Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
7536/22.0T8SNT.E1
Relator: ANABELA LUNA DE CARVALHO
Descritores: DIVÓRCIO SEM CONSENTIMENTO DO OUTRO CÔNJUGE
SEPARAÇÃO DE FACTO
PRAZO
VIDA EM COMUM DOS CÔNJUGES
Data do Acordão: 06/06/2024
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I – Na separação de facto por um ano consecutivo releva o tempo decorrido entre a propositura da ação e a prolação da decisão.
II – A proposição de ação de divórcio constitui manifestação inequívoca do propósito do autor de não restabelecer a vida em comum com o seu cônjuge.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Apelação n.º 7536/22.0T8SNT.E1
2ª Secção

Acordam no Tribunal da Relação de Évora:


I

Em 30-04-2022 (…), natural do Brasil, nacional de Itália, com domicilio na Rua da (…), n.º 50, (…), Sintra, veio propor contra (…), natural e nacional de França, com domicílio em (…), n.º 337, Loulé, a presente ação de divórcio sem o consentimento do outro cônjuge, pedindo que seja decretado o divórcio entre Autora e Réu, invocando, para o efeito, a separação de facto do casal desde janeiro de 2021, aí cessando qualquer comunhão de vida entre ambos, sem que haja por parte da Autora o propósito de a reestabelecer.
Notificado para o efeito, o Réu apresentou contestação, excecionando a competência internacional dos Tribunais portugueses, e negando, em síntese, a separação do casal, peticionando, que seja declarada improcedente a ação de divórcio.
Em 16-01-2023 foi proferido despacho a julgar, internacionalmente, competentes os tribunais portugueses para a tramitação dos presentes autos e a julgar, territorialmente, incompetente o Tribunal de Família e de Menores de Sintra, ordenando a remessa dos mesmos ao Tribunal de Faro.
*
Realizou-se a audiência de discussão e julgamento em 25-10-2023, após o que foi proferida sentença que julgou improcedente, por não provada, a ação e, em consequência, não decretou o divórcio entre os cônjuges.
Entendeu o tribunal a quo que não se demonstrou o fundamento de divórcio alegado pela Autora, assente na separação de facto do casal, nem se demonstraram outros factos que permitissem concluir pela rutura definitiva do casamento”.

Inconformada com tal decisão veio a Autora recorrer assim concluindo as suas alegações de recurso:

I. O presente recurso centra-se em reformar a sentença que considerou não estarem reunidos os pressuposta legais para a decretação do divórcio pretendido pela recorrente.

II. Não cabe ao Estado impor que um indivíduo permaneça casado, se esse não é o seu desejo.

III. O Tribunal a quo, de forma equivocada, considerou como não provado ter havido a dissolução do matrimónio.

IV. O Tribunal a quo apontou de forma equivocada a necessidade de se provar a “violação (grave e/ou reiterada) dos deveres conjugais” como elemento factual para demonstrar a “rutura definitiva do casamento”, uma vez que a lei afasta o elemento culpa, de qualquer das partes, como condição para a pretensão ao divórcio.

V. O Tribunal a quo não considerou a vontade da recorrente, expressa por meio desta ação, em não mais manter o casamento, o que por si só é condição bastante para se decretar o divórcio, conforme previsto na legislação – artigo 1781.º, alínea d), do Código Civil – e na moderna jurisprudência.

VI. O Tribunal a quo não considerou que a autora afirmou, e o requerido corroborou, que as partes deixaram de coabitar em janeiro de 2021, e que deixaram de manter contacto a partir de março daquele mesmo ano, conforme se extrai da petição inicial, e da contestação, factos esses suficientes para demonstrar estarem as partes separadas há mais de um ano, atendendo a condição prevista no artigo 1781.º, alínea a), do Código Civil.

VII. Mesmo que possa ser admitida a ausência de prova relativamente ao período em que as partes se encontravam separadas na data em que a ação foi proposta, o Tribunal a quo deveria ter se valido do princípio da utilidade superveniente da lide, conforme previsto no artigo 611.º do Código de Processo Civil, o que seria suficiente para comprovar que entre a data da propositura desta ação, ou entre a data em que houve a Audiência de Tentativa de Conciliação, e a data em que a sentença foi prolatada, havia decorrido tempo superior ao prazo de um ano estabelecido no artigo 1781.º, alínea a), do Código Civil.

VIII. Demonstrado que estavam reunidos os motivos elencados nas alíneas a) e d) do artigo 1781.º do Código Civil, para se decretar o divórcio, não poderia o juízo a quo ter sentenciado em sentido contrário.

IX. Ex positis, a douta sentença deve, diante dos factos, da legislação, e da jurisprudência, ser reparada no todo, única forma de se restabelecerem os direitos da recorrente, que no momento se encontram violados.

Nestes termos, devem Vossas Excelências, data maxima venia, se valendo do arcabouço legal e jurisprudencial, julgar procedente o presente recurso, revogando a douta sentença que se combate e, como consequência, ordenando que seja decretado o divórcio pretendido.

Não foram apresentadas contra-alegações.


II


Na consideração de que o objeto dos recursos se delimita pelas conclusões das alegações (artigos 635.º, 3 e 639.º, 1 e 2, CPC), sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso (artigo 608.º, in fine), a questão a decidir, é tão-somente esta:

- Se ocorreu erro de direito, por divergência entre a lei quanto aos pressupostos do divórcio sem consentimento do outro cônjuge e, a decisão que negou esse divórcio.


III


O Tribunal a quo deu como assente a seguinte factualidade, a que se aditam os factos enunciados em 4 e 5, no âmbito dos poderes oficiosos previstos no artigo 662.º do CPC:

1. Em 7 de fevereiro de 2020, Autora e Réu contraíram casamento civil, no Brasil, no regime da separação de bens.

2. Em 19 de dezembro de 2019, Autora e Réu celebraram convenção antenupcial, convencionando a separação de bens.

3. A autora não pretende manter o vínculo conjugal que a une ao Réu.

4. A Autora tem domicílio em Sintra e o Réu tem domicílio em Loulé – [facto que se demonstra pelo registo de citação do Réu e pelos registos de notificação da Autora].
5. A Autora tem a intenção de não mais restabelecer a vida em comum com o Réu – [facto que advém da experiência da vida e que configura uma presunção (artigo 349.º do Código Civil) sustentada no facto de que, quem intenta uma ação de divórcio não pretende reatar a vida em comum, com a contraparte na ação].

O tribunal a quo deu como não provados os seguintes factos:
1. Autora e Réu conheceram-se no Algarve, em Portugal, durante o outono de 2019, local onde teve início o relacionamento afetivo.
2. A relação matrimonial perdurou até janeiro de 2021, quando a requerente decidiu pelo fim do casamento, que se encontrava irremediavelmente comprometido.
3. Naquele mês, não mais havendo qualquer condição de as partes preservarem um convívio harmonioso, e continuar com o casamento, o requerido resolveu retornar para Loulé.
4. Desde então, as partes não mais vivem em comunhão de leito, mesa e habitação.
5. Quando os cônjuges decidiram pelo fim do matrimónio, o requerido comprometeu-se em conceder o divórcio, pela via consensual.
6. Contudo, o requerido recusa-se assim proceder, apesar dos insistentes apelos da autora para que o fizesse.
7. O reiterado comportamento conflituoso do requerido durante a constância do matrimónio foi crucial para provocar a sua rutura.
8. A Autora suportou todas as despesas da mudança para o Brasil do Réu e do filho, suportando nesse país todas as despesas do casal e do filho do Réu até esse poder desenvolver uma atividade nesse país.
9. Foi a Autora quem suportou financeiramente toda a escolaridade do filho do Réu no Brasil.
10. O Réu acompanhava a Autora nas suas viagens regulares por motivos profissionais, deslocações que eram feitas em avião particular.
11. O Réu mudou-se para outro continente por amor à Autora e ficou surpreendido quando recebeu o pedido de divórcio, pois a Autora nunca lhe disse nada antes da receção do pedido por via judicial.
12. Com efeito, desde que o Réu saiu do Brasil para ir fazer as obras de conservação na sua habitação em Portugal, Réu e Autora nunca deixaram de trocar mensagens carinhosas.
13. Desde que o Réu saiu do Brasil e até janeiro de 2022, Autora e Réu trocaram mensagens carinhosas um com o outro.

Apreciando.

IV

Fundamentação
A presente ação de divórcio sem consentimento de um dos cônjuges funda-se, de acordo com a causa de pedir, na separação de facto do casal desde janeiro de 2021, tendo cessado qualquer comunhão de vida entre ambos e, na intenção da Autora em não mais reestabelecer a vida em comum.

Dispõe o artigo 1781.º do Código Civil, a propósito da rutura do casamento, que :
«São fundamento do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges:
a) A separação de facto por um ano consecutivo;
b) A alteração das faculdades mentais do outro cônjuge, quando dure há mais de um ano e, pela sua gravidade, comprometa a possibilidade de vida em comum;
c) A ausência, sem que do ausente haja notícias, por tempo não inferior a um ano;
d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento

Segundo o artigo 1782.º, n.º 1, do Código Civil:
«Entende-se que há separação de facto, para efeitos da alínea a) do artigo anterior, quando não existe comunhão de vida entre os cônjuges e há da parte de ambos, ou de um deles, o propósito de não a restabelecer».

No caso vertente estão em causa os fundamentos previstos nas alíneas a) e d) do citado artigo 1781.º.
Quanto à alínea a) importa considerar que:
O divórcio em razão da separação de facto pressupõe:
- A inexistência de comunhão de vida entre os cônjuges durante um ano seguido (elemento objetivo);
- A intenção, de ambos ou de um dos cônjuges, durante tal lapso de tempo, em não restabelecer a comunhão (elemento subjetivo).
Naquele prazo de um ano inclui-se o lapso de tempo decorrido até ao final da audiência de discussão e julgamento (nesse sentido, entre outros, os Acórdãos do TRL de 28-04-2022, P. 2271/20.7T8BRR.L1-2, e do TRC de 18-01-2022, P. 373/20.9T8ACB.C1, in www.dgsi.pt).
Como refere Guilherme de Oliveira, Manual de Direito da Família, edição de 2020, página 277, em destaque no citado Acórdão do P. 2271/20.7T8BRR.L1-2 «[e]xige-se, em primeiro lugar, a separação de facto dos cônjuges, integrada por dois elementos, um objetivo e outro subjetivo. O elemento objetivo é a falta de vida em comum dos cônjuges, que passam a ter residências diferentes» sendo que a esse elemento «há de (…) acrescer um elemento subjetivo, que lhe dá forma e sentido. Tal elemento subjetivo consiste numa disposição interior ou, como diz o art. 1782.º, num “propósito”, da parte de ambos os cônjuges ou de um deles, de não restabelecer a comunhão de vida matrimonial.
É necessário que o propósito de não restabelecer a comunhão exista desde a data em que a separação teve início, e que se mantenha durante um ano consecutivo».
Embora, a jurisprudência se divida na consideração do respetivo termo final, cremos ser necessário, tão-somente, que o prazo de um ano ocorra à data da produção de prova realizada na audiência de discussão e julgamento, por ser essa a interpretação que melhor corresponde ao princípio da atualidade da decisão consagrado no artigo 611.º, n.º 1, do CPC, o qual dispõe que «(….) deve a sentença tomar em consideração os factos constitutivos, modificativos ou extintivos do direito que se produzam posteriormente à propositura da ação, de modo que a decisão corresponda à situação existente no momento do encerramento da discussão».

No presente caso, importa considerar:
A presente ação foi proposta em 30-04-2022.
Na mesma, a Autora alegou a separação de facto.
A Autora e o Réu vivem respetivamente em Sintra e Loulé.
A audiência de julgamento ocorreu em 25-10-2023.
Ainda que demonstrado não esteja outro período temporal, antecedente, a separação de facto entre os cônjuges perdurou ininterruptamente durante mais de um ano à data do julgamento, tendo a Autora/recorrente o propósito de não restabelecer a comunhão conjugal com o Réu/recorrido.
Em consequência, está demonstrado o fundamento de divórcio previsto na alínea a) do artigo 1781.º do Código Civil: a) A separação de facto por um ano consecutivo.
Importa ainda considerar:
A proposição de ação de divórcio constitui uma manifestação inequívoca do propósito da Autora de não restabelecer a vida em comum com o seu cônjuge.
Com efeito, o “propósito” de um ou de ambos os cônjuges de não restabelecer a vida em comum pode ser afirmado ou exteriorizado de forma expressa ou tácita, e o “simples facto de o autor intentar a ação de divórcio demonstra, só por si, o propósito de não reatamento da sociedade conjugal, já que traduz uma manifestação nesse sentido” – vide Acórdãos do STJ de 5/7/2001, Col. Jur. STJ, 2001, T-II, pág. 164; e de 11/7/2006, Col. Jur., STJ, 2006, T-II, pág. 157, referidos no Acórdão do STJ de 25-05-2023, Proc. 1950/20.3T8VFR.P1.S1, in www.dgsi.pt, que defende idêntica posição.
Como neste acórdão se alega, «não oferece dúvida que o animus de não restabelecimento da vivência matrimonial é elemento essencial para se julgar verificado este fundamento de divórcio. No entanto, que outro facto mais inequívoco deste animus de não restabelecimento da vida matrimonial existe, que a própria interposição de pedido de divórcio? É, pois, este pedido que revela que a rutura conjugal é definitiva e irreversível, consubstanciado na intenção de um dos cônjuges de dissolver o aludido vínculo».
Por outro lado, no contexto da causa de pedir enunciada na alínea d) do artigo 1781.º do CC – «quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento», a cláusula geral e objetiva da rutura definitiva do casamento – enquanto fundamento de divórcio, não exige, para a sua verificação, qualquer duração mínima, como sucede com as restantes causas que impõem um ano de permanência (cfr. Ac. STJ de 03-10-2023, Proc. 2610/10.9TMPRT.P1.S1, in www.dgsi.pt).
Estão, pois, demonstrados os dois fundamentos do divórcio sem consentimento de um dos cônjuges, previstos no artigo 1781.º do Código Civil: a) A separação de facto por um ano consecutivo e d) Quaisquer outros factos que, independentemente da culpa dos cônjuges, mostrem a rutura definitiva do casamento.
Pelo que o recurso não poderá deixar de proceder.

Em suma: (…)
V
Termos em que se julga a apelação procedente, por provada, e revoga-se a sentença recorrida, substituindo-a por outra que decreta o divórcio entre Autora e Réu, tendo, a separação de facto do casal ocorrido, pelo menos, desde a data da interposição da ação.
Sem custas, face ao vencimento, sem oposição em recurso.
Évora, 06 de Junho de 2024
Anabela Luna de Carvalho (Relatora)
Vítor Sequinho dos Santos (1º Adjunto)
Rui Machado e Moura (2º Adjunto)