Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1625/23.1T8BJA.E1
Relator: PAULA DO PAÇO
Descritores: ESTAFETA
AÇÃO DE RECONHECIMENTO DA EXISTÊNCIA DE CONTRATO DE TRABALHO
PRESUNÇÃO JURIS TANTUM
PLATAFORMA DIGITAL
Data do Acordão: 11/07/2024
Votação: MAIORIA COM * VOT VENC
Texto Integral: S
Sumário:
I- A ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho tem por finalidade o combate à utilização indevida de um designado contrato de prestação de serviço em relações de trabalho subordinado.
II- Nesta ação, que tem natureza oficiosa, o Ministério Público tem de alegar e provar que o negócio jurídico celebrado consubstancia um contrato de trabalho sob a falsa aparência de um contrato de prestação de serviços ou outro.
III- As regras gerais de direito probatório e o regime jurídico que instituiu a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho não impedem, antes permitem, a aplicabilidade das presunções legais consagradas nos artigos 12.º e 12.º-A do Código do Trabalho, desde que o Ministério Público tenha logrado provar a base da presunção.
IV- Atento o estatuído no n.º 1 do artigo 12.º A do Código do Trabalho, presume-se a existência de um contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador da atividade e a plataforma digital, se verifiquem algumas (ou seja, pelo menos duas) das características indicadas nas alíneas elencadas nesse número. Todavia, esta presunção é ilidível.
V- Ainda que o Ministério Público tenha logrado demonstrar a verificação das circunstâncias previstas nas alíneas a) a c) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho, se do acervo fáctico assente resultarem factos e contraindícios indicadores de que o trabalho do estafeta/distribuidor era feito com efetiva autonomia (característica típica de um contrato de prestação de serviços) e que o que interessava à plataforma digital era o resultado desse trabalho, deve ter-se por ilidida a presunção de contrato de trabalho estabelecida no mencionado artigo 12.º-A.
(Sumário elaborado pela relatora)
Decisão Texto Integral:
P. 1625/23.1T8BJA.E1

Acordam na Secção Social do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório
O Ministério Público intentou a presente ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho, prevista nos artigos 186.º-K e seguintes do Código de Processo do Trabalho, contra UBER EATS PORTUGAL, UNIPESSOAL, LDª, pedindo que seja reconhecida a existência de um contrato de trabalho entre AA e a demandada, com início em 01-05-2023.
A ação seguiu a tramitação que consta dos autos, para a qual se remete.
Em 28-05-2024, foi proferida sentença que julgou a ação totalmente improcedente e, em consequência, absolveu a ré do pedido.
O valor da ação foi fixado em € 2.000,00.
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Inconformado, o Ministério Público interpôs recurso para esta Relação, extraindo das suas alegações as seguintes conclusões:
«1. Em sede de análise da prova produzida e aplicação do correspondente direito, concluiu a Mmª Juíza não estarem preenchidas quaisquer alíneas do n.º 1 do artigo 12º do Cód. do Trabalho.
2. No entanto, verifica-se a presunção prevista no art. 12º, nº1, al. a) do Cód. do Trabalho, por ter resultado provado que é a Ré que determina os locais onde a atividade deve ser prestada, por meio da aplicação APP Uber Eats, indicando as moradas onde o estafeta se deve dirigir para recolher os produtos e onde deve fazer a entrega dos mesmos; sendo, também, a Ré quem fixa o trajeto (mais curto) a percorrer, o qual serve de base ao cálculo das quantias a pagar ao estafeta, mesmo que este siga outro percurso. Por outro lado, apesar de ser o estafeta a escolher a zona geográfica onde pretende desenvolver a sua atividade, é a Ré que determina quais as opções sobre as quais recai a escolha, condicionando-a.
3. Verifica-se, também, a presunção prevista no art. 12º, nº1, al. b) do Cód. do Trabalho, por ter resultado provado que o estafeta faz uso da aplicação informática APP Uber Eats, a qual é um instrumento de trabalho, incorpóreo, utilizado e explorado pela Ré, de sua propriedade, e cuja instalação e ativação é obrigatória para o registo inicial e para o cumprimento das tarefas de recolha e entrega de encomendas por parte do estafeta.
4. Verifica-se, igualmente, a presunção prevista no art. 12º, nº1, al. c) do Cód. do Trabalho, por ter resultado provado que o estafeta apenas pode cumprir a sua prestação no horário de funcionamento da plataforma (diariamente das 11.00 às 24.00 horas).
5. A alteração legislativa designada por «Agenda do Trabalho Digno», que aditou o art. 12º A ao Cód. do Trabalho, entrou em vigor a 1/5/2023 (art. 37º, nº1 da Lei nº 13/2023, de 3/4.
6. Atenta a factualidade dada como provada, o estafeta iniciou funções exatamente no indicado dia 1/5/2023, pelo que não existe fundamento para ser afastada a aplicação do disposto no art. 12º-A do Cód. Do Trabalho, contrariamente ao decidido na sentença.
7. Nos termos previstos no art. 12º A, nº2 do Cód. do Trabalho, a Ré é uma plataforma digital, uma vez que presta serviços à distância através de meios eletrónicos, nomeadamente do sítio da internet https://www.uberbeats.com/pt/ ou da aplicação informática APP Uber Eats, a pedido de utilizadores que solicitam aqueles serviços, designadamente a entrega de refeições confecionadas, fazendo de estafetas/distribuidores, no âmbito de uma estrutura organizada de negócio.
8. Verifica-se a presunção prevista no art. 12º A, nº1, al. b) do Cód. Do Trabalho, uma vez que resultou provado que é a Ré quem exerce o poder de direção, quem gere e organiza toda a atividade, estando o estafeta inserido na indicada organização, como decorre da factualidade assente que: «6. A Ré validou o registo e atribuiu uma conta na aplicação ao AA, a quem solicitou a inscrição como trabalhador por conta própria nas Finanças e na Segurança Social, bem como a emissão de recibos eletrónicos, relativos às quantias que lhe forem pagas.7. Para o desempenho das tarefas de estafeta/distribuidor, a Ré exigiu ao AA a utilização de telemóvel com ligação à internet e meio de transporte próprios; a aquisição de mochila isotérmica ou saco de entrega e a utilização da APP Uber Eats. 21 Através da APP Uber Eats, a Ré fixa a ordem das entregas a realizar pelo AA, o qual não pode alterar a ordem de entregas que lhe são determinadas. 22 Através da APP Uber Eats, os clientes finais avaliam o distribuidor/estafeta. 23. Através da APP Uber Eats, a Ré disponibiliza orientações aos estafetas/distribuidores, especificando o que deve dizer ao cliente, como deve proceder à entrega, ou o que deve fazer quando o cliente não atende ou recusa a entrega.»
9. Verifica-se a presunção prevista no art. 12º A, nº1, al. c) do Cód. Do Trabalho, uma vez que resultou provado que a Ré controla e supervisiona, em tempo real, toda a atividade do estafeta, através da aplicação e do GPS: «13. Através da APP Uber Eats, e da geolocalização (GPS), a Ré calcula os percursos a efetuar com base nos quais é determinado o preço da tarefa, e tem conhecimento em tempo real da localização e deslocações do distribuidor, bastando que este faça «login» na aplicação, o que é obrigatório para o desempenho das tarefas contratadas. (…) 36. A Plataforma dispõe de um mecanismo de controlo de identidade dos estafetas, através do qual é pedido, de forma aleatória, aos estafetas que tirem um selfie (autorretrato) que é depois comparada com a fotografia registada na Plataforma, para detetar situações de partilha de contas, que não são permitidas na Plataforma.»
10. Verifica-se, ainda, a presunção prevista no art. 12º A, nº1, al. d) do Cód. do Trabalho, uma vez que resultou provado que a Ré restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, designadamente ao impor a adesão a seguros de grupo ou obrigar a frequentes confirmações de identidade, por via de «selfies».
11. Verifica-se, também, a presunção prevista no art. 12º A, nº1, al. d) do Cód. do Trabalho, uma vez que resultou provado existir a fixação de regras de conduta (art. 29º) que regulam toda a atividade do estafeta, previamente definidas pela Ré, traduzindo-se num verdadeiro poder disciplinar.
12. Verifica-se, finalmente, a presunção prevista no art. 12º A, nº1, al. f) do Cód. do Trabalho, uma vez que resultou provado por ter resultado provado que o estafeta faz uso da aplicação informática APP Uber Eats, a qual é um instrumento de trabalho, incorpóreo, utilizado e explorado pela Ré, de sua propriedade, e cuja instalação e ativação é obrigatória para o registo inicial e para o cumprimento das tarefas de recolha e entrega de encomendas por parte do estafeta, como decorre dos factos provados sob os nºs 2, 3, 4, 7, 8, 9, 10, 11, 12, 13.
13. Assim, é de presumir a existência de contrato de trabalho entre a Ré e AA.
14. Pelo que, ao decidir diversamente, a Mmª Juíza incorreu em violação do disposto nos arts. 12º e 12º A do Cód. Do Trabalho.
15. Em consequência, deve ser revogada a sentença proferida e substituída por outra que julgue a ação procedente por provada, e por via dela, condene a Ré a reconhecer a existência de contrato de trabalho sem termo entre a Ré e AA, com início a 1/5/2023 e desempenhando este as funções de estafeta/distribuidor, com as legais consequências.».
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Contra-alegou a ré, propugnando pela improcedência do recurso e formulando pedido subsidiário de ampliação do âmbito do recurso.
Apresentou as conclusões que, de seguida, se transcrevem:
«Contra-Alegações
1) As doutas alegações de recurso apresentadas pelo Recorrente terão, necessariamente, de improceder, porquanto a matéria de facto que resultou provada nos presentes autos não permite alcançar uma decisão distinta daquela que foi proferida pelo douto Tribunal a quo.
2) Aplicando o artigo 12.º do CT, como fez o Tribunal a quo, nenhuma censura ou reparo merece a sentença recorrida, porquanto percorrendo os factos provados e não provados, não se vislumbra que alguma das características previstas nas várias alíneas do indicado artigo 12.º esteja verificada, como resulta dos Factos Provados 20, 34, 37, 38, 39, 40.
3) Entende o Recorrente que os factos que resultaram provados permitem funcionar a presunção de laboralidade consagrada pelo legislador no artigo 12.º-A do Código do Trabalho, nomeadamente por se verificarem todas as características previstas nesse artigo, o que a Recorrida não aceita.
4) No que concerne à alegada fixação da retribuição entende o Recorrente que a Recorrida “fixa a retribuição do estafeta, estabelecendo uma taxa base, uma compensação pelos quilómetros percorridos, bem como incentivos variados que possam ser aplicados”, assentando esse entendimento nos Factos Provados 11 e 12.
5) Defendendo o Recorrente que o valor que é pago ao estafeta depende dos quilómetros a percorrer, sempre se deverá concluir que o prestador de atividade tem um papel ativo na definição desse mesmo valor, porquanto resultou provado que ao prestador de atividade visado, AA, assiste o direito de determinar um valor mínimo por quilómetro abaixo do qual não prestará o seu serviço – Facto Provado 31 e cláusula 6.a dos Termos e Condições aplicáveis.
6) O elemento copulativo «e» inserido pelo legislador na alínea a) reconduz-nos à convicção de que pretendeu que tal pressuposto se baseasse na inflexibilidade da componente remuneração, ou seja, que esta fosse fixada com a intervenção exclusiva da plataforma, pelo menos em termos de moldura de retribuição, e não numa flexibilidade mitigada, em que o estafeta tem o poder de impor limites mínimos, como sucede na relação em apreço.
7) A definição da taxa mínima por quilómetro é uma faculdade atribuída aos prestadores de atividade, os quais são livres de definir o valor mínimo a partir do qual pretendem receber propostas, ou seja, os prestadores de atividade são livres de definir o preço mínimo a partir do qual aceitam prestar a sua atividade, o que podem fazer a seu exclusivo critério.
8) Para além disso, o prestador de atividade tem sempre a possibilidade de recusar as propostas que lhe são apresentadas (Facto Provado 32), o que não seria possível se o mesmo não tivesse qualquer palavra a dizer relativamente ao preço que é proposto.
9) A retribuição por cada serviço não é, pois, fixada unilateralmente pela Recorrente, antes é proposta por esta ao prestador da atividade, que pode recusá-la, incluindo pelo simples – e legítimo – motivo de não concordar com o preço proposto. Trata-se de uma proposta de serviço, não de uma imposição da sua prática.
10) Dificilmente se poderá concluir pela fixação da retribuição – como aconteceria se o pagamento do serviço fosse apresentado depois de ele ser realizado ou se o estafeta não pudesse recusar a sua realização com a inerente imposição do seu pagamento.
11) Podendo o estafeta recusar o serviço já se está no domínio da possibilidade de uma negociação e, portanto, não se pode concluir que a Recorrente fixe a retribuição.
12) O prestador de atividade é remunerado pelo resultado (e tendo sempre em conta o preço mínimo por quilómetro que o próprio define), ou seja, é remunerado pela tarefa (que nem sequer é obrigado a aceitar), pela entrega do produto do comerciante ao cliente, e não pelo tempo que demora a concluir a entrega ou ainda pelo tempo que se encontra ligado na Plataforma, o que é incompatível com a conclusão de que há uma fixação da retribuição.
13) No que concerne à periodicidade do pagamento, refira-se apenas que resultou provado que o prestador de atividade pode receber quando quiser, sem qualquer restrição (Facto Provado 34).
14) No que concerne à alínea b) do artigo 12.º-A do CT, entende o Recorrente que esta característica se encontra verificada em virtude dos factos dados como provados 6, 7, 21, 22 e 23, concluindo que desta factualidade decorre que “é a Ré quem exerce o poder de direção, quem gere e organiza toda a atividade”.
15) A alínea b) do art. 12.º-A do Código do Trabalho se refere expressamente a “regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade” e não a regras específicas para o acesso à prestação da atividade na plataforma, por conseguinte, assumir a definição de regras para registo na plataforma como uma regra específica quanto à prestação da atividade não pode deixar de ser vista como uma interpretação demasiado extensiva, sem qualquer base legal ou interpretativa que o sustente.
16) A necessidade de registo não é (nem pode ser) uma regra quanto à prestação da atividade, antes sim um passo essencial para aceder a qualquer tipo de plataforma ou aplicação informática.
17) No que concerne ao Facto Provado 7, confunde o Recorrente necessidades para o desempenho da concreta atividade com determinação de regras específicas – ter um telemóvel, dados móveis, um meio de transporte e uma mochila térmica são necessidades subjacentes ao desempenho deste tipo de atividade, não são regras estabelecidas pela Recorrente.
18) Nas suas alegações, o Recorrente transcreve de forma incorreta o Facto Provado 7, empregando o verbo “exigir” no mesmo, o que não consta do Facto Provado em questão, que emprega o verbo “necessitar”.
19) O Facto Provado 22 é absolutamente irrelevante para este efeito, uma vez que uma eventual avaliação do cliente, o que não se aceita que exista, não é apta a fazer verificar a característica em causa que se relaciona com o eventual poder de direção e determinação de regras específicas.
20) Os Factos Provados 21 e 23 foram erradamente dados como provados, como se demonstrará em sede de ampliação do âmbito do recurso, pelo que não podem ser tomados em consideração nesta sede.
21) Não ficou, assim, demonstrado que a Recorrida exerça o poder de direção e determine regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade.
22) No que respeita à al. c) do artigo 12.º-A do CT, entende o Recorrente que a mesma se encontra verificada em decorrência dos Factos Provados 13 e 36.
23) Quanto ao GPS, ficou provado que não é imposto ao prestador de atividade seguir uma rota determinada (Facto não provado c), ou seja, o prestador de atividade é livre de seguir a rota que desejar e, para além disso, de utilizar os sistemas de navegação GPS que preferir utilizar ou até mesmo não utilizar nenhum sistema de navegação GPS, pelo que não é possível concluir pelo controlo ou orientação por parte da Recorrente na forma como os estafetas se apresentam ou como prestam a sua atividade.
24) A necessidade de tirar uma selfie sempre que tal for aleatoriamente solicitado pela plataforma não pode ser considerada uma forma de controlo e supervisão da prestação da atividade, nem tal resulta da factualidade dada como provada que expressamente refere que a selfie, quando aleatoriamente solicitada, serve para detetar situações de partilha de contas (Facto Provado 36), que não são permitidas na Plataforma.
25) Nos termos do artigo 3.º, n.º 5, do Regulamento (UE) 2019/1150 do Parlamento Europeu e do Conselho, de 20 de junho de 2019, relativo à promoção da equidade e da transparência para os utilizadores profissionais de serviços de intermediação em linha (Regulamento P2B), como o da Recorrida, “Os prestadores de serviços de intermediação em linha garantem que a identidade do utilizador profissional que propõe os bens ou serviços no serviço de intermediação em linha seja claramente visível”.
26) Assim, a Recorrente tem o direito, mas mais ainda o dever, de restringir o acesso à plataforma que opera àqueles que nela se registem e cumpram as suas condições de acesso, não só por razões de segurança de todos os utilizadores, mas também porque a Recorrente tem o dever de garantir que quem nela opera cumpre os requisitos legais para o exercício da atividade de estafeta.
27) Não se pode concluir, assim, que o registo de uma fotografia do estafeta vise qualquer tipo de controlo do mesmo por parte da Recorrida, tendo como único propósito garantir que a entrega do produto ao cliente se faz em segurança.
28) Ainda que existissem regras específicas, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe, o legislador estabeleceu que tem necessariamente de existir uma direção por parte da plataforma, pelo que, falhando a prova da direção ou controlo por parte da Recorrente, não pode funcionar, no caso concreto, esta característica como base para a presunção.
29) O legislador não quis estabelecer a verificação do indício com a simples existência de um sistema de geolocalização, sendo que do elenco dos factos provados não constam sequer factos que permitam concluir que os estafetas visados foram alguma vez sujeitos a controlo e supervisão através do GPS, antes pelo contrário (Factos não provados c), d), e), g)).
30) Os factos invocados pelo Recorrente a este propósito não fazem referência a uma única regra específica que permita aferir direção ou controlo relativamente à apresentação, conduta ou prestação de atividade dos prestadores de atividade.
31) A factualidade relevante para este efeito deve consistir na prova e demonstração de factos concretos de onde resulte, no fundo, o controlo e/ou o poder de direção, mas da análise dos presentes autos verifica-se que não foi apurado um único facto concreto que permita concluir pela verificação destas características, nem os factos provados indicados pelo Recorrente conseguem cumprir esse desiderato, razão pela qual se terá de concluir pela não verificação da al. c) do artigo 12.º-A do CT.
32) No que concerne à al. d), conclui a Recorrente que esta característica se verifica pois a Recorrida “restringe a organização da atividade do estafeta ao impor a adesão a seguros de grupo, como decorre do facto provado 18”.
33) Do referido facto dado como provado não resulta qualquer imposição de um seguro, apenas resulta que o mesmo foi celebrado. Analisado o restante acervo da factos dados como provados não se extrai qualquer imposição relativamente à adesão de seguros ou qualquer outro facto que restrinja a autonomia do prestador de atividade, antes pelo contrário, porquanto resulta da factualidade dada como prova que o prestador de atividade goza de bastante e ampla autonomia (Factos Provados n.º 32, 33, 37, 38, 39, 40, 41, 45 e 47), pelo que necessariamente se conclui que também esta característica não se verifica.
34) Quanto à al. e), conclui o Recorrente que o seu preenchimento “retira-se dos «termos e condições» elencados no nº 29 dos factos provados”, sem, no entanto, desenvolver de onde concretamente extrai tal conclusão.
35) Sem prejuízo, cumpre notar, a este propósito, que a alínea e) do artigo 12.º-A, n.º 1, do Código do Trabalho se reporta ao exercício de poderes laborais (poder disciplinar) sobre o prestador de atividade, sendo que o poder disciplinar visa sancionar o trabalhador pela violação de deveres laborais.
36) Nenhuma das situações que se encontra elencada nos termos e condições aplicáveis consiste na violação de um dever laboral, como sejam, por exemplo, a assiduidade, pontualidade, respeito, lealdade, não concorrência.
37) Todos os contratos, sejam eles de que natureza forem, podem ser cessados e não é por isso que se qualificam como contratos de trabalho. No caso concreto, trata-se inclusivamente de uma prorrogativa dos serviços de intermediação em linha, que se encontra prevista no artigo 4.º do Regulamento P2B.
38) A Ré apenas procede à desativação da conta em casos que assumem gravidade, nomeadamente quando se verificam situações de violação de lei ou de fraude (entendida como violação dos Termos e Condições, do modo a garantir uma plataforma idónea e segura para todos os utilizadores da mesma, incluindo para os próprios prestadores de atividade) – o mesmo se aplicando aos comerciantes ou clientes, uma vez que as suas contas também podem ser desativadas em caso de violação de lei ou de fraude.
39) Não existe qualquer tipo de processo disciplinar ou algo semelhante e digno dessa qualificação na plataforma da Recorrida, nem tal resulta da factualidade dada como provada, pelo que não se pode concluir, portanto, pela verificação da al. e) do artigo 12.º-A do CT.
40) Também o indício da al. f) do artigo 12.º-A do CT não se verifica, apesar de a Recorrente defender que “a aplicação informática é um verdadeiro instrumento de trabalho”.
41) Desde logo, não resulta da matéria de facto provada que a aplicação informática seja um instrumento de trabalho nem tal foi alegado pela Recorrente.
42) Sem prejuízo, sempre se diga que entender que uma aplicação informática (um software) é um instrumento de trabalho é entrar num raciocínio tautológico ou metalinguístico, absorvendo-se a própria plataforma digital no conceito de equipamento ou utensílio de trabalho, com a consequente desvirtuação de conceitos – como é do mais elementar bom senso, um software não pode ter-se como um utensílio nos mesmos moldes que um hardware (um bem corpóreo), ou seja, o equipamento de trabalho é o telemóvel onde é instalada a aplicação informática e não esta.
43) A referência do legislador à possibilidade de exploração de instrumentos de trabalho por contrato de locação não pode deixar de ser salientada e vista como um indício de que o legislador estava claramente a pensar em bens corpóreos; com efeito, é notório que a intenção do legislador foi salvaguardar a utilização de bens corpóreos, como sejam uma mota, uma mochila, um capacete ou um telemóvel, passíveis de ser disponibilizados ou locados por uma entidade a um pretenso prestador de serviços, escamoteando uma verdadeira relação laboral, o que não é o caso do prestador de atividade visado nos presentes autos.
44) Interpretação contrária, para além de absolutamente ilógica, terá o seguinte resultado prático: a alínea f) do artigo 12.º-A do Código do Trabalho estará sempre automaticamente verificada, sem necessidade de quaisquer indagações por parte do Tribunal, o que não pode deixar de ser tido como atentatório dos mais elementares e basilares direitos de defesa.
45) Para além disso, o legislador quis claramente distinguir plataforma digital, onde inclui o conceito de aplicação informática (cfr. artigo 12.º-A, n.º 2 do Código de Trabalho), de equipamento e instrumento de trabalho (previsto no artigo 12.º-A, n.º 1, alínea f) do Código do Trabalho).
46) In casu, não se verifica qualquer dos indícios presentes nos artigos 12.º ou 12.º-A do Código do Trabalho, não podendo, por isso, presumir-se a existência de um contrato de trabalho.
47) No entanto, caso assim não se entenda e se conclua pelo preenchimento de alguns dos pressupostos de aplicação da presunção de laboralidade, o que apenas por mero dever de patrocínio se concebe, é certo que a Recorrente ilidiu toda e qualquer presunção que se verificasse.
48) O que se afirma resulta expressa e claramente da análise dos Factos Provados 31, 32, 33, 37, 38, 39, 40, 41 ,45, 46, 47, não impugnados no Recurso a que ora se responde.
49) O prestador de atividade ao registar-se na aplicação não está obrigado a fazer quaisquer entregas utilizando a aplicação; tem apenas a possibilidade de fazê-lo (Facto Provado 38).
50) O prestador de atividade não está, por isso, obrigado a realizar qualquer número mínimo de entregas, a permanecer conectados na aplicação ou, estando conectado, a aceitar qualquer pedido, sendo certo que tem ainda liberdade para estabelecer um valor mínimo por quilómetro abaixo do qual não efetuam entregas (Facto Provado 31).
51) O prestador de atividade não está sujeito a qualquer tipo de exclusividade (Facto Provado 47), que resulta da possibilidade de prestar o mesmo serviço para as empresas que diretamente concorrem no mercado com a Recorrida ou até mesmo a título individual em concorrência com a Recorrida ou exercer qualquer outra atividade remunerada, o que sucede in casu, já que a disponibilidade para estar a executar a prestação destes serviços apenas depende do próprio prestador de atividade.
52) O prestador de atividade é livre para definir o horário em que pretende prestar a sua atividade, de acordo com a sua conveniência, e o local de exercício da sua atividade (Factos Provados 37 e 38).
53) A Recorrente não restringe a autonomia dos estafetas quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência e à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas (Factos Provados 32, 33, 38, 39, 40, 41).
54) A Recorrente também não restringe ou impõe qualquer obrigatoriedade quanto ao local de exercício de atividade, podendo o prestador de atividade prestar a sua atividade em qualquer localidade e sem qualquer tipo de indicação aos prestadores de atividade sobre o local onde devem estar para receber propostas de entregas.
55) Quando presta a sua atividade, os prestador de atividade não é obrigado a seguir qualquer percurso ou rota, podendo seguir a rota que desejar (Facto não provado c)), bem como utilizar os sistemas de navegação GPS que preferirem utilizar ou até mesmo de não utilizar nenhum sistema de navegação GPS, pelo que não há qualquer controlo por parte da Recorrente na forma como os estafetas se apresentam ou como prestam a sua atividade.
56) O prestador de atividade tem a possibilidade de designar outras pessoas para substituição no exercício da atividade (Facto Provado 45), o que demonstra que o que interessa à Recorrente não é a atividade em si mesma, elemento inerente a um contrato de trabalho que é celebrado intuitu personae, mas antes o resultado da sua atividade, característica do contrato de prestação de serviços.
57) O prestador de atividade é livre de recusar qualquer serviço proposto (Facto Provado 32), sem qualquer consequência, incluindo recusar já depois de ter aceitado (Facto Provado 33), e inclusivamente de decidir não receber propostas de entrega de determinados clientes e/ou comerciantes (Facto Provado 41).
58) Não se vislumbra que relação laboral poderia resistir baseada na possibilidade de o prestador da atividade se poder recusar a prestá-la.
59) O prestador de atividade tem total liberdade para escolher a forma como se apresenta, nomeadamente a roupa e o equipamento que quer usar, incluindo utilizar a marca de concorrentes, e o veículo que utiliza para efetuar as entregas (Facto Provado 46).
60) A remuneração auferida é variável (Facto Provado 20), por serviço executado e não por disponibilidade de tempo ou meios, inexistindo quaisquer limites mínimos e máximos para a faturação dos serviços, inexistindo qualquer remuneração periódica
61) Todos os instrumentos utilizados no desempenho da atividade pertencem ao prestador de atividade e não à Recorrida.
62) O prestador de atividade em causa é um verdadeiro trabalhador autónomo e assim deve continuar a ser, como é, aliás, a sua vontade.
63) Para além de serem autónomos na fixação do tempo e local de prestação da sua atividade, os prestadores de atividade visados têm uma profunda liberdade para definir que tarefas aceitam ou não prestar, uma vez que inexistem limites ou consequências para a não aceitação.
64) Aqui reside uma característica que se afigura de difícil compatibilização com a ordenação típica da relação laboral, o que, aliás, foi já apreciado e assim concluído, pelo colendo Supremo Tribunal de Justiça, designadamente no acórdão de 9 de janeiro de 2019, no processo n.º 1376/16.3T8CSC.L1.S1.
65) Para além disso, foi essa independência que fundou a decisão do Tribunal Justiça da União Europeia proferido no Caso B/Yodel Delivery Network.
66) Em sentido convergente, o Supremo Tribunal de Justiça do Reino Unido, em decisão recente, de 21 de novembro de 2023, decidiu que os estafetas que prestam atividade (no caso, para a plataforma Deliveroo) não podem ser considerados trabalhadores subordinados, uma vez que são “livres de rejeitar ofertas de trabalho, de se tornarem indisponíveis e de realizarem trabalhos para concorrentes”, concluindo que “estas características são fundamentalmente inconsistentes com qualquer noção de relação de trabalho”(tradução nossa).
67) Com relevância para este caso, cumpre recordar dois acórdãos do nosso Supremo Tribunal de Justiça, nos quais foi decidido que o facto de prestador de atividade poder escolher o próprio horário, não exercer a atividade em regime de exclusividade, ter a possibilidade de aceitar ou rejeitar serviços, ter a possibilidade de se fazer substituir e a possibilidade de agendar férias sem ser pago durante esse período e ser o titular dos instrumentos de trabalho permite ilidir a presunção do artigo 12.º do Código do Trabalho ou distinguir uma prestação de serviços de um contrato de trabalho.
68) Todas estas decisões contêm factos relevantes e semelhantes àqueles que foram provados pela Recorrente, factos esses que apontam no sentido de uma relação jurídica autónoma e não juridicamente subordinada.
69) O prestador de atividade em causa não tem qualquer compromisso, mínimo que seja, de regularidade, pontualidade ou assiduidade na prestação de atividade, podendo desparecer e não prestar atividade durante dias, semanas ou até mesmo meses, como já sucedeu in casu (Factos Provados 39 e 40).
70) A Recorrente não tem qualquer ascendente disciplinar sobre o prestador de atividade, tal como se extrai da factualidade dada como provada e não provada.
71) Não ficou provado que a necessidade de tirar uma selfie quando aleatoriamente solicitado ou o GPS funcionassem para controlo ou sequer monitorização da atividade desenvolvida pelos prestadores de atividade, antes sim para o bom e regular funcionamento da aplicação, com o respeito pela lei.
72) Para a Recorrente é absolutamente indiferente (desde que cumpram os requisitos mínimos previstos nos seus termos e condições) quem exerce a função de estafeta (Facto Provado 49), não detendo com os mesmos qualquer relação de confiança ou de dependência jurídica.
73) Não se demonstrou, pela factualidade provada, que sejam dadas instruções, ordens ou quaisquer regras de como cumprir as suas tarefas, bastando que, aceitando o serviço que lhe é proposto, leve a encomenda do ponto A ao ponto B.
74) A subordinação jurídica fica totalmente arredada, não exercendo a Recorrente qualquer controlo, nem sobre os equipamentos utilizados, nem sobre a forma como o estafeta cumpre os seus serviços, nem sobre a forma como se apresenta, nem quanto ao número de pedidos aceites ou rejeitados, nem mesmo quanto ao número de horas que disponibiliza para esta atividade, concluindo-se que, no caso concreto, o estafeta organiza o seu plano de prestação de atividade como bem entender, sem ter que o justificar seja a quem for, o que foi aliás salientado pelo mesmo como um fator determinante para se ter registado na aplicação da Recorrente, uma vez que é mineiro e apenas presta serviços de entrega quando tem disponibilidade e vontade.
75) O prestador de atividade não se encontra numa situação de dependência económica.
76) Contrariamente ao que sucede numa relação laboral, a Recorrida não organiza a atividade do prestador de atividade de maneira alguma, tal como decorre amplamente da factualidade provada, dos termos e condições aplicáveis e como o mesmo confirmou.
77) Independentemente da presunção que venha a ser aplicável ao caso concreto, deve a sentença recorrida ser mantida, não se reconhecendo qualquer contrato de trabalho entre a Recorrente e o prestador de atividade visado, o Sr. AA, resultando ilidida qualquer presunção que eventualmente se verificasse, o que apenas por dever de patrocínio se concebe.
Ampliação do âmbito do Recurso
78) Nos termos do artigo 636º, n.º 2, do CPC, a Recorrida requer, a título subsidiário, a ampliação do âmbito do recurso, impugnando alguma da factualidade dada como provada por forma a prevenir a hipótese de procedência das questões suscitadas pelo Recorrente.
79) O Facto Provado 11 deve ser dado como não provado, uma vez que se o valor que é pago depende dos quilómetros a percorrer, sempre se deverá concluir que o prestador de atividade tem um papel ativo na definição desse mesmo valor, porquanto resultou provado que ao prestador de atividade visado, AA, assiste o direito de determinar um valor mínimo por quilómetro abaixo do qual não prestará o seu serviço – Facto Provado 31 e cláusula 6.a dos Termos e Condições aplicáveis.
80) A possibilidade expressa de recusar as propostas apresentadas (Facto Provado 32), independentemente do motivo e sem que qualquer consequência negativa daí advenha, não pode deixar de ser vista como uma forma de negociação, na medida em que, com essa recusa, o prestador da atividade não está a aceitar o preço proposto e, assim, está a exigir um preço mais elevado para os serviços que presta, nomeadamente por não concordar com o preço originalmente proposto.
81) A retribuição por cada serviço é proposta por esta ao prestador da atividade, que pode recusar a mesma, incluindo pelo simples – e legítimo – motivo de não concordar com o preço proposto.
82) O Facto Provado 15 deve ser dado como não provado pois a plataforma não tem um período de atividade, tal como explicou a testemunha BB (ficheiro áudio da sessão de julgamento de dia 07.05.2024, disponível no Citius, com início às 10:13 e fim às 11:36: 13m57s a 15m26s) e o prestador de atividade, Sr. AA, esclareceu que já fez entregas depois das 24.00 horas (ficheiro áudio da sessão de julgamento de dia 19.04.2024, disponível no Citius, com início às 10:00 e fim às 11:09: 17m04s a 17m23s).
83) O Facto Provado 21 deve ser dado como não provado pois simplesmente nenhuma testemunha (em particular, o prestador de atividade) prestou depoimento sobre a mesma, bem assim, não existe qualquer documento junto aos autos que permita dar tal facto como provado, razão pela qual o mesmo deverá ser dado como não provado.
84) Do depoimento da testemunha BB (ficheiro áudio da sessão de julgamento de dia 07.05.2024, disponível no Citius, com início às 10:13 e fim às 11:36:51m12s a 52m16s) e do prestador de atividade (ficheiro áudio da sessão de julgamento de dia 19.04.2024, disponível no Citius, com início às 10:00 e fim às 11:09: 31m01s a 32m25s) resulta que os clientes não fazem qualquer avaliação do estafeta, pelo que o Facto Provado 22 deve ser dado como não provado.
85) O Facto Provado 23 deve ser dado como não provado uma vez que o prestador de atividade apenas fez referência a um vídeo que surgia aquando do registo (ficheiro áudio da sessão de julgamento de dia 19.04.2024, disponível no Citius, com início às 10:00 e fim às 11:09: 01h01m03s a 01h02m10s), o que não se pode reconduzir a disponibilização de orientações sobre a prestação da atividade, não se tendo sequer provado que o mesmo era de visualização obrigatória.
86) Em complemento, o diretor regional da Recorrida, a testemunha BB, esclareceu que a Recorrida não dá qualquer tipo de instrução ou orientação aos prestadores de atividade (ficheiro áudio da sessão de julgamento de dia 07.05.2024, disponível no Citius, com início às 10:13 e fim às 11:36: 34m50s a 35m11s).
87) O facto provado 44 deve ser dado como não provado, porquanto o próprio prestador de atividade esclareceu que pode desligar o GPS durante o percurso, tendo afirmado que o GPS apenas é necessário para receber propostas de entrega e apresentar as mesmas da forma mais eficiente possível aos prestadores de atividade disponíveis a cada momento, o que vai de encontro ao Facto Provado 42 (ficheiro áudio da sessão de julgamento de dia 19.04.2024, disponível no Citius, com início às 10:00 e fim às 11:09: 54m41s a 55m33s).
88) O prestador de atividade confirmou que pode seguir o percurso que entender (ficheiro áudio da sessão de julgamento de dia 19.04.2024, disponível no Citius, com início às 10:00 e fim às 11:09: 26m41s a 26m57s), o que foi corroborado por BB (ficheiro áudio da sessão de julgamento de dia 07.05.2024, disponível no Citius, com início às 10:13 e fim às 11:36: 11m30s a 12m16s).
89) As declarações do prestador de atividade e da testemunha BB vão de encontro ao teor da cláusula 4.k. dos Termos e Condições aplicáveis.
90) Assim, os factos constantes dos artigos 242.º e 244.º da contestação devem ser aditados à matéria de facto dada como provada.
Nestes termos, e nos demais de Direito aplicáveis, deve o recurso apresentado pelo Autor/Recorrente ser julgado totalmente improcedente.».
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O Ministério Público respondeu à ampliação do âmbito do recurso, pugnando pela sua improcedência.
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A 1.ª instância admitiu o recurso de apelação, com subida imediata, nos próprios autos e com efeito meramente devolutivo.
Foi igualmente admitida a (subsidiária) ampliação do objeto do recurso.
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Após a subida do processo à Relação foi elaborado o projeto de acórdão e foram colhidos os vistos legais.
Cumpre, em conferência, apreciar e decidir.
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II. Objeto do Recurso
É consabido que o objeto do recurso é delimitado pelas conclusões da alegação da recorrente, com a ressalva da matéria de conhecimento oficioso (artigos 635.º n.º 4 e 639.º n.º 1 do Código de Processo Civil, aplicáveis “ex vi” do artigo 87.º n.º 1 do Código de Processo do Trabalho).
Em função destas premissas, a questão suscitada no recurso de apelação e que importa dilucidar e resolver é a da qualificação da relação jurídica que foi estabelecida entre a ré e AA.
Já na subsidiária ampliação do âmbito do recurso, impugna-se a decisão da matéria de facto e volta a colocar-se a questão da caracterização da relação contratual sub judice.
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III. Matéria de Facto
A 1.ª instância julgou provados os seguintes factos:
1. A Ré é uma sociedade por quotas, que tem como objeto social, designadamente, a prestação de serviços de geração de potenciais clientes a pedido, gestão e pagamentos; atividades relacionadas com a organização e gestão de sites, aplicações on-line e plataformas digitais, processamento de pagamentos e outros serviços relacionados com a restauração; consultoria, conceção e produção de publicidade e marketing; aquisição de serviços de entrega a parceiros de entrega e venda de serviços de entrega a clientes finais.
2. A Ré presta serviços à distância através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da internet https: //www.uberbeats.com/pt/ ou da aplicação informática, pertencentes à plataforma “APP UBER EATS” a pedido de utilizadores que solicitam aqueles serviços, designadamente a entrega de refeições confecionadas.
3. A partir do dia 1/5/2023, AA, passou a desempenhar as funções de estafeta/distribuidor de refeições através e por recurso à plataforma Uber Eats.
4. Para o efeito, AA registou-se na aplicação informática APP Uber Eats.
5. Para efetuar o referido registo teve de facultar fotografia de perfil, cópias dos seus documentos de identificação, da sua declaração de início de atividade, documentos da viatura a utilizar, certificado de registo criminal, identificação do seu IBAN, do seu nº de telemóvel e endereço eletrónico.
6. A Ré validou o registo e atribuiu uma conta na aplicação ao AA, a quem solicitou comprovativo de inscrição como trabalhador por conta própria nas Finanças e na Segurança Social, bem como a autorização de autofacturação pela beneficiária da atividade, relativos às quantias que lhe fossem pagas.
7. Para o desempenho das tarefas de estafeta/distribuidor, AA necessitava de utilizar telemóvel com ligação à internet, meio de transporte próprio, no caso um motociclo, mochila isotérmica ou saco de entrega, da sua propriedade, e utilizar a aplicação “APP Uber Eats”.
8. O referido estafeta/distribuidor, ao iniciar o seu trabalho, faz login na aplicação Uber Eats.
9. A Ré, através de APP Uber Eats, notifica o estafeta/distribuidor do pedido de cliente, juntamente com informação (nome e morada) acerca do ponto de recolha do pedido e do ponto de entrega do mesmo, da indicação do valor a receber pela viagem/trajeto, desde o estabelecimento parceiro/ponto de recolha até à morada indicada pelo cliente, e a modalidade de pagamento escolhida pelo cliente.
10. O estafeta/distribuidor aceitando o referido pedido, desloca-se ao estabelecimento/ponto de recolha, recolhe o(s) produto(s) no local indicado pela APP Uber Eats, altura em que regista o levantamento/receção do pedido e procede ao seu transporte até à morada/posição geográfica do cliente/utilizador, concretizando a entrega.
11. Através da APP Uber Eats, a Ré fixa a retribuição do estafeta/distribuidor por cada entrega, a qual é composta por uma taxa base, acrescida por uma compensação pelos kms a percorrer e incentivos aplicáveis ao caso, variáveis ao longo do dia.
12. A Ré recebe diretamente, através da aplicação, o valor pago pelo cliente, efetuando, depois, o pagamento pela atividade prestada ao distribuidor/estafeta, regra geral semanalmente, via transferência bancária.
13. Através da APP Uber Eats, e da geolocalização (GPS), a Ré calcula os percursos a efetuar com base nos quais é determinado o preço da tarefa, e tem conhecimento, em tempo real, da localização e deslocações do distribuidor, bastando que este faça «login» na aplicação, o que é obrigatório para o desempenho das tarefas contratadas.
14. O estafeta/distribuidor AA desempenhava as suas funções na cidade Local 1, na área de circunscrição territorial coberta pela atividade da Plataforma.
15. Dentro do período de atividade daquela, ou seja, entre as 11.00 e as 24.00 horas.
16. A ré atribui incentivos em horas de maior afluência de pedidos.
17. AA, nas referidas funções de estafeta/distribuidor, faz uso do telemóvel com nº ...09 e do endereço eletrónico ..........@....., mantendo a aplicação e o GPS ligados à internet.
18. A Ré celebrou um contrato de seguro de responsabilidade civil, com a Zurich Insurance plc, filial na Holanda que abrange AA, vigente apenas e quando aquele se conecta à aplicação.
19. No dia 6/10/2023, pelas 13.00 horas, o AA encontrava-se a desenvolver a sua atividade de estafeta/distribuidor, no Local 2 da Av. ..., ..., em Local 1, concretamente no restaurante EMP01..., onde recolhia refeições para entrega aos clientes da Ré, quando ocorreu uma visita inspetiva por parte da Autoridade para as Condições do Trabalho.
20. Pelo trabalho prestado entre 22/5/2023 e 17/10/2023, a Ré pagou ao AA, semanalmente, 235,02€, 115,53€, 340,38€, 133,75€, 181,66€, 108,28€, 379,10€, 68,10€, 269,10€, 188,36€, 113,75€, 306€, 69,74€, 163,15€, 115,67€, 204,54€, 58,32€, 9,53€ e 91,41€.
21. Através da APP Uber Eats, a Ré fixa a ordem das entregas a realizar pelo AA, o qual não pode alterar a ordem de entregas que lhe são determinadas.
22. Através da APP Uber Eats, os clientes finais avaliam o distribuidor/estafeta.
23. Através da APP Uber Eats, a Ré disponibiliza orientações aos estafetas/distribuidores, especificando o que deve dizer ao cliente, como deve proceder à entrega, ou o que deve fazer quando o cliente não atende ou recusa a entrega.
24. A Plataforma faz a ligação entre comerciantes, que desejam vender os seus produtos (não só alimentos) e clientes, que desejam adquirir bens e que os mesmos lhes sejam entregues ou optem por eles próprios fazer a sua recolha.
25. Tanto os comerciantes, como os estafetas, como os clientes, são “utilizadores” da Plataforma.
26. A ré designa os estafetas que desenvolvem a sua atividade na Plataforma diretamente por “Parceiros de Entregas Independentes”.
27. A ré designa os estafetas que desenvolvem a sua atividade na Plataforma através de um intermediário por “Parceiros de Entregas do Parceiro de Frota”.
28. Os intermediários são designados pela ré por “Parceiros de Frota”.
29. Ao iniciar atividade AA aceitou os seguintes termos e condições constantes da aplicação:











30. Os prestadores de atividade podem decidir sobre o modelo que preferem de prestação da atividade - diretamente ou através de intermediário.
31. O Prestador de Atividade pode fixar a sua Taxa Mínima por Quilómetro para realizar entregas.
32. O prestador de atividade pode recusar o pedido se o valor da tarefa apresentado pela plataforma não lhe for compensatório.
33. Até recolher a entrega, o Prestador de Atividade pode cancelar a entrega e não concluir a mesma.
34. Os prestadores de atividade podem receber quando quiserem através da ferramenta "Flex Pay".
35. Caso não optem por recolher os rendimentos através do Flex Pay são, então, pagos semanalmente.
36. A Plataforma dispõe de um mecanismo de controlo de identidade dos estafetas, através do qual é pedido, de forma aleatória, aos estafetas que tirem um selfie (autorretrato) que é depois comparada com a fotografia registada na Plataforma, para detetar situações de partilha de contas, que não são permitidas na Plataforma.
37. É o prestador de atividade que escolhe a zona geográfica onde realiza a atividade, dentro de um leque de opções fornecido pela plataforma de acordo com a área coberta pela sua atividade, e o horário em que efetua as entregas.
38. O Prestador de Atividade decide quando se liga e desliga da Plataforma.
39. O Prestador de Atividade pode passar dias, semanas ou meses sem se ligar à Plataforma.
40. AA, entre 9 de outubro de 2023 e 2 de novembro de 2023, não utilizou uma única vez a Plataforma para prestar a sua atividade, mas mantém a sua conta ativa.
41. Os prestadores de atividade podem bloquear clientes e estabelecimentos na Plataforma.
42. O GPS permite à plataforma apresentar propostas de entrega aos prestadores de atividade que estão melhor posicionados para recolher a encomenda.
43. O GPS permite, ainda, aos clientes da Uber Eats consultar onde se encontram as suas encomendas.
44. Para tais fins o sinal de GPS deve encontrar-se ativo entre os pontos de recolha e de entrega.
45. Os prestadores de atividade podem substituir-se por outro estafeta registado na Plataforma, no exercício da sua atividade.
46. Os prestadores de atividade podem escolher a forma como se apresentam, nomeadamente a roupa e o equipamento que querem usar (incluindo utilizar a marca de concorrentes) e o veículo (mota ou bicicleta) que utilizam para efetuar as entregas.
47. Os prestadores de atividade podem prestar atividade a terceiros, incluindo via outra plataforma, tendo AA prestado, em simultâneo, num determinado período serviços de entregas para a ré e para a Glovo, sem necessidade de consentimento ou de dar conhecimento à Uber Eats.
48. Para registo dos prestadores de atividade na Plataforma é necessário ter no mínimo 18 anos; possuir certificado de residência, se for cidadão de um país não pertencente à União Europeia; possuir carta de condução, se conduzir uma moto; possuir seguro, se conduzir uma mota e não ter antecedentes criminais.
49. A Plataforma não faz qualquer escrutínio sobre a experiência, qualificações académicas, ou ausência delas, bem como sobre as características pessoais e técnicas dos prestadores de atividade, para validar o seu registo na Plataforma.
50. A Ré foi notificada pela ACT para regularizar a situação deste prestador de atividade ou pronunciar-se, nos termos do art. 15º-A, nº 1 da Lei nº107/2009, de 14/9 e negou a existência de vínculo laboral.
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E julgou como não provados os seguintes factos:
a) O estafeta procede, em ato contínuo ao login na aplicação, ao envio de uma «selfie» para a Ré efetuar o reconhecimento facial.
b) Seguidamente o estafeta/distribuidor procede, ainda e por meio da APP Uber Eats, à confirmação da utilização de equipamentos de proteção individual e da utilização do saco ou mochila de entrega.
c) Através de geolocalização (GPS), a Ré impõe os percursos a efetuar pelos seus estafetas, os quais não podem desviar-se daqueles.
d) Através da APP Uber Eats, e da geolocalização (GPS), a Ré faz controlos de pedidos aceites e recusados (taxa de aceitação e taxa de recusa), remetendo mais pedidos ao estafeta/distribuidor que tem maior taxa de aceitação.
e) Existindo muitas recusas, a Ré atribui menos pedidos ao distribuidor.
f) Os prestadores de atividade podem ligar-se e desligar em qualquer cidade portuguesa da sua preferência sem necessidade de o comunicar à Uber Eats Portugal.
g) Ao distribuidor com avaliações negativas são atribuídos menos pedidos, por parte da Ré.
h) A Ré suspende a conta do distribuidor que não demonstre ser titular de seguro válido que abranja o veículo que usa no trabalho.
i) O estafeta/distribuidor deve fazer «logout» na APP Uber Eats, assim informando a Ré do fim de cada período do seu dia de trabalho.
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IV. Qualificação da relação jurídica
O apelante põe em crise a decisão da 1.ª instância que considerou que não resultou demonstrado que entre a ré e AA foi celebrado um contrato de trabalho.
Assim sendo, a caracterização da relação jurídica estabelecida entre a ré e AA é a questão que importa dilucidar e resolver.
Para tanto, contudo, importa ter presentes alguns pressupostos essenciais que passaremos, de seguida, a mencionar.
Estamos perante uma ação especial de reconhecimento da existência de contrato de trabalho que tem natureza oficiosa, isto é, a mesma iniciou-se sem qualquer intervenção do presumível trabalhador ou do presumível empregador, e tem por finalidade o combate à utilização indevida de um designado contrato de prestação de serviço em relações de trabalho subordinado.
Neste sentido se pronunciaram os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 21-03-2018, proferidos nos processos n.ºs 17082/17.9T8LSB.L1.S1 e 20416/17.2T8LSB.L1.S1, acessíveis em www.dgsi.pt:
«A ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho está inserida no Título VI do Código de Processo do Trabalho, referente aos processos especiais, encontrando-se regulada nos artigos 186.º-K a 186.º-R, resultando da alteração ao Código de Processo do Trabalho introduzida pela Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto, com início de vigência em 1 de setembro de 2013.
Trata-se de uma ação de cariz publicista que resulta da atividade da Autoridade para as Condições do Trabalho, como se pode observar pelo teor do art.º 186.º-K, que se estriba no procedimento previsto no art.º 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, que aprovou o regime processual aplicável às contraordenações laborais e de Segurança Social.
É uma ação de carácter oficioso que se inicia sem a intervenção processual do trabalhador, que pode, em fase posterior, aderir aos factos apresentados pelo Ministério Público, apresentando articulado próprio e constituir mandatário, como está previsto no n.º 4, do art.º 186.º-L do Código de Processo do Trabalho.
A tramitação desta ação é muito simplificada, pois o seu objeto consiste em apurar a factualidade relevante para qualificar o vínculo existente, e caso se reconheça a existência de um contrato de trabalho fixar a data do início da relação laboral, como impõe o n.º 88, do art.º 186.º-O, do diploma citado.».
Nesta ação especial, compete ao Ministério Público alegar e demonstrar que se está perante uma prestação de atividade, por forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, suscetível de causar prejuízo ao trabalhador e ao Estado.
Dito de outra forma, o Ministério Público tem de alegar e provar que o negócio jurídico celebrado consubstancia um contrato de trabalho sob a falsa aparência de um contrato de prestação de serviços (ou outro) com o objetivo de evitar custos e responsabilidades que o vínculo laboral implica.
Ora, as regras gerais de direito probatório (341.º e seguintes do Código Civil, destacando-se os artigos 342.º, 343.º, 344.º e 350.º) e o regime jurídico que instituiu a ação de reconhecimento da existência de contrato de trabalho (Lei n.º 63/2013, de 27 de agosto, que alterou e aditou, respetivamente, os artigos 2.ª n.º 3 e 15.º-A da Lei n.º 107/2009, de 14 de setembro, que nos remetem para o artigo 12.º do Código do Trabalho e, após a entrada em vigor da Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, também para o artigo 12.º-A do mesmo código) não impedem, antes permitem, a aplicabilidade das presunções legais consagradas nos artigos 12.º e 12.º-A do Código do Trabalho, bastando assim ao Ministério Público provar a base da presunção.
Por outras palavras, inexiste óbice legal à aplicação das presunções de laboralidade consagradas nos artigos 12.º e 12.º-A do Código do Trabalho, desde que demonstrados, pelo Ministério Público, os pressupostos para que estas operem.
No vertente caso, a relação jurídica que importa caracterizar teve o seu início em 01-05-2023, pelo que a presunção consagrada no artigo 12.º-A do Código do Trabalho, especialmente direcionada para as situações em que a atividade se desenvolve no âmbito de plataforma digital, como sucede no caso que nos ocupa, se mostra aplicável uma vez que a Lei n.º 13/2023, de 3 de abril, que introduziu esta norma, entrou em vigor precisamente no dia 1 de maio de 2023 – cf. artigos 35.º, n.º 1, e 37.º desta lei.
Identificado, assim, o ónus probatório que recai sobre o Ministério Público, e esclarecida a aplicabilidade à relação jurídica sub judice da presunção prevista no artigo 12.º-A do Código do Trabalho[2], chegou o momento de avançarmos para o tema central do recurso: a caracterização do negócio jurídico celebrado.

Dispõe o artigo 1152.º do Código Civil:
«Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade intelectual ou manual a outra pessoa, sob a autoridade e direção desta».
Concomitantemente, o artigo 11.º do Código do Trabalho estatui o seguinte:
«Contrato de trabalho é aquele pelo qual uma pessoa singular se obriga, mediante retribuição, a prestar a sua atividade a outra ou outras pessoas, no âmbito de organização e sob a autoridade destas».
Por sua vez, o artigo 12.º- A do mesmo diploma legal prescreve o seguinte:
«1 - Sem prejuízo do disposto no artigo anterior, presume-se a existência de contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador de atividade e a plataforma digital se verifiquem algumas das seguintes características:
a) A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela;
b) A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade;
c) A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica;
d) A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma;
e) A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta;
f) Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação.
2 - Para efeitos do número anterior, entende-se por plataforma digital a pessoa coletiva que presta ou disponibiliza serviços à distância, através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da Internet ou aplicação informática, a pedido de utilizadores e que envolvam, como componente necessária e essencial, a organização de trabalho prestado por indivíduos a troco de pagamento, independentemente de esse trabalho ser prestado em linha ou numa localização determinada, sob termos e condições de um modelo de negócio e uma marca próprios.
3 - O disposto no n.º 1 aplica-se independentemente da denominação que as partes tenham atribuído ao respetivo vínculo jurídico.
4 - A presunção prevista no n.º 1 pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata.
5 - A plataforma digital pode, igualmente, invocar que a atividade é prestada perante pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores.
6 - No caso previsto no número anterior, ou caso o prestador de atividade alegue que é trabalhador subordinado do intermediário da plataforma digital, aplica-se igualmente, com as necessárias adaptações, a presunção a que se refere o n.º 1, bem como o disposto no n.º 3, cabendo ao tribunal determinar quem é a entidade empregadora.
7 - A plataforma digital não pode estabelecer termos e condições de acesso à prestação de atividade, incluindo na gestão algorítmica, mais desfavoráveis ou de natureza discriminatória para os prestadores de atividade que estabeleçam uma relação direta com a plataforma, comparativamente com as regras e condições definidas para as pessoas singulares ou coletivas que atuem como intermediários da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores.
8 - A plataforma digital e a pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores, bem como os respetivos gerentes, administradores ou diretores, assim como as sociedades que com estas se encontrem em relação de participações recíprocas, de domínio ou de grupo, são solidariamente responsáveis pelos créditos do trabalhador emergentes de contrato de trabalho, ou da sua violação ou cessação, celebrado entre o trabalhador e a pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital, pelos encargos sociais correspondentes e pelo pagamento de coima aplicada pela prática de contraordenação laboral relativos aos últimos três anos.
9 - Nos casos em que se considere a existência de contrato de trabalho, aplicam-se as normas previstas no presente Código que sejam compatíveis com a natureza da atividade desempenhada, nomeadamente o disposto em matéria de acidentes de trabalho, cessação do contrato, proibição do despedimento sem justa causa, remuneração mínima, férias, limites do período normal de trabalho, igualdade e não discriminação.
10 - Constitui contraordenação muito grave imputável ao empregador, seja ele a plataforma digital ou pessoa singular ou coletiva que atue como intermediário da plataforma digital para disponibilizar os serviços através dos respetivos trabalhadores que nela opere, a contratação da prestação de atividade, de forma aparentemente autónoma, em condições características de contrato de trabalho, que possa causar prejuízo ao trabalhador ou ao Estado.
11 - Em caso de reincidência, são ainda aplicadas ao empregador as seguintes sanções acessórias:
a) Privação do direito a apoio, subsídio ou benefício outorgado por entidade ou serviço público, designadamente de natureza fiscal ou contributiva ou proveniente de fundos europeus, por período até dois anos;
b) Privação do direito de participar em arrematações ou concursos públicos, por um período até dois anos.
12 - A presunção prevista no n.º 1 aplica-se às atividades de plataformas digitais, designadamente as que estão reguladas por legislação específica relativa a transporte individual e remunerado de passageiros em veículos descaracterizados a partir de plataforma eletrónica.».
Ora, atento o n.º 1 deste último artigo, presume-se a existência de um contrato de trabalho quando, na relação entre o prestador da atividade e a plataforma digital, se verifiquem algumas (ou seja, pelo menos duas) das características indicadas nas suas diversas alíneas.
Passemos então para a análise dos factos concretos, a fim de apreciar o eventual preenchimento das aludidas características.

A plataforma digital fixa a retribuição para o trabalho efetuado na plataforma ou estabelece limites máximos e mínimos para aquela – alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º-A.
Com relevância resultou apurado o seguinte:
11. Através da APP Uber Eats, a ré fixa a retribuição do estafeta/distribuidor por cada entrega, a qual é composta por uma taxa base, acrescida por uma compensação pelos kms a percorrer e incentivos aplicáveis ao caso, variáveis ao longo do dia.
16. A ré atribui incentivos em horas de maior afluência de pedidos.
31. O prestador de atividade pode fixar a sua taxa mínima por quilómetro para realizar entregas.
Atendendo aos factos mencionados, é possível inferir que é a ré quem fixa a retribuição do estafeta/distribuidor para o trabalho efetuado, pois é ela quem decide sobre o valor da retribuição (taxa base) e sobre os incentivos pagos ao prestador.
E mesmo em relação ao valor do quilómetro ainda que o prestador possa fixar a sua taxa mínima por quilómetro, trata-se de um patamar mínimo, mas que tudo indica que a ré pode decidir ultrapassá-lo. Ademais, parece que a indicação desse patamar mínimo é uma possibilidade que é reconhecida ao prestador (no ponto 31 dos factos assentes utiliza-se a palavra “pode”), mas em casos em que a mesma não é exercida o que se conclui é que o valor a pagar por quilómetro é estabelecido pela ré. É que se depreende da matéria provada.
Por conseguinte, resultou demonstrada a verificação da característica prevista na alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º-A.

A plataforma digital exerce o poder de direção e determina regras específicas, nomeadamente quanto à forma de apresentação do prestador de atividade, à sua conduta perante o utilizador do serviço ou à prestação da atividade – alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º-A.
Em relação a esta alínea destaca-se que o mencionado exercício do poder de direção constitui uma conclusão jurídica que tem de ser resultar de factos.
Neste conspecto, escreveu-se no acórdão desta Secção Social de 09-05-2024, proferido no processo n.º 1613/23.0T8BJA.E1, publicado em www.dgsi.pt:
«Já no que respeita ao exercício ou não do poder de direção por parte da plataforma – à semelhança, de resto, do poder disciplinar previsto na alínea e) –, diremos que tal se afigura ser mais uma conclusão jurídica a extrair dos factos do que uma presunção ilidível: com efeito, como de modo assertivo escreveu João Leal Amado (Colóquios do Supremo Tribunal de Justiça, XII Colóquio de Direito do Trabalho, Novembro de 2022, As Plataformas Digitais e o Novo Art. 12.º-A do Código do Trabalho: Empreendendo ou Trabalhando?, pág. 124), «(…) se o prestador da atividade provar que a plataforma digital exerce sobre ele tanto o poder de direção como o poder disciplinar não parece que tenha mais nada a provar para que o tribunal conclua, diretamente e sem dar um salto no desconhecido, que está perante um contrato de trabalho”.».
Com referência à alínea, realça-se a seguinte factualidade:
9. A ré, através de APP Uber Eats, notifica o estafeta/distribuidor do pedido de cliente, juntamente com informação (nome e morada) acerca do ponto de recolha do pedido e do ponto de entrega do mesmo, da indicação do valor a receber pela viagem/trajeto, desde o estabelecimento parceiro/ponto de recolha até à morada indicada pelo cliente, e a modalidade de pagamento escolhida pelo cliente.
10. O estafeta/distribuidor aceitando o referido pedido, desloca-se ao estabelecimento/ponto de recolha, recolhe o(s) produto(s) no local indicado pela APP Uber Eats, altura em que regista o levantamento/receção do pedido e procede ao seu transporte até à morada/posição geográfica do cliente/utilizador, concretizando a entrega.
21. Através da APP Uber Eats, a ré fixa a ordem das entregas a realizar pelo AA, o qual não pode alterar a ordem de entregas que lhe são determinadas.
23. Através da APP Uber Eats, a ré disponibiliza orientações aos estafetas/distribuidores, especificando o que deve dizer ao cliente, como deve proceder à entrega, ou o que deve fazer quando o cliente não atende ou recusa a entrega.
Resulta deste contexto fáctico que depois de o prestador ter aceitado o pedido de entrega (que é indicado pela ré), tem de ir recolher o produto ao local especificamente indicado na aplicação e passa a ter de cumprir a ordem das entregas que é determinada pela ré, devendo, ainda, seguir as orientações que lhe são transmitidas relacionadas com a conduta que deve assumir no ato de entrega junto do cliente.
É pois manifesto que , após a manifestação da aceitação, a plataforma digital determina o serviço que o prestador irá executar e os termos em que o mesmo deve ser executado.
Tanto basta para que se considere que o Ministério Público logrou provar a verificação da circunstância prevista na alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º-A.

A plataforma digital controla e supervisiona a prestação da atividade, incluindo em tempo real, ou verifica a qualidade da atividade prestada, nomeadamente através de meios eletrónicos ou de gestão algorítmica -alínea c) do n.º 1 do artigo 12.º-A.
Para a circunstância mencionada relevam os seguintes factos:
13. Através da APP Uber Eats, e da geolocalização (GPS), a ré calcula os percursos a efetuar com base nos quais é determinado o preço da tarefa, e tem conhecimento, em tempo real, da localização e deslocações do distribuidor, bastando que este faça «login» na aplicação, o que é obrigatório para o desempenho das tarefas contratadas.
22. Através da APP Uber Eats, os clientes finais avaliam o distribuidor/estafeta.
36. A plataforma dispõe de um mecanismo de controlo de identidade dos estafetas, através do qual é pedido, de forma aleatória, aos estafetas que tirem um selfie (autorretrato) que é depois comparada com a fotografia registada na plataforma, para detetar situações de partilha de contas, que não são permitidas na Plataforma.
A partir da factualidade descrita deduz-se que a ré sabe, em tempo real, qual a localização e deslocações do prestador, o que lhe permite monitorizar a atividade do mesmo em termos de movimentação espacial/geográfica. Ademais, criou um mecanismo para controlar a identidade dos estafetas e verificar se não existem situações (não permitidas) de partilha de contas. Por fim, o distribuidor/estafeta está sujeito a uma avaliação, que permite, obviamente, aferir a qualidade da sua atividade.
Enfim, afigura-se-nos que também a verificação da circunstância prevista na alínea c) logrou ser demonstrada.

A plataforma digital restringe a autonomia do prestador de atividade quanto à organização do trabalho, especialmente quanto à escolha do horário de trabalho ou dos períodos de ausência, à possibilidade de aceitar ou recusar tarefas, à utilização de subcontratados ou substitutos, através da aplicação de sanções, à escolha dos clientes ou de prestar atividade a terceiros via plataforma – alínea d) do n.º 1 do artigo 12.º-A.
No que concerne à descrita circunstância realçam-se os seguintes factos provados:
14. O estafeta/distribuidor AA desempenhava as suas funções na cidade Local 1, na área de circunscrição territorial coberta pela atividade da plataforma.
15. Dentro do período de atividade daquela, ou seja, entre as 11.00 e as 24.00 horas.
32. O prestador de atividade pode recusar o pedido se o valor da tarefa apresentado pela plataforma não lhe for compensatório.
33. Até recolher a entrega, o prestador de atividade pode cancelar a entrega e não concluir a mesma.
37. É o prestador de atividade que escolhe a zona geográfica onde realiza a atividade, dentro de um leque de opções fornecido pela plataforma de acordo com a área coberta pela sua atividade, e o horário em que efetua as entregas.
38. O prestador de atividade decide quando se liga e desliga da plataforma.
39. O prestador de atividade pode passar dias, semanas ou meses sem se ligar à plataforma.
40. AA, entre 9 de outubro de 2023 e 2 de novembro de 2023, não utilizou uma única vez a plataforma para prestar a sua atividade, mas mantém a sua conta ativa.
41. Os prestadores de atividade podem bloquear clientes e estabelecimentos na plataforma.
45. Os prestadores de atividade podem substituir-se por outro estafeta registado na plataforma, no exercício da sua atividade.
47. Os prestadores de atividade podem prestar atividade a terceiros, incluindo via outra plataforma, tendo AA prestado, em simultâneo, num determinado período serviços de entregas para a ré e para a Glovo, sem necessidade de consentimento ou de dar conhecimento à Uber Eats.
Ora, com arrimo nestes factos, não se nos afigura que a verificação da circunstância em causa tenha resultado demonstrada, pois o que se depreende do destacado circunstancialismo fáctico é que a ré não restringia a autonomia do prestador em relação aos seguintes aspetos: escolha do horário das entregas (a única condicionante era o horário 11h-24h em que a atividade se desenvolvia); períodos de ausência (o prestador podia passar dias, semanas ou meses sem se ligar à plataforma); possibilidade de aceitar ou recusar tarefas (vejam-se pontos 32 e 33); possibilidade de subcontratar ou ser substituído (ver ponto 45); escolha de clientes (o prestador podia bloquear clientes e estabelecimentos na plataforma); e, por fim, prestação de atividades a terceiros via plataforma digital (vide ponto 47).
Em suma, não se verifica a alínea d) do n.º 1 do artigo 12.º-A do Código do Trabalho.

A plataforma digital exerce poderes laborais sobre o prestador de atividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras atividades na plataforma através de desativação da conta – alínea e) do n.º1 do artigo 12.º- A.
Ora, a menção respeitante ao “poder disciplinar” como elemento indiciário terá, tal como sucedeu com a referência ao “poder de direção” mencionado na alínea b), de ser extraída de factos, por se tratar de uma conclusão jurídica.
Recorrendo às palavras de Pedro Ferreira de Sousa, o poder disciplinar é «uma das características mais peculiares da relação laboral, uma vez que confere a uma das partes de uma relação de direito privado o poder de, por si própria e no contexto dessa mesma relação, sancionar o incumprimento contratual imputado à contraparte, mais concretamente, in casu, a violação dos deveres jurídico-laborais decorrentes da relação do contrato de trabalho».[3]
O poder disciplinar corresponde, desta forma, a um poder punitivo do empregador, que visa atuar sobre condutas do trabalhador consideradas censuráveis no contexto da relação laboral estabelecida, e só pode ser exercido durante a pendência do contrato.
Ora, percorrido o elenco dos factos provados, não encontramos um único facto que evidencie que a ré, de algum modo, exercia poder disciplinar sobre o prestador, no sentido de ter a possibilidade de sancionar um comportamento do prestador que não respeitasse as suas obrigações/deveres ou os padrões de comportamento determinados pela ré.
Deste modo, o indício analisado não se verifica no caso que se aprecia.

Os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencem à plataforma digital ou são por esta explorados através de contrato de locação – alínea f) do n.º 1 do artigo 12.º-A.
Sobre este indício de laboralidade, destaca-se a seguinte factualidade assente:
2. A ré presta serviços à distância através de meios eletrónicos, nomeadamente sítio da internet https: //www.uberbeats.com/pt/ ou da aplicação informática, pertencentes à plataforma “APP UBER EATS” a pedido de utilizadores que solicitam aqueles serviços, designadamente a entrega de refeições confecionadas.
3. A partir do dia 1 de maio de 2023, AA, passou a desempenhar as funções de estafeta/distribuidor de refeições através e por recurso à plataforma Uber Eats.
4. Para o efeito, AA registou-se na aplicação informática APP Uber Eats.
5. Para efetuar o referido registo teve de facultar fotografia de perfil, cópias dos seus documentos de identificação, da sua declaração de início de atividade, documentos da viatura a utilizar, certificado de registo criminal, identificação do seu IBAN, do seu nº de telemóvel e endereço eletrónico.
6. A ré validou o registo e atribuiu uma conta na aplicação ao AA (…).
7. Para o desempenho das tarefas de estafeta/distribuidor, AA necessitava de utilizar telemóvel com ligação à internet, meio de transporte próprio, no caso um motociclo, mochila isotérmica ou saco de entrega, da sua propriedade, e utilizar a aplicação “APP Uber Eats”.
17. AA, nas referidas funções de estafeta/distribuidor, faz uso do telemóvel com nº ...09 e do endereço eletrónico ..........@....., mantendo a aplicação e o GPS ligados à internet.
46. Os prestadores de atividade podem escolher a forma como se apresentam, nomeadamente a roupa e o equipamento que querem usar (incluindo utilizar a marca de concorrentes) e o veículo (mota ou bicicleta) que utilizam para efetuar as entregas.
Infere-se deste contexto fáctico que para o exercício das funções de estafeta/distribuidor AA necessitava de utilizar: telemóvel com ligação à internet, meio de transporte próprio (no caso, era um motociclo), mochila isotérmica ou saco de entrega, da sua propriedade, e a aplicação “APP Uber Eats”.
Não resultou demonstrado que o telemóvel, o motociclo e a mochila ou saco de entrega pertencessem à ré.
Já a aplicação informática “APP Uber Eats”, que, sem dúvida, era imprescindível para o exercício da atividade, a mesma era gerida pela ré.
Todavia, essa aplicação informática não se nos afigura enquadrável no indício de laboralidade previsto na alínea f) que analisamos.
No acórdão desta Secção Social de 12-09-2024, prolatado no processo n.º 3842/23.5T8PTM.E1, consultável em www.dgsi.pt, escreveu-se o seguinte:
«Já quanto à característica prevista na alínea f) do normativo legal em referência (os equipamentos e instrumentos de trabalho utilizados pertencerem à plataforma digital ou serem por esta explorados através de contrato de locação), é certo que no exercício da sua atividade profissional a ré gere a aplicação informática/plataforma digital “Glovoapp”, através da qual certos estabelecimentos comerciais oferecem os seus produtos e, quando solicitados pelos utilizadores/clientes, através de uma aplicação móvel ou através da internet, propõe a entrega dos produtos encomendados, serviço a efetuar pelos estafetas que, para esse efeito, se encontram registados na plataforma (factos n.ºs 2 a 4).
A aplicação informática/plataforma digital gerida pela ré apresenta-se, pois, indispensável, conditio sine qua non, para o exercício da atividade profissional em causa.
Mas será tal suficiente para se considerar verificada a característica em causa?
Assim não entendemos.
Desde logo, como resulta do n.º 50 da matéria de facto, são os estafetas que suportam os custos de aquisição, manutenção e reparação dos veículos, mochilas, luvas capacetes e telemóveis que usam para procederem às entregas e para se ligarem à aplicação da ré.
Particularmente relevante apresenta-se o telemóvel: a aplicação informática tem, necessariamente, que nele ser instalada, pois só assim se podem ligar à aplicação da ré e, enfim, desencadear todo o procedimento tendo em vista a entrega dos produtos.
É certo que a presunção de laboralidade do artigo 12.º-A se encontra adaptada e visa precisamente situações de trabalho nas plataformas digitais, pelo que em tais situações terá que existir, necessariamente, uma aplicação informática/plataforma digital para o exercício da atividade.
Porém, afigura-se que para que se verifique a característica em análise exige-se mais, exige-se que alguns equipamentos/instrumentos de trabalho pertençam à ré, pois de outro modo, ou seja, se fosse suficiente para a verificação da característica que a ré gerisse uma aplicação informática, então seria redundante a existência desta característica, pois a própria atividade em causa, trabalho em plataforma digital, já conteria o requisito/caraterística da alínea f).
Por consequência, entende-se não se verificar a característica prevista na alínea f).».
Não vislumbramos qualquer razão para alterar o entendimento manifestado no mencionado aresto.
Assim, a utilização da aplicação informática/plataforma digital “APP Uber Eats”, não se enquadra na alínea f) do n.º 1 do artigo 12.º-A.
Como tal, não se verifica este indicador de laboralidade.

Em suma, ainda que o Ministério Público não tenha logrado provar a verificação das circunstâncias previstas nas alíneas d) a f) do n.º 1 do artigo 12.º-A, foi bem sucedido na demonstração dos indicadores de laboralidade elencados nas alíneas a) a c) da referida norma, o que seria suficiente para o preenchimento da presunção legal de contrato de trabalho no âmbito de plataforma digital.
Mas avancemos para o próximo passo.
Nos termos previstos pelo n.º 4 do referido preceito legal, a presunção prevista no n.º 1 pode ser ilidida nos termos gerais, nomeadamente se a plataforma digital fizer prova de que o prestador de atividade trabalha com efetiva autonomia, sem estar sujeito ao controlo, poder de direção e poder disciplinar de quem o contrata.
Será que no caso sub judice a ré logrou ilidir a presunção?
Entendemos que sim e passamos, seguidamente, a explicar porquê.
Do conjunto dos factos assentes, deduz-se a seguinte materialidade relevante:
- o prestador de atividade pode decidir sobre o modelo que prefere de prestação de atividade - diretamente ou através de intermediário (ponto 30 conjugado com os pontos 25 a 28);
- o prestador pode recusar o serviço proposto se o valor da tarefa apresentado pela plataforma não lhe for compensatório (ponto 32);
- até recolher a entrega, o prestador pode cancelar o serviço e não concluir o mesmo (ponto 33);
- o prestador pode receber o pagamento dos serviços executados quando quiser, através da ferramenta "Flex Pay" (ponto 34);
- é o prestador que escolhe a zona geográfica onde realiza a atividade, dentro de um leque de opções fornecido pela plataforma, e o horário em que efetua as entregas (ponto 37);
- o prestador decide quando se liga e desliga da plataforma e pode passar dias, semanas ou meses sem se ligar (ponto 39);
- além disso, pode bloquear clientes e estabelecimentos na plataforma (ponto 41);
- o prestador pode fazer-se substituir por outro estafeta registado na plataforma, no exercício da sua atividade (ponto 45);
- pode, igualmente, escolher a forma como se apresenta, nomeadamente a roupa e o equipamento que quer usar (incluindo utilizar a marca de concorrentes) e o veículo (mota ou bicicleta) que utiliza para efetuar as entregas (ponto 46);
- não lhe está vedada a prestação de atividades a terceiros, incluindo via outra plataforma, tendo AA prestado, em simultâneo, num determinado período serviços de entregas para a ré e para a Glovo, sem necessidade de consentimento ou de dar conhecimento à Uber Eats (ponto 47);
- o prestador AA estava inscrito como trabalhador por conta própria nas Finanças e na Segurança Social (ponto 6).
Ora, a factualidade descrita, no nosso entender, revela que a atividade desenvolvida pelo prestador é realizada com efetiva autonomia.




Comecemos por “desconstruir” os indicadores de laboralidade que resultaram provados.
Vejamos.
Embora, seja a ré quem fixa a retribuição por cada entrega que é paga ao prestador (alínea a) do n.º 1 do artigo 12.º A do Código do trabalho), este tem autonomia para recusar a realização do serviço proposto se o valor pago não lhe for compensatório.
Ainda que seja a ré quem indica o serviço que o prestador irá executar e os termos em que o mesmo deve ser executado (alínea b) do n.º 1 do artigo 12.º-A), o prestador tem, a montante, autonomia para aceitar (ou não) a realização do serviço. Ou seja, é o prestador que tem o domínio da vontade a respeito de querer ou não realizar a tarefa. Se aceitar executá-la então fá-la-á de acordo com os termos estabelecidos pela ré, mas o negócio jurídico celebrado não o vincula a ter de realizar o serviço indicado.
É também verdade que a ré controla, em tempo real, a localização e deslocações do prestador e que criou um mecanismo para controlar a identidade dos estafetas e verificar se não existem situações (não permitidas) de partilha de contas, assim como sujeita o distribuidor/estafeta a uma avaliação sobre a qualidade do serviço prestado (alínea c) do n.º 1 do artigo 12.º A). Todavia, de novo, o prestador só se sujeita a tal controlo, fiscalização e supervisão se quiser, pois a relação contratual estabelecida permite-lhe recusar o serviço, e, consequentemente, não se sujeitar a esse domínio. Aliás, nem está obrigado a ligar-se à aplicação informática.
Para além dos aspetos focados, a autonomia/independência do prestador revela-se, ainda, de outras formas. Por exemplo:
- o prestador não perde o domínio do seu local de trabalho: ele é que escolhe a zona geográfica em que realiza a atividade entre várias zonas possíveis;
- o prestador não perde o domínio do seu tempo de trabalho: ele é que decide quando é que se liga à plataforma (sendo que não tem qualquer obrigação de se ligar à plataforma, como já referimos), bem como o horário em que efetua as entregas inserido na janela de tempo em que a ré desenvolve a sua atividade;
- o prestador define o modelo em que prefere a prestação da atividade e pode selecionar clientes e estabelecimentos: ele é que escolhe se quer intervir na plataforma diretamente ou através de intermediário e pode bloquear, na plataforma, clientes e estabelecimentos que não queira.
Enfim, o plasmado evidencia que a ré não determina nem controla aspetos relevantes da prestação da atividade.
Continuando…
Por ser absolutamente incompatível com a existência de um contrato de trabalho, destaca-se que resultou demonstrado que o prestador pode fazer-se substituir por outro estafeta registado na plataforma, no exercício da atividade.
Ora, como é sabido o contrato de trabalho tem um carácter intuitu personae, ou seja, é um contrato em que apenas uma determinada pessoa pode cumprir o acordado, uma vez que foi celebrado em razão das suas características pessoais.
A este respeito, Maria do Rosário Palma Ramalho, refere que o contrato de trabalho «é um contrato intuitus personae, pela essencialidade das características pessoais do trabalhador para o empregador. Esta característica justifica que o trabalhador tenha que ser sempre uma pessoa singular, como decorre, aliás, da noção legal de contrato de trabalho (…) e que a prestação laborativa seja infungível, o que inviabiliza a substituição do trabalhador por outra pessoa no cumprimento dos seus deveres contratuais.».[4]
No acórdão desta Secção Social de 12-09-2024, reportado ao processo n.º 3842/23.5T8PTM.E1, escreveu-se sobre esta matéria:
«Particularmente decisivo apresenta-se o facto do estafeta poder subcontratar outro prestador de serviço para realizar a entrega: sendo o contrato de trabalho um contrato intuitu personae, em que as qualidades pessoais do trabalhador são elementos essenciais para a conformação da relação de trabalho, a possibilidade de subcontratação de outro prestador da atividade não se harmoniza com tal caraterística.
Como bem assinala o tribunal a quo, através da possibilidade de os estafetas se fazerem substituir por outras pessoas o que demonstra é que à ré não interessa a atividade em si daquele concreto estafeta, mas sim o resultado da mesma (entrega dos produtos), caraterística do contrato de prestação de serviço.».
A reforçar que à ré apenas interessava o resultado do serviço prestado, salienta-se que para esta era absolutamente indiferente que o prestador prestasse, igualmente e em simultâneo, atividade semelhante para terceiros, incluindo via plataforma, o que efetivamente veio a acontecer com AA que, num determinado período prestou atividade para a ré e para a Glovo.
Aliás, para a ré era até indiferente que o prestador utilizasse roupa e equipamento com marca de empresas concorrentes, o que atesta que o que lhe interessava era que as entregas fossem feitas (resultado).
Para finalizar, existem outros factos, ainda que menos significativos, que contextualizados com os demais, apontam para a existência de uma prestação de serviços, como sejam o facto de AA estar inscrito como trabalhador por conta própria nas Finanças e na Segurança Social.

Em suma, ainda que na relação contratual que se aprecia existam alguns elementos indiciadores da existência de um contrato de trabalho, existem factos e contraindícios, em quantidade e qualidade, que são indicadores de que o trabalho do prestador era feito com efetiva autonomia (característica típica de um contrato de prestação de serviços), e que o que interessava à plataforma digital era o resultado desse trabalho
Por conseguinte, afigura-se-nos que a ré logrou afastar a presunção legal consagrada no artigo 12.º-A do Código do Trabalho.
Destarte, impõe-se concluir que não se demonstrou a existência de um contrato de trabalho entre a ré e AA, pelo que o recurso de apelação tem de improceder.
*
V. Ampliação do recurso
Juntamente com as suas contra-alegações, a ré veio, a título subsidiário, ampliar o objeto do recurso, tendo para o efeito impugnado a decisão da matéria de facto e reclamado o não reconhecimento da existência de uma relação laboral entre si e AA.
Ora, improcedendo o recurso de apelação, mostra-se prejudicado o conhecimento da ampliação do recurso.
Neste sentido, o acórdão da Relação do Porto de 10-01-2022, relativo ao processo n.º 2344/20.6T8PNF.P1, acessível em www.dgsi.pt:
«III - A ampliação do âmbito do recurso é sempre subsidiária, no sentido de que apenas é conhecida se a apelação proceder. Improcedendo a apelação, a ampliação do âmbito do recurso não é conhecida.».
Nesta sequência, não conheceremos da ampliação do recurso.
-
Concluindo, o recurso de apelação interposto pelo Ministério Público terá de improceder e a decisão da 1.ª instância será confirmada, ainda que com distinta fundamentação.
Sem custas – artigo 4.º , n.º 1, alínea a) do Regulamento de Custas Processuais, artigo 9.º do Estatuto do Ministério Público e artigo 186.º-K do Código de Processo do Trabalho).
*
VI. Decisão
Nestes termos, acordam os juízes da Secção Social do Tribunal da Relação de Évora em julgar o recurso improcedente, e, em consequência, ainda que com distinta fundamentação, mantém-se a decisão recorrida.
Sem custas.
Notifique.

Évora, 7 de novembro de 2024
Paula do Paço
João Luís Nunes
Mário Branco Coelho (vota vencido)

Declaração de voto (vencido):
Concordo que estão verificadas as características que fazem presumir a existência de contrato de trabalho, a que se referem as als. a), b) e c) do n.º 1 do art. 12.º-A do Código do Trabalho.
Discordo da posição maioritária no que concerne à não verificação das características identificadas nas restantes alíneas daquele normativo.
*
Quanto à al. d)restrição pela plataforma digital da autonomia do prestador de actividade quanto à organização do trabalho – está demonstrado que a Ré calcula os percursos a efectuar com base nos quais é determinado o preço da tarefa (ponto 13), atribui incentivos em horas de maior afluência de pedidos (ponto 16), fixa a ordem das entregas a realizar pelo prestador, o qual não pode alterar a ordem de entregas que lhe são determinadas (ponto 21), e dispõe de um sistema de avaliação dos prestadores, através dos clientes finais (ponto 22).
Por outro lado, das condições gerais do contrato transcrito no ponto 29, resulta que a Ré tem o direito de reduzir a taxa de entrega se “o prestador cancelou um pedido após este ter sido aceite e, portanto, o serviço de entrega não foi prestado” – cláusula 6.ª al. g) – e também tem o direito de restringir o acesso do prestador à App, “no caso de uma alegada violação das obrigações do Parceiro de Entregas Independente, (…) incluindo quando recebemos uma reclamação de segurança ou potencial incumprimento das leis e regulamentos aplicáveis, bem como dos costumes locais e boas práticas, ou sempre que necessário para a protecção de terceiros, ou cumprimento da legislação aplicável, ou decorrente de ordem judicial ou administrativa” – cláusula 11.ª al. b).
Por outro lado, o prestador não é livre de se fazer substituir por uma pessoa qualquer à sua escolha.
Para além de sofrer uma redução da taxa de entrega caso cancele o pedido após ter sido aceite – o que constitui evidentemente um forte incentivo a não cancelar o pedido – também só se pode fazer substituir por outro “Parceiro de Entrega Independente” desde que este tenha uma conta activa na App da Ré, caso em que o substituto efectuará o serviço de entrega “no seu interesse e sob o seu controlo e responsabilidade” – cláusula 5.ª al. o).
Ou seja, o que temos aqui é uma mera substituição no serviço de entregas entre prestadores com conta activa na Ré, ambos sujeitos às mesmas regras e condições impostas por esta, sendo que se ocorrer a substituição, a Ré terá conhecimento do facto através da sua aplicação e será o substituto quem receberá a taxa de entrega, por ter efectuado o serviço no seu interesse e sob a sua responsabilidade – o que constitui outro incentivo a não ocorrerem substituições, sob pena do prestador perder o direito a auferir a retribuição devida pela entrega que lhe estava atribuída.
A circunstância do prestador atribuir incentivos em horas de maior afluência de pedidos, fixar a ordem das entregas a realizar pelo prestador, que não pode alterar, e os clientes finais avaliarem os prestadores (onde se contará a pontualidade na entrega, já que o prestador não é livre de escolher a hora em que fará esse serviço – se uma refeição foi encomendada para as 12h30, o prestador não é livre de a entregar às 20h00, pois se o fizer o cliente não deixará de fazer o respectivo reparo e queixar-se à plataforma), associados à possibilidade de restrição no acesso à App nos termos amplos que a cláusula 11.ª al. b) permite – inclusive, por “alegada violação d(e) obrigações” e “potencial incumprimento das leis e regulamentos”, o que significa que a restrição de acesso pode acontecer sem prova efectiva de infracção – tudo isto demonstra que o prestador não tem efectiva autonomia na organização da sua actividade.
É incentivado a prestar a actividade nas horas de maior procura, tem de seguir a ordem de entregas que lhe é imposta, é pago por um percurso calculado pela Ré, mesmo que restrições de trânsito o obriguem a efectuar outro, está sujeito a avaliação pelos clientes (onde se conta a pontualidade na entrega), e pode sofrer restrições de acesso ao serviço de entregas por motivos imponderáveis ou com reduzida justificação – e como tal, no acesso à sua retribuição.
Por estes motivos, considero que esta característica está demonstrada – existem efectivas restrições à autonomia do prestador de actividade quanto à organização do seu trabalho, que são incompatíveis com o padrão de prestação de um profissional independente.
*
Quanto à al. e)exercício de poderes laborais sobre o prestador de actividade, nomeadamente o poder disciplinar, incluindo a exclusão de futuras actividades na plataforma através de desactivação da conta – temos não apenas a possibilidade de restrição de acesso à App que consta da cláusula 11.ª al. b) – que é equivalente a uma sanção disciplinar conservatória da relação laboral – mas também o poder da Ré de excluir o prestador de futuras actividades na plataforma, expressamente prevista na cláusula 16.ª al. b).
Entre os vários motivos que ali estão previstos para a Ré excluir o prestador, inclusive com a possibilidade de não existir aviso prévio de 30 dias (consequentemente, sem qualquer contraditório), contam-se a infracção do contrato, a denúncia por “ter agido de forma não segura”, ou o “comportamento fraudulento”, incluindo nesta categoria várias acções, como partilhar a conta com terceiros não autorizados, aceitar propostas sem intenção de as entregar, induzir clientes a cancelar os seus pedidos, criar contas falsas, solicitar reembolso de taxas não geradas, solicitar propostas fraudulentas, interromper o funcionamento das aplicações e do GPS da Uber, alterar as configurações do telefone, fazer uso indevido de promoções, contestar cobranças por motivos fraudulentos ou ilegítimos (o que significa que efectivamente não as pode contestar), criar contas duplicadas, ou fornecer informações falsas ou documentos falsificados.
Para além da possibilidade de aplicar sanções conservatórias da relação – a restrição de acesso prevista na cláusula 11.ª al. b) – a Ré dispõe de um autêntico poder disciplinar, podendo determinar a cessação da actividade pelo prestador por infracções ao contrato, em moldes semelhantes ao de um empregador em sede de contrato de trabalho, pelo que também esta presunção está demonstrada.
*
Quanto à al. f)utilização de equipamentos e instrumentos de trabalho pertencentes à plataforma digital – também aqui estamos em desacordo.
Com efeito, não pode ser esquecido que os prestadores são obrigados a utilizar uma das ferramentas de trabalho mais poderosas inventadas pela humanidade, pertencente à Ré e desenvolvida para esta prosseguir o seu escopo económico: o algoritmo, por si criado, por si desenvolvido e por si administrado.
Na “Proposta de directiva relativa à melhoria das condições de trabalho em plataformas digitais” – com o procedimento legislativo concluído no passado dia 14.10.2024, com a aprovação no Conselho Europeu, aguardando-se a sua publicação no Jornal Oficial da União Europeia – escreve-se o seguinte no parágrafo 34 do Preâmbulo: “As plataformas de trabalho digitais têm uma visão completa de todos os elementos factuais que determinam a natureza jurídica da relação, em especial os algoritmos através dos quais gerem as suas operações. Por conseguinte, as plataformas de trabalho digitais deverão ter o ónus da prova quando alegam que a relação contratual em causa não é uma relação de trabalho.”
É através do algoritmo, alojado nos seus servidores, que a Ré gere toda a sua operação.
Por isso exige que os prestadores tenham um telemóvel com ligação à internet e descarreguem uma aplicação de acesso – para ser estabelecida a ligação permanente com os servidores da Ré onde está alojado o seu algoritmo – e que o sistema de geolocalização (GPS) esteja sempre activado (impondo sanções disciplinares caso seja interrompido o funcionamento da aplicação e do GPS).
Deste modo, a Ré tem absoluto controlo sobre a actividade do prestador.
É ela – através do seu algoritmo – quem recebe as propostas dos clientes, quem identifica quais os estafetas mais próximo para efectuar a entrega e lhes apresenta o serviço, quem identifica o prestador que aceitou a entrega, quem define a ordem das entregas, quem define o percurso a percorrer, quem define a taxa de entrega, quem procede à autofacturação, quem segue o percurso que o prestador toma, quem recebe as avaliações dos clientes, e quem exige o auto-retrato para detectar situações de partilha de contas.
O algoritmo é tão sofisticado, gere de forma tão eficaz as operações da Ré, que dispensa outras ferramentas de trabalho, como uniforme, terminais de pagamento (são feitos através da aplicação) ou meios de transporte pertencentes à plataforma.
Não são necessários, o que é relevante é que os prestadores estejam ligados aos servidores da Ré, com a internet e o GPS ligados em permanência, que o algoritmo fará a gestão de toda a actividade e a Ré atingirá o seu objecto lucrativo.
A este propósito, Pedro Santos – in “Qualificação contratual: o “estafeta” e a plataforma digital”, publicado no Prontuário de Direito do Trabalho, 2023-II, págs. 235-276, estando a passagem citada a págs. 262 – escreve o seguinte: “mesmo que todos os equipamentos e instrumentos de trabalho corpóreos sejam dos prestadores da actividade, existe um instrumento de trabalho que consideramos essencial, que é propriedade da plataforma digital. Esse instrumento de trabalho é a aplicação informática em que a plataforma se consubstancia e/ou utiliza e que permite o exercício de toda a actividade, constituindo a pedra angular de toda a organização desta. Não é só a aplicação que permite o desenvolvimento de toda a actividade, a angariação de clientes e pedidos, a conexão com os restaurantes e com os distribuidores e a organização de toda a actividade de entrega, mas, sobretudo, coloca na disposição da plataforma o conhecimento de toda a informação sobre o negócio e o controlo da informação, dos clientes, dos fornecedores e dos distribuidores.”
Enfim, porque para nós é uma evidência que os prestadores utilizam um instrumento de trabalho pertencente à Ré e essencial a toda a sua actividade, também esta característica está demonstrada.
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Em resumo, considero que todas as características enumeradas nas seis alíneas do art. 12.º-A n.º 1 do Código do Trabalho, foram demonstradas.
E assim sendo, considero que não é possível afastar a presunção de existência de contrato de trabalho, com as consequências previstas no n.º 9 do mesmo art. 12.º-A.
Tanto mais que o prestador não dispõe de uma organização empresarial própria e autónoma, estando plenamente inserido na estrutura organizativa da Ré.
O prestador não pode gerir sozinho a actividade, e também não pode decidir as condições de prestação da actividade – tem de aceitar as que lhe são impostas pela Ré, que não pode negociar.
Estamos perante um contrato de trabalho de adesão, com cláusulas formuladas unilateralmente pela Ré, destinado a pessoas indeterminadas, que apenas se limitam a aderir, sem possibilidade de discussão ou de introdução de modificações.
A possibilidade do prestador se poder substituir por outro, nos termos restritos permitidos pela Ré, que acima expusemos, não afasta a presunção – significa apenas que um trabalhador da Ré foi substituído por outro trabalhador da Ré, nada mais.
A este respeito, João Leal Amado e Teresa Coelho Moreira – in “Plataformas digitais, qualificação do contrato e substituição de estafetas: a “bala de prata”?”, publicado na Revista Internacional de Direito do Trabalho, Junho de 2024, n.º 6, págs. 135 e ss., estando a passagem citada a págs. 159 – escrevem o seguinte: “a pessoalidade do contrato de trabalho, isto é, a circunstância de a obrigação do trabalhador ser pessoal, infungível, quiçá intuitu personae, não autoriza que, perante um contrato em que se preveja a faculdade de o prestador de serviços se fazer substituir por outrem no cumprimento desta ou daquela prestação, se conclua, quase que inevitavelmente, pela natureza não laboral e não subordinada de tal relação. Pela nossa parte, afirmamos, sem hesitar, que, num contrato duradouro como é o contrato de trabalho, o facto de o trabalhador se fazer substituir por outrem no cumprimento de certas prestações não descaracteriza o vínculo jurídico-laboral.”
E mais adiante, a págs. 161, acrescentam o seguinte: “não há qualquer incompatibilidade ontológica entre o contrato de trabalho e a possibilidade de o trabalhador se fazer substituir por outrem, quando essa substituição é consentida pela entidade empregadora. Diferentemente, essa incompatibilidade ontológica já existirá se o suposto trabalhador se puder fazer substituir por outrem, sem a vontade da contraparte, pois, isso sim, já não é compatível com o elemento de pessoalidade, característico de um contrato de trabalho.”
Mas este não é o caso, a liberdade de substituição contra a vontade da Ré, simplesmente não existe. Esta controla todos os passos da actividade, não admite prestadores não registados na sua plataforma, e o procedimento de substituição é por esta controlado e autorizado.
Eis porque declararia a existência de contrato de trabalho.
Évora, 7 de Novembro de 2024
a) Mário Branco Coelho
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[1] Relatora: Paula do Paço; 1.º Adjunto: João Luís Nunes; 2.º Adjunto: Mário Branco Coelho
[2] Esclarece-se que o tribunal a quo aplicou a presunção prevista no artigo 12.º do Código do Trabalho, por ter considerado, na nossa perspetiva incorretamente, que a presunção consagrada no artigo 12.º-A do mesmo compêndio legal ainda não estava em vigor na data em que se iniciou a relação contratual sub judice.
[3] In “O procedimento disciplinar laboral”, Almedina, 2,ª dição, pág. 25.
[4] In “Tratado de Direito do Trabalho, Parte II - Situações Laborais Individuais”, 6.ª edição, 2016, págs. 99 e 100.