º 2 do artigo 271.º do Código de Processo Penal. E temos a ratio de qualquer daqueles normativos clara e razoável: garantir a preservação de prova e/ou evitar a estigmatização/perturbação desnecessárias da vítima (ou, como vimos, da testemunha). O juízo que permita aferir da concreta viabilidade ou bondade de tal propósito é casuístico, dependente de uma necessária ponderação de interesses de forma a se não desvirtuarem princípios e valores caros ao regime processual criminal português. Este circunstancialismo impede, naturalmente, a implementação de uma fórmula que suscite que qualquer menor vítima de violência doméstica deva prestar declarações para memória futura. Ora no caso dos autos, a concreta fundamentação apresentada restringe-se a uma genérica resenha das vantagens decorrentes do instituto das declarações memória futura — sem considerar as desvantagens e os princípios e valores que impõem aquele instituto como uma exceção e não a regra. Paralelamente, e sem melhor concretização, é o padrão da factualidade sob investigação indiscernível da maioria dos que compõem este tipo de crime, insuscetível de sustentar o referido (e necessário) juízo casuístico. Em face do que se indefere o pretendido — sem prejuízo de, naturalmente, e se outro circunstancialismo for suscitado, se ter como adequada ou necessária a reponderação de interesses agora concretizada.” 1.3. Inconformado com este despacho, veio o Ministério Público junto da 3.ª Secção do DIAP de Setúbal do mesmo interpor recurso, solicitando que seja revogada tal decisão e que seja substituída por outra que determine a tomada de declarações para memória futura à menor N, nos termos requeridos. Apresenta nesse sentido as seguintes conclusões da sua motivação (transcrição): “1. Nos presentes autos investiga-se a prática de dois crimes de violência doméstica, p. e p. pelo artigo 152.º, n.º 1, alíneas b) e e), n.º 2, alínea a) e n.ºs 4 e 5 do Código Penal - um na pessoa de D, e o outro na pessoa da filha que esta tem em comum com o arguido: N, nascida a 15.07.2016. 2. Por despacho de 13.02.2024, o Ministério Público requereu a tomada de declarações para memória futura de N, fundamentando, em suma, que se trata de uma criança exposta a situações de violência verbal e física entre os seus progenitores, protagonizadas pelo seu pai, aqui arguido, A, as quais são suscetíveis de configurar a prática de um crime de violência doméstica contra a mãe da criança, pelo que, nessa posição, também a criança é uma vítima, e uma vítima especialmente vulnerável, que pode/deve beneficiar de medidas especiais de proteção legalmente previstas, entre as quais, a tomada de declarações para memória futura. 3. Mais se alegou que, no caso dos autos, a vítima direta dos factos – D – relatou que a sua filha, N, ao presenciar discussões verbais e agressões físicas perpetradas pelo arguido contra si, chorava e gritava para que o mesmo cessasse a sua conduta, algo que foi corroborado pelas duas testemunhas inquiridas nos autos, moradoras no mesmo prédio que as vítimas e o arguido. 4. Por esse motivo, e ante a postura assumida pelo arguido em interrogatório – negando as agressões físicas e descrevendo as discussões e injúrias como sendo recíprocas -, entendeu-se premente a audição de N, considerando-se que, pela sua tenra idade, por se pretender obstar à revimitização da criança e garantir a genuinidade do depoimento em tempo útil, a mesma deveria ser ouvida em sede de declarações para memória futura, numa inquirição que se pretende única e irrepetível. 5. Não obstante o exposto, por despacho de 19.02.2024, o Tribunal a quo decidiu indeferir o aludido requerimento, fundamentando, em suma, que pese embora reconheça que (1) qualquer menor exposto a um crime de violência doméstica é, também ele, uma vítima da sua prática, (2) que o menor, pela simples natureza da sua idade, é uma vítima especialmente vulnerável e que (3) as vítimas especialmente vulneráveis podem ser inquiridas em sede de declarações para memória futura, “(…) no caso dos autos, a concreta fundamentação apresentada restringe-se a uma genérica resenha das vantagens decorrentes do instituto das declarações memória futura — sem considerar as desvantagens e os princípios e valores que impõem aquele instituto como uma exceção e não a regra. Paralelamente, e sem melhor concretização, é o padrão da factualidade sob investigação indiscernível da maioria dos que compõem este tipo de crime, insuscetível de sustentar o referido (e necessário) juízo casuístico.” 6. Salvo devido respeito, não se conforma o Ministério Público com tal despacho pois que, pese embora haja sido efetivamente expendida uma “genérica resenha das vantagens decorrentes do instituto das declarações para memória futura”, a verdade é que não só tal resenha se mostra, quanto a nós, necessária, pois que as regras da fundamentação jurídica assim o impõem, aconselhando a um inicial e sintético resumo do regime jurídico em causa para, após, o subsumir ao caso concreto, o que se efetuou no requerimento apresentado ao M.mo JIC, como, num outro prisma, se entende que o mero circunstancialismo enunciado no requerimento e reconhecido, em parte, no despacho recorrido, é mais do que suficiente para que se defira, de imediato, a tomada de declarações para memória futura. Senão vejamos. 7. A criança em causa, além de testemunha, poderá igualmente ser, tal como o próprio Tribunal a quo reconheceu, vítima autónoma de um crime de violência doméstica levado a cabo pelo arguido, seu progenitor, por exposição aos atos por este perpetrados contra sua companheira, progenitora daquela. 8. Pela sua tenra idade, e cfr. reconhecido no despacho proferido pelo próprio Tribunal a quo, a criança é igualmente uma vítima especialmente vulnerável. 9. Nessa senda, e cfr. se pugnou no requerimento dirigido ao Juízo de Instrução Criminal, a sua inquirição mostra-se premente. 10. Ora, a nível processual, existem diversas medidas destinadas a proteger testemunhas especialmente vulneráveis, nas quais se inclui a possibilidade de “registo nos termos do artigo 271.º do Código de Processo Penal”, conforme decorre do artigo 28.º, n.º 2, da Lei n.º 93/99, de 14 de julho, na decorrência de que “Sempre que possível, deverá ser evitada a repetição da audição da testemunha especialmente vulnerável durante o inquérito” e, acrescenta-se, “a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento”, de harmonia com o n.º 1 daquele artigo 271.º. 11. Consideradas tais premissas, e sabendo ainda que a menor, ao presenciar as discussões e agressões protagonizadas pelo seu progenitor, ora arguido, contra a sua mãe, ora vítima, chorava e gritava, pedindo àquele para cessar a sua conduta (algo que resulta não só dos autos, mas do próprio requerimento para tomada de declarações para memória futura), a conclusão parece, quanto a nós, evidente: a criança em causa tem de ser protegida de uma vitimização secundária, pelo que se impõe que a sua audição ocorra em sede de declarações para memória futura. 12. Com efeito, é obrigação dos tribunais portugueses, enquanto órgãos jurisdicionais de um país que é Estado-Membro da Convenção sobre os Direitos da Criança, tomar medidas “(…) educativas adequadas à proteção da criança contra todas as formas de violência física ou mental, dano ou sevícia, abandono ou tratamento negligente, maus-tratos ou exploração, incluindo a violência sexual, enquanto se encontrar sob a guarda de seus pais ou de um deles, dos representantes legais ou de qualquer outra pessoa a cuja guarda haja sido confiada.", aqui se incluindo, naturalmente, a violência institucional, traduzida amiúde na múltipla inquirição de menores/crianças em processo-crime, fazendo-os reviver a experiência traumática, o que nos reconduz a um - chamemos-lhe assim! - quase poder-dever de tomada de declarações para memória futura quando em causa está o depoimento de uma criança/menor. 13. Por outro lado, a Convenção de Istambul estatui, no seu artigo 56.°, que: "1. As Partes deverão adotar as medidas legislativas ou outras que se revelem necessárias para proteger os direitos e interesses das vítimas, incluindo as suas necessidades especiais enquanto testemunhas, em todas as fases das investigações criminais e dos processos judiciais, o que implica designadamente: a) Providenciar no sentido de as proteger a elas e às suas famílias e às testemunhas contra atos de intimidação e de represália, bem como contra a vitimização reiterada; (…) 2. Uma criança vítima e uma criança testemunha de violência doméstica contra as mulheres e de violência doméstica deverão, se for caso disso, beneficiar de medidas de proteção especiais, tendo em conta o superior interesse da criança/menor.” 14. Ora, se o facto de a criança em causa ser, também ela, vítima, e vítima especialmente vulnerável – cfr. admitido pelo despacho recorrido – e, em simultâneo, a única testemunha presencial da factualidade denunciada, para além, claro está, da respetiva progenitora, questiona-se de que mais necessita o Tribunal a quo para deferir a tomada de declarações requerida. Será que se exige que a audição da criança em causa seja levada a cabo apenas pelo Ministério Público para que, após, se decida se a mesma deve/merece ser ouvida em declarações para memória futura? E a ser assim, não se estará a cair no risco – elevado – de se desvirtuar o instituto jurídico em causa e de provocar uma revitimização da menor, pela sua dupla audição (uma primeira, perante o Ministério Público e uma segunda perante o Tribunal)? Mais, ao tomar declarações à criança, num primeiro momento, nos serviços do Ministério Público, sem as formalidades inerentes à tomada de declarações para memória futura, não se cairá igualmente no risco – elevado – de a testemunha/vítima em causa, pela sua idade, vir a prestar determinadas declarações naquele primeiro momento e, posteriormente, perdendo a espontaneidade e estando já mais familiarizada com o espaço e os atores processuais, prestar declarações diferentes? É que “[n]umerosos estudos científicos demonstraram, na verdade, que as crianças, em especial, tendem a esquecer e confundir as suas memórias com informações adquiridas no decurso do processo ou a modificar a recordação dos factos realmente ocorridos com eventos imaginários, daí resultando a incapacidade para distinguir entre pormenores que resultam de uma percepção real e aqueles que são criados pela fantasia e pela imaginação (as chamadas “falsas recordações”). Por conseguinte, os repetidos interrogatórios comportam um considerável perigo de contaminação da prova, muito agravado no caso de aos menores serem feitas perguntas sugestivas” (SILVA, Sandra Oliveira e, idem, ibidem). 15. Assim, nos termos 33.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro 21.º, n.º 1 e n.º 2, alínea d) do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro, e salvo devido respeito por opinião contrária, entende o Ministério Público estarem reunidos no caso concreto os pressupostos de audição para memória futura da menor N, inexistindo qualquer fundamento válido para que se indefira a sua realização. 16. Nessa medida, não pode o M.mo Juiz de Instrução recusar a realização da diligência requerida apenas por considerar que a fundamentação apresentada pelo Ministério Público não é, em seu entender, suficiente para justificar a tomada de declarações da criança em causa, pois que é igualmente seu dever (além de poder) ponderar os concretos factos e avaliar a situação concreta a fim de decidir se a criança em causa deve, ou não, ser ouvida em sede de declarações para memória futura. 17. Destarte, o despacho recorrido viola o disposto no artigo 33.º, n.º 1 da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro e artigo 21.º, n.º 1 e n.º 2, alínea d) do Estatuto da Vítima, aprovado pela Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro.” 1.4. Notificado o arguido, veio apresentar resposta, pugnando que seja negado provimento ao presente recurso. 1.5. Nesta Relação, o Ex.º Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido da revogação da decisão recorrida, subscrevendo a argumentação do Exo. Magistrado do Ministério Público junto da primeira instância, pugnando pela procedência do recurso. 1.6. Foi cumprido o estabelecido no art.º 417.º, n.º 2, do Código de Processo Penal, não tendo sido apresentada resposta. 1.7. Colhidos os vistos legais e realizada a conferência a que alude o art.º 419.º, do Código de Processo Penal, cumpre apreciar e decidir. II – FUNDAMENTAÇÃO 2.1. Âmbito do recurso e questões a decidir Conforme entendimento pacífico, o objeto e o limite de um recurso penal são definidos pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, devendo assim a análise a realizar pelo Tribunal ad quem circunscrever-se às questões aí suscitadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente. São só as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões, da respetiva motivação, que o tribunal de 2.ª instância tem de apreciar (art.ºs 403.º, 412.º e 417.º, do Código de Processo Penal) Como ensina Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal, Vol. III, 2.ª edição, p. 335, “Daí que, se o recorrente não retoma nas conclusões as questões que desenvolveu no corpo da motivação (porque se esqueceu ou porque pretendeu restringir o objeto do recurso), o Tribunal Superior só conhecerá das que constam das conclusões”. A única questão que o recorrente coloca à apreciação deste Tribunal de recurso é a de saber se a decisão recorrida errou ao indeferir o pedido de prestação de declarações para memória futura por parte da menor N. 2.2. Elementos do processo Fazendo uma breve incursão nos autos de processo principal (confrontada a certidão que se mostra junta a este apenso), e com interesse para a apreciação da questão enunciada importa ter presente os seguintes elementos factuais e ocorrências processuais que constam dos autos: a) Nos autos, iniciados em 17.04.2023, investiga-se a prática por parte do arguido A de factos integrantes de um crime de violência doméstica p. e p. pelo art.º 152.º, n.º 1, alíneas b) e e), do Código Penal na pessoa de D e da filha, menor e que ambos têm em comum, N. b) N nasceu no dia 15 de julho de 2016. c) Em 13.02.2024 o Ministério Público proferiu despacho com o teor acima transcrito. d) Na sequência daquele despacho foi proferida a decisão recorrida igualmente supra transcrita. 2.3. Apreciação do recurso A única questão a decidir, como acima deixámos exposto, é a de saber se a decisão recorrida errou ao indeferir o pedido de prestação de declarações para memória futura por parte da menor N. Entendeu o tribunal recorrido que a concreta fundamentação apresentada pelo Ministério Público no despacho em que requereu as declarações para memória futura restringe-se a uma genérica resenha das vantagens decorrentes de tal instituto sem considerar as desvantagens e os princípios e valores que impõem aquele instituto como uma exceção e não a regra. Paralelamente, e sem melhor concretização, é o padrão da factualidade sob investigação indiscernível da maioria dos que compõem este tipo de crime, insuscetível de sustentar o referido (e necessário) juízo casuístico. Vejamos se lhe assiste razão. A diligência de declarações para memória futura está regulada na fase de inquérito no art.º 271.º e na fase de instrução no art.º 294.º, ambos do Código Processo Penal. A fase inquérito compreende o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão sobre a acusação, nos termos previstos no art.º 262.º, n.º 1, do Código Processo Penal. Por sua vez, a direção do inquérito cabe, em exclusivo, ao Ministério Público, que decide sobre os atos de investigação a realizar e impulsiona a intervenção do Juiz de Instrução nos casos previstos na lei processual penal – art.ºs 268.º e 269.º –, conforme o prescreve o art.º 263.º, todos do Código Processo Penal, em consonância com as normas constitucionais que consagram a estrutura acusatória do processo penal e a autonomia do Ministério Público (respetivamente art.ºs 32.º, n.º 5, e 219.º, n.º 2, da Constituição da República Portuguesa). Nesta medida, o inquérito constitui um procedimento não judicial, como escreve Paulo Dá Mesquita, [Comentário Judiciário do Código de Processo Penal, Tomo II, p. 925], em que que está vedada a interferência do Juiz na orientação de diligências investigatórias, da responsabilidade exclusiva do Ministério Público, a quem compete a decisão final do inquérito, com independência relativamente ao Juiz. É neste contexto que se inserem as declarações para memória futura, desencadeado por requerimento dos sujeitos processuais, nos termos conjugados dos art.ºs 268.º, n.º 1, alínea f), e 271.º, do Código Processo Penal. Dispõe o art.º 271.º, do citado código: “1 - Em caso de doença grave ou de deslocação para o estrangeiro de uma testemunha, que previsivelmente a impeça de ser ouvida em julgamento, bem como nos casos de vítima de crime de tráfico de órgãos humanos, tráfico de pessoas ou contra a liberdade e autodeterminação sexual, o juiz de instrução, a requerimento do Ministério Público, do arguido, do assistente ou das partes civis, pode proceder à sua inquirição no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento. 2 - No caso de processo por crime contra a liberdade e autodeterminação sexual de menor, procede-se sempre à inquirição do ofendido no decurso do inquérito, desde que a vítima não seja ainda maior. 3 - Ao Ministério Público, ao arguido, ao defensor e aos advogados do assistente e das partes civis são comunicados o dia, a hora e o local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor. 4 - Nos casos previstos no n.º 2, a tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo o menor ser assistido no decurso do acto processual por um técnico especialmente habilitado para o seu acompanhamento, previamente designado para o efeito. 5 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados do assistente e das partes civis e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais. 6 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º 7 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e a acareações. 8 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.” Nos termos desta norma é possível, na fase de inquérito, com derrogação do princípio da imediação, produzir prova oral, válida em julgamento. O normativo vindo de reproduzir admite a possibilidade de tomada de declarações para memória futura, portanto antes da audiência de julgamento, a título excecional, apenas quando estiver em causa uma determinada categoria de crimes, que enuncia, ou em situações atinentes à pessoa que as deve prestar: em caso de doença grave, de deslocação para o estrangeiro ou, tratando-se de crimes contra a liberdade e autodeterminação sexual se a vítima for menor. Porém, a tomada de declarações para memória futura pode ocorrer ainda no âmbito de investigação por crime de violência doméstica, como é o caso. Com efeito, o art.º 33.º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro, prevê este meio de recolha de prova, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, o qual preceitua: “1 - O juiz, a requerimento da vítima ou do Ministério Público, pode proceder à inquirição daquela no decurso do inquérito, a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento. 2 - O Ministério Público, o arguido, o defensor e os advogados constituídos no processo são notificados da hora e do local da prestação do depoimento para que possam estar presentes, sendo obrigatória a comparência do Ministério Público e do defensor. 3 - A tomada de declarações é realizada em ambiente informal e reservado, com vista a garantir, nomeadamente, a espontaneidade e a sinceridade das respostas, devendo a vítima ser assistida no decurso do ato processual pelo técnico de apoio à vítima ou por outro profissional que lhe tenha vindo a prestar apoio psicológico ou psiquiátrico, previamente autorizados pelo tribunal. 4 - A inquirição é feita pelo juiz, podendo em seguida o Ministério Público, os advogados constituídos e o defensor, por esta ordem, formular perguntas adicionais. 5 - É correspondentemente aplicável o disposto nos artigos 352.º, 356.º, 363.º e 364.º do Código de Processo Penal. 6 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável a declarações do assistente e das partes civis, de peritos e de consultores técnicos e acareações. 7 - A tomada de declarações nos termos dos números anteriores não prejudica a prestação de depoimento em audiência de julgamento, sempre que ela for possível e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.” Significando este regime especial previsto no art.º 33.º, da Lei n.º 112/2009, a permissão da tomada de declarações para memória futura nos casos de violência doméstica de forma mais ampla do que o regime geral previsto no aludido art.º 271.º, do Código de Processo Penal, numa opção clara pela salvaguarda dos interesses da proteção das vítimas e da realização da Justiça. No caso que examinamos estamos perante crimes de violência doméstica, tendo a menor N nascido no dia 15 de julho de 2016. Está, portanto, em causa uma vítima que à data dos factos (e ainda hoje o é) era menor o que determina, por força do aludido art.º 271.º, n.º 2, do Código Processo Penal, a obrigatoriedade da sua inquirição no decurso do inquérito a fim de que o depoimento possa, se necessário, ser tomado em conta no julgamento. Carece de razão o senhor Juiz de instrução quando no despacho proferido escreve, sem qualquer outra fundamentação, para indeferir a pretensão do recorrente, que “a concreta fundamentação apresentada restringe-se a uma genérica resenha das vantagens decorrentes do instituto das declarações memória futura — sem considerar as desvantagens e os princípios e valores que impõem aquele instituto como uma exceção e não a regra. Paralelamente, e sem melhor concretização, é o padrão da factualidade sob investigação indiscernível da maioria dos que compõem este tipo de crime, insuscetível de sustentar o referido (e necessário)juízo casuístico.” Salvo melhor opinião, o recorrente expõe e fundamenta claramente os motivos porque requer a prestação de declarações para memória futura da menor N quando escreve: “Com efeito, importa ponderar, por um lado, não apenas a fragilidade da menor, em virtude da sua tenra idade, mas também a gravidade dos factos a provar, que se reconduzem à existência de violência no seu seio familiar, sendo certo que, a ter de ser confrontada com tais situações, e a ter de relatar, ponto por ponto, as situações de que eventualmente se recorde, tudo aconselha a que esse momento seja único e irrepetível, assim se evitando uma desnecessária revitimização da criança. Essa é, também, a interpretação comummente aceite pelos tribunais superiores, que alinha no entendimento que sendo as crianças vítimas especialmente vulneráveis, quando expostas à violência no âmbito doméstico, têm de ser protegidas da revitimização inerente à prestação de depoimento em julgamento, em especial quando são chamadas a depor sobre factos praticados por um dos progenitores contra o outro. Por outro lado, diz-nos a experiência comum que neste tipo de criminalidade - fruto do ascendente que, em muitos casos, o agressor tem sobre a vítima - ocorre uma contaminação do depoimento ou, em certos casos, uma omissão do mesmo, sendo a tomada de declarações para memória futura o mecanismo necessário a evitar que tal suceda e, ainda, de garantir a genuinidade do depoimento em tempo útil, a fim de esclarecer se a criança assistiu, alguma vez, a algum tipo de violência verbal ou física por parte do seu pai contra a sua mãe, designadamente mediante ameaças, insultos ou agressões, devendo a mesma concretizar aquilo que viu/ouviu, contextualizando os factos, tanto quanto possível, espácio-temporalmente, e esclarecer se também a sua mãe ofendia/agredia o seu pai, ou se se tratava de uma conduta levada a cabo apenas pelo arguido. Deverá ainda esclarecer se se recorda de o seu pai usar uma arma (de ar comprimido) para brincar consigo e, na afirmativa, que tipo de brincadeira se tratava.” – itálico e sublinhados nossos. Relembre-se que em matéria de proteção da vítima regula a Lei n.º 130/2015, de 04 de setembro, que veio aprovar o Estatuto da Vítima, transpondo a Diretiva 2012/29/UE do Parlamento Europeu e do Conselho, de 25 de outubro de 2012, que estabelece normas relativas aos direitos, ao apoio e à proteção das vítimas da criminalidade e que substitui a Decisão-Quadro 2001/220/JAI do Conselho, de 15 de março de 2001. Conforme se lê no acórdão deste TRE, em que foi relatora a ora 2.ª Adjunta (Desembargadora Maria Perquilhas) e 2.º Adjunto o ora 1.º Adjunto (Desembargador Renato Barroso) “são estes diplomas e respetivas normas, complementadas pela Lei de Proteção de Testemunhas, aprovada pela Lei n.º 93/99, de 14 de julho, maxime o seu art.º 28.º (por força do que se dispõe no art.º 20.º, n.º 8 da LVD, Lei 112/2009), e a Lei 112/2009 de 16 setembro, concretamente no seu art.º 33, que regem esta temática, porquanto constituem normas especiais relativamente à regra geral vertida no art.º 271.º do CPP, que regulam a prestação de declarações para memória futura das vitimas de violência doméstica. Por força do disposto no art. 14.º, n.º 1 da Lei 112/2009 de 16 de setembro Apresentada a denúncia da prática do crime de violência doméstica, não existindo fortes indícios de que a mesma é infundada, as autoridades judiciárias ou os órgãos de polícia criminal competentes atribuem à vítima, para todos os efeitos legais, o estatuto de vítima. A atribuição deste estatuto determina a aquisição por parte da vítima vários direitos de natureza processual[2], a que não é alheio o conhecimento científico sobre as fragilidades emocionais das vítimas de violência doméstica, que determinou, aliás, que a Convenção do Conselho da Europa para a Prevenção e o Combate à Violência contra as Mulheres e a Violência Doméstica, vulgo Convenção de Istambul, a Diretivas da União Europeia a que já se fez referência e bem assim a recente Proposta de Diretiva do Parlamento Europeu e do Conselho relativa ao combate à violência contra as mulheres e à violência doméstica (Estrasburgo, 8.3.2022, COM(2022) 105 final, 2022/0066 (COD). Uma vez que o crime de violência doméstica, tendo em conta a sua natureza, preenche a previsão legal de criminalidade violenta ou especialmente violenta, como definidas no art.º 1º al. j) e l) do Código de Processo Penal, a vítima deste tipo de crime é sempre especialmente vulnerável, nos termos do artigo 67°-A n° 1 al. a) i) e por força do estabelecido no n° 3 do mesmo diploma. Ora, a prestação de declarações para memória futura da vítima especialmente vulnerável constitui um direito seu, como se verifica do disposto nos art.ºs 21.º, n.º 2, al. d) do Estatuto da Vítima, e no caso das crianças expressamente consagrado no art.º 22.º do mesmo Estatuto. Para além de um direito seu, as declarações para memória futura constituem meio de prova e por isso pode revelar-se essencial para que a partir delas se possa desenvolver a investigação de modo mais concreto e eficaz, ao mesmo tempo que constituem um meio de proteção da própria vítima.” Ora, o referido Estatuto estabelece no art.º 17.º, n.º 1 que “a vítima tem direito a ser ouvida em ambiente informal e reservado, devendo ser criadas as adequadas condições para prevenir a vitimização secundária e para evitar que sofra pressões”. Certo é que o direito à prestação de declarações para memória futura da vítima especialmente vulnerável, enquanto medida especial de proteção, prevalece sobre a regra geral da imediação e oralidade em audiência de julgamento, e com o intuito de prevenir a vitimização secundária e evitar que sofra pressões– art.º 17.º, n.º 1, do Estatuto. Nessa medida, o legislador estabeleceu regras rígidas relativas à forma como devem ser prestadas as declarações para memória futura, regras essas que se encontram plasmadas no art.º 24.º, n.ºs, 2, 3, 4 e 5, do Estatuto. E, no n.º 6 daquela norma, o legislador foi ainda mais longe ao estipular que “só deverá ser prestado depoimento em audiência de julgamento se tal for indispensável à descoberta da verdade e não puser em causa a saúde física ou psíquica de pessoa que o deva prestar.” No caso não foi atribuído à menor o estatuto de vítima especialmente vulnerável, porém, tal não se revela absolutamente essencial com vista à tomada de declarações para memória futura. É que não há incerteza quanto à prevalência absoluta da prevenção da vitimização secundária e o evitar que a vítima sofra pressões, em detrimento dos princípios da oralidade e imediação, como aliás o Ministério Público sublinha e como acima deixámos transcrito. De todo o modo, a argumentação expendida pelo Senhor Juiz de Instrução com vista à justificação do indeferimento da diligência em causa, não encontram acolhimento legal e por isso é passível de censura. Para além disso, não está na disponibilidade do Juiz de Instrução realizar, em sede de inquérito, um juízo de oportunidade do momento mais adequado para a realização de declarações para memória futura que tenham fundamento legal e que hajam sido solicitadas pelo Ministério Público, por esse juízo competir exclusivamente a quem detém a titularidade, direção e realização do inquérito, sob pena de violação da estrutura acusatória do processo penal. Por outro lado, é importante sublinhar que, nomeadamente, nos crimes de violência doméstica em relação a crianças, em fase de julgamento, quer por razões familiares, pessoais ou mesmo emocionais, não mais das vezes, há uma tendência para as vítimas recuarem, sentindo-se pressionadas a não prestar declarações, com o óbvio desfecho de ausência de prova e inerente absolvição. Em suma, em relação à ofendida menor N há obrigatoriedade de audição da mesma atenta a natureza dos crimes em investigação. Por fim, o facto de se ter previsto, no art.º 33.º, da Lei n.º 112/2009, de 16 de setembro (que estabelece o regime jurídico aplicável à prevenção da violência doméstica, à proteção e à assistência das suas vítimas) a realização de declarações para memória futura, para além das situações previstas no art.º 271.º, do Código de Processo Penal, bem como as demais normas previstas no Estatuto da Vitima, são reveladoras de uma intenção do legislador de que tal meio possa ser usado para evitar a revitimização da vítima, quando as especiais circunstâncias e interesses daquela o justifiquem. O disposto no art.º 33.º, n.º 1, da Lei n.º 112/2009, legitima, pois, a tomada de declarações aos menores, com a maior brevidade possível, de forma a evitar-se a repetição da sua audição como testemunha, face ao indiciamento da prática de crimes de violência doméstica por parte do arguido que é o progenitor da menor N, o que implicará uma necessidade de reforço probatório em julgamento, importando, desde já, proteger as vítimas de pressões e evitar a sua vitimização secundária que a exposição à audiência de julgamento forçosamente potenciaria, tal qual defende o recorrente. Não existe, por conseguinte, fundamento para a rejeição da diligência proposta pelo Ministério Público, a requerida tomada de declarações para memória futura à menor N. Sem prejuízo de o citado art.º 33.º, da Lei n.º 112/2009, atribuir ao juiz o poder de decidir no que tange à tomada das declarações da vítima para memória futura na fase de inquérito, tal poder não pode ser exercido arbitrariamente, devendo ser a norma em causa interpretada no sentido de o juiz, como regra, dever deferir a tomada de declarações para memória futura, até por forma a salvaguardar o dever de proteção à vítima plasmado no art.º 20.º da mesma Lei. E só assim não decidindo quando, objetiva e manifestamente, se revele total desnecessidade e manifesta irrelevância na recolha antecipada de prova. Daí que, atenta a superior relevância dos interesses em causa, entende-se que a regra haverá de ser a de deferir, sempre, o requerimento apresentado pela vítima ou pelo Ministério Público, até no exercício do “dever de proteção” àquela consagrado no mencionado art.º 20.º, da Lei n.º 112/2009, só em casos excecionais, de inequívoca e manifesta irrelevância, se devendo indeferir o mesmo requerimento. Donde e sem necessidade de mais considerações, entendemos que é de revogar o despacho recorrido que deve ser substituído por outro que designe data para a tomada de declarações para memória futura da menor N conforme requerido pelo Ministério Público. Neste conspecto, procede o interposto recurso. III – DECISÃO Nestes termos, acordam, em conferência, os Juízes que integram a 2.ª subsecção criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso interposto pelo Ministério Público revogando o despacho proferido que deve ser substituído por outro que designe data para a tomada de declarações para memória futura da menor N conforme requerido pelo Ministério Público. Sem custas. Notifique. Évora, 18 de junho de 2024 (o presente acórdão foi elaborado pela relatora e integralmente revisto pelos seus signatários – art.º 94.º, n.º 2, do Código de Processo Penal) Maria José Cortes Renato Barroso Maria Gomes Bernardo Perquilhas |