Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
1638/22.0GBABF.E2
Relator: LAURA MAURÍCIO
Descritores: PRINCÍPIO DA INVESTIGAÇÃO
PRINCÍPIO DA VERDADE MATERIAL
PROVA
NULIDADE SANÁVEL
Data do Acordão: 06/18/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I - A omissão de diligências probatórias que podiam/deviam ser ordenadas, oficiosamente ou a requerimento, pelo Tribunal, configura uma nulidade sanável (artigo 120º, nº 2, al. d), do C. P. Penal), que pode ser invocada em sede de recurso, ou uma irregularidade - a ser arguida nos termos do artigo 123º do mesmo diploma legal -, conforme se trate, respetivamente, de diligência essencial, ou (simplesmente) necessária à descoberta da verdade.
II - Tendo sido requerida, pelo arguido, a inquirição de pessoa que terá conhecimento direto e circunstanciado da factualidade em discussão, e tendo sido juntos, pelo arguido, documentos que não foram apreciados pelo Tribunal e eram atinentes à mesma factualidade, a não inquirição dessa pessoa e a não apreciação desses documentos configura omissão de diligência essencial.
III - Essa omissão consubstancia a existência de uma nulidade, invocável em sede de recurso, cujas consequências são a anulação da sentença recorrida, determinando-se que o Tribunal de primeira instância proceda à admissão do requerimento de prova apresentado pelo arguido, à reaberta da audiência de discussão e julgamento para inquirição, como testemunha, da pessoa indicada pelo arguido, e, bem assim, para apreciação dos documentos juntos pelo mesmo, com a subsequente prolação de nova sentença.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, os Juízes na Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

Relatório

No Tribunal Judicial da Comarca de Faro, Juízo Local Criminal de Albufeira – juiz 2, foi o arguido N submetido a julgamento em Processo Abreviado.

Após realização de audiência de discussão e julgamento, o Tribunal, por sentença de 8 de janeiro de 2024, decidiu:

a) Condenar o arguido N, pela prática no dia 19/06/2022, em Albufeira, pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, nos termos do artigo 292º, n.º 1 do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de 10,00€ (dez euros) o que perfaz um total de 600,00€ (seiscentos euros);

b) Condenar o arguido N na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 (três) e 15 (quinze) dias, ao abrigo do artigo 69º, n.º 1, al. a), do C.Penal;

c) Condenar o arguido pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p.p. artº 86º, nº1 a) e d) do R.G.A.M, na pena de 2 (dois) anos e 1 (um) mês de prisão, suspensa na sua execução por igual período.


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Inconformado com a decisão, o arguido interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões:

1º- Vem o presente recurso interposto da Douta Sentença proferida nos autos de processo acima referenciados, no qual o Tribunal “a quo” condenou o arguido, ora recorrente, pela prática, de um crime de detenção de arma proibida, p.p. artigo 86º, nº1 alínea a) e d) do R.G.A.M na pena de 2 anos e 1 mês de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

2º- Defende o arguido, ora recorrente, que em face do Direito aplicável, outra deveria ter sido a decisão, motivo pelo qual vem apresentar o presente recurso.

3º- Entende o recorrente que a Douta Sentença ora recorrida é demasiado gravosa, especialmente porque não apreciou a prova documental e recusou a inquirição da testemunha apresentada violando assim o direito de defesa do arguido, porque não atendeu a toda a prova por este apresentada e com isso cometeu nulidade.

4º- Nos presentes autos de processo abreviado, o tribunal “a quo” decidiu condenar o arguido, por sentença oral pela prática de um crime de detenção de arma proibida, p.p. artº 86º, nº1 a) e d) do R.G.A.M na pena de 2 anos e 1 mês de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

5º- Quanto à recusa da prova testemunhal, a defensora oficiosa foi notificada do despacho de acusação do arguido no dia 13 de Outubro de 2022.

6º- No dia 26 de Outubro de 2022, a defensora oficiosa entregou no Ministério Público um requerimento a requerer a inquirição da testemunha: M (referência citius nº 10598737).

7º- A defensora oficiosa do arguido foi notificada via citius no dia 4 de Novembro de 2022 para contestar a acusação ao abrigo do artigo 311º A do Código de Processo Penal.

8º- O arguido, tem 20 dias a contar da notificação do despacho para contestar, apresentar, querendo, a contestação, acompanhada do rol de testemunhas – artigo 311º B.

9º- A signatária do arguido submeteu pela 2ª vez via citius no dia 07 de Fevereiro de 2023 um requerimento a requerer a inquirição da mesma testemunha que já tinha indicado anteriormente (26 de Outubro de 2022).

10º- O Excelentíssimo Juiz de Direito proferiu um despacho indeferindo o requerido por extemporaneidade sem prejuízo do disposto no artigo 340º do Código de Processo Penal.

11º- Face ao despacho do Meritíssimo Juiz, a defensora oficiosa submeteu um requerimento via citius a requerer o aclaramento do requerimento de prova por extemporaneidade uma vez que a prova já tinha sido indicada e por isso devia ser admitida (referência citius nº 10995527).

12º- Foi requerido ainda que caso assim não se entendesse, e porque a testemunha arrolada tem conhecimento direto sobre os factos, requereu-se a sua audição ao abrigo 340º do Código de Processo Penal.

13º- O Excelentíssimo Juiz de Direito proferiu um despacho pronunciando-se sobre o requerido pela defesa mencionando que nada há a aclarar relativamente ao despacho anterior.

14º- Relativamente à não apreciação da prova documental, aquando a defensora oficiosa submeteu o requerimento via citius a requerer o aclaramento do requerimento de prova também requereu a junção aos autos de 3 documentos.

15º- O Excelentíssimo Juiz de Direito proferiu um despacho pronunciando-se sobre o requerido pela defesa mencionando que seria apreciado em sede de julgamento.

16º- Contudo, tal documentação nunca foi apreciada em sede de julgamento.

17º- Perante tais factos (não apreciação da prova documental e recusa da prova testemunhal), consideramos que estamos perante uma violação das garantias de defesa do arguido.

18º- A referida prova testemunhal e documental apresentada não só não era irrelevante como era pertinente no que diz respeito às necessidades de prevenção especial a ponderar na pena a aplicar.

19º- O Mm. Juiz do tribunal “a quo” indeferiu o requerido pela defesa, e nem sequer fundamentou juridicamente tal decisão limitando-se a indeferir o requerido, com a decisão de “indefere-se o requerido por extemporaneidade”.

20º- No entender do ora Recorrente, o requerido era importante para a decisão da causa, era importante para a defesa do arguido, era importante para se alcançar a verdade material, era importante para a obtenção da justiça, que não se alcançou porque o Tribunal “ a quo” entendeu que nada disso era relevante para a decisão da causa.

21º- Ou seja no decurso da audiência de discussão e julgamento, não foram apreciados documentos - de prova requerida -, ao abrigo do artigo 340.º do CPP, violou por isso as mais elementares garantias de defesa do arguido.

22º- O tribunal “a quo” ao não admitir a inquirição da testemunha bem como o facto de não ter apreciado os documentos incorreu o tribunal na nulidade prevista no artº120º, nº2, alínea d) do CPP.

23º- Entendeu o tribunal “a quo” dar como provado todos os factos da acusação:

3. “ (…) o arguido tinha na sua posse, transportando no interior do referido veículo, os seguintes objectos:

a) uma granada de morteiro de 81 mm, com 338,2 mm de comprimento, tratando-se de uma munição de tiro curvo lançador de morteiros de calibre médio sem espoleta nem carga;

c) um machado sem marca e modelos definidos, com 90 cm de comprimento e 11,7 de lâmina corto-contundente.

5. O arguido conhecia as características dos objectos descritos em 3, sendo certo que não era titular de qualquer licença de detenção, uso ou porte de qualquer tipo de arma de fogo, de quaisquer classes, ou de qualquer autorização específica para o efeito emitida pela autoridade pública competente para tal, assim como também nunca teve qualquer arma de fogo registada ou manifestada em seu nome.

6. O arguido era conhecedor das características e natureza dos objectos que possuía e que não se havia coibido de adquirir e possuir, bem sabendo que se tratavam de objectos cuja detenção é proibida por lei e/ou que não era titular de qualquer licença para o poder fazer legalmente e, não obstante, decidiu deter os mesmos, tendo concretizado os seus intentos.

7. Conhecia ainda as características do martelo descrito no ponto 3, al. c), bem sabendo que pode ser usado como instrumento de agressão e que o detinha em circunstâncias fora do seu normal emprego, não tendo justificado a sua posse - “negrito nosso”.

8. O arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

Pelo exposto, o arguido incorreu, como autor material, na forma consumada e em concurso efectivo, na prática de:

- um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a), ambos do Código Penal, por referência à Portaria n.º 1556/2007 de 10.12, e artigo 81.º, n.º 4 do Código da Estrada, e artigos 10.º, n.º 1, 14.º, n.º 1 e 26.º do Código Penal;

- um crime de detenção de arma proibida, p. e p. pelo artigo 86.º, n.º 1, als. a), c) e d), por referência aos artigos 2.º, n.º 1, als. aac) e x) n.º 5, al. i), 3.º, n.ºs 1, 2, als. a), ab) e n), todos da Lei nº 5/2006, de 23 de Fevereiro, e artigo 14.º, n.º 1 e 26.º, do Código Penal.

24º- Ora desde logo se impugnam os factos dados como provados nos pontos, 5, 6, 7, e 8 porquanto,

25º- No que diz respeito à medida da pena, o “tribunal a quo” considerou que o arguido conhecia as características e natureza dos objetos que tinha na sua posse e que transportava no interior do seu veículo e que não se havia coibido de adquirir e possuir, bem sabendo que se tratavam de objetos cuja detenção é proibida por lei e/ou que não era titular de qualquer licença para o poder fazer legalmente e, não obstante, decidiu deter os mesmos, tendo concretizado os seus intentos.

26º- O “tribunal a quo” considerou ainda que o arguido conhecia as características do martelo, bem sabendo que pode ser usado como instrumento de agressão e que o detinha em circunstâncias fora do seu normal emprego.

27º- Entende, o aqui Recorrente, que não deveria ter sido esta a decisão proferida pelo “tribunal a quo”.

28º- Os objetos que o arguido tinha na sua posse e no interior do seu veículo não estavam aptos a utilizar munições, nem podiam disparar.

29º- Os objetos não reúnem as condições para serem utilizados como armas de agressão.

30º- O arguido agiu em circunstâncias de profundo desconhecimento, e essa circunstância pode tornar menos censurável a sua ação diminuindo sensivelmente a sua culpa que é exigida para o preenchimento dos elementos típicos do crime.

31º- O arguido, que é Francês e vem a Portugal nas férias, para participar nos desfiles da associação portuguesa de veículos militares antigos e como tal não sabia que era proibido ter esses objetos em veículos de coleção em Portugal, se soubesse não os trazido para Portugal.

32º- Mesmo que os elementos encontrados no veículo automóvel pudessem ser considerados armas, o que não se concede, ainda assim, atento o supra exposto o arguido não tinha consciência da ilicitude da sua conduta, pelo que deverá ser sempre absolvido deste crime.

33º- O crime de detenção de arma proibida só ocorre quando essa detenção não é justificada.

34º- A justificação da posse a que se refere o legislador visa outra finalidade que não a sua utilização como arma de agressão. Se assim for, ou seja, se a posse estiver justificada, não existirá crime.

35º- Estamos perante meros “objetos de decoração”.

36º- Na perspetiva da ponderação de valores é manifestamente desproporcional declarar que veículos de gama média ou baixa de uso pessoal na sequência deste tipo de crime onde se não demonstra, de forma insofismável, a essencialidade do uso de veículos na atividade ilícita.

37º- Os objetos não sofreram transformações.

38º- Os objetos não estavam acompanhados de munições e esta circunstância não foi considerada na integração do tipo penal.

39º- Não existe perigosidade na conduta do arguido.

40º- Uma imitação folclórica, fabricada, vendida e comprado para servir de elemento de decoração não pode ser considerado uma arma, por ser objeto comummente destinado à prática doméstica da decoração.

41º- Nada tem a ver com o facto de este arguido não ser titular de licença de uso e porte de arma, pois a sua conduta não se revelou particularmente perigosa, independentemente da existência ou não dessa licença, sendo certo que, se o arguido fosse titular de licença de uso e porte de arma, teria na mesma na sua posse os referidos objetos.

42º- Não é pelo nome dado ao objeto que o mesmo é considerado uma arma. São as características especificas de tal objeto, sem aplicação definida, sem que o arguido justifique a sua posse e a sua potencialidade para ser utilizado como arma de agressão, independentemente de o arguido o destinar a esse fim, que nos ajudam a apurar os elementos tipificadores do crime de detenção de arma perigosa.

43º- Pelo supra exposto deve ser dado como não provados nos pontos, 5, 6, 7, e 8, quer porque os elementos supra não devem, de ser considerados como armas na verdadeira concepção, pois que apenas servem para decorar e recriar um período histórico

44º- Nem o arguido, atenta a sua nacionalidade, tinha consciência da sua ilicitude.

45º- No caso dos autos estamos perante um objeto com aplicação definida, pois as suas características, pelo contrário, apontam que tem uma aplicação definida: a sua não utilização como objeto de arma de agressão. O referido instrumento foi construído exclusivamente com o propósito de ser utilizado como objeto de decoração e esse uso lhe foi dado.

46º- Não possuindo licença para a utilização do material apenas poderá ser, eventualmente, sancionado com uma pena de multa.

47º- O arguido é sócio da Liga dos combatentes nº 187131 do Núcleo de Loulé e participa regularmente em atividades de interesse histórico e militar no âmbito dos veículos militares antigos.

48º- As viaturas Willys, protagonistas na 2ª Guerra Mundial, são “cabeças de cartaz” dos encontros de veículos militares antigos e tentam, tanto quanto possível, ser réplicas fiéis das viaturas utilizadas na guerra.

49º- Para esse fim, a palamenta oficial do jeep é reconhecida pelo ACP (automóvel clube de Portugal) e pela APVM (associação portuguesa de veículos militares antigos).

50º- No que toca ao armamento, são feitas e vendidas réplicas inertes para completar o aspeto dos veículos. A pá, machado, extintor e rádios militares também fazem parte do completo do carro tal como declara M, Presidente do Núcleo de Loulé da Liga dos Combatentes (doc. nº 2).

51º- O arguido comprou o veículo em França e quando comprou o veículo este já tinha alguns dos objetos, outros o arguido comprou numa feira de velharias.

52º- O veículo em questão é um carro de coleção.

53º- O arguido não sabia que era proibido ter esses objetos em veículos de coleção em Portugal, se soubesse não os tinha.

54º- O arguido, ora recorrente, não se pode conformar com uma pena de 2 anos e 1 mês de prisão, suspensa na sua execução por igual período, que lhe foi aplicada pelo Tribunal “a quo”, por considerar que em abono da justiça, dever-se-á proceder à substituição da pena principal aplicada por uma pena de multa.

55º- Se cfr. o artigo 47º, nº 1 do C. Penal, a pena de multa é fixada em dias, de acordo com os critérios estabelecidos no artigo 71º do C. Penal, no limite mínimo de 10 dias e o máximo de 360 dias;

56º- Temos que entende o arguido que deveriam ter sido valoradas todas as circunstâncias que foram objecto de conhecimento do Tribunal “a quo”, e que resultaram das declarações do arguido, que depuseram a favor deste designadamente:

-A circunstância do arguido ter confessado a prática dos factos;

-Toda a sua postura colaborante em sede de audiência de Julgamento;

-O seu arrependimento;

-O facto ainda de não terem ocorrido quaisquer consequências, para terceiros, da prática da sua conduta.

57º- Entende assim o arguido e ora recorrente que, no caso em apreço, são mínimas as razões de prevenção especial.

58º- E que as circunstâncias acima mencionadas também deveriam ter sido tidas em conta na determinação da medida da pena.

59º- Todos estes factos, só por si, justificavam, salvo melhor opinião, a aplicação de pena menos severa ao arguido.

60º- A finalidade da aplicação de qualquer pena está contida no artº 40 nº 1 do C.P., consistindo na “protecção dos bens jurídicos e na reintegração do agente na sociedade”, acrescentando o seu nº 2 que “em caso algum a pena pode ultrapassar a medida da culpa”.

61º- Isto significa que a pena, enquanto instrumento político-criminal de protecção de bens jurídicos, tem, uma função de paz jurídica, típica de prevenção geral, cuja graduação deve ser proporcional à culpa.

62º- O Tribunal terá que ponderar, nos termos do nº 1 do artº 71º do C.P., a culpa do arguido e as exigências de prevenção e nos termos do nº 2 todas as circunstâncias que, não fazendo parte do tipo de crime, rodearam o mesmo, antes ou depois do seu cometimento, quer resultem a favor ou contra o agente.

63º- Assim, a pena serve primacialmente para a punição dessa culpa, contribuindo ainda e ao mesmo nível, para a reinserção social do arguido, procurando não prejudicar a sua situação social mais do que estritamente necessário (função preventiva especial positiva).

64º- No entanto, terão também de ser valoradas as circunstâncias ocorrentes alheias ao facto, i.e., estranhas ao ilícito típico e à culpa e/ou tipo de culpa, bem como as atinentes à personalidade do agente, desempenhando as primeiras um papel preponderante na avaliação da medida da pena necessária para satisfazer as exigências da prevenção geral e as segundas, para satisfação das exigências da prevenção especial.

65º- Entende, assim, o arguido que, atento ao supra exposto, deveria ter sido aplicada uma pena menos severa, que tivesse em conta todas as circunstâncias enunciadas e que não coloque em causa a satisfação das necessidades do arguido.

66º- Assim, tendo presente o que se provou a favor do arguido e contra ele, afigura-se-nos que deveria ter sido aplicada ao arguido uma pena menos severa, que não coloque em causa a satisfação das necessidades deste, não devendo, por conseguinte, manter-se a pena que o tribunal recorrido aplicou, uma vez que esta não cumpre de modo acertado, adequado e proporcional as finalidade das punição.

67º- Assim, entende-se que a pena de 2 anos e 1 mês de prisão, suspensa na sua execução por igual período, aplicada pelo Tribunal “a quo”, é manifestamente excessiva, face às necessidades da prevenção especial e geral, que no caso, se fazem sentir.

Nestes termos, e nos demais de direito que serão objeto de suprimento de Vossas Excelências, deve ser dado provimento ao presente recurso e às nulidades nele invocadas e, em consequência, ser a Douta Sentença ora recorrida revogada e substituída por outra que pondere na pena a aplicar ao arguido N e que a mesma seja convertida em pena de multa próxima dos limites mínimos, atentas as circunstâncias do caso sub judice, e com o que se fará a costumada e devida Justiça.


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O Ministério Público respondeu ao recurso interposto, pugnando pelo parcial provimento do mesmo, formulando as seguintes conclusões:

1.ª Condenado pela prática do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1 a) e d) da Lei nº 5/2006, de 23/2, na pena de 2 anos e 1 mês de prisão, suspensa na sua execução por igual período, N, contesta a medida da pena e invoca nulidade por não ter sido admitida a prestar depoimento a testemunha M arrolada no prazo da contestação, não ter sido deferida a sua inquirição ao abrigo do artigo 340.º CPP, não ter sido considerada a prova documental apresentada por requerimento no dia 17-2-2023, fls. 96-98, e o documento de fls. 80-81.

2.ª Invoca a nulidade prevista no artigo 120.º, n.º 2 alínea d) último segmento.

3.ª Invoca erro de julgamento por inexistência de prova suficiente para sustentar a prova dos factos 5. a 8.

4.ª Alega ser o veículo identificado uma réplica de um veículo de guerra decorado com objetos de época e finalidade, por ter gosto e interesse, ser membro da Liga dos Combatentes e participar em desfiles de veículos da segunda guerra mundial, que julgava lícito detê-lo com os elementos que o decoram.

5.ª Independentemente do acerto da ponderação feita na douta sentença em conformidade com o artigo 127.º do Código de Processo Penal, certo é que os elementos trazidos ao processo - fls. 96-98, 80-81 pelo arguido, não permitem ter por descabido o que alega tanto mais que diligenciou por comprová-lo por meio de testemunha indicada e de documentos que apresentou.

6.ª O auto de exame direto de fls. 50 a 54 que conclui quanto à inutilização como arma por falta de elementos essenciais permite admitir ter interesse meramente decorativo e não permite contraditar, à partida, o arguido quanto a ser desconhecedor de que a detenção lhe era proibida, que praticava um crime, que no contexto em que o utilizava os objetos, não os podia deter.

7.ª Sem qualquer valor como elemento de prova a declaração escrita de M junta a fls. 97 impunha-se, porém, a audição do subscritor como testemunha, atenta a qualidade que invocada (Presidente de Núcleo da Liga dos Combatentes) a fim de contribuir para a boa decisão da causa, nos termos do previsto no artigo 340.º, n.º 1 do Código de Processo Penal.

8.ª Perante tais circunstâncias, não identificamos o vício previsto no artigo 120.º, n.º 2 alínea d) mas sim o previsto no artigo 410.º, n.º 2 alínea c) do Código de Processo Penal.

9.ª O arguido foi notificado da acusação por aviso postal simples emitido a 18 de outubro de 2022 enviado para o domicílio constante do TIR complementado oficiosamente com o domicílio declarado no interrogatório - fls. 13, 32 e 77, depositado a 20 de outubro de 2022 – fls. 79 e,

10.ª A I. defensora foi a 18 de outubro de 2022 do despacho de encerramento com dedução de acusação – fls. 78.

11.ª No dia 26 de outubro de 2022, a I. defensora requereu a inquirição da testemunha M e juntou fotocópia de um documento – fls. 80 e 81.

12.ª No despacho de 31 de outubro de 2022, foi determinado notificar nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos dos artigos 311.º A e 311.º B do Código de Processo Penal.

13.ª A I. defensora foi notificada para contestar por aviso remetido no dia 4 de novembro de 2022, referência citius 126131165, e para os termos dos artigos 311.º A e 311.º B do Código de Processo Penal. 14.ª No dia 4 de novembro de 2022, foi enviado aviso postal ao arguido notificando-o para contestar sem tradução para francês como determinado (aviso postal depositado no dia 10 de novembro de 2022 – referência citius 10672961).

15.ª Na mesma data de tal notificação ao arguido foi solicitada pela secção de processos a tradução ordenada no despacho de recebimento da acusação, a tradução da acusação, do despacho que a recebeu e da notificação para contestar.

16.ª No entanto, apresentadas as traduções no dia 8 de novembro de 2022 (ref.ª citius 10641244), não foi feita ao arguido notificação dos textos traduzidos para língua francesa designadamente, a notificação para apresentação de contestação e rol de testemunhas.

17.ª Após despacho que designou data para julgamento (após o requerimento de 26-10-2022, fls. 80) a I. defensora renovou a indicação da testemunha M (referência citius 10952364).

18.ª Por despacho de 13 de fevereiro de 2023 foi indeferido tal requerimento por extemporaneidade, sem prejuízo do disposto no artigo 340.º do Código de Processo Penal.

19.ª Na sessão de julgamento a defesa pugnou novamente pela inquirição da testemunha de defesa e requereu a sua inquirição ao abrigo do artigo 340.º CPP. Foi indeferido.

20.ª O arguido não havia sido validamente notificado para contestar.

21.ª A notificação efetuada à I. defensora não basta nem dispensa a notificação ao arguido (redação do artigo 113.º, n.º 10 do Código de Processo Penal),

22.ª Por isso, a apresentação de rol de testemunhas com indicação de M no dia 7 de fevereiro de 2023 não foi extemporânea.

23.ª À não audição da testemunha M opõe-se o princípio do artigo 32.º da Constituição da República Portuguesa, que se sobrepõe ao estrito formalismo na tramitação processual.

24.ª Em face do exposto, deverá dar-se procedência ao recurso na parte que respeita ao despacho de indeferimento da inquirição da testemunha M e ser determinada a inquirição desta testemunha para posterior redação de sentença tendo em consideração o seu depoimento.

Em face do exposto, deverá dar-se procedência parcial ao recurso determinando-se a inquirição da testemunha M a fim de ser tomado em conta o seu depoimento na concretização dos factos pertinentes ao elemento subjetivo do crime de detenção de arma proibida.


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No Tribunal da Relação a Exmª Procuradora-Geral Adjunta emitiu Parecer nos seguintes termos: “Vem o arguido N interpor recurso da sentença que, entre o mais, o condena pela prática de um crime de condução em estado de embriaguez previsto e punido pelos artigos 292.º, n.º 1, e 69.º, n.º 1, al. a) do Código Penal nas penas de 60 dias de multa à taxa diária de 10,00€ e na pena acessória de proibição de conduzir veículos motorizados pelo período de 3 meses e 15 dias e ainda pela prática do crime de detenção de arma proibida, previsto e punido pelo artigo 86.º, n.º 1 a) e d) da Lei nº 5/2006, de 23/2, na pena de 2 anos e 1 mês de prisão, suspensa na sua execução por igual período.

Admitido o recurso, veio o Ministério Público na primeira instância a endereçar aos autos a sua resposta em 04.04.2024, referência 132205042.

Ponderando os termos da decisão recorrida em confronto com a motivação do recurso interposto pelo arguido, analisado conjugadamente com a resposta dada pelo Ministério Público na primeira instância, somos a concordar com os termos desta, nela alicerçando o parecer de que possa o recurso obter provimento parcial como avançado já pelo Ministério Público na primeira instância”.


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Cumprido o disposto no art.417º, nº2, do CPP, não foi apresentada resposta.

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Fundamentação

Delimitação do objeto do recurso

O âmbito do recurso é delimitado em função do teor das conclusões extraídas pelo recorrente da motivação apresentada, só sendo lícito ao Tribunal “ad quem” apreciar as questões desse modo sintetizadas, sem prejuízo das que importe conhecer oficiosamente, como são os vícios da sentença previstos no artigo 410º, nº2, do CPP, mesmo que o recurso se encontre limitado à matéria de direito (cfr. Ac. do Plenário das Secções Criminais do STJ de 19/10/1995, DR I-A Série, de 28/12/1995 e artigos 403º, nº1 e 412º, nºs 1 e 2, ambos do CPP).

São, pois, as questões suscitadas pelo recorrente e sumariadas nas conclusões da respectiva motivação que o Tribunal ad quem tem de apreciar.

No caso sub judice o recorrente limita o recurso às seguintes questões:

- nulidade prevista no artº 120º, nº 2, alínea d) do CPP

- violação das garantias de defesa do arguido

- erro de julgamento

- espécie da pena

- medida da pena


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Da decisão recorrida – Factos e Motivação

“II. FUNDAMENTAÇÃO

Discutida a causa, o Tribunal apurou que:

1. No dia 19.07.2022, pelas 18h30, na Estrada dos Brejos, em Albufeira, o arguido conduzia o veículo automóvel ligeiro de passageiros, com a matrícula (…..).

2. Submetido a exame de pesquisa de álcool no ar expirado, foi registada uma taxa de álcool no sangue de, pelo menos, 1,665g/l.

3. O arguido tinha na sua posse, transportando no interior do referido veículo, os seguintes objectos:

a) uma granada de morteiro de 81 mm, com 338,2 mm de comprimento, tratando-se de uma munição de tiro curvo lançador de morteiros de calibre médio, sem espoleta nem carga, a qual estava pendurada junto ao guarda-lamas traseiro da viatura, com uma corda;

b) uma reprodução de uma arma de fogo, constituída por um mecanismo portátil com a configuração de uma arma de fogo, que possui culatra móvel, gatilho, carregador amovível e aparelho de pontaria, sendo que o manuseio da culatra móvel produz um som confundível com o manuseio de uma arma de fogo. A referida reprodução não apresentava câmara de explosão;

c) um machado sem marca e modelos definidos, com 90 cm de comprimento e 11,7 cm de lâmina corto-contundente.

4. O arguido previu e quis conduzir o aludido veículo naquela via pública, apesar de saber que tinha ingerido bebidas alcoólicas e conformou-se com a possibilidade de conduzir com uma taxa de álcool superior à permitida por lei penal.

5. O arguido conhecia as características da granada de morteiro de 81mm e do machado sem marca e modelos definidos os objectos descritos em 3, sendo certo que não era titular de qualquer licença de detenção, uso ou porte de qualquer tipo daquelas armas, ou de qualquer autorização específica para o efeito emitida pela autoridade pública competente para tal.

6. O arguido era conhecedor das características da referida granada de morteiro e do machado; não se coibiu de adquirir e possuir tais objectos, bem sabendo que se tratavam de objectos cuja detenção é proibida por lei e que não era detentor de qualquer licença para o efeito e, não obstante, decidiu deter aqueles dois objectos, tendo concretizado os seus intentos.

7. O arguido conhecia que, relativamente ao machado, o mesmo podia ser usado como instrumento de agressão e que o detinha em circunstâncias fora do seu normal emprego, não tendo justificado a sua posse.

8. O arguido agiu de forma livre, consciente e voluntária, bem sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei penal.

9. O arguido confessou os factos relativamente à condução de veículo em estado de embriaguez, demonstrando arrependimento.

10. O arguido é reformado, auferindo a reforma mensal de €850.00; vive com a sua mulher em casa própria, em Portugal, onde passa férias duas vezes por ano.

11. O arguido não tem antecedentes criminais.

Não se provou que o arguido soubesse que a posse da reprodução de arma de fogo constituísse ilícito penal.


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A convicção do Tribunal assentou nos seguintes elementos de prova:

A confissão realizada pelo arguido em julgamento, relativamente à condução do veículo em estado de embriaguez. Confissão essa, aliás, consentânea com a prova documental junta aos autos, uma vez que o arguido foi detido em flagrante delito.

O Tribunal teve em conta as declarações do arguido quanto à sua situação socioeconómica.

Relativamente à posse pelo arguido da referida granada de morteiro e do machado, o arguido confirmou a posse dos mesmos. Contudo, o arguido justificou a dita posse pelo facto de ser colecionador de material de guerra e que no seu país natal - França – ser possível circular livremente com granadas de morteiro, por exemplo, nas viaturas, penduradas com cordas, pois é dessa forma que os carros franceses das forças armadas circulam – com granadas de morteiro penduradas com cordas, junto ao guarda-lamas.

Ora, não fosse a gravidade os factos, esta versão apresentada pelo arguido seria risível. É hilariante, contudo.

Conforme, também, expresso, em julgamento, pela testemunha R, militar da GNR, o facto de uma granada de morteiro andar pendurada com uma corda, junto ao para-choques de uma viatura, ainda que essa viatura se pareça com uma viatura militar, em nada condiz com o exercício da acção militar. Tal facto deriva, também, do senso comum e das regras do normal acontecer.

Portanto, quanto ao conhecimento do arguido de que não podia circular com granadas morteiro amarradas com corda em viaturas e com machados, o Tribunal entende que tal deriva, também, de regras de lógica, atendendo aos factos objectivos já supra referidos.

No que concerne ao facto não provado, relativo à reprodução de arma de fogo, o Tribunal entende, desde logo, que a qualificação jurídica efectuada pelo MP em sede de acusação não é correcta. Isto porque, uma reprodução de arma de fogo, apesar de ser uma arma de classe A, nos termos e para os efeitos do artº 3º, nº 2, al. n) e artº 4º, nº 1, do RJAM, a posse da mesma não é tipificada como crime em nenhuma das alíneas do artº 86º, do RJAM.

Bem se entende esta opção do legislador, uma vez que uma reprodução de arma de arma de fogo não causa, em princípio, perigo a terceiros.

O mesmo já não se diga de uma granada de morteiro ou de um machado. É certo que a granada de morteiro em causa não tinha carga, mas só um perito é que consegue verificar tal facto. Não é de todo incomum ocorrerem explosões de material obsoleto de guerra, ainda que não estejam nas melhores condições.”


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Apreciando

Invoca o arguido a nulidade prevista no artº120º, nº2, alínea d) do CPP, alegando a preterição do disposto no artigo 340º do CPP e decorrente violação de garantias de defesa.

Vejamos

- O arguido foi notificado da acusação por aviso postal simples emitido a 18 de outubro de 2022 enviado para o domicílio constante do TIR complementado oficiosamente com o domicílio declarado no interrogatório - fls. 13, 32 e 77, depositado a 20 de outubro de 2022 – fls. 79 ;

- Em 18 de outubro de 2022, a Exmª defensora foi notificada do despacho de encerramento com dedução de acusação – fls. 78.

- No dia 26 de outubro de 2022, a Exmª defensora requereu a inquirição da testemunha M e juntou fotocópia de um documento – fls. 80 e 81 (referência 10598737.

- Por despacho de 31 de outubro de 2022, foi determinada a notificação nos termos e para os efeitos do disposto nos artigos dos artigos 311.º A e 311.º B do Código de Processo Penal.

- A Exmª defensora foi notificada para contestar por aviso remetido no dia 4 de novembro de 2022, referência citius 126131165, e para os termos dos artigos 311.º A e 311.º B do Código de Processo Penal.

- No dia 4 de novembro de 2022, foi enviado aviso postal ao arguido notificando-o para contestar sem tradução para francês como determinado (aviso postal depositado no dia 10 de novembro de 2022 – referência citius 10672961).

- Na mesma data de tal notificação ao arguido foi solicitada pela secção de processos a tradução ordenada no despacho de recebimento da acusação, a tradução da acusação, do despacho que a recebeu e da notificação para contestar.

- Apresentadas as traduções no dia 8 de novembro de 2022 (ref.ª citius 10641244), não foi feita ao arguido notificação dos textos traduzidos para língua francesa, designadamente a notificação para apresentação de contestação e rol de testemunhas.

- Após despacho que designou data para julgamento (após o requerimento de 26-10-2022, fls. 80) a Exmª defensora renovou a indicação da testemunha M (referência citius 10952364).

- Foi requerido ainda que caso assim não se entendesse, e porque a testemunha arrolada tem conhecimento direto sobre os factos, requereu-se a sua audição ao abrigo 340º do Código de Processo Penal.

- Por despacho de 13 de fevereiro de 2023 foi indeferido tal requerimento por extemporaneidade, sem prejuízo do disposto no artigo 340.º do Código de Processo Penal.

- Face ao despacho do Meritíssimo Juiz, a Exmª defensora oficiosa submeteu um requerimento vis citius a requerer o aclaramento do requerimento de prova por extemporaneidade uma vez que a prova já tinha sido indicada e por isso devia ser admitida (referência citius nº 10995527), e também requereu a junção aos autos de 3 documentos.

- O Excelentíssimo Juiz de Direito proferiu um despacho pronunciando-se sobre o requerido pela defesa mencionando que nada há a aclarar relativamente ao despacho anterior.

- Na sessão de julgamento a defesa pugnou novamente pela inquirição da testemunha de defesa e requereu a sua inquirição ao abrigo do artigo 340.º CPP.

Ora, dispõe o artº340º do CPP:

“1. O tribunal ordena, oficiosamente ou a requerimento, a produção de todos os meios de prova cujo conhecimento se lhe afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa.

2. (…)

3. Sem prejuízo do nº3 do artº328º, os requerimentos de prova são indeferidos por despacho quando a prova e o respetivo meio forem legalmente inadmissíveis.

4. Os requerimentos de prova são ainda indeferido se for notório que:

a) As provas requeridas são irrelevantes ou supérfluas; - (…), equivalendo a irrelevância a falta de pertinência da prova requerida com o thema probandi e significando a superfluidade que a prova requerida apenas confirmaria desnecessariamente a convicção já formada.

b) O meio de prova é inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa, tendo a inadequação que ver com a idoneidade do meio para prova do facto a que se destina. ou

c) O requerimento tem finalidade meramente dilatória.

Este preceito, inserido no Livro VII – Do julgamento - Título II –Da audiência – Capítulo III – Da produção de prova – permite aos sujeitos processuais, durante a audiência, requerer a produção de meios de prova, mesmo que o não tenham feito no momento próprio.

Germano Marques da Silva escreve acerca da admissibilidade das provas requeridas pelas partes e sua rejeição, in Curso de Processo penal II, pág.117: ” A preocupação do legislador em estabelecer o controlo judicial das provas (…) surge da necessidade de as limitar às que são imprescindíveis para a decisão, eliminando as que não têm que ver com os factos objeto do processo ou as que, ainda que tendo relação com eles, não representam novidade alguma que possa influir na decisão.”

O Código de Processo Penal harmoniza assim o princípio da investigação ou da verdade material, o princípio do contraditório e as garantias de defesa, de tal forma que nem o primeiro princípio nem as garantias sofrem restrição durante a audiência, mas o segundo princípio não deixa de ser aplicado a qualquer prova que o juiz considere necessária para boa decisão de causa.

Assim, as provas requeridas nesta fase processual devem, para além da sua admissibilidade e legalidade e para além de terem relação com o objeto do processo, representar novidade que possa influir na decisão da causa. Daí que o sujeito processual que as requer deva fornecer ao julgador, a quem são conferidos os poderes de disciplina na produção da prova, elementos necessários para que tal avaliação possa ser feita, isto é, deve, no requerimento, alegar as razões da eventual relevância ou utilidade da sua novidade para o desfecho da causa para que aquele possa aferir da notoriedade ou não, do seu carácter irrelevante ou supérfluo, inadequado, de obtenção impossível ou muito duvidosa ou ainda da sua finalidade meramente dilatória.

Note-se que o julgador tem que harmonizar, por um lado, os princípios da investigação ou da verdade material, do contraditório e das garantias de defesa com os princípios da economia e celeridade processuais.

Valem, pois, as considerações de oportunidade e pertinência das provas requeridas.

Em primeiro lugar, o princípio da concentração estabelece a prossecução unitária e continuada dos atos, em especial durante a audiência de julgamento, de forma a garantir uma mais detalhada e fidedigna apreensão da prova produzida por parte do julgador. Por isso, e em segundo lugar, fora do quadro normal de oferecimento de provas [acusação/pronúncia (artigos 283.º, n.º 3, alíneas d), e) e f) / 308.º, n.º 2, do CPP) e contestação (artigo 315.º, do CPP)], a produção de novos meios de prova só é possível nos casos em que ao tribunal se afigure necessário à descoberta da verdade e à boa decisão da causa (princípio da necessidade – artigo 340.º, n.º 1, cit.). Em terceiro lugar, impõe-se avaliar a relevância ou o desfasamento entre as diligências requeridas e o tipo de crime em discussão.

A filosofia ínsita no artº 340 do CPP e a sua invocação para o pedido de produção de prova já no decurso da audiência de Julgamento, radica, pois na necessidade de se proceder à produção de prova, obrigando o julgador, pelas exigências de prossecução da verdade material que enformam o nosso direito processual penal, a proceder a todas as diligências com vista à boa decisão da causa.

A omissão dessa diligência de prova reputada de essencial para a descoberta da verdade constitui uma nulidade sanável (portanto, dependente de arguição pelo interessado), nos termos do artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP.

Como se ponderou no acórdão da Relação de Guimarães, de 27.04.2009 (Des. Cruz Bucho), acessível em www.dgsi.pt, “a omissão de diligências que possam reputar-se essenciais para a descoberta da verdade acarreta (…) uma nulidade relativa (sanável) prevista no artigo 120.º, n.º 2, alínea d), do CPP, a arguir «antes que o acto esteja terminado» (artigo 120.º, n.º 3, al. a)), que servirá de eventual fundamento de recurso (cfr. art.º 410.º, n.º 3, do CPP)”.

Ora, no caso sub judice, e independentemente de atentas as circunstâncias supra transcritas, ser inequívoco que o arguido não havia sido validamente notificado para contestar, pois que a notificação efetuada à Exmª. defensora não basta nem dispensa a notificação ao arguido (redação do artigo 113.º, n.º 10 do Código de Processo Penal), do que decorre que a apresentação de rol de testemunhas com indicação de M no dia 7 de fevereiro de 2023 não foi extemporânea, a Exmª defensora, considerando a essencialidade de uma diligência de prova, apresentou, invocando o art.340º do CPP, um requerimento para a sua realização, requereu que o tribunal procedesse à inquirição da pessoa que indicou e identificou e juntou três documentos, porque o depoimento da testemunha e o teor dos documentos seriam de singular importância para a descoberta da verdade.

E o tribunal indeferiu o requerimento de prova, sem prejuízo do disposto no artigo 340º do CPP, sendo certo, porém, que não procedeu a tal inquirição nem à apreciação de tais documentos, inexistindo qualquer fundamentação para tal omissão.

Como se pode ler no acórdão do STJ, de 05.05.2004, disponível em www.dgsi.pt (Relator: Cons. Sousa Fonte), “o princípio da preclusão é absolutamente incompatível com a estrutura do nosso processo penal – um sistema acusatório integrado pelo princípio da investigação, o que significa, em suma, que o esclarecimento do material de facto não pertence exclusivamente às partes, mas em último termo ao juiz, sobre quem recai o ónus de investigar e esclarecer oficiosamente – independentemente das contribuições das partes – o facto submetido a julgamento”.

Com efeito, é consensual a ideia de que o Código de Processo Penal consagra um modelo de processo basicamente acusatório integrado por um princípio subsidiário e supletivo de investigação oficial.

Tal modelo postula uma atitude diferente daquela que assumiu o tribunal recorrido, pois que só é possível falar num due process of law que um Estado de Direito democrático exige quando, efetivamente, se assegura ao Estado a possibilidade de realizar o seu ius puniendi e aos cidadãos as garantias necessárias para os proteger contra abusos que possam ser cometidos no exercício desse poder punitivo.

Para tanto, o tribunal não pode satisfazer-se com a “verdade formal” e tomar decisões escoradas em argumentos meramente formais.

O princípio da investigação exige que o tribunal se empenhe no apuramento da verdade material, não só atendendo a todos os meios de prova relevantes que os sujeitos processuais (principalmente, o Ministério Público e o arguido) lhe proponham, mas também, independentemente dessa contribuição, ordenando, oficiosamente, a produção de todas as provas cujo conhecimento se lhe afigure essencial ou necessário à descoberta da verdade e, portanto, que o habilitem a proferir uma sentença justa.

Revertendo ao caso sub judice, entendemos que a omissão verificada não garante, de todo, um processo justo, equitativo e próprio de um Estado de Direito.

Com efeito, o conhecimento que a pessoa cuja inquirição se pretende e sobre o qual se pretendia depoimento, será conhecimento direto e circunstanciado que o mesmo tem quanto à factualidade em discussão, sendo certo que também o teor dos documentos juntos e não apreciados era atinente à mesma.

E nesta perspetiva, o depoimento da aludida testemunha e a apreciação dos documentos juntos serão imprescindíveis para a descoberta da verdade e a boa decisão da causa, impondo-se a respetiva audição e apreciação.

Por tudo o que se vem expondo, conclui-se pela violação da norma do art.º 340.º do CPP, e há que extrair as consequências dessa violação.

A solução que se tem por juridicamente correta é a proposta por Paulo Pinto de Albuquerque, “Comentário do Código de Processo Penal”, UCE, 2.ª edição atualizada, 1054, que vê na omissão de diligências probatórias que podiam/deviam ser ordenadas, oficiosamente ou a requerimento, pelo tribunal uma nulidade sanável (artigo 120.º, n.º 2, al. d), do CPP) que pode ser invocada em sede de recurso ou uma irregularidade a ser arguida nos termos do art.º 123.º da mesma Codificação, conforme se trate de diligência essencial ou simplesmente necessária à descoberta da verdade”.

O recorrente, como vimos, arguiu a nulidade na interposição do recurso.

É essa nulidade que, reconhecendo razão ao recorrente, se impõe aqui declarar, extraindo-se as respetivas consequências dessa declaração.

Face ao supra decidido, fica prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso.


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Decisão

Face a tudo o exposto, acordam os juízes da Secção Criminal do Tribunal da Relação de Évora em:

- anular a sentença recorrida;

- determinar que, admitido aquele requerimento de prova, seja reaberta a audiência para inquirição, como testemunha, da pessoa indicada pelo arguido e apreciação dos documentos juntos pelo mesmo, sem prejuízo da realização de outras diligências que se entendam necessárias à descoberta da verdade e boa decisão da causa, após o que deverá ser proferida nova sentença.

- Mostra-se prejudicado o conhecimento das demais questões suscitadas no recurso interposto.

- Sem tributação.


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Elaborado e revisto pela primeira signatária

Évora, 18 de junho de 2024

Laura Goulart Maurício

Margarida Bacelar

Moreira das Neves