Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO | ||
Descritores: | EXONERAÇÃO DO PASSIVO RESTANTE REPETIÇÃO CASO JULGADO | ||
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Data do Acordão: | 06/06/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | - o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência; - encerrado que foi o processo de insolvência, o efeito jurídico daí resultante foi a manutenção de parte dos créditos reclamados e a inexistência de bens para liquidação e subsequente pagamento aos credores; - sendo as dívidas atuais aquelas que subsistiram com o desfecho do anterior processo de insolvência, e não constando que tenha havido incremento patrimonial que possa ser objeto de apreensão e subsequente liquidação para satisfação dos credores, a tramitação deste processo não permite prosseguir a finalidade legalmente consagrada no artigo 1.º/1, do CIRE; - o objeto do processo esgotou-se na tramitação operada no anterior processo de insolvência, inexistindo novos créditos a considerar e património a afetar à liquidação, pelo que se verifica a exceção do caso julgado; - o que não é abalado pela confessada intencionalidade do Devedor de se libertar do passivo; - trata-se de incidente do processo de insolvência que, no entanto, não pode ser despoletado em ordem à sua exclusiva tramitação. (Sumário da Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora I – As Partes e o Litígio Recorrente / Requerente: (…) Recorridos / Credores: Banco (…), SA e (…) Banco, SA (…) apresentou-se à insolvência requerendo a declaração da sua insolvência e a exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos 3 (três) anos posteriores ao seu encerramento. Para tanto, invocou que o seu agregado familiar é composto por si, a esposa e uma neta desta, reside em habitação arrendada pela qual paga a renda mensal de € 330,00, trabalha como assistente operacional na União de Freguesias de (…) e (…), onde aufere a retribuição mensal de € 649,12, não tem quaisquer bens imóveis nem outros rendimentos. Mais invocou a impossibilidade de fazer face às suas dívidas, já que os seus rendimentos não lhe permitem o pagamento das despesas correntes e das dívidas vencidas, pelo que se encontra em situação de insolvência iminente. O requerente indicou os seguintes credores: - Banco (…), SA, com um crédito no valor de € 2.716,66, vencido a 04/06/2013; - (…) Banco, SA, com um crédito no valor de € 23.438,35, vencido a 31/03/2012. Mais invoca a Requerente que no referido processo de insolvência não foi pedida atempadamente a exoneração do passivo restante. II – O Objeto do Recurso Fazendo alusão à sentença proferida no processo n.º 842/15.2T8OLH, foi notificado o Requerente para se pronunciar quanto à exceção dilatória do caso julgado. O Requerente apresentou-se a sustentar inexistir obstáculo à prossecução dos autos porquanto na ação anterior foi decretada a cessação antecipada do procedimento de exoneração do passivo restante, e que o entendimento maioritário considera que apenas a exoneração definitiva do passivo restante, concedida ao devedor nos 10 anos anteriores à data do início do processo de insolvência, constitui fundamento de indeferimento liminar do pedido de exoneração. Foi proferida decisão que, julgando verificada a referida exceção, indeferiu liminarmente o pedido de declaração de insolvência formulado pelo Requerente. Inconformado, o Requerente apresentou-se a recorrer, pugnando pela revogação da decisão recorrida, a substituir por outra que declare a situação de insolvência, determinando o prosseguimento dos autos, admitindo-se o pedido de exoneração do passivo restante. Concluiu a alegação de recurso nos seguintes termos: «I- O presente recurso visa a sindicar o despacho proferido em 07/03/2024, que decidiu indeferir liminarmente o pedido de insolvência formulado em 18/02/2024; II- Ao ter o tribunal a quo entendido estar perante uma exceção dilatória de caso julgado, que o impede de apreciar os presentes autos de insolvência; III- Em razão do recorrente ter sido declarado insolvente em 4 de setembro de 2015, no processo n.º 842/15.2T8OLH, cujos termos correram na Comarca de Faro – Secção de Comércio de Olhão; IV- E aí liminarmente admitida o benefício da exoneração do passivo restante; V- O qual veio a ser antecipadamente cessado; VI- Pelo que o apresentar-se novamente o recorrente à insolvência e pretender gozar de tal benefício, levou o tribunal a quo a entender estar-se perante uma exceção de caso julgado; VII- Mas o facto é que o recorrente entende nunca ter logrado gozar de tal benefício; VIII- A controvérsia em torno da expressão beneficiar da exoneração do passivo restante, não é recente, ao indagar a jurisprudência se em tal tem cabimento as situações onde a exoneração assume carácter positivo e definitivo ou se também compreende as cessações antecipadas, previstas no 244.º do CIRE; IX- Neste sentido, vide Acórdão da Relação de Évora, Proc. n.º 232/21.8T8RMZ-C.E1, de 25/01/2023; X- Não obstante, maioritários têm sido os entendimentos de que, somente com a concessão efetiva e definitiva da exoneração do passivo restante, se assegura; XI- Não constituindo sequer, nas palavras da Relação do Porto (Proc. n.º 7804/19.9T8VNG-B.P1, de 23/03/2021) fundamento de indeferimento liminar, a circunstância do devedor, nos 10 anos anteriores, ter formulado pedido de exoneração do passivo restante no âmbito de outro processo, sobre o qual incidiu despacho final de exoneração e cujo procedimento veio a ser declarado antecipadamente cessado, por razões imputáveis ao devedor; XII- E é este o entendimento jurisprudencialmente mais defendido; XIII- Noutras palavras, só existe perdão de todos os créditos sobre a insolvência, quando se profere despacho final de exoneração; XIV- O que nunca aconteceu, mas, XV- Contrariamente o Mm.º Juiz a quo que tal consubstancia uma exceção dilatória de caso julgado, passível de indeferimento liminar da PI formulada; Ainda assim e não concedendo, XVI- O recorrente não se apresenta de novo à insolvência, requerendo a exoneração do passivo restante, por ter assumido maiores encargos; XVII- Mas tão somente por nunca lhe ter sido concretizado, por quem de direito, v. g. o sr. fiduciário, as obrigações decorrentes deste tipo de processo; XVIII- Pelo que, tendo visto antecipadamente cessado a exoneração do passivo restante, pretende vir a beneficiar de tal figura jurídica.» Cumpre apreciar se se verifica a exceção do caso julgado na propositura do presente processo de insolvência. III – Fundamentos A – Os factos provados 1. O requerente foi declarado insolvente por sentença proferida a 4 de setembro de 2015, no processo n.º 842/15.2T8OLH. 2. Nesse processo foram reconhecidos os seguintes créditos: - (…) Bank, com um crédito no valor de € 5.327,67; - (…), S.A., com um crédito no valor de € 2.716,66; - (…) Banco, S.A., com um crédito no valor de € 28.352,60. 3. Nesse processo o aqui Requerente pediu a exoneração do passivo. 4. Tal pedido foi liminarmente deferido por decisão de 13 de julho de 2018. 5. Por decisão 22 de abril de 2020 foi declarado cessado o incidente de exoneração do passivo por incumprimento pelo devedor insolvente das obrigações que sobre ele impendiam no período de cessão de rendimentos. B – O Direito A questão a tratar consiste em saber se o pedido de declaração de insolvência deve ser liminarmente indeferido por ocorrer, de forma evidente, exceção dilatória insuprível de conhecimento oficioso (cfr. artigo 27.º/1/alínea a), do CIRE), designadamente o caso julgado (cfr. artigo 577.º/alínea i), do CPC, aplicável ex vi do artigo 17.º/1, do CIRE). Questão essa que respeita ao pedido de declaração de insolvência, e não já ao pedido de exoneração do passivo restante – a exoneração do passivo restante constitui incidente do processo de insolvência, cuja tramitação só alcança pertinência uma vez declarada a insolvência – cfr. artigos 236.º e seguintes, do CIRE. Ora vejamos. O artigo 8.º do CIRE regula a coexistência de processos de insolvência tendo por sujeito o mesmo devedor, sem que se afirme a identidade das partes, da causa de pedir e do pedido. No caso que temos em mãos o processo anterior já não se encontra pendente. Nos termos do disposto no artigo 580.º/1, do CPC, o caso julgado pressupõe a repetição de uma causa, repetição que se verifica quando a primeira causa foi decidida por sentença que já não admite recurso ordinário. Constitui uma exceção dilatória, de conhecimento oficioso, cuja verificação impede que o tribunal conheça do mérito da causa, dando lugar à absolvição do réu da instância – artigos 576.º/ 2 e 578.º do CPC. Como ensinam Antunes Varela, Miguel Bezerra e Sampaio e Nora[1], “o caso julgado, tornando a decisão em princípio imodificável, visa exatamente garantir aos particulares o mínimo de certeza do Direito ou de segurança jurídica indispensável à vida de relação”. Assim, “o caso julgado visa essencialmente a imodificabilidade da decisão transitada e não a repetição do juízo contido na sentença. Não se pretende que os tribunais, doravante, confirmem ou ratifiquem o juízo contido na sentença transitada, sempre que a questão por ela julgada volte a ser posta, direta ou indiretamente, em juízo. O que essencialmente se exige, em nome do caso julgado, é que os tribunais respeitem ou acatem a decisão, não julgando a questão de novo”. Nas palavras de Manuel de Andrade[2], o caso julgado consiste em “a definição dada à relação controvertida se impor a todos os tribunais quando lhes seja submetida a mesma relação, todos tendo de acatá-la, julgando em conformidade, sem nova discussão e de modo absoluto, com vista não só à realização do direito objetivo ou à atuação dos direitos subjetivos privados correspondentes, mas também à paz social.” O instituto do caso julgado exerce uma função positiva e uma função negativa. Positivamente, faz valer a sua força e autoridade, que se traduz na exequibilidade das decisões; negativamente, impede que a mesma causa seja novamente apreciada pelo mesmo ou por outro tribunal. A fim de se aferir se se está diante de repetição de causa judicial, impõe-se a aplicação do regime instituído pelo artigo 581.º do mesmo diploma: repete-se a causa quando se propõe ação idêntica a outra quanto aos sujeitos, ao pedido e à causa de pedir. A identidade dos sujeitos advém de as partes serem as mesmas sob o ponto de vista da sua qualidade jurídica, e a identidade do pedido da circunstância de numa e noutra ação se pretender obter o mesmo efeito jurídico; a causa de pedir, por sua vez, é idêntica quando as duas ações procedem do mesmo facto jurídico. As partes são as mesmas sob o aspeto jurídico desde que sejam portadoras do mesmo interesse substancial – as partes não têm que coincidir do ponto de vista físico, sendo mesmo indiferente a posição que assumam num e noutro processo. Haverá identidade de pedidos se existir coincidência na enunciação da forma de tutela jurisdicional pretendida pelo autor e do conteúdo e objeto do direito a tutelar, na concretização do efeito que, com a ação, se pretende obter. Terá de ser o mesmo direito subjetivo cujo reconhecimento se pretende, independentemente da sua expressão quantitativa e da forma de processo utilizada, o que significa não ser exigível uma rigorosa identidade formal entre os pedidos[3]. A identidade da causa de pedir pressupõe que o ato ou o facto jurídico de onde o autor pretende ter derivado o direito é idêntico. Ora, atentos os dados constantes do processo, entre este processo de insolvência e aqueloutro que correu termos sob o n.º 842/15.2T8OLH ocorre identidade de sujeitos: o Devedor e os Credores são os mesmos; ocorre a identidade do pedido: a declaração da insolvência do Devedor com vista à liquidação do respetivo património para satisfação dos credores, com exoneração dos créditos sobre a insolvência que não forem integralmente pagos no processo de insolvência ou nos 3 (três) anos posteriores ao seu encerramento; ocorre a identidade da causa de pedir: a existência de créditos que foram considerados no processo anterior (o remanescente que não obteve ali pagamento) e as circunstâncias factuais donde resulta a impossibilidade de cumprimento, por parte do Devedor, das obrigações vencidas. É certo que o processo de insolvência, destinado que é a apurar os créditos do Devedor e a liquidar o património deste para permitir a satisfação dos credores, congrega um conjunto de operacionalidades articuladas à prossecução de tal finalidade. Não visa, em primeira linha, declarar o direito de forma a alcançar segmento judicial que não mais possa ser posto em causa por decisão posterior. Teremos, então, que conjugar a exceção do caso julgado com a natureza e finalidade deste concreto processo. A finalidade deste concreto processo encontra-se enunciada no artigo 1.º/1, do CIRE: o processo de insolvência é um processo de execução universal que tem como finalidade a liquidação do património do devedor insolvente e a repartição do produto obtido pelos credores, ou a satisfação destes pela forma prevista num plano de insolvência. Apuram-se os credores e a montante dos respetivos créditos, procede-se à apreensão dos bens integrantes da massa insolvente com vista a serem vendidos de modo a obter-se liquidez para satisfação dos créditos reclamados, satisfeitas que estejam as dívidas da massa insolvente. Encerrado que foi o processo de insolvência, o efeito jurídico daí resultante foi a manutenção de parte dos créditos reclamados e a inexistência de bens para liquidação e subsequente pagamento aos credores. Afirmado que está que as dívidas atuais são as que subsistiram com o desfecho do anterior processo de insolvência, e não constando que tenha havido incremento patrimonial que possa ser objeto de apreensão e subsequente liquidação para satisfação dos credores, antes estando assente que o Devedor não dispõe de património, a tramitação deste processo não permite prosseguir a finalidade legalmente consagrada no citado artigo 1.º/1, do CIRE. É certo que, após a declaração da insolvência, a constatação, no decurso do processo, da insuficiência da massa insolvente para satisfazer as custas do processo e as restantes dívidas da massa insolvente implica no encerramento do processo – cfr. artigo 230.º/1/alínea d), do CIRE. Contudo, estando assente, à partida, que a tramitação do processo não constitui o meio adequado à prossecução da respetiva finalidade legal, a utilização da máquina judiciária assume carácter abusivo, sendo instrumentalizada para alcançar objetivos diversos dos consagrados. Assim, se o processo de insolvência foi declarado encerrado subsistindo dívidas e inexistindo outros bens a apreender para liquidação do passivo, a instauração de novo processo de insolvência em que o Devedor é a mesma pessoa e os créditos são aqueles que subsistiram do processo anterior, verifica-se a exceção do caso julgado. O objeto do processo esgotou-se na tramitação operada naquele, inexistindo novos créditos a considerar e património a afetar à liquidação. O que se deixa exposto não resulta abalado pela confessada intencionalidade do Devedor de se libertar do passivo, já que no anterior processo de insolvência foi declarado cessado o incidente de exoneração do passivo por incumprimento pelo Devedor insolvente das obrigações que sobre ele impendiam no período de cessão de rendimentos. Trata-se de um incidente do processo de insolvência que, no entanto, não pode despoletá-lo em ordem à sua exclusiva tramitação. Neste sentido, cfr. Ac. TRC de 03/12/2019 (Maria Catarina Gonçalves): «I – Depois de ter sido proferida sentença a declarar a insolvência em determinado processo – que, entretanto, foi encerrado – e não estando em causa a situação prevista no artigo 39.º, n.º 7, alínea d), do CIRE, deve ser liminarmente indeferida – por se configurar a exceção de caso julgado – a petição inicial por via da qual a devedora vem requerer, novamente, a sua declaração de insolvência (para o efeito de usufruir da exoneração do passivo que não havia requerido no processo anterior) invocando apenas a inexistência de qualquer património a liquidar e a impossibilidade de satisfazer determinado passivo que, apesar de não ter sido aí reclamado e reconhecido, já existia à data da anterior declaração de insolvência. (…) IV. A exoneração do passivo está sempre dependente da existência de um processo de insolvência – não correspondendo, portanto, a uma pretensão que possa ser formulada de forma autónoma – e pressupõe, naturalmente, que esse processo esteja em condições de ser admitido e que nele venha a ser declarada a insolvência do devedor; nessas circunstâncias, sendo liminarmente indeferido o pedido de declaração de insolvência, também não poderá ser admitido o pedido de exoneração do passivo.» Ac. TRC de 05/04/2022 (Arlindo Oliveira): «Verifica-se a exceção do caso julgado, motivando o indeferimento liminar da petição de insolvência, se o requerente/devedor, pretendendo a exoneração do passivo restante, e tendo já anteriormente sido declarado insolvente por sentença transitada em julgado – âmbito em que lhe havia sido concedida exoneração do passivo restante, cujos deveres ali incumpriu –, não invoca um passivo novo, mas a existência e quantificação do passivo já considerado na anterior insolvência, o qual se mantém, com a impossibilidade de o pagar.» A questão em discussão é a do caso julgado relativamente ao processo de insolvência. Não é a questão do caso julgado do incidente de exoneração do passivo restante deduzido no âmbito de processo de insolvência (note-se que a alegação do recurso assim como o Ac. do TRE citado versa a problemática do caso julgado do referido incidente, e não o fundamento do indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência, que consiste no caso julgado do próprio processo de insolvência). Termos em que se conclui existir fundamento para o indeferimento liminar do pedido de declaração de insolvência – artigo 27.º/1/alínea a), do CIRE. As custas recaem sobre o Recorrente – artigo 527.º, n.º 1, do CPC. Sumário: (…) IV – DECISÃO Nestes termos, decide-se pela total improcedência do recurso, em consequência do que se confirma a decisão recorrida. Custas pelo Recorrente. Évora, 6 de junho de 2024 Isabel de Matos Peixoto Imaginário José Manuel Tomé de Carvalho Vítor Sequinho dos Santos __________________________________________________ [1] Manual de Processo Civil, 2.ª edição, págs. 705 e 708. [2] Noções Elementares de Processo Civil, 1993, págs. 305 e 306. [3] Cfr., entre outros, Ac. RC de 21/06/2011, in CJ 2011, T III, pág. 49 e ss. |