Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
768/17.5T9LLE.E1
Relator: BEATRIZ MARQUES BORGES
Descritores: EXTINÇÃO DO DIREITO DE QUEIXA
CONTAGEM DO PRAZO
Data do Acordão: 01/12/2021
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário:
O prazo de seis meses de extinção do direito de queixa previsto no nº 1 do artº 115º do Cód. Penal trata-se de um prazo de caducidade, subordinado às regras do artigo 279.º do CC, ao qual não são aplicáveis as normas processuais, ou seja, o Código Processo Civil, mas as normas substantivas relativas à caducidade do referido direito, no caso o Código Penal e subsidiariamente o Código Civil.
Decisão Texto Integral:

Acordam, em conferência, na 2ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora:

I. RELATÓRIO
1. Da decisão
Na Instrução n.º 768/17.5T9LLE da Comarca de Faro, Juízo de Instrução Criminal de Faro- Juiz 2, foi proferida decisão instrutória de não pronuncia das arguidas (...) e (...).

2. Do recurso da decisão final
2.1. Das conclusões das assistentes (...) e (...)
Inconformadas com a decisão de não pronuncia as assistentes interpuseram recurso extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões (transcrição):
“1 – Para efeitos do início de contagem do exercício do direito de queixa por advogada, mandatária constituída em processo de execução, ofendida por ilícito criminal, previsto e punível pelos artigos 180.º, n.º1 e 184.º, ambos do Código Penal, cometido por via de dizeres veiculados em petição de embargos de executado, a data do conhecimento do facto ilícito, é a data em que, nos termos do artigo 248.º, n.º 1 do Código de Processo Civil (2013), se presume efectuada a notificação ao mandatário, e não a data em que a notificação para este contestar a petição de embargos de executado foi elaborada e colocada em versão final na plataforma Citius.
2 – Ao abrigo do disposto no artigo 248.º, n.º 1 do CPC (2013), a notificação electrónica ao mandatário constituído considera-se enviada na data da colocação em versão final, e presume-se efectuada àquele no terceiro dia seguinte ao do envio, ou no primeiro dia útil seguinte a este, quando o não seja, pelo que, tendo a notificação sido colocada em versão final em 22 de Fevereiro de 2017, a assistente (…) foi notificada da petição de embargos, e, por isso, teve conhecimento do facto ilícito, em 27 de Fevereiro de 2017.
3 – Foi em 27 de Fevereiro de 2017 que teve o seu início de contagem o prazo de seis meses para o exercício do direito de queixa desta assistente, mandatária constituída pela exequente, na sequência do conhecimento do facto ilícito, perpetrado por meio da petição de embargos de executado.
4 – Nos termos dos artigos 349.º e 350.º do Código Civil, a presunção estabelecida no artigo 248.º , n.º 1 do CPC é uma presunção legal, ilidível, ou seja, admite prova em contrário, a invocar e fazer pelo beneficiário da mesma, de modo que a assistente, mandatária constituída, a quem foi dirigida a notificação electrónica para contestar a petição de embargos, apenas teria que alegar, ao deduzir a queixa, factos e prova para ilidir a presunção, em caso de, por motivo que não lhe fosse imputável, à mesma ter tido acesso depois do prazo (legal) presumido, ou seja, após 27 de Fevereiro de 2017.
5 – Nem as disposições relativas ao regime do exercício e tempo do direito de queixa, vertidas no Código Penal, nem outras, afastam a referida presunção legal, pelo que, tratando-se de ilícito criminal cometido por via de peça processual, inserida em processo de execução pendente, carece de fundamento, até porque onde a lei não distingue, o intérprete não deve distinguir, a conclusão de que tal presunção só vale dentro do referido processo, e que o prazo do exercício do direito de queixa tem início no dia em que a notificação foi “lida”.
6 – Mesmo que à assistente tivesse sido exigível alegar e provar o necessário a ilidir a presunção do artigo 248.º n.º1 do CPC, tal ilisão, a ser procedente, implicaria sempre a extensão do prazo e nunca a sua redução, ou seja, a presunção legal não admite a alegação e prova, nem mesmo a indagação de ofício, de que o destinatário da notificação teve conhecimento da mesma antes do prazo presumido.
7 – Desta forma, tendo o conhecimento do facto ilícito ocorrido em 27 de Fevereiro de 2017, e tendo a queixa que originou estes autos sido interposta pela assistente, mandatária constituída no processo de execução, em 25 de Agosto de 2017, a mesma é tempestiva, por feita antes de terminado o prazo de seis meses, o que sucederia em 28 de Agosto de 2017 (27 de Agosto de 2017 foi um Domingo).
8 – Já no que respeita à assistente (…), advogada ofendida por meio da mesma petição de embargos de executado, a quem não foi feita notificação electrónica, e tendo a respectiva queixa dado entrada igualmente em 25 de Agosto de 2017, há que considerar tempestiva tal interposição, pois só pode ter tido conhecimento da mesma, no mínimo, na mesma data em que a mandatária constituída teve conhecimento da petição de embargos de executado, se não depois, pelo que também não lhe era exigível que alegasse e provasse que a data em que teve conhecimento da ofensa fosse posterior a 27 de Fevereiro de 2017.
9 – Ao decidir que é a partir da “leitura” da notificação na plataforma Citius que tem início o prazo para exercício do direito de queixa, a decisão instrutória recorrida violou as disposições dos artigos 248.º, n.º 1 do CPC e dos artigos 249.º e 250.º do Código Civil, bem como o n.º 2 do artigo 9.º deste último diploma, razão por que deve ser revogada e substituída por outra que considere as queixas das duas assistentes, ora recorrentes, tempestivas, por interpostas no prazo legal, a contar do conhecimento do ilícito.
10 – As assistentes declaram manter interesse no (único) recurso que já interpuseram, relativamente à decisão de desentranhamento de documentos por violação de segredo bancário.
Nestes termos, e nos melhores de Direito aplicável, e sempre com o Mui Douto Suprimento de V. Excelências, deverá o presente recurso ser considerado procedente, e, em consequência, ser revogada a decisão instrutória, considerando-se tempestivas as queixas interpostas pelas duas assistentes, ora recorrentes.”

2.2. Das contra-alegações da arguida (...)
Motivou a arguida (...) defendendo o acerto da decisão de não pronúncia, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
“1. A presente resposta (art. 413º nº 1 do CPP por remição do artigo 411º nº 6 do CPP) da arguida (...) consigna-se nos pressupostos elencados e aludidos no douto despacho do Tribunal recorrido na parte em que considerou não pronunciar as arguidas pela prática do crime de difamação atento a preclusão do prazo para intentar o procedimento criminal.
2. A arguida (...) pugnou pela caducidade do direito de queixa relativamente ao crime por que se mostra acusada.
3. Para o efeito referiu, em síntese, que a prática dos factos ocorreu aquando do envio dos e-mails pela arguida (...) às Assistentes, ocorridos ao longo do ano de 2014, sendo que as queixas foram apresentadas em 25/08/2017, ou seja, mais de seis meses após a prática dos factos.
4. Assim, para que a queixa seja oportunamente apresentada, terá a mesma que ser apresentada no prazo de seis meses após o conhecimento dos factos.
5. Segundo a arguida (...), as Assistentes tiveram conhecimento do facto em 2014, já que em tal altura lhes haviam sido remetidos e-mails de teor idêntico ao que constava na peça processual constante da acusação.
6. No caso, a queixa-crime foi motivada por uma peça processual no âmbito do proc. n.º 2412/16.9T8LLE-A – embargos de executado – cuja notificação foi remetida electronicamente em 22/02/2017.
7. Por seu turno, as respectivas queixas foram apresentadas pelos Assistentes em 25/08/2017 – vd. fls. 1 do apenso B quanto à Assistente (...) e fls. 1 do apenso C relativamente à Assistente (...).
8. Resulta, por conseguinte, que desde o envio da notificação até à apresentação das queixas decorreram seis meses e três dias.
9. Embora o art.º 248.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, preveja uma presunção de notificação de acto processual remetido electronicamente, tal notificação apenas poderá ter efeito ao nível do processo, não servindo como modo de fundamentar a data em que se tomou conhecimento do facto.
10. De facto, quanto a tal data, impõe-se a efectiva demonstração, pelo ofendido, que o seu conhecimento ocorreu em data posterior à remessa da notificação.
11. Ora, no que ao presente caso diz respeito, foi solicitado ao proc. n.º 2412/16.9T8LLE-A o envio da concreta data em que a notificação que motivou o presente processo foi lida, resultando que tal leitura ocorreu em 23/02/2017, tendo a notificação sido remetida para a Assistente (...) – cfr. fls. 1233.
12. Por seu turno, nada consta relativamente à específica data em que a Assistente (...) tomou conhecimento dos factos.
13. Na verdade, nem a Assistente (...) fez referência a tal data na queixa por si apresentada, nem a mesma resulta da acusação pública, das acusações particulares ou dos requerimentos de abertura de instrução.
14. Por conseguinte, e uma vez que a análise e interpretação dos factos deve ser sempre realizada tendo em vista o princípio “in dubio pro reo”, forçoso se mostra ao Tribunal ter que levar em consideração, como data de conhecimento dos factos por parte de ambas as Assistentes, o dia 23/02/2017 tendo, por conseguinte, o direito de queixa cessado em 23/08/2017.
15. Por conseguinte, à data em que a queixa foi apresentada – 25/08/2017 – já o seu exercício era extemporâneo, motivo pelo qual não pode o presente procedimento criminal prosseguir.
Termos em que se emite a presente resposta no sentido da improcedência do recurso apresentado pelas assistentes com todos os fundamentos alegados, que se reiteram e subscrevem integralmente na parte do despacho recorrido, fazendo assim V. Exas. a acostumada Justiça.”


2.3. Das contra-alegações da arguida (...)
Motivou a arguida (...) defendendo o acerto da decisão recorrida, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
“1 – A notificação feita à assistente (...) que era mandatária nesse processo para contestar os embargos, lida por aquela em 23/02/2017, pelas 11.32, conforme print – folhas 1233 dos autos.
2 – Ora, a dita assistente tomou conhecimento desse fato em 23/02/2017.
3 – Ora assim, a partir dessa data iniciou-se o prazo de direito de queixa.
4 – Que finalizou em 23/08/2017.
5 – Tal como foi entendido pelo Meritíssimo Juiz a quo.
6 – Ora, as assistentes apresentam queixa em 25/08/2017.
7 – Ora ao fazerem-no nessa data, tal prazo já se encontrava expirado.
8 – Vindo o Meritíssimo Juiz a quo, a julgar por despacho improcedente o requerimento instrutório e consequentemente o arquivamento dos autos.
9 – Sendo de considerar tal decisão como a mais correta e justa”.”

2.4. Das contra-alegações do Ministério Público
Motivou a MP defendendo o acerto da decisão recorrida.

3. Do recurso da decisão interlocutória proferida em 23-10-2019
3.1. Das conclusões da arguida (...)
A arguida (...), já antes da prolação do despacho de não pronuncia, interpusera recurso interlocutório do despacho de indeferimento do pedido de nulidade dos depoimentos como testemunhas de (…) na audiência instrutória (11.9.2019), atendendo à sua qualidade processual de assistentes, concluindo nos seguintes termos (transcrição):
“1 - Os assistentes (…) foram inquiridos na audiência instrutória no dia 11 de Setembro de 2019 como testemunhas, que não são, nem podiam ser (nos termos do art. 133º nº 1 alínea b), o que constitui uma nulidade por implicar o uso de meios de prova proibidos conforme resulta da estatuição dos artigos 125º e 118º nº 3 do CPP.
2 - A lei determina, de forma irrevogável, que o assistente não pode depor como testemunha, ou seja, que não é admissível esse meio de prova ou que se trata de um meio de prova proibido.
3 - Esta questão transcende a da regularidade procedimental da produção deste meio de prova, situando-se no plano dos alicerces da prova, da sua constituição e admissibilidade.
4 - Em boa evidência e segundo a conclusão vertida em 25/09/2017 nestes autos, o Sr. (…), denunciante nos presentes autos, após requerer a sua constituição como assistente, foi admitido a intervir nessa qualidade de assistente neste processo.
5 – Também resulta dos autos e segundo a conclusão vertida em 19/09/2017, que o Sr. (...), denunciante nos presentes autos, após requerer a sua constituição como assistente neste processo, foi admitido também a intervir nessa qualidade de assistente nestes autos.
6 - Na conclusão vertida em 20/12/2018 constante a fls. 334 dos autos, os assistentes (...) e (...), atenta a natureza particular do crime em causa de difamação (artigos 180º nº 1 e 188º nº 1 do CP), foram notificados em 22/11/2018 (fls. 208) para deduzir as respectivas acusações particulares nos termos do art. 285º nº 1 do CPP, o que não fizeram, o que determinou a inadmissibilidade do procedimento criminal e o arquivamento dos autos nessa parte.
7 - Nos presentes autos, em momento algum, os assistentes (...), (...) perderam essa qualidade processual.
8 - Com efeito, quer nas notificações do despacho de arquivamento de fls. 345, 368 e seguintes, quer em todas as outras notificações que recaíam sobre estes sujeitos processuais, o seu estatuto processual de assistente manteve-se inalterado.
9 - Ao longo do processo, os assistentes (...), (...) mantiveram sempre o estatuto processual de assistente.
10 - A violação do disposto nos artigos 68º nº 1 alíneas a) e b) e 133º nº 1 alínea b) não implica uma mera irregularidade subordinada ao regime do artigo 123º, antes consubstancia uma verdadeira proibição de prova sujeita ao regime do artigo 118º nº 3 do CPP, ou seja uma nulidade processual, o que se requer que seja declarada e invalidada os depoimentos dos assistentes que depuseram como testemunhas neste processo.
11 – Em processo penal, o assistente, tal como qualquer pessoa, pode apresentar queixa, denunciar a prática de crime, sendo por isso que pode defender-se e que tem de ser responsabilizado processualmente pela posição que assumiu.
12 - De resto, o estatuto de assistente foi estabelecido na lei para proteger o ofendido e conferir-lhe mais poderes a nível da intervenção no processo (actuando sempre como colaborador do titular da acção penal, que é o Ministério Público, a cuja actividade subordinam a sua intervenção, salvas as excepções previstas na lei, como estabelece o art. 69º nº 1 do CPP) e não para lhe retirar direitos que gozava se fosse apenas testemunha.
13 - Os “poderes de conformação autónomos” que, por via do estatuto de assistente, lhe são conferidos e que “lhe permitem divergir do MP” (como sucede, por exemplo, quando estão em causa crimes públicos e semi-públicos, com o disposto no art. 284º do CPP em que o assistente pode deduzir acusação e com o disposto no art. 287º, nº 1, alínea b), do CPP, em que o assistente pode requerer a instrução quando o Ministério Público não tiver deduzido acusação), tal como assinala Augusto Silva Dias, “não devem ser vistos como excepcionais.”
14 – Quanto ao regime geral de prestação da prova testemunhal, este encontra-se e previsto nos artigos 128º a 139º do CPP.
15 - Aliás, a partir do momento em que assume a qualidade de assistente fica impedido de depor como testemunha (art. 133º nº 1, alínea b), do CPP), ainda que tenha sido arrolada (v.g. na acusação pública e pelas assistentes, Dra. (...) e a Dra. (...)) para participar na fase instrutória e posteriormente como assistentes.
16 - Ora, os assistentes (...) e o Sr. (...), quando, já no auto de inquirição da instrução datado de 11 de Setembro de 2019, foram inquiridos, já na qualidade de testemunhas, fizeram-no em violação clara da norma processual em vigor face à disposição do art. 133º, nº 1, al. b) do C.P.P. que proíbe que os assistentes possam depor como testemunhas.
17 - Sabia o Tribunal recorrido que os assistentes (...) e do Sr. (...) não eram testemunhas e têm uma posição processual diferente das testemunhas.
18 - Este entendimento resulta das seguintes ordens de razões:
19 - A prova testemunhal é tratada nos artigos 128º a 139º e destas disposições legais há normas que se aplicam ao assistente, pese embora a prova das declarações do assistente se inserirem sistematicamente mais à frente (art. 140º e seguintes). Referimo-nos mais concretamente aos artigos. 128º, 129º, 130º e 131º e concretamente o art. 133º, nº 1, al. b), que se refere concretamente à posição de assistente.
20 - Ademais, nesta particular situação ainda diremos que não é adequado, nem se pode classificar como inadmissível o tal “venire contra factum proprium processual” alegado pelo Ministério Público no seu requerimento sobre esta questão (Ver nesse sentido a acta do dia 23 de Outubro de 2019), porque, além do mais, as assistentes (...) e (...) haviam solicitado, logo aquando da apresentação da sua acusação particular, o depoimento dos assistentes, Sr. (...) e do Sr. (...). Ou seja esse argumento apresentado é falacioso.
21 - E a defesa da arguida (...), em face da solicitação expressa pelas assistentes na sua acusação particular, exercendo o princípio do contraditório também arrolou o Sr. (...) e o Sr. (...), para deporem como assistentes mas nunca como testemunhas, tendo todo o direito de pedir a nulidade desses depoimentos.
23 – Os Senhores (...) e o Sr. (...) foram arrolados para deporem pelo MP e pelas assistentes, Sra. Dra. (...) e Sra. Dra. (...) como assistentes e nunca como testemunhas.
24 - Ademais, e sendo o processo penal de natureza pública e podendo o assistente não chegar sequer a prestar declarações independentemente da relação que tenha ou não tenha com a arguida, o Ministério Público, titular da acção penal, deve no inquérito efectuar todas as diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e a responsabilidade deles e descobrir e recolher provas, em ordem à decisão de acusação (ver arts. 262º, nº 1 e 124º, nº 1, do CPP).
25 - Ademais, cumpre ainda realçar que os assistentes (...) e o Sr. (...), quando prestaram o seu depoimento como testemunhas fizeram-se acompanhar da advogada, Sra. Dra. (…), que, curiosamente representa as assistentes, Sra. (...) e a Sra. (...), o que consubstancia um evidente conflito de interesses pois a causídica representa as assistentes nestes autos e assiste ao mesmo tempo as testemunhas (...) e do Sr. (...).
26 - Já não se pode pretender que um sujeito processual, como o assistente, que pode, inclusivamente, requerer a produção de diligências, oferecer prova ou recorrer das decisões que sejam proferidas (cfr. art. 69º, nº2 do C.P.P.), possa, posteriormente, afinal de contas prestar o seu depoimento como testemunha.
27 - O assistente tem o poder de por a máquina judicial em marcha e entendemos que se impõe responsabilizá-lo processualmente pela posição que assumiu em momento anterior, de livre vontade. O assistente não é um simples ofendido. É um ofendido que escolheu tomar parte activa do processo.
28 - Este entendimento é também partilhado por Manuel Simas Santos e Manuel Leal-Henriques (cfr. Código de Processo Penal Anotado, 3º edição, 2008, Rei dos Livros volume I, pág. 957), dedicando apenas duas linhas à questão mas fazendo-o de forma assertiva quando diz que as pessoas previstas no art. 134º do C.P.P. não ficam sujeitas a audição sob qualquer outra qualidade, a não ser como assistentes ou partes civis.
29 - A violação do disposto nos artigos 68°, nº 1, al. a), e 133°, nº 1, al. b) do CPP, não implica uma mera irregularidade subordinada ao regime do art.º 123° do CPP, antes consubstancia uma verdadeira proibição de prova sujeita ao regime do nº 3 do art.º 118° e do art. 125º do CPP.
30 - Significa igualmente que num estado de direito a prova não pode ser obtida a qualquer preço.
31 - Deste modo, entendemos que andou mal o Tribunal recorrido quando considerou ser aplicável às declarações do assistente o regime previsto no art. 133º nº 1, al. b) do C.P.P. para as testemunhas. Violou, pois, as normas do art. 133º nº 1 alínea b) do C.P.P. e 145º, nº 3 do mesmo diploma.
32 - Requerendo-se deste modo que seja revogado o despacho proferido no dia 23 de Outubro de 2019 na parte em que admitiu o depoimento dos senhores (...) e do Sr. (...) enquanto testemunhas, quando na realidade eram assistentes no processo, declarando-o nulo.
33 - Mostram-se ainda violados os artigos 68.º n.º 1 alínea a) e b) e 133.º n.º 1 alínea b) do CPP, 32.º n.º 5 da CRP, e o artigo 6.º da CEDH nos precisos termos em que se alegou.
Termos em que, V. Exas. Venerandos Desembargadores, considerando as conclusões que antecedem, acolhendo-as, e revogando o decidido em conformidade, farão a costumada JUSTIÇA.”.

3.2. Resposta do Ministério Público
Motivou o MP defendendo o acerto da decisão recorrida.


4. Do recurso da decisão interlocutória de 6.11.2019
4.1. Das alegações da arguida Elisabete Viegas Romão
A arguida (...) havia recorrido ainda do despacho que admitiu a junção de documentos pelas assistentes, admitiu as declarações prestadas ao longo do processo pelas assistentes invocando a violação do segredo profissional, concluindo pela seguinte forma (transcrição):
“1 - A arguida, Dra. (...), invoca a invalidade da prova no que respeita aos documentos juntos pelas assistentes e às suas declarações prestadas ao longo do processo, e em consequência a nulidade de todo o processado, por violação do segredo profissional.
2 - Com efeito, da análise dos documentos juntos pelas assistentes no dia 23/09/2019 (embora não admitidos e desentranhados por violação do sigilo bancário por parte das assistentes), resulta suficientemente dos autos que as assistentes, a Sra. Dra. (...) e a Sra. Dra. (...), respectivamente, enquanto advogadas da (…), e no exercício das sua funções, patrocinaram e trataram, como advogadas e mandatárias dessa instituição bancária das questões concretas e relativas, à negociação, à feitura dos mútuos bancários, à emissão de livranças adjacentes a esses mútuos bancários e a toda a restante documentação no seguimento negocial e contratual tido com a arguida, Dra. (...).
3 - As assistentes, a Sra. Dra. (...) e a Sra. Dra. (...), enquanto advogadas e mandatárias, da (…) (e no exercício das sua funções), patrocinaram e trataram com a arguida, de questões concretas relativas à negociação dos contratos de mútuo bancário, às livranças adjacentes a esses contratos, ao contrato de reestruturação e a toda à documentação relativa a esses contratos, como por exemplo, a ficha de informação normalizada, as declarações da mutuária, aqui arguida, a extractos de contas bancárias (de depósitos, de empréstimos) da arguida junto dessa instituição bancária, das autenticações de documentos/empréstimos, e das interpelações admonitórias, ou seja de toda a documentação relativa aos contratos de mútuo que essa instituição bancária tinha estabelecido com a arguida, Dra. (...).
4 - Estes assuntos foram tratados pelas assistentes, a Sra. Dra. (...) e a Sra. Dra. (...), enquanto advogadas da (…), que, ao longo do tempo, informaram a Arguida Dra. (...), quer por conversas pessoais, quer por mensagens de e-mail, como é que, nos seus termos, se processava a realização de um mútuo bancário e de todos os seus termos com a instituição que representavam.
5 – No entanto, o Tribunal a quo, no despacho proferido sobre esta questão nem sequer se pronuncia sobre a violação do sigilo profissional das assistentes relativamente aos documentos pretendidos juntar pelas assistentes e também sobre o conteúdo dos depoimentos prestados pelas assistentes, o que constitui uma nulidade da decisão do próprio despacho.
6 - Verificando-se uma omissão de pronúncia na parte deste despacho quando refere:
“Num segundo ponto – e em requerimento autónomo apresentado em 23/10/2019, a arguida (...) veio referir que a junção dos documentos pelas assistentes, assim como as suas próprias declarações, viola o se dever de sigilo profissional à apresentantes, motivo pelo qual se irá apreciar se os mesmos são violadores do segredo profissional.
Vejamos:
A respeito dos documentos nº 10 a 40 juntos com o requerimento das assistentes de 23/10/2019, acima já se determinou o seu desentranhamento e devolução às apresentantes pelo qual não se irá apreciar se os mesmos são violadores do segredo profissional.”
35 - Deste modo, essa omissão de pronúncia na parte deste despacho consubstancia uma nulidade que é de conhecimento oficioso nos termos do art.º 379º, n.ºs 1, al. c) e 2, do Código de Processo Penal).
7 - As assistentes, atendendo à sua qualidade de advogadas e às funções que desempenhavam nessa instituição de crédito, sabendo como tais mútuos devem ser feitos, do ponto de vista legal, corresponderam em termos técnicos e teóricos a forma como se realizam esses actos, assinando e autenticando documentos e representando em juízo a referida Instituição Bancária (enquanto exequente) no processo executivo 2412/16.9T8LLE contra a aqui arguida, Dra. (...) que era executada nesses autos.
8 - Em todo o caso, as assistentes, directamente com a cliente (…), que representavam e patrocinavam e directamente também em relação Dra. (...), tiveram e têm conhecimento dos factos em causa no âmbito do exercício da sua profissão de Advogadas e de mandatárias da (…), o que determina a submissão de tal matéria ao regime de protecção do sigilo profissional.
9 - O mesmo se diga da assistente, a Sra. Dra. Dra. (...), Advogada, que enquanto mandatária da (…) conheceu tal factualidade no âmbito do seu exercício profissional e do mandato que lhe advinha da representação da (…) também tomou conhecimento de toda esta factualidade, quer visualizando documentos, quer autenticando documentos, quer representando em juízo o referido Banco, sabia igualmente enquanto Colega da Dra. (...) dessa instituição de Crédito onde laboravam como advogadas.
10 - Relativamente, aos meios de prova constantes dos autos, cabe reiterar que, quer as queixas-crime apresentadas pelas denunciantes Dra. (...) e a Sra. Dra. (...), (sendo evidente que adquiriram essas informações enquanto advogadas e mandatárias da (…), como nos autos de inquirição, no qual as mesmas prestaram declarações e se mostram inquinados por invalidade, na medida que resultam de grave e manifesta violação do sigilo profissional, por parte das assistentes, atendendo à sua qualidade de Advogadas.
11 - Foi assim violado o n.° 1 alíneas a), c) e d), e) e f) e no n.° 2, nº 3, nº 4 e nº 5 do artigo 92.° do Estatuto da Ordem dos Advogados e, por essa via, tais meios de prova deverão ser considerados proibidos, por resultarem de violação do disposto no artigo 126.° n.° 3 do CPP e do n.° 8 do artigo 32.° da CRP.
12 - Tais meios de prova têm de ser desconsiderados nos presentes autos e desentranhados do processo por violação do sigilo profissional.
13 - Por outro lado, tal como a matéria indiciária está configurada, resulta que, as denunciantes enquanto colegas dessa instituição bancária, foram consultados no âmbito do exercício das suas profissões, como Advogadas, pela (...) tendo recebido mandato para, enquanto causídicas, tomarem a seu cargo a resolução jurídica das questões que lhes foram apresentadas e que, agora se verifica, constituem o objecto do presente processo, no que refere à arguida Dra. (...).
14 - Tratava-se de questões relativas a processos financeiros e judiciais da arguida (...) sobre mútuos bancários, incumprimentos e respectivas livranças sobre dívidas à (...), fruto dos contratos de mútuos bancários com livranças da arguida que tinha estabelecido com essa Instituição de Crédito, que foram tratados exclusivamente, do ponto de vista profissional, pelas Dras. (...) e a Sra. Dra. (...), como Advogadas desse banco.
15 - As assistentes tiveram de facto um conhecimento directo dos contratos de mútuo com livrança estabelecidos entre a (...), e a Dra. (...), acompanhando o seu desenvolvimento, autenticando alguns desses contratos de mútuo, preenchendo as livranças adjacentes, subscrevendo documentos relacionados com os mesmos, diligenciando os assuntos jurídicos que lhe foram confiados pela referida Instituição de crédito, e tiveram uma intervenção relevante no processo judicial e extra-judicial sobre os mútuos bancários da arguida (...) com a (...).
16 - A Dra. (...) tendo elaborado o requerimento executivo como representante da Exequente, (...), agiu como mandatária dessa instituição de crédito.
17 - A procuração forense conferida conjuntamente às assistentes Dras. (...) e a Sra. Dra. (...), ora Denunciantes, conferiu mandato às ditas Advogadas para assuntos diversos, tendo as assistentes tratado dos assuntos financeiros com a arguida, Dra. (...), como já se referiu.
18 - Ou seja, toda a actuação e representação das assistentes Dras. (...) e a Sra. Dra. (...), ora Denunciantes, enquanto advogadas da (...) está abrangida pelo núcleo essencial dos factos que lhe foram transmitidos no âmbito do mandato forense, na sua relação Cliente-Advogado e relativamente aos quais as Advogadas, ora assistentes deveriam exercer em concreto a sua actividade profissional.
19 - Estão em causa relatos de factos revelados pelo Cliente (...) e que tinham sido transmitidos por Cliente/Consulente.
20 - Estão em causa informações sigilosas recolhidas/transmitidas no pressuposto da confidencialidade. Sobre o que prestaram depoimento, a Advogadas (...) e a Dra. (...) eram confidentes necessárias.
21 - Resulta claro do exposto que estes factos se relacionam com o exercício da advocacia, que se mostram atinentes ao exercício pelo Advogado das suas funções profissionais, que traduzem a prática de acto próprio do Advogado, pelo que constituem uma evidente violação do segredo profissional do Advogado.
22 - Com o devido respeito, para além do local onde trabalhavam enquanto advogadas na sede do Banco - (...) e de serem intervenientes nos factos em apreciação (como Advogadas), todos os demais elementos documentais se relacionam directa ou indirectamente com o exercício de funções profissionais do Advogado, muito em particular com o exercício de funções de representação do mandante (quer em juízo) e fora dele ou de aconselhamento jurídico.
23 - Existia, manifestamente, uma relação de confiança que se prendia precisamente com o exercício de funções de representação forense ou negocial.
24 - Tudo isto num quadro em que está em causa o intuito de defesa da boa administração da Justiça, de respeito pela liberdade profissional do Advogado e de efectiva tutela da honra e da fazenda do mandante.
25 - O que está em causa, e que merece e justifica a tutela do sigilo profissional do Advogado eram precisamente os factos principais e/ou acessórios atinentes ao concreto litígio judicial e extrajudicial cujo acompanhamento e resolução foi profissionalmente conferido às assistentes Dras. (...) e a Sra. Dra. (...), na qualidade de Advogadas.
26 - A tutela da confiança, garantida pelo sigilo profissional, abarca a factualidade dos casos concretos, para a protecção dos bens jurídicos relativos à relação material controvertida, que foi precisamente aquilo que foi confiado mediante outorga de mandatos profissionais às assistentes, ambos enquanto Advogadas desse Banco.
27 - É evidente que “nas declarações prestadas pela Advogada (...) ficou claro que o conhecimento dos factos que relatou relativamente às situações que se prendem com a (...) e a arguida (...) lhe advieram da sua intervenção como advogada dessa instituição e mandatária e como tal, quanto a estes tinha a mesma efectivo dever de reserva e sigilo.
28 - Logo, estamos, inegavelmente dentro do âmbito de protecção do sigilo profissional inerente ao exercício do patrocínio forense, pelo que, as assistentes ao procederem às denúncias, às declarações em fase de inquérito e na fase da instrução criminal e à junção dos documentos pretendidos (embora desentranhados por outra questão – violação do sigilo bancário pelas assistentes), sem a prévia dispensa do sigilo profissional por parte da Cliente em causa, e por parte da Ordem dos Advogados, as assistentes, a Senhora Dra. (...) e a Sra. Dra. (...), violaram patentemente o dever de sigilo profissional, tal como salvaguardado nos termos do actual artigo 92.° n.° 1 alíneas a), c) e d), e) e f) e no n.° 2, nº 3, nº 4 e nº 5 do Estatuto da Ordem dos Advogados e, por essa via, tais meios de prova são proibidos, por resultarem de violação do disposto no artigo 126.° nº 3 do CPP e do n.° 8 do artigo 32.° da CRP.
29 - Uma eventual preponderância de valores e interesses previstos no artigo 135.° do C.P.P. quanto às declarações da Dra. (...) estão sobre a alçada do sigilo profissional, e como tal, quanto a esses, recaía sobre aquela o dever de reserva e sigilo.
30 - Ao verificar-se, no presente caso, a obrigação de sigilo profissional e que o mesmo foi violado de forma patente pelas assistentes, tal impedia que as suas queixas e declarações prestadas não devessem ser consideradas e valoradas nos presentes autos, a par dos documentos que as assistentes pretenderam juntar, ao abrigo de uma invocada falta de legitimidade que consubstancia uma nulidade total violando assim a norma do artigo 120º nº 1, nº 2 alínea d) por referência ao nº 3 alínea c) do mesmo artigo, do artigo 122º nº 1 e do artigo 126º do C.P.P.
31 - Não tendo sido requerido pelas assistentes, o levantamento do sigilo profissional junto da Ordem dos Advogados, resulta que quanto à junção desses documentos pretendidos pelas assistentes no dia 23/09/2019, devem os mesmos serem considerados meios proibidos de prova e desentranhados dos autos.
32 - Tais meios de prova têm de ser desconsiderados e invalidados nos presentes autos por violação do sigilo profissional.
33 - Além de que:
- Não foi dado o consentimento pela Cliente “(...)”, (enquanto titular do direito ao sigilo profissional e ao sigilo bancário) às suas representantes, as aqui assistentes para quebrarem o levantamento do segredo profissional e bancário, sendo as mesmas igualmente titulares do direito ao sigilo profissional enquanto advogadas dessa instituição de crédito;
- Não foi solicitada pelas assistentes junto da Ordem dos Advogados o levantamento do sigilo profissional, nem foi dada a atinente autorização pela Ordem dos Advogados para o levantamento do sigilo profissional das assistentes, enquanto Advogadas da (...).
35 - As assistentes, Sra. Dra. (...) e Sra. Dra. (...) tinham legitimidade para invocar a protecção do sigilo profissional relativamente aos factos que foram relatados pela sua constituinte, quer nas denúncias apresentadas, quer nas declarações prestadas, quer nos documentos juntos, quer nos documentos que ora pretendem juntar aos autos.
36 - Em nome do interesse público na boa administração da justiça, que integra o direito ao sigilo profissional, as assistentes, enquanto advogadas da “(...)” tinham o poder-dever de defender o sigilo profissional que sobre elas impendia e que se mostra violado e desvirtuado pela conduta ilícita das assistentes.
37 - Pelo exposto, requer-se que seja julgada procedente a requerida arguição de nulidade, julgando-se ilícitos e nulos tais meios de prova pretendidos pelas assistentes, nomeadamente, as queixas-crime apresentadas, as sua declarações em fase de inquérito e de instrução criminal, assim como os documentos juntos pelas assistentes no dia 23 de Setembro de 2019 (com excepção da procuração) bem como as declarações/depoimento prestado pelas assistentes, Dra. (...) e Dra. (...), aquando da sua inquirição nesta fase instrutória e ainda todo e qualquer documento ou elemento destas, constante dos restantes volumes dos presentes autos, devendo em consequência serem desentranhados do processo.
38 - Deste modo e conforme os fundamentos expandidos, as assistentes ao prestarem declarações do foro profissional e sigiloso e ao juntarem os documentos no dia 23/09/2019, violaram o regime jurídico do sigilo profissional dos Advogados devendo em consequência não serem admitidos e valorados tais documentos como meios de prova em contraditoriedade com as proibições de prova constantes do artigo 92.° n.° 1 alíneas a), c) e d), e) e f) e no n.° 2, nº 3, nº 4 e nº 5 do Estatuto da Ordem dos Advogados e, por essa via, tais meios de prova são proibidos, por resultarem de violação do disposto do artigo 126.° n.° 3 do C.P.P e do artigo 32.° n.° 8 da C.R.P., o que determina a absoluta necessidade da sua nulidade, e o seu consequente desentranhamento e a subsequente nulidade dos seus depoimentos conforme as regras em vigor no processo penal português.
Termos em que, V. Exas. Venerandos Desembargadores, considerando as conclusões que antecedem, acolhendo-as, e revogando o decidido em conformidade, farão a costumada JUSTIÇA.”

4.2. Das contra-alegações do Ministério Público
Motivou o Ministério Público defendendo o acerto da decisão recorrida.

5. Do parecer do MP em 2.ª Instância
Na Relação o Exmo. Senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer no sentido de ser julgada a improcedência total do recurso interposto pelas assistentes (fls. 1377).

6. Da tramitação subsequente
Foi observado o disposto no n.º 2 do artigo 417.º do CPP.
Efetuado o exame preliminar e colhidos os vistos teve lugar a conferência.
Cumpre apreciar e decidir.

II. FUNDAMENTAÇÃO
1. Objeto do recurso
De acordo com o disposto no artigo 412.º do CPP e atenta a Jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19/10/95, publicado no DR I-A de 28/12/95 o objeto do recurso define-se pelas conclusões apresentadas pelo recorrente na respetiva motivação, sem prejuízo de serem apreciadas as questões de conhecimento oficioso.

2. Questões a examinar
Analisadas as conclusões de recurso as questões a conhecer são:
2.1. Em relação ao recurso interposto pelas assistentes do despacho de não pronúncia: a caducidade do direito de queixa;
2.2. No concernente aos recursos interlocutórios interpostos pela arguida (...):
- Do despacho de 23.10.2019 cumpre averiguar se ocorreu nulidade dos depoimentos como testemunhas de (...) e (...) na audiência instrutória (11.9.2019), atendendo à sua qualidade processual de assistentes;
- Do despacho de 6.11.2019 cabe verificar se era inadmissível a junção de documentos pelas assistentes, bem como as declarações por elas prestadas ao longo do processo e se ocorreu violação do segredo profissional.

3. Apreciação
3.1. Das decisões recorridas
Definidas as questões a tratar, importa considerar o decidido pela instância recorrida na decisão final de não pronúncia (fls. 1329 a 1333) e nos despachos datados de 23.10.2019 (fls. 878 a 882) e de 6.11.2019 (fls. 903 a 912).

3.1.1. Decisão instrutória de 19 de fevereiro de 2020 (fls. 1329 a 1333) – (transcrição)
“DECISÃO INSTRUTÓRIA
Declaro encerrada a instrução.
I – Relatório
Por despacho proferido em 21/11/2018, o Digno Magistrado do Ministério Público apresentou despacho de arquivamento relativamente a (...), pela prática de um crime de difamação, e deduziu acusação pública contra (...), pela prática de dois crimes de difamação agravada, previsto e pelos artigos 180.º, n.º 1, e 184.º do Código Penal.
Para tal, baseou-se nas declarações de (...), bem como na cópia de petição de embargos de executado de fls. 5 e seguintes e certificado de registo criminal da arguida.
As Assistentes (...) deduziram acusação particular, aderindo à acusação pública formulada pelo Ministério Público, em 06/12/2018.
Ambas as Assistentes (...) e (...), em 17/12/2018, requereram ainda a abertura de instrução, pugnando pela pronúncia de (...) pela prática de dois crimes de difamação agravada, p. e p. pelos art.ºs 180.º, n.º 1 e 184.º, ambos do Cód. Penal.
Ainda, veio a arguida (...) requerer a abertura de instrução, em 18/12/2018, alegando em síntese que as imputações efectuadas relativamente às Assistentes eram verdadeiras.
Foram arroladas testemunhas pelas Assistentes e pela arguida.
Por despacho de 20/12/2018, foi ainda proferido despacho de arquivamento quanto aos crimes de difamação imputados a ambas as arguidas, relativamente aos quais figuravam como Assistentes (…).
A requerida abertura de instrução foi deferida por despacho de 19/02/2019, tendo sido parcialmente deferida a inquirição das testemunhas arroladas, bem como dos Assistentes.
Procedeu-se à audição das Assistentes e das testemunhas cuja audição foi admitida.
Ao longo da instrução, foram arguidas nulidades, tendo todas sido já objecto de apreciação judicial, conforme se verifica das diversas actas, requerimentos e despachos proferidos.
Procedeu-se à realização de debate instrutório, que decorreu sob observância de todo o formalismo legal, como da respectiva acta consta.
II – Despacho saneador
O Tribunal é o competente e as partes encontram-se dotadas de legitimidade.
Questão prévia – da caducidade do direito de queixa
Em sede de debate instrutório, a arguida pugnou pela caducidade do direito de queixa relativamente ao crime por que se mostra acusada.
Para o efeito referiu, em síntese, que a prática dos factos ocorreu aquando do envio dos e-mails pela arguida (...) às Assistentes, ocorridos ao longo do ano de 2014, sendo que as queixas foram apresentadas em 25/08/2017, ou seja, mais de seis meses após a prática dos factos.
Apreciando.
Nos termos do art.º 188.º, o crime de difamação depende de queixa ou de acusação particular.
Dispõe o art.º 50.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal, que: “Quando o procedimento criminal depender de acusação particular, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas se queixem, se constituam assistentes e deduzam acusação particular.”
Por sua vez, o art.º 49.º do mesmo diploma determina:
“1 - Quando o procedimento criminal depender de queixa, do ofendido ou de outras pessoas, é necessário que essas pessoas dêem conhecimento do facto ao Ministério Público, para que este promova o processo.
2 - Para o efeito do número anterior, considera-se feita ao Ministério Público a queixa dirigida a qualquer outra entidade que tenha a obrigação legal de a transmitir àquele.
3 - A queixa pode ser apresentada pelo titular do direito respectivo, por mandatário judicial ou por mandatário munido de poderes especiais.
4 - O disposto nos números anteriores é correspondentemente aplicável aos casos em que o procedimento criminal depender da participação de qualquer autoridade.”
No caso, encontrando-se em causa a prática de um crime de difamação agravada, os autos teriam que ser precedidos da respectiva queixa.
Dispõe o art.º 115.º, n.º 1, do Cód. Penal, “O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz.”
Assim, para que a queixa seja oportunamente apresentada, terá a mesma que o ser no prazo de seis meses após o conhecimento dos factos.
Segundo a arguida, as Assistentes tiveram conhecimento do facto em 2014, já que em tal altura lhes haviam sido remetidos e-mails de teor idêntico ao que constava na peça processual constante da acusação.
Porém, a arguida não se mostra acusada por ter subscrito o teor dos e-mails, mas sim em virtude das considerações constantes do requerimento de embargos de executada junto aos presentes autos.
Ora, ainda que nos e-mails em questão a arguida possa ter imputado às Assistentes a prática de factos idênticos, a verdade é que reitera os mesmos na peça processual em análise.
Assim, caso se entenda que a factualidade em causa constitui crime de difamação, houve lugar à prática de novo crime cada vez que o texto foi repetido pela arguida. Cada um dos crimes de difamação é independente entre si, correndo relativamente a cada um prazo autónomo de prescrição.
Aliás, é precisamente acerca dos factos vertidos nos embargos de executada – e não em momento anterior, designadamente num qualquer e-mail remetido – que as Assistentes apresentam queixa e deduzem acusação particular.
No caso, a queixa-crime foi motivada por uma peça processual no âmbito do proc. n.º 2412/16.9T8LLE-A – embargos de executado – cuja notificação foi remetida electronicamente em 22/02/2017.
Por seu turno, as respectivas queixas foram apresentadas pelos Assistentes em 25/08/2017 – vd. fls. 1 do apenso B quanto à Assistente (...) e fls. 1 do apenso C relativamente à Assistente (...).
Resulta, por conseguinte, que desde o envio da notificação até à apresentação das queixas decorreram seis meses e três dias.
Embora o art.º 248.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, preveja uma presunção de notificação de acto processual remetido electronicamente, tal notificação apenas poderá ter efeito ao nível do processo, não servindo como modo de fundamentar a data em que se tomou conhecimento do facto. De facto, quanto a tal data, impõe-se a efectiva demonstração, pelo ofendido, que o seu conhecimento ocorreu em data posterior à remessa da notificação.
Ora, no que ao presente caso diz respeito, foi solicitado ao proc. n.º 2412/16.9T8LLE-A o envio da concreta data em que a notificação que motivou o presente processo foi lida, resultando que tal leitura ocorreu em 23/02/2017, tendo a notificação sido remetida para a Assistente (...) – cfr. fls. 1233.
Por seu turno, nada consta relativamente à específica data em que a Assistente (...) tomou conhecimento dos factos. Na verdade, nem a Assistente fez referência a tal data na queixa por si apresentada, nem a mesma resulta da acusação pública, das acusações particulares ou dos requerimentos de abertura de instrução.
Por conseguinte, e uma vez que a análise e interpretação dos factos deve ser sempre realizada tendo em vista o princípio “in dubio pro reo”, forçoso se mostra ao Tribunal ter que levar em consideração, como data de conhecimento dos factos por parte de ambas as Assistentes, o dia 23/02/2017 tendo, por conseguinte, o direito de queixa cessado em 23/08/2017.
Por conseguinte, à data em que a queixa foi apresentada – 25/08/2017 – já o seu exercício era extemporâneo, motivo pelo qual não pode o presente procedimento criminal prosseguir.
III – Decisão
Face ao supra exposto, e uma vez que não se mostram verificados os requisitos formais de prosseguimento dos presentes autos, o Tribunal decide não pronunciar as arguidas (...) e (...), pela prática, cada uma, de dois crimes de difamação agravada, p. e p. pelos artigos 180.º, n.º 1, e 184.º do Código Penal.
Em consequência, determina-se o oportuno arquivamento dos presentes autos. (…).”


3.1.2. Decisão interlocutória datada de 23.10.2019 (fls. 878 a 882) – (transcrição)
“Vieram as arguidas impugnar pela nulidade da inquirição de (…), referindo em síntese que os mesmos assumem qualidade de assistentes e como tal não poderiam tomar declarações como testemunhas.
O artigo 133º, n.º 1, al. b), efectivamente refere que estão impedidos de depor como testemunhas as pessoas que se tiverem constituído assistentes, a partir do momento de tal constituição.
No caso em análise, tais pessoas requereram efectivamente a sua constituição como assistentes, já que imputavam às arguidas a prática de um crime particular, motivo pelo qual tiveram que o fazer no prazo de 10 dias legalmente concedido.
Sucede no entanto que, como se disse, os crimes em apreço eram de natureza particular quanto a esses assistentes, tendo os mesmos sido notificados para, querendo, deduzir acusação particular ou até requerer a abertura de instrução. Tais assistentes não o fizeram. Por via disso, extinguiu-se o procedimento criminal quanto a tais crimes particulares em que os mesmos figuravam como assistentes.
O artigo 68º, n.º 1 do CPP refere quais os casos em que as pessoas se podem constituir como assistentes, podendo ser os ofendidos, a pessoas de cuja queixa ou acusação particular depender o procedimento e depois refere também no caso do ofendido morrer ou ser menor de 16 anos e também aqui num rol de crimes no qual não se encontra a difamação.
Portanto, a admissibilidade de assistente apenas é possível nestes casos.
Sendo apenas possível nestes casos, está no dever que, os então assistentes, não se poderiam constituir em tal qualidade quanto aos crimes praticados em que foram visadas as aqui assistentes, (...) e (...), pois não teriam qualquer legitimidade para o efeito.
Nesta fase processual são tais apenas estas as ofendidas cujo procedimento criminal ainda se mantém válido. Os demais em que os assistentes figuravam essa qualidade, já não poderão ser valorados porquanto se extinguiu o respectivo procedimento.
A lei processual penal não faz qualquer referência quanto ao final da posição dos assistentes; tal situação não foi prevista, talvez por uma omissão legislativa que pressupôs que no caso de arquivamento de inquérito por falta de apresentação de acusação particular, o processo findaria tendo deixado omisso o facto de haver outros crimes e outros assistentes em relação aos quais o processo prosseguiu.
A lei também não previu, como já foi até aqui referido, a possibilidade de renúncia à qualidade de assistente e assim sendo, tem que se ponderar se deve ou não ser feita alguma interpretação, e se essa interpretação é favorável ou não à posição dos arguidos, pois que se não for não pode ser tida em conta.
No caso em apreço, dir-se-á que a renúncia à qualidade de assistente favorece o arguido, pois o processo fica sem uma parte processual que tendencialmente vai contra a posição do próprio arguido, tendo em conta que o assistente, na grande maioria dos casos e aqui seria, corresponde ao ofendido.
Por outro lado, a verdade é que se a lei admite a própria desistência de queixa não se vislumbra por que motivo não haveria também, ainda que de forma interpretativa, não haveria de admitir a renúncia à posição de assistente.
De igual modo, tal como parece a lei admitir a renúncia à posição de assistente, ao não retirar a qualidade de assistente aos casos como sucedem no presente processo, estaríamos perante um paradoxo processual de pessoas que sem legitimidade para o processo poderiam ainda ter intervenção no processo requerendo as provas que entendessem por convenientes, eventualmente recorrendo demonstrando-se o interesse em agir, relativamente a factos em relação aos quais são totalmente alheios. É o que sucede na situação em concreto. Manter o Sr. (...), o Sr. (…) e o Sr. (…) como assistente nos presentes autos, permitir-lhes-ia uma intromissão processual que não é desejável nem pode ser permitida.
Assim, embora a lei nada refira quanto à cessação da posição de assistente temos que ter em atenção que, esta qualidade de assistente, é efectuada relativamente ao concreto crime em relação ao qual são ofendidos já que este crime não está, como se disse, no rol da alínea e), do artigo 68º do CPP.
Estando extinto o procedimento criminal por ausência de acusação particular e ausência também de requerimento de abertura de instrução, também se mostra extinta a qualidade de assistentes relativamente a tais crimes.
Assim, embora se possa referir que, informaticamente a nível de registo e por lapso ou insuficiência, aliás no sistema actual os mesmos ainda possam ainda vir a ser referidos como assistentes, a verdade é que, processualmente, eles deixaram de assumir tal qualidade a partir do momento em que se extinguiu o procedimento criminal relativamente aos mesmos.
Sendo assim, deixando os assistentes de assumir tal qualidade os mesmos podiam e deviam ter sido inquiridos na qualidade de testemunhas prestando o juramento legal, sendo essa a principal diferença prática do depoimento de assistente e de testemunha, não obstante a referida proibição de prestação de depoimento.
Dir-se-á também que, ainda que se pudesse ter entendimento diferente e considerar que os mesmos assumiam a qualidade de assistente, mesmo após a extinção do seu procedimento criminal e apesar da lei referir que estão impedidos de depor como testemunhas os assistentes, há que atender às consequências dessa proibição.
De facto, este entendimento de proibição de prova tem que ser lido e interpretado conjuntamente com os métodos proibidos de prova.
E, pergunta-se, a proibição do depoimento de assistente como testemunha vai influir no artigo 126º, tornando a sua prova desde logo proibida.
O artigo 126º, n.º 1 e 2, refere os casos em que as provas são nulas e não podem ser utilizadas. Assim, provas mediante tortura, coacção ou, em geral, ofensa da integridade física ou moral das pessoas, perturbação da liberdade de vontade ou de decisão através de maus tratos, ofensas corporais, administração de meios de qualquer natureza, hipnose ou utilização de meios cruéis ou enganosos, perturbação, por qualquer meio, da capacidade de memória ou de avaliação, utilização da força, ameaça com medida legalmente inadmissível e com denegação ou condicionamento da obtenção de benefício legalmente previsto, promessa de vantagem legalmente inadmissível e também não são admitidas as provas mediante intromissão na vida privada, no domicílio, na correspondência ou nas telecomunicações sem o consentimento do respectivo titular.
O artigo 135º ainda acrescenta a não proibição (essa proibição relativamente aos advogados está prevista no estatuto da Ordem dos Advogados), mas ainda prevê uma possibilidade de recusa do depoimento quando o mesmo viole o segredo profissional, tal como é admissível na recusa de depoimento nos termos do artigo 134º do CPP.
Ora como bem se vê, a questão adjectiva da parte de ser testemunha ou assistente, pese embora refira-se que realmente é um impedimento não contende com a validade da prova propriamente dita, já que a prova não foi obtida nem mediante tortura, nem mediante coacção, nem com violação de qualquer segredo, enfim, há aqui um vicio meramente procedimental.
Esse vício procedimental, que a admitir-se que as partes ainda assumiam a qualidade de assistentes, é um vício que se encontra naturalmente previsto nos artigos 119º e seguintes, sendo que não se mostra nem indicado como nulidade insanável, nem como nulidade dependente de arguição. Por via disso, sempre seria uma irregularidade prevista no artigo nulidade 123º do CPP, devendo seguir os respectivos procedimentos processuais. No caso, a mesma não foi invocada no momento oportuno, dado que já passou mais de um mês desde a inquirição das testemunhas/assistente - dizemos nós testemunhas até a presente data, e por esse motivo, mesmo que eventualmente se verificasse essa nulidade, o que se entende não se verificar, a mesma já se mostrava sanada por decurso do prazo.
Assim sendo, indefere-se o requerido relativamente à já feita audição das testemunhas João Trindade e João Barrote.”.


3.1.3. Decisão interlocutória datada de 6.11.2019 (fls. 903 a 912) – (transcrição)
“Em 23/09/2019 vieram as Assistentes requerer a junção aos autos de 40 documentos, correspondendo os documentos 1 a 9 a peças do processo executivo n.º 2412/16.6T8LLE e os demais documentos a peças processuais relacionadas com a prova das dívidas constantes de tal requerimento executivo.
Notificada para responder a tais documentos, veio a arguida (...), em síntese, referir que a junção de tais documentos viola o sigilo bancário, assim como o sigilo profissional das Assistentes. Salientou, também, que o depoimento da Assistente (...), pelo seu teor, violou a obrigação de sigilo profissional a que está adstrita. Por esse motivo, requereu a nulidade dos documentos juntos e das declarações prestadas.
Igualmente notificada para responder, a arguida (…) alegou que os documentos apresentados pelas Assistentes violam o sigilo bancário, não devendo, por conseguinte, a sua junção ser admitida.
Durante a diligência realizada no pretérito dia 23/10/2019, a arguida (...) pugnou pela nulidade do depoimento de (...), por violação do segredo profissional, nos mesmos termos já referidos relativamente à Assistente (...).
Foram notificados o Digno Magistrado do Ministério Público e as Assistentes para se pronunciarem, todos tendo, em síntese, referido que não há lugar nem à violação de sigilo bancário, nem à violação de sigilo profissional.
Cumpre analisar.
De uma forma sintética, são os seguintes os pontos a apreciar:
- Saber se os documentos juntos pelas Assistentes violam o sigilo bancário e o seu dever de segredo profissional; e
- Saber se as próprias declarações das Assistentes violam o seu dever de segredo profissional.
O dever de sigilo bancário encontra-se previsto no art.º 78.º da Lei n.º 298/92, de 31/12 (Regime Geral das Instituições de Crédito e Sociedades Financeiras, doravante designado por RGICSF), que estabelece:
“1 - Os membros dos órgãos de administração ou fiscalização das instituições de crédito, os seus colaboradores, mandatários, comissários e outras pessoas que lhes prestem serviços a título permanente ou ocasional não podem revelar ou utilizar informações sobre factos ou elementos respeitantes à vida da instituição ou às relações desta com os seus clientes cujo conhecimento lhes advenha exclusivamente do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços.
2 - Estão, designadamente, sujeitos a segredo os nomes dos clientes, as contas de depósito e seus movimentos e outras operações bancárias.
3 - O dever de segredo não cessa com o termo das funções ou serviços.”
Tal dever de sigilo bancário comporta excepções, descritas no art.º 79.º do mesmo diploma, que se transcreve:
“1 - Os factos ou elementos das relações do cliente com a instituição podem ser revelados mediante autorização do cliente, transmitida à instituição.
2 - Fora do caso previsto no número anterior, os factos e elementos cobertos pelo dever de segredo só podem ser revelados:
a) Ao Banco de Portugal, no âmbito das suas atribuições;
b) À Comissão do Mercado de Valores Mobiliários, no âmbito das suas atribuições;
c) À Autoridade de Supervisão de Seguros e Fundos de Pensões, no âmbito das suas atribuições;
d) Ao Fundo de Garantia de Depósitos, ao Sistema de Indemnização aos Investidores e ao Fundo de Resolução, no âmbito das respetivas atribuições;
e) Às autoridades judiciárias, no âmbito de um processo penal;
f) Às comissões parlamentares de inquérito da Assembleia da República, no estritamente necessário ao cumprimento do respetivo objeto, o qual inclua especificamente a investigação ou exame das ações das autoridades responsáveis pela supervisão das instituições de crédito ou pela legislação relativa a essa supervisão;
g) À administração tributária, no âmbito das suas atribuições;
h) Quando exista outra disposição legal que expressamente limite o dever de segredo.”
O sigilo bancário visa proteger a privacidade e intimidade dos clientes bancários, evitando que terceiras pessoas tenham conhecimento dos seus hábitos de consumo e mesmo da sua concreta situação patrimonial. De facto, a análise de contas e extractos bancários permite traçar um perfil de hábitos de gastos de uma pessoa, rendimentos obtidos e de eventuais dificuldades financeiras, elementos que um cliente pode pretender manter privados.
Como é comum entre direitos abstractos, o direito à privacidade, espelhado no direito ao sigilo bancário, pode chocar com determinados direitos, como seja o caso do direito à realização da justiça, corporizado na necessidade de realização de investigação criminal. Em caso de colisão de direitos, determina o art.º 335.º, n.º 2, do Cód. Civil, que se os direitos forem desiguais, deverá prevalecer o que se deva considerar superior.
A análise do direito a considerar superior deverá ser realizada casuisticamente, numa relação da proporcionalidade entre a intensidade do direito violado e a necessidade a satisfazer.
Na verdade, não só a violação do sigilo bancário pode ser em maior ou menor grau (consoante o tipo de documentos apresentados e, no caso de extractos bancários, do período a que os mesmos dizem respeito), como a necessidade da realização da justiça pode, em concreto, ser mais ou menos premente (dependendo se a prova a obter com tais elementos se revela essencial para a investigação ou, ao invés, reveste um carácter meramente lateral ou acessório).
Assim, é da confrontação conjunta não só da relevância dos direitos em abstracto, como igualmente da sua concreta importância para o facto, que deverá ser determinado qual deverá ceder.
Nos termos do art.º 79.º, n.º 2, alínea e), do RGICSF, o legislador considerou, de modo genérico, que a investigação em processo penal deverá prevalecer sobre o direito à reserva da intimidade da vida privada dos clientes bancários. Assim, permitiu que os elementos cobertos por segredo bancário podem ser revelados, entre o mais, às autoridades judiciárias, no âmbito de processo penal.
Deste modo, caso o Tribunal entenda pertinente, poderá solicitar informações bancárias cobertas pelo sigilo profissional, devendo as mesmas ser objecto de resposta.
Outra das excepções corresponde ao facto de o próprio cliente autorizar o levantamento do sigilo bancário. De facto, se o próprio detentor do direito ao sigilo bancário renunciar ao mesmo, não faz sentido conceder-lhe tal protecção.
Ora, no que ao caso nos interessa, as Assistentes referiram que a arguida (...) renunciou ao sigilo bancário aquando da subscrição do contrato de mútuo. E, de facto, na alínea a) do ponto 7 da Cláusula Quinta de tal contrato resulta o seguinte:
“O(A/s) MUTUÁRIO(A/s) declara(m), sem reservas ou quaisquer limitações e para todos os efeitos legais e regulamentares, que expressamente renunciam: a) Aos direitos decorrentes das regras do segredo bancário, ficando entendido que a Caixa Agrícola, ou a entidade por ela autorizada ou a quem ceda o crédito emergente do presente contrato e/ou ao Banco de Portugal ou a entidade por este indicada poderão aceder, utilizar e dispor das informações, documentos e/ou quaisquer elementos cobertos pelo dever do segredo bancário e respeitantes ao presente contrato e abertura de crédito, ao(à/s) MUTUÁRIO(A/S) e/o a qualquer dos Outorgantes.”
Ainda, do ponto 2 da Cláusula Décima Primeira resulta o seguinte:
“Sem prejuízo do expresso no número sete da cláusula quinta, o(a/s) MUTUÁRIO(A/S) e titular(es) dos dados autoriza(m) a Caixa Agrícola a usar e processar esses dados, bem como a recolher informação adicional, e a facultar esses elementos a outra entidade à qual seja cedido ou transferido o crédito e/ou conferido direito para a sua utilização, com salvaguarda da confidência e das regras legais, bem como às autoridades judiciais, administrativas e de supervisão, e sempre que tal seja devido por imposição legal, nomeadamente em cumprimento da Instrução n.º 21/2008 do Banco de Portugal, nos termos da qual cabe à Caixa Agrícola comunicar à Central de Responsabilidades de Crédito no Banco de Portugal as responsabilidades em nome do(a/s) MUTUÁRIO(A/S) e dos Garante(s) ou FIADOR(A/ES), decorrentes do presente contrato, bem como os montantes das garantias prestadas a seu favor.”
Não se impõe a este Tribunal, por não só extravasar largamente o âmbito das suas competências, como também o objecto dos presentes autos, analisar a validade das cláusulas citadas no âmbito das condições gerais do contrato de mútuo celebrado – contrato de adesão. Porém, sempre se dirá que a previsão da renúncia prévia e ilimitada do direito ao sigilo bancário, pela Cláusula Quinta, ponto 7, alínea a), acima citada, choca frontalmente com o âmbito de protecção que se pretendeu conceder no art.º 78.º do RGICSF.
Importa, aliás, salientar que tal cláusula nem sequer impõe uma fronteira entre os elementos relacionados com o contrato em causa, e outras contas ou relações contratuais que a cliente – no caso, a arguida (...) – detenha com a Instituição Bancária. Em síntese, diga-se, nunca podia a autorização concedida permitir o acesso e divulgação de extractos bancários, datados de Janeiro de 2013 a Setembro de 2019, do modo como o foi feito.
Por outro lado, conforme aludiram as Assistentes na sua resposta, as mesmas nem sequer se apresentam processualmente como representantes ou mandatárias da Caixa de Crédito Agrícola, mas sim a título pessoal, por considerarem que, com a conduta da arguida, o seu direito individual à honra se mostra violado.
Por via disso, e para efeitos do presente processo, o direito de acesso das Assistentes aos extractos e demais elementos bancários da arguida (...), não é diverso de um direito de acesso de qualquer terceiro que nenhuma relação tem com a Entidade Bancária. Ou seja, para a apresentação nestes autos dos extractos e demais elementos bancários da arguida (...), as Assistentes serviram-se da sua qualidade profissional de trabalhadoras para a instituição, para fazer valer os seus interesses pessoais. Ainda que a questão sub judice se relacione com factos imputadas pelas arguidas às Assistentes no âmbito da sua actividade profissional como trabalhadoras da Instituição Bancária, impõe-se distinguir e separar tais imputações do vexame e humilhação pessoal que poderão ter sido sentidos pelas Assistentes, e que constitui o cerne do presente processo.
O que acima se expôs serve, igualmente, para determinar se no caso em apreço poderia ser aplicada a alínea e) do art.º 79.º do RGICSF, sendo a resposta negativa.
Na verdade, num primeiro ponto, há que ter em conta que não foi a autoridade judiciária – nem este Tribunal, nem o Digno Magistrado do Ministério Público – que determinou a junção dos elementos bancários, tendo os mesmos sido apresentados por iniciativa das Assistentes.
Por outro lado, há que ter em conta que, atento o crime em causa e os factos descritos na acusação, nunca se revelaria necessária a violação do sigilo bancário da arguida (...) para a obtenção da documentação junta pela Assistente, já que a mesma se reveste inócua para a prova.
De facto, embora as Assistentes refiram que os documentos em causa servem para demonstrar a veracidade da existência do crédito e a utilização do mesmo pela arguida, no caso em análise não se impõe demonstrar que o crédito existiu. Diversamente, e ao abrigo do art.º 180.º, n.º 2, do Cód. Penal, é a arguida que deve demonstrar que o crédito em apreço nunca existiu, de modo a provar a veracidade das imputações que realizou e que motivaram a presente queixa-crime e consequente acusação pelas Assistentes.
Perante todo o exposto, pode concluir-se que a junção, pelas Assistentes, dos documentos 10 a 40 com o seu requerimento de 23/09/2019, viola efectivamente o sigilo bancário da arguida, motivo pelo qual devem ser considerados prova proibida nos termos do art.º 126.º, n.º 3, do Cód. Proc. Penal, devendo oportunamente ser desentranhados e devolvidos às apresentantes.
O mesmo, porém, não sucede com os documentos n.ºs 1 a 9. Na verdade, tais documentos correspondem à cópia de actos processuais apresentados na execução que correu termos com o n.º 2412/16.6T8LLE. De facto, e de acordo com o art.º 163.º, n.º 1, do Cód. Proc. Civil, o processo civil é público, nada obstando a que o mesmo venha a ser copiado e utilizado como elemento demonstrativo de prova em processo penal.
Assim, a questão relativa ao sigilo bancário constante dos documentos juntos em tal processo de execução já não se coloca, uma vez que os mesmos já foram publicados em processo destinado a averiguar o incumprimento contratual da arguida (...).
A junção de tais documentos é, por conseguinte, admissível, sendo ainda processualmente relevante porquanto permite contextualizar a relação contratual entre a arguida (...) e a Caixa de Crédito Agrícola.
Há ainda que levar em consideração que alguns documentos juntos autonomamente e que figuram entre os n.ºs 10 a 40, tais como os contratos de crédito, já haviam sido apresentados com o requerimento executivo, motivo pelo qual a sua junção repetida, rigorosamente falando, já não violar o sigilo bancário da Assistente. Não obstante, para evitar a duplicação de documentação, mantém-se a determinação do desentranhamento de tais documentos.
Num segundo ponto – e em requerimento autónomo apresentado em 23/10/2019 –, a arguida (...) veio referir que a junção dos documentos pelas Assistentes, assim como as suas próprias declarações, viola o seu dever de sigilo profissional.
Vejamos.
A respeito dos documentos n.ºs 10 a 40 juntos com o requerimento das Assistentes de 23/09/2019, acima já se determinou o seu desentranhamento e devolução às apresentantes, motivo pelo qual não se irá apreciar se os mesmos são violadores do segredo profissional.
Por outro lado, os demais documentos juntos aos autos correspondem, integralmente, a peças juntas com o requerimento executivo n.º 2412/16.6T8LLE, motivo pelo qual igualmente já não se mostram sequer abrangidas pelo dever do segredo profissional.
Sobra, por conseguinte, apreciar se as próprias declarações prestadas pelas Assistentes implicam a violação do segredo profissional.
A respeito do segredo profissional, dispõe o art.º 92.º do Estatuto da Ordem dos Advogados o seguinte:
“1 - O advogado é obrigado a guardar segredo profissional no que respeita a todos os factos cujo conhecimento lhe advenha do exercício das suas funções ou da prestação dos seus serviços, designadamente:
a) A factos referentes a assuntos profissionais conhecidos, exclusivamente, por revelação do cliente ou revelados por ordem deste;
b) A factos de que tenha tido conhecimento em virtude de cargo desempenhado na Ordem dos Advogados;
c) A factos referentes a assuntos profissionais comunicados por colega com o qual esteja associado ou ao qual preste colaboração;
d) A factos comunicados por coautor, corréu ou cointeressado do seu constituinte ou pelo respetivo representante;
e) A factos de que a parte contrária do cliente ou respetivos representantes lhe tenham dado conhecimento durante negociações para acordo que vise pôr termo ao diferendo ou litígio;
f) A factos de que tenha tido conhecimento no âmbito de quaisquer negociações malogradas, orais ou escritas, em que tenha intervindo.
2 - A obrigação do segredo profissional existe quer o serviço solicitado ou cometido ao advogado envolva ou não representação judicial ou extrajudicial, quer deva ou não ser remunerado, quer o advogado haja ou não chegado a aceitar e a desempenhar a representação ou serviço, o mesmo acontecendo para todos os advogados que, direta ou indiretamente, tenham qualquer intervenção no serviço.
3 - O segredo profissional abrange ainda documentos ou outras coisas que se relacionem, direta ou indiretamente, com os factos sujeitos a sigilo.
4 - O advogado pode revelar factos abrangidos pelo segredo profissional, desde que tal seja absolutamente necessário para a defesa da dignidade, direitos e interesses legítimos do próprio advogado ou do cliente ou seus representantes, mediante prévia autorização do presidente do conselho regional respetivo, com recurso para o bastonário, nos termos previstos no respetivo regulamento.
5 - Os atos praticados pelo advogado com violação de segredo profissional não podem fazer prova em juízo.
6 - Ainda que dispensado nos termos do disposto no n.º 4, o advogado pode manter o segredo profissional.
7 - O dever de guardar sigilo quanto aos factos descritos no n.º 1 é extensivo a todas as pessoas que colaborem com o advogado no exercício da sua atividade profissional, com a cominação prevista no n.º 5.
8 - O advogado deve exigir das pessoas referidas no número anterior, nos termos de declaração escrita lavrada para o efeito, o cumprimento do dever aí previsto em momento anterior ao início da colaboração, consistindo infração disciplinar a violação daquele dever.”
A existência de dever de segredo profissional visa proteger a confidencialidade entre o cliente e um advogado que aquele contacte. Na verdade, inúmeras vezes a relação de confiança que deve existir entre cliente e advogado implica que aquele lhe revele determinados aspectos pessoais ou mesmo íntimos, ou que lhe confesse, inclusivamente, a prática de determinados ilícitos penais, de modo a poder ser mais cabalmente organizada a defesa ou eventuais negociações para acordos extra-judiciais.
Por esse motivo, o Estatuto da Ordem dos Advogados concede particular importância a tal princípio, salientando, inclusivamente, que os actos praticados em violação de tal segredo não podem fazer prova em juízo.
Embora o segredo profissional comporte excepções (referidas no n.º 4 do citado art.º 92.º do EOA), o levantamento do segredo encontra-se sempre dependente de prévia autorização dos competentes Órgãos da Ordem dos Advogados.
No caso em análise, não consta dos autos qualquer autorização para levantamento do segredo profissional.
Por via disso, mostra-se necessário averiguar se as declarações prestadas pelas Assistentes violaram o segredo profissional, caso em que as mesmas não poderão fazer prova.
Nas suas acusações, as Assistentes salientam que as arguidas, em sede de oposição à execução no proc. n.º 2412/16.6T8LLE, argumentaram que aquelas tinham tido conhecimento e colaboraram para que a arguida (...) fosse burlada, referindo que o empréstimo em apreço era forjado, situação que era do conhecimento das Assistentes.
Nas suas declarações, as Assistentes, no essencial, descreveram o modo como habitualmente processam os incumprimentos contratuais dos clientes, caracterizando cada um dos momentos que levam a efeito, e diligências por si realizadas, previamente à instauração da acção executiva.
De igual modo, concretizaram os passos levados a efeito até à apresentação do requerimento executivo relativamente à arguida (...).
Ainda, responderam a determinados pontos de pormenor, colocados directamente pelo mandatário da arguida (...).
Mais negaram ter tido conhecimento que a arguida (...) havia sido forçada a assinar qualquer contrato que não correspondesse à realidade, fosse por que motivo fosse, encontrando-se convencidas que, efectivamente, o contrato existiu.
Por fim, descreveram a sua reacção ao recebimento aos embargos de executado apresentados pelas arguidas.
As Assistentes admitiram que ainda eram, ou que haviam sido à data dos factos, contratadas pelo Departamento de Contencioso da Caixa de Crédito Agrícola, representando tal instituição não só nos diversos processos judiciais, como igualmente nas diversas diligências de cobrança de crédito que antecediam o recurso a Tribunal.
Porém, em nenhum momento das suas declarações vislumbrou o Tribunal que tivessem sido proferidos factos violadores do seu dever de sigilo profissional.
Na verdade, os factos relatados pelas Assistentes foram de encontro ao teor do processo executivo apresentado pelas próprias, sendo que do mesmo já resultava o incumprimento contratual por parte da arguida (...).
No mais, o desconhecimento de qualquer reunião em que a arguida (...) tivesse sido de algum modo coagida a celebrar o contrato de mútuo não é violador de qualquer dever de sigilo, já que respeita a situação que largamente extravasa o âmbito da relação profissional existente entre cliente e advogado.
Conforme referiram as Assistentes na sua resposta, estender e interpretar o dever de sigilo profissional do modo como a arguida (...) o fez implicaria que nenhuma acção judicial pudesse vir a ser intentada, já que, ao expor os factos e juntar documentos nas suas peças processuais, o advogado já se encontrava a violar elementos que lhe haviam sido fornecidos pelos seus clientes e que pretensamente se encontrariam abrangidos por tal segredo. Obviamente, tal não é o objectivo da norma prevista no art.º 92.º do EOA.
De resto, há também que salientar que parte das declarações das Assistentes dizem respeito à sua situação pessoal – nomeadamente, o que sentiram e como reagiram quando tomaram conhecimento dos embargos de executado apresentados pelas arguidas –, ponto que não se encontra minimamente abrangido pelo dever de segredo profissional.
Assim, atento todo o exposto e em conclusão, considera o Tribunal não ter havido violação do sigilo profissional das Assistentes com a junção dos documentos 1 a 9 do requerimento de 23/09/2019, com as suas declarações e queixas apresentadas, motivo pelo qual se consideram os respectivos elementos probatórios válidos.
Em síntese, pelos fundamentos acima expostos, determina-se o desentranhamento dos documentos n.ºs 10 a 40 do requerimento junto pelas Assistentes em 23/09/2019, mantendo-se a demais documentação e declarações prestadas.”.


3.2. Dos recursos interpostos da decisão final e das decisões interlocutórias
Foram interpostos três recursos. Um pelas assistentes por não se conformarem com a decisão de não pronuncia e dois pela arguida (...) de duas decisões interlocutórias proferidas pelo Juízo de Instrução Criminal.
Passemos, então, a conhecê-los.

3.2.1. Do recurso da decisão final interposto pelas assistentes
As assistentes interpuseram recurso do despacho do Juiz de Instrução que julgou intempestiva a queixa pela denúncia dos crimes de difamação imputados às arguidas (...) e em consequência não pronunciou estas.
A primeira questão que cumpre conhecer em relação ao recurso interposto pelas assistentes é a de saber qual a natureza do prazo para o exercício do direito de queixa, ou seja, se a sua natureza é substantiva ou processual/adjetiva.
O prazo substantivo é o estabelecido para o exercício de um direito subjetivo, ou seja, é o período durante o qual o direito tem de ser exercido.
Já os prazos processuais são fixados para, depois de submetida a apreciação do direito perante o tribunal, se delimitar o tempo em que, dentro dos processos já instaurados, devem ser praticados os atos considerados pela lei adjetiva como adequados para serem discutidas as questões processuais colocadas pela controvérsia entre os intervenientes sobre o direito invocado.
A queixa, em si, está abrangida pelo direito constitucional de petição previsto no artigo 52.º, n.º 1 da CRP e funciona como uma das formas de defesa dos cidadãos dos seus direitos.
No âmbito do processo penal a queixa é um pressuposto da punição de certos crimes, em que o respetivo titular é o ofendido, considerado este último pelo artigo 113.º n.º 1 do CP, como sendo o titular do interesse protegido.
O direito de queixa é conferido a quem a lei quis especialmente proteger com a incriminação. Todo o direito subjetivo nasce para o seu titular a partir do momento da violação do direito e tem um prazo para ser exercido.
O prazo para o exercício de um direito é um prazo de caducidade ou de preclusão, exterior ao exercício processual desse direito e como tal um prazo perentório fixado na lei.
Como salienta Carvalho Fernandes[1], o direito não sendo respeitado extingue-se pelo seu não exercício dentro do limite temporal fixado na lei.
Em termos penais, o direito de queixa pode ser exercido, dado o disposto no artigo 115.º, n.º 1 do CP[2], entre outros casos, quando o titular tiver conhecimento do facto (violação desse direito) e dos seus autores e no prazo de seis meses.
Trata-se de um prazo de caducidade, previsto no artigo 115.º, n.º 1 do CP, subordinado às regras do artigo 279.º do CC, conforme defendido pelas doutrina e jurisprudência[3] [4], ao qual não são aplicáveis as normas processuais, ou seja, o Código Processo Civil, mas as normas substantivas relativas à caducidade do referido direito, no caso o Código Penal e subsidiariamente pelo Código Civil.
A tese avançada pelas assistentes quanto à contagem do prazo para o exercício do direito de queixa como prazo processual ou adjetivo, no âmbito de um caso de caducidade específico do exercício do direito de queixa previsto no artigo 115.º, n.º 1 do CP, recorrendo ao artigo 247.º e segs. do CPC, não deve, assim, ser aceite.
Em primeiro lugar, por remeter o momento do conhecimento do direito do titular de um direito penal para o processo civil, quando o direito penal tem normas específicas sobre essa matéria.
Depois, por estar-se a confiar o conhecimento de um direito de natureza penal a artigos contidos numa subsecção do Código Processo Civil (SUBSECÇÃO IV Notificações em processos pendentes).
Nos artigos 247.º e 248.º do CPC estão em causa notificações em processos (civis) pendentes e, não, como é o caso, entre um processo de embargos de executado (de natureza cível) e um processo por crime de difamação (de natureza penal).
Pela sua inserção no Código Processo Civil e na secção de processos pendentes a norma do artigo 248.º do CPC é claramente adjetiva ou processual, reguladora do formalismo processual relativo a processos civis pendentes e em que a notificação aí prevista não se reporta à notificação para conhecimento de um direito penal de queixa, previsto em norma específica do direito penal.
O momento em que o titular do direito de queixa como ofendido no processo penal tem conhecimento da violação do seu direito é quando as queixosas-assistentes são notificadas, como foi o caso de uma delas, no processo de execução e nos respetivos embargos de executado, a arguida proferiu as expressões proferidas contra a recorrente.
A assistente (...) tomou conhecimento daquelas expressões aquando da notificação em causa, considerando-as difamatórias.
Ignora-se a data em que a outra assistente (...) tomou conhecimento das expressões constantes do articulado de embargos de executado apresentado pela embargante (...) no processo 771/17.5T9LLE.
Em todo o caso, presume-se, na falta expressa de notificação daquela assistente, ter esse conhecimento ocorrido na mesma data em que a assistente (...) foi notificada dessas expressões, porquanto ambas eram mandatárias da CCA, no processo de embargos de executado referenciado.
Tal interpretação, como bem assinala o Tribunal a quo, será a que melhor se coaduna com o princípio in dubio pro reo, por mais favorável à arguida (...) e sua ali mandatária e aqui arguida (…).
No caso dos autos, o momento do conhecimento do direito por parte das assistentes ocorreu, como resulta inequivocamente de fls. 1233 do processo, em 23.2.2017 (data da leitura eletrónica), com a notificação da assistente (...), das expressões proferidas no processo de embargos de executado 2412/16.9T8LLE-A pelas arguidas.
Assim, a queixa das duas assistentes, de 25.8.2017, foi apresentada dois dias após o prazo de caducidade de seis meses fixado no artigo 115.º, n.º 1 do CP.
O despacho do juiz de instrução que decidiu não pronunciar as arguidas pelos referidos crimes de difamação com base na caducidade do referido direito de queixa não merece, por isso, qualquer censura, assim se declarando nessa parte improceder o recurso interposto.

3.2.2. Dos recursos interlocutórios de 23.10.2019 e de 6.11.2019
Os recursos interlocutórios de 23.10. 2019 e de 6.11.2019 foram admitidos por despacho judicial a subirem nos próprios autos, com o recurso da decisão que pusesse fim à causa (cf. fls. 1234), nos termos dos artigos 406.º, 407.º e 408.º a contrario do CPP.
No caso do recurso de 23.10.2019 estava em causa o despacho que indeferiu o pedido de nulidade dos depoimentos prestados pelas testemunhas (...) por terem sido ouvidas nessa qualidade quando já eram assistentes na queixa que formularam contra as arguidas.
No recurso de 6.11.2019 estava em causa o despacho que admitiu a junção de documentos pelas assistentes e as declarações por elas prestadas consideradas como violadoras do segredo profissional.
Qualquer dos recursos interlocutórios apresentados pela arguida (...) visava evitar que o direito de queixa das assistentes pudesse ser exercido, dadas as nulidades e impedimentos invocados.
Tendo sido arquivado o processo em relação aos crimes de difamação imputados às arguidas, por o direito subjetivo de queixa das assistentes ter caducado, deixou de ter qualquer interesse para a arguida comprovar não terem aquelas, ou os outros assistentes, legitimidade para carrearem provas para o processo que fundamentassem o exercício do direito invocado.
O eventual provimento dos recursos interlocutórios, seria, no dizer de Abrantes Geraldes[5]uma «vitória de Pirro», sem qualquer reflexo na ação ou na esfera jurídica do interessado”.
Na realidade, não faria qualquer sentido conceder provimento ao recurso de impugnação de qualquer daquelas decisões interlocutórias, como sublinha o mesmo autor “quando tal não interfere com a decisão final que foi feita no sentido de arquivar o processo por não existir qualquer interesse processual autónomo no provimento dos referidos recursos[6].
Por outras palavras, os recursos interlocutórios apresentados pela arguida, entretanto não pronunciada, são inúteis, porquanto seja qual for a solução que o tribunal lhes der não têm qualquer reflexo sobre o processo.
Termos em que se declara não se apreciar, por inutilidade superveniente os dois recursos interlocutórios interpostos pela arguida (...).

III. DECISÃO
Nestes termos e com os fundamentos expostos:
1. Nega-se provimento ao recurso, interposto pelas assistentes, da decisão de não pronúncia pelos crimes de difamação imputados às arguidas (...).
2. Em consequência do decidido julgam-se inúteis os recursos interlocutórios apresentados pela arguida (...).
3. Custas pelas assistentes/recorrentes, quanto ao recurso do despacho de não pronúncia, fixando-se a taxa de justiça em 3 UC para cada uma (artigos 513.º, n.ºs 1 e 3 e 514.º, n.ºs 1 do CPP e artigo 8.º, n.º 9 e tabela III anexa, do Código das Custas Processuais).
4. Sem custas pela arguida quanto aos dois recursos interlocutórios apresentados.

Nos termos e para os efeitos do disposto no artigo 94.º, n.º 2 do CPP consigna-se que o presente Acórdão foi elaborado e revisto pela relatora; tem voto de conformidade por parte do Exmo. Desembargador Adjunto, Dr.º João Martinho de Sousa Cardoso, atento o atual estado de pandemia da Covid-19.
Évora, 12 de janeiro de 2021.
Beatriz Marques Borges - Relatora
Martinho Cardoso
_________________________________________________

[1] FERNANDES, Carvalho – “Teoria Geral do Direito Civil II: Fontes, Conteúdo e Garantia da Relação Jurídica”. Universidade Católica Editora. 5.ª edição revista e atualizada. 2014. P. 706. ISBN 978-972-54-0274-0.

[2] O artigo 115.º do CP sob a epígrafe “Extinção do direito de queixa estabelece que ”1 - O direito de queixa extingue-se no prazo de seis meses a contar da data em que o titular tiver tido conhecimento do facto e dos seus autores, ou a partir da morte do ofendido, ou da data em que ele se tiver tornado incapaz. (…). 4 - Sendo vários os titulares do direito de queixa, o prazo conta-se autonomamente para cada um deles.”

[3] Cf. ALBUQUERQUE, Paulo Pinto – “Comentário do Código Penal: À Luz da Constituição da República e da Convenção Europeia dos Direitos do Homem”. 3.ª edição atualizada. Universidade Católica Editora. P. 471 anotação 11. ISBN 978-972-54-0489-8.

[4] Entre inúmeros Acórdãos que podem ser consultados a este propósito, designadamente na anotação ao artigo 115.º do Código Penal publicado no site da PGR, cabe salientar o Ac. do TRP de 13-07-2011, proferido no processo n.º 773/08.2TAVRL.P1 em que foi relatora EDUARDA LOBO onde é referido o seguinte: “I. O prazo para o exercício do direito de queixa [artº115º, do CP] é um prazo de caducidade, de natureza substantiva, uma vez que ainda não existe um processo. II. Tal prazo está sujeito à contagem do artº279º do CC, pelo que se o seu termo ocorrer ao domingo ou feriado, transfere-se para o primeiro dia útil seguinte. III. O mesmo acontece se o termo do prazo acorrer a um sábado. IV. A forma de contagem de um prazo, ainda que de natureza substantiva, em nada contende com a forma de entrega ou remessa z juízo de peças processuais [artº150º, do CPC]. V. Se a queixosa optou por praticar o acto [apresentação da queixa] em juízo e por escrito, através da remessa pelo correio, sob registo, vale como data da prática do acto a da efectivação do respectivo registo postal [artº150º, nº2, al. b)].

[5] GERALDES, Abrantes – “Recursos no Novo Código do Processo Civil”. Almedina. Julho 2013. Coimbra. P. 160. ISBN 978-972-40-5255-7.

[6] Ob. cit. P. 219.