Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ISABEL DE MATOS PEIXOTO IMAGINÁRIO | ||
Descritores: | QUEBRA DE SIGILO BANCÁRIO ACESSO AO DIREITO VERDADE OBJECTIVA | ||
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Data do Acordão: | 06/06/2024 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
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Sumário: | O dever de segredo deve ceder, por prevalência do interesse do acesso ao direito e da descoberta da verdade material, com vista à realização da justiça, desde que se apure que a pretendida informação é instrumentalmente determinante, necessária e imprescindível para demonstrar a factualidade controvertida. (Sumário da Relatora) | ||
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Decisão Texto Integral: | Acordam os Juízes no Tribunal da Relação de Évora I – As Partes e o Litígio Os presentes autos consistem no incidente para quebra do sigilo suscitado no âmbito da ação declarativa de condenação que (…) move a (…), formulando os seguintes pedidos: a) a condenação do Réu a reconhecer que valores de depósitos à ordem e a prazo e outros títulos de investimento mobiliário bem como de diversos seguros Seguro Ramo Poupança/Capitalização e poupança reforma acima identificados e mais que se apurarem integram o património comum do casal; b) A condenação do Réu a reconhecer que o montante de resgate das apólices de seguro do ramo vida «Renda Certa 2002 – 2.ª Série», no valor de € 700.000,00 e respectivos juros vencidos integram o património comum do casal; c) A condenação do Réu a perder em benefício da Autora os direitos que possui sobre os prédios identificados no artigo 9º desta petição e do direito aos valores referidos nas alíneas anteriores. Em sede de contestação, o Réu pugnou pela improcedência da ação, invocando a realização de investimentos que se revelaram ruinosos, inexistindo outros bens ou direitos a integrar o património comum do casal. Dirigido ao Banco de Portugal pedido de informação relativa à identificação de contas e produtos financeiros da titularidade do Réu, foi por esta instituição invocado o dever legal de segredo a que está obrigada, recusando prestar a informação solicitada. Aludindo ao facto de estar em discussão a sonegação de bens por parte do Réu do património do casal, encontrando-se pendente processo de inventário subsequente a divórcio (no qual as partes foram remetidas para os meios comuns quanto à reclamação apresentada pela autora relativa à falta da relação dos depósitos a prazo e à ordem, títulos de investimento mobiliário e diversos seguros do ramo poupança / capitalização e poupança / reforma), que não foi dado o consentimento do respetivo titular, que não se verifica qualquer uma das exceções ao segredo previstas no artigo 79.º do Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31/12, alterado pela Lei n.º 15/2019, de 12/02, foi proferido despacho considerando legítima a recusa do Banco de Portugal na prestação da informação, suscitando o incidente de quebra do sigilo bancário perante o Tribunal da Relação para que o Banco de Portugal possam informar a identificação das entidades bancárias onde as partes eram titulares de contas bancárias, à ordem ou a prazo, e de outras aplicações financeiras e respetivos saldos, existentes à data de 05/03/2003. II – Fundamentos A – Dados a considerar Aqueles que resultam do relato que antecede B – O Direito Em sede de instrução da causa, o artigo 417.º do CPC consagra o dever de cooperação para a descoberta da verdade, dever esse que recai sobre todas as pessoas, sejam ou não partes na causa. Todas têm o dever de prestar a sua colaboração para a descoberta da verdade, respondendo ao que lhes for perguntado, submetendo-se às inspeções necessárias, facultando o que for requisitado e praticando os atos que forem determinados. Aqueles que recusem a colaboração devida são condenados em multa, sem prejuízo dos meios coercitivos que forem possíveis, acarretando a inversão do ónus da prova se o recusante for parte, nos moldes estatuídos no n.º 2 da referida disposição legal. Nos termos do disposto na alínea c) do n.º 3 do artigo 417.º do CPC, a recusa é, porém, legítima se a obediência importar violação do sigilo profissional ou de funcionários públicos, ou do segredo de Estado, sem prejuízo do disposto no n.º 4 que, por sua vez, estabelece que deduzida a escusa com tal fundamento, é aplicável, com as adaptações impostas pela natureza dos interesses em causa, o disposto no processo penal acerca da verificação da legitimidade da escusa e da dispensa do dever de sigilo invocado. O que nos conduz para o regime inserto no artigo 135.º do CPP, cujo n.º 2 estabelece que cabe, em primeira linha, aferir da legitimidade da escusa; mostrando-se justificada a escusa, atento o disposto no n.º 3 do referido preceito legal, cumpre suscitar o incidente perante o tribunal superior, que pode decidir pela quebra do segredo, segundo o princípio da prevalência do interesse preponderante, nomeadamente tendo em conta a imprescindibilidade dos elementos e informações para a descoberta da verdade. Efetivamente, «o dever de cooperação para a descoberta da verdade tem como limite (para além do respeito pelos direitos fundamentais enquanto limite absoluto imposto constitucionalmente), o acatamento do dever de sigilo, ou seja, o juiz não pode, pelo menos em absoluto, ao abrigo do dever de cooperação, provocar, por via da requisição de alguma informação, a violação pela entidade requisitada do segredo profissional a que a mesma se encontre legalmente vinculada.»[1] Importa, por via do dever do sigilo, proteger os direitos pessoais, como o bom nome e reputação e a reserva da vida privada, bem como o interesse da proteção das relações de confiança entre as instituições bancárias e os seus clientes. No caso em apreço, está em causa o dever de segredo das instituições de crédito, regulado nos artigos 78.º e 79.º do RGICSF, aprovado pelo DL n.º 298/92, de 31 de dezembro, sendo certo que estão «sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias» – artigo 78.º, n.º 2, do RGICSF. Porém, «os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição» – artigo 79.º, n.º 1, do RGICSF. Em face da legitimidade da escusa deduzida, cumpre apreciar se a salvaguarda do dever de segredo imposto por lei ao Banco de Portugal, nos termos do citado regime legal, deve ou não ceder face ao outro interesse conflituante, o interesse da efetiva realização dos fins da atividade judicial, de que é expressão o artigo 417.º, n.º 1, do CPC. Ora, o dever de sigilo imposto às instituições de crédito clientes salvaguarda desde logo o interesse público, mantendo a confiança no sistema bancário, o que é indispensável ao bom funcionamento dos bancos e da economia. Tem essencialmente em vista, no entanto, a proteção de interesses particulares, dos clientes bancários, o que é revelado pelo carácter disponível do direito ao segredo, que pode ser levantado por autorização do respetivo titular. Então, a confiança a manter radica, em última análise, no cliente do banco.[2] Em termos jurídico-positivos, o segredo bancário assenta nos preceitos constitucionais alusivos à intimidade da vida privada e familiar (cfr. artigo 26.º, n.º 1, da CRP) e à integridade moral das pessoas (cfr. artigo 25.º da CRP), valores que resultariam colocados em crise mediante a revelação a terceiros dos elementos disponíveis nos serviços das instituições bancárias. O segredo bancário deriva ainda da existência da relação jurídica bancária, de base contratual, constituída mediante a celebração do contrato de abertura de conta, no âmbito do qual está garantido o direito do cliente ao sigilo e o correspondente dever para a instituição, o que sempre se imporia como dever acessório, imposto pela boa-fé, nos termos previstos no artigo 762.º, n.º 2, do CC.[3] Cabe, no entanto, ao Estado o dever de garantir a realização dos direitos dos cidadãos, assegurando-lhes o acesso ao direito e a tutela jurisdicional efetiva, em observância do preceituado nos artigos 20.º da CRP e 2.º do CPC. Logo, o direito do cliente ao sigilo não é um direito absoluto, podendo ceder perante aqueloutros direitos. Importa, pois, ponderar a natureza civil dos interesses em causa e a concreta proporcionalidade entre a restrição do direito à reserva na intimidade da vida privada (artigo 26.º da CRP) que a dispensa do sigilo irá acarretar, por um lado, e, por outro lado, os concretos interesses da contraparte[4], sendo de dispensar a confidencialidade e decidir pela inexistência de sigilo, no caso em concreto, se forem superiores os valores da justiça, com a necessária ponderação de interesses, limitando a quebra do sigilo apenas e tão só ao estritamente necessário. A jurisprudência que vem sendo afirmada nesta matéria assenta nos seguintes vetores: - o interesse da «boa administração da justiça» prevalece sobre o interesse da «proteção da posição do consumidor de serviços financeiros» ou mesmo da manutenção do clima de confiança na banca;[5] - quando a informação solicitada ao banco é necessária e adequada para que o interesse público da realização da justiça se sobreponha claramente ao interesse privado, verificam-se os requisitos legais para a quebra do sigilo bancário;[6] - justifica-se a medida excecional da quebra do segredo bancário, por prevalência do interesse de acesso ao direito e da descoberta da verdade material, quando a prova dos factos, sem tal quebra, possa ficar seriamente comprometida e com isso, eventualmente, a justa decisão da causa;[7] - existindo a necessidade de verificar os movimentos bancários realizados pelas partes na gestão da empresa a partilhar entre os cônjuges – como elemento de prova idóneo a desvendar essa situação – deve levantar-se o sigilo bancário a que a instituição financeira, à partida, estaria obrigada (artigo 417.º, n.º 4, do CPC);[8] - a prevalência do interesse preponderante deve ser ponderada em concreto, em função dos contornos do litígio; na ponderação dos interesses em confronto, há que averiguar se a informação pretendida é necessária – tendo em conta o pedido, a causa de pedir, os temas da prova, bem como o ónus e regras de prova – ou imprescindível – no sentido de não poder ser obtida de outro modo;[9] - esse direito ao sigilo, embora com cobertura constitucional, não é um direito absoluto, até porque, pela sua referência à esfera patrimonial, não se inclui no círculo mais íntimo da vida privada das pessoas, embora com ele possa manter relação estreita.[10] No âmbito deste processo pretende-se que Banco de Portugal identifique as entidades bancárias onde as partes eram titulares de contas bancárias, à ordem ou a prazo, e de outras aplicações financeiras e respetivos saldos, existentes à data de 05/03/2003. A questão, no entanto, apenas se suscitou relativamente a contas e/ou aplicações financeiras na titularidade do Réu, sendo que apenas relativamente a este está afirmado não ter sido dado consentimento para divulgação dessas informações. Neste concreto enquadramento, afigura-se que a informação bancária pretendida relativamente ao Réu é determinante para apreciar a viabilidade da pretensão esgrimida nesta ação pela Autora. Por conseguinte, como a pretendida informação bancária se apresenta determinante, necessária e imprescindível para demonstrar a factualidade que permanece controvertida, existe fundamento bastante para determinar ao Banco de Portugal a quebra do dever de segredo a que está sujeito. As custas recaem sobre a Autora da ação principal – artigo 527.º, n.ºs 1, 1.ª parte, e 2, do Código de Processo Civil. Concluindo: (…) III – DECISÃO Pelo exposto, julgando-se procedente o presente incidente, defere-se a pretensão do levantamento do dever de segredo que impende sobre o Banco de Portugal, devendo este prestar as informações solicitadas pelo Tribunal de 1.ª Instância no sentido de apurar a identificação das entidades bancárias onde o Réu era titular de contas bancárias, à ordem ou a prazo, e de outras aplicações financeiras e respetivos saldos, existentes à data de 05/03/2003. Custas pela Autora da ação principal. * Évora, 6 de junho de 2024 Isabel de Matos Peixoto Imaginário Eduarda Branquinho Anabela Luna de Carvalho __________________________________________________ [1] Cfr. Ac. TRL de 03/07/2012 (Graça Amaral). [2] Lebre de Freitas, Estudos sobre Direito Civil e Processo Civil, vol. I, 2.ª ed., pág. 564. [3] Menezes Cordeiro, Manual de Direito Bancário, 3.ª ed., pág. 265. [4] Vasco Soares da Veiga, Direito Bancário, pág. 236. [5] Ac. TRC de 06/07/1994. [6] Ac. TRL de 22/10/1996. [7] Ac. TRE de 15/01/2015. [8] Ac. TRE de 29/01/2015. [9] Ac. TRC de 28/04/2015. [10] Ac. do STJ para Fixação de Jurisprudência n.º 2/2008, de 13/02/2008. |