Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
342/15.0GEBNV.E1
Relator: ANTÓNIO JOÃO LATAS
Descritores: CONDUÇÃO DE VELOCIPEDE EM ESTADO DE EMBRIAGUEZ
FALTA DE CONSCIÊNCIA DA ILICITUDE
CENSURABILIDADE
Data do Acordão: 07/13/2017
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Meio Processual: RECURSO PENAL
Decisão: PROVIDO
Sumário:
I - Perspetivando-se o conhecimento da ilicitude como materialidade que acresce ao conhecimento dos elementos objetivos do tipo de ilícito, a falta de consciência da punibilidade que lhe corresponde como realidade negativa, tanto pode ser juridicamente qualificada de erro sobre as proibições, nos termos do art. 16º, como erro sobre a ilicitude de que trata o art. 17º, ambos do C. Penal, correspondendo-lhe regimes jurídicos diferentes, incluindo consequências jurídicas igualmente diversas, de que pode resultar mesmo a irrelevância do erro em ambas as hipóteses.

II - A eventual relevância do erro a que se reporta o art. 16º nº1 do C.Penal e, portanto, do facto apurado ou a apurar (“o arguido não sabia ser proibida e punida por lei a sua conduta”) assenta em considerações de natureza jurídico penal ligadas ao tipo de ilícito em causa que permitam concluir ser necessário o conhecimento da proibição concreta para uma correta orientação do agente para o desvalor do ilícito, pelo que tal apreciação deve acompanhar a individualização e decisão do facto relativo ao desconhecimento da proibição.

III - A falta de conhecimento de que a norma penal pune igualmente a condução de veículo sem motor em estado de embriaguez, onde manifestamente se inclui o velocípede, não constitui erro sobre as proibições, nos termos do art. 16º nº1 do C.Penal, dado que o conhecimento da proibição e punição concreta não pode reputar-se razoavelmente indispensável para que o arguido tomasse consciência da ilicitude do facto.

IV - Assim resultando da factualidade provada e não provada que o arguido terá agido sem consciência da ilicitude ao conduzir o velocípede em estado de embriaguez, esta falta de consciência apenas pode imputar-se a deficiência da própria consciência ético-jurídica do agente, que não lhe permitiu apreender corretamente os valores jurídico-penais e que por isso, quando censurável, conforma o específico tipo de censura do dolo - cfr F. Dias, ob. cit. p. 73.

V - Segundo F.Dias o critério da não censurabilidade da falta de consciência da ilicitude encontrar-se-á na “retitude” da consciência errónea, de acordo com o qual a falta de consciência da ilicitude será não censurável sempre que (mas só quando) o engano ou erro da consciência ética, que se exprime no facto, não se fundamenta em uma atitude interna desvaliosa face aos valores jurídico-penais, pela qual o agente deve responder, o que se verificará nas situações em que a questão da ilicitude concreta (seja quando se considera a valoração em si mesma, seja quando ela se conexiona com a complexidade ou novidade da situação) se revele discutível e controvertida.

VI - A falta de prova de que o arguido sabia que a condução de velocípede na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas e sob a sua influência, era proibida e punida por lei, não obsta à sua condenação de acordo com a imputação a título de dolo (e não de negligência) que é feita na acusação, uma vez que não nos encontramos perante erro relevante sobre as proibições, que excluísse o dolo nos termos do art. 16º nº1, nem perante Erro não censurável sobre a ilicitude que excluísse a culpa, nos termos do art. 17º
VII - A aplicabilidade da pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor a condutor de veículo sem motor resulta da alteração introduzida no art. 69.º do C. Penal pela Lei 77/2001 de 13 de julho, que passou a prever a sua aplicabilidade a quem for condenado por crime previsto nos artigos 291.º ou 292.º, o que se mantém, contrariamente à versão originária introduzida pelo Dec.-lei 48/95 de 15 de março que apenas previa a aplicação daquela pena acessória a quem cometesse crime no exercício da condução de veículo motorizado.

Sumariado pelo relator
Decisão Texto Integral:
Em conferência, acordam os Juízes na 2ª subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora

I. Relatório

1. – Nos presentes autos de processo comum com intervenção do tribunal coletivo, o MP deduziu acusação contra J, nascido a 22 de Setembro de 1974, solteiro, pedreiro, imputando-lhe a prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efetivo, de:

- Um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal;

- Um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal;

- Um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal;

- Dois crimes de injúria, na forma agravada, previstos e punidos pelos artigos 181.º, n.º 1, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal.

2. Realizada a audiência de discussão e julgamento, o tribunal coletivo decidiu:

a) Absolver J. da prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, e de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal;

b) Condenar J. pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal, na pena de 6 (seis) meses de prisão, a qual se substitui pela pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros); de um crime de injúria, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, n.º 1, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros); de um crime de injúria, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, n.º 1, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros); e, em cúmulo jurídico, na pena de 6 (seis) meses de prisão, substituída pela pena de 180 (cento e oitenta) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros), e na pena de 80 (oitenta) dias de multa à taxa diária de €6,00 (seis euros), o que, em acumulação material, perfaz o valor global de €1.560,00 (mil quinhentos e sessenta euros);

3. – Inconformado com a decisão que absolveu o arguido da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal, o MP interpôs o presente recurso, de cuja motivação extrai as seguintes conclusões:

- « 1. O presente recurso vem interposto do acórdão, datado de 24 de Novembro de 2016, proferido nos autos identificados em epígrafe na parte em que, julgando a acusação improcedente, por não provada, absolveu o arguido J. da prática, em concurso real, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, p. e p. pelo art.º 292.º, n.º 1 do Código Penal;

2. Pelo presente recurso pretende o Ministério Público ver reapreciada a matéria de facto dada como não provada no ponto I dos factos não provados, a qual deveria ter sido dada como provada;

3. Assim, aos factos provados deverá ser acrescentado que “J quis conduzir o referido velocípede na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas e sob a sua influência, sabendo que esta sua conduta era proibida e punida por lei”;

4. A convicção do Tribunal, ao dar como não provado o facto ora em causa, alicerçou-se nas declarações francas, convictas e credíveis do arguido, que admitiu conduzir o velocípede naquele circunstancialismo de tempo e lugar, referindo, porém, que estava convencido que podia ingerir livremente bebidas alcoólicas, desconhecendo a proibição legal. Aliás, o arguido afirmou de forma muito espontânea, convincente e categórica que sempre esteve convicto que a condução de velocípedes o deixava “à vontade” para poder, querendo, tomar bebidas alcoólicas;

5. E ainda no depoimento do militar da Guarda Nacional Republicana que o fiscalizou, JC, que confirmou tais declarações, afirmando que, na ocasião, o arguido manifestou ostensiva e naturalmente a sua surpresa perante a necessidade de se submeter ao teste de alcoolemia e alegou convictamente que pensava não haver essa necessidade uma vez que conduzia um veículo sem motor;

6. Discorda o Ministério Público quanto à forma como o Tribunal valorou a matéria de facto produzida perante si em audiência de julgamento, pese embora a valoração seja livre de harmonia com o preceituado no art.º 127.º do Código Penal a mesma não pode ser arbitrária;

7. Salvo o devido respeito, que é muito, entendemos que o Tribunal fez uma incorrecta apreciação da matéria de facto produzida perante si em audiência;

8. Efectivamente, ao alicerçar o facto não provado aqui colocado em crise, em primeiro lugar, no depoimento prestado pelo arguido, o Tribunal a quo atribuiu força probatória plena às suas declarações relativamente à negação do facto típico objecto de acusação. O mesmo é dizer a força de confissão de facto desfavorável ao confitente;

9. Certo é que o artigo 344.º, n.º 1 do Código de Processo Penal prevê expressamente a valoração da confissão do arguido. Fazendo-o porém – cfr. corpo do referido preceito - relativamente aos “factos que lhe são imputados”;

10. A presunção de inocência do arguido – presunção abstracta - não tem o alcance de presunção de verdade das declarações do arguido sobre factos concretos que lhe são imputados, particularmente no que se refere a factos favoráveis ao “confitente”;

11. Com efeito o Código de Processo Penal reporta-se à confissão do arguido quanto a “factos que lhe são imputados”. O mesmo é dizer, factos descritos na acusação, como tal constitutivos do crime ou crimes imputados na acusação, como tais “desfavoráveis” ao arguido, a quem assiste o direito à não auto-incriminação;

12. Por outro lado, a afirmação de que a testemunha JC, militar da GNR “confirmou tais declarações, afirmando que, na ocasião, o arguido manifestou ostensiva e naturalmente a sua surpresa perante a necessidade de se submeter ao teste de alcoolemia e alegou convictamente que pensava não haver essa necessidade uma vez que conduzia um veículo sem motor” constitui, salvo o devido respeito, clara extrapolação do depoimento;

13. De facto, a testemunha, pessoa que interceptou o arguido na altura em que o mesmo seguia no velocípede, sem as mãos no guiador e a ler um papel que levava nas mãos, não afirmou – nem podia afirmar - que o arguido não sabia que o facto constituía crime. Apenas afirmou que o arguido “ficou um bocado surpreso porque, para ele, deu para perceber que ele quando estava a conduzir a bicicleta era como se não tivesse a obrigatoriedade de respeitar qualquer veículo em circulação na via pública. Como se ele não fosse um veículo, percebe? Mas no início ficou um bocado surpreso mas depois ele não se recusou”. O que é diferente, uma vez que o testemunho se reporta apenas a uma declaração ouvida ao agente e não ao facto tema de prova, em si, que, no caso, sendo subjectivo, apenas o agente poderia declarar;

14. De onde que o depoimento do agente sempre seria depoimento de ouvir dizer ao próprio arguido, em violação do disposto no art.º 125.º do CPP. Não tendo, por isso, outro valor intrínseco que não o de reproduzir o depoimento do próprio arguido, também ouvido em audiência;

15. Sendo também de salientar que esta testemunha não invocou qualquer razão de ciência sobre o facto – e sendo facto de natureza subjectiva somente o próprio poderia ter conhecimento dele, não podendo o militar da GNR testemunhar, a não ser por dedução;

16. Não tendo, pois, tal depoimento força capaz de impor a decisão ora recorrida;

17. Não se entende como é que não se logrou provar a efectiva intenção do arguido de exercer a condução em estado de embriaguez quando o mesmo, após ter ingerido uma quantidade significativa de bebidas alcoólicas – note-se que JC, apresentava uma taxa de álcool no sangue de 2,70 g/l -, circulou no velocípede, inclusivamente fazendo uma condução passível de colocar em risco os restantes utentes da via, tal como foi afirmado pelo militar da GNR;

18. Sendo que a sua conduta, ao não parar quando os militares da GNR lhe fizeram sinal de paragem e de agressividade e desrespeito quando o interceptaram, demonstra que o mesmo tinha perfeita consciência de que se encontrava a conduzir alcoolizado, e que tal era proibido por lei;

19. Os limites da liberdade valorativa da prova no âmbito penal são as regras da lógica e da razão, as máximas da experiência e os conhecimentos técnicos e científicos (neste sentido, vd. Acórdão da Relação do Porto, datado de 10.09.2014, disponível em www.dgsi.pt);

20. Ora, recorrendo às regras da experiência comum, qualquer homem médio sabe que não deve conduzir embriagado nas vias públicas, independentemente de conduzir veículo motorizado ou não, pois as suas capacidades encontram-se manifestamente diminuídas;

21. Pelo que, no caso dos autos, resulta provado o conhecimento, por parte do arguido, da ilicitude da sua conduta, pelas razões já aduzidas, nos termos resultantes da reapreciação da matéria de facto;

23. Pelo que o Tribunal recorrido, com a decisão proferida, incorreu também em erro de julgamento;

24. Resulta da factualidade provada que o arguido conduzia pela via pública, apresentando uma taxa de álcool no sangue de 2,70 g/l, deduzido o erro máximo admissível e, portanto, superior à taxa prevista na norma em apreço. Deste modo, a sua conduta integra o tipo objectivo do crime em causa;

25. Conforme ficou supra exposto, a conduta do arguido foi voluntária e consciente bem sabendo que não podia conduzir veículos com aquela taxa de álcool no sangue e que a sua conduta era proibida por lei;

26. Assim sendo, inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, encontram-se preenchidos todos os elementos constitutivos do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, pelo qual o arguido deverá ser condenado;

27. Pelo que o Tribunal a quo, ao não condenar o arguido J por este tipo de crime violou o art.º 127.º do Código Processo Penal e o art.º 292.º do Código Penal;

28. Concluindo-se pela prática, por parte do arguido, do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido no artigo 292.º do Código Penal, impõe-se a aplicação da respectiva pena;

29. O crime de condução de veículo em estado de embriaguez é punível, em abstracto, com pena de prisão de um mês a um ano ou multa de 10 até 120 dias;

30. Em matéria de escolha da pena, rege o princípio geral da preferência pela pena alternativa não privativa da liberdade, a qual deverá ser aplicada sempre que, verificados os respectivos pressupostos de aplicação, se revele adequada e suficiente à realização das finalidades da punição (artigo 70.º do Código Penal);

31. Assim, atendendo à ausência de antecedentes criminais, que o arguido está socialmente inserido e ainda à natureza do facto, julga-se adequada a aplicação da pena de multa - a qual, além do mais, se revela suficiente para acautelar as necessárias exigências de prevenção geral de integração;

32. Considerando tais factores, julga-se por adequado punir o arguido com pena de multa, devendo a mesma ser fixada em 60 (sessenta) dias de multa;

33. O quantitativo diário da multa deverá ser determinado em função da situação económica do arguido (artigo 47.º, n.º 2, do Código Penal), para a qual se deverá atender à totalidade dos seus rendimentos próprios, deduzidos dos encargos, deveres e obrigações que sobre estes impendem, com particular relevo para os derivados de deveres jurídicos de assistência no âmbito familiar;

34. Atendendo aos factos dados como provados, deverá o quantitativo diário ser fixado em € 6,00;

35. A determinação da medida da pena acessória deve operar-se mediante recurso aos critérios gerais constantes do art. 71º do Código Penal, com a ressalva de que a finalidade a atingir pela pena acessória é mais restrita, na medida em que a sanção acessória tem em vista sobretudo prevenir a perigosidade do agente, ainda que se lhe assinale também um efeito de prevenção geral (cfr. entre outros Ac. RC de 07.11.1996, na CJ/1996, t. 5, p. 47; Ac. RC de 18.12.1996, na CJ/1996, t. 5, p. 62; e Ac. RC de 17.01.2001, CJ/2001, t. 1, p. 51);

36. No que respeita à medida da sanção, a moldura abstracta varia entre o limite mínimo de 3 meses e o limite máximo de 3 anos;

37. A seu favor tem pois o arguido a circunstância de ser primário, com a consequente e forte expectativa de que a sanção surta o efeito preventivo, por constituir o primeiro confronto com os órgãos repressivos, evitando a prática de novas condutas semelhantes;

38. É elevada a prevenção geral;

39. E deve ser igualmente relevada a quantidade de álcool com que o arguido conduzia, considerada bastante elevada em termos comparativos com o legalmente permitido;

40. Considerando os limites, mínimo e máximo, assinalados no tipo legal, afigura-se justo e equilibrado condenar o arguido na inibição de conduzir pelo período de 11 (onze) meses.

41. Pelo exposto, a ora recorrente requer a V. Exas, se dignem proceder à alteração do julgamento e dar como provado, o facto supra referido, requerendo-se, consequentemente, a condenação do arguido.»

4. – Na sua resposta, o arguido pugna pela total improcedência do recurso.

5. – Nesta Relação, o senhor Procurador-Geral Adjunto emitiu parecer em que analisa as questões suscitadas e conclui pela total procedência do recurso.

6 – Cumprido o disposto no art. 417º nº2 do CPP, o arguido veio reafirmar o essencial da sua resposta, concluindo novamente no sentido da improcedência do recurso.

7 – A decisão recorrida (transcrição parcial):

«1.º FACTOS PROVADOS
Discutida a causa, resultaram provados os seguintes factos com interesse para a boa decisão da mesma:

1) No dia 9 de Setembro de 2015, pelas 19 horas e 30 minutos, J. conduzia velocípede sem motor pela Rua 25 de Abril, em Glória do Ribatejo.

2) Neste circunstancialismo de tempo e lugar, J., por ter ingerido bebidas alcoólicas, apresentava uma taxa de álcool no sangue de 2,70 g/l.

3) Nessa circunstância, os militares da Guarda Nacional Republicana CL e JC encontravam-se, devidamente uniformizados, a exercer funções na rua onde circulava J. e, ao verificarem que o mesmo conduzia sem as mãos no guiador, deram-lhe ordem para parar, ao que o mesmo lhes disse “vão mas é para o caralho seus filhos da puta, agora eu não possa andar de bicicleta sem as mãos no guiador?”.

4) Ao ser abordado pelos mencionados militares da Guarda Nacional Republicana, J. disse-lhes ainda “vão-se embora cabrões do caralho, não me chateiem mas é”, e propôs-se continuar o seu caminho, ao que foi impedido pelo guarda CL que lhe disse que se não mudasse de atitude seria detido.

5) Acto contínuo, J. atingiu CL com dois murros no peito, que não lhe causaram qualquer lesão, e disse-lhe “pára seu cabrão, larga-me senão eu mato-te, tu não sabes com quem te estás a meter”.

6) Nessa altura foi comunicado a J. que se encontrava detido, o qual, para obviar à sua detenção, procurou libertar-se do militar da Guarda Nacional Republicana CL, desferindo-lhe empurrões, enquanto dizia, dirigindo-se igualmente a JC, “seus filhos da puta, é melhor largarem-me não sabem com quem se estão a meter, eu estou-vos a avisar vocês vão-se foder”.

7) J. apenas parou quando os militares da Guarda Nacional Republicana lograram colocar-lhe algemas nos pulsos.

8) J. representou ainda e quis atingir o aludido militar da Guarda Nacional Republicana com murros e empurrões e, bem assim, dirigir-lhe as aludidas expressões com o propósito de o impedir de praticar acto legítimo relativo às suas funções, designadamente impedir a sua detenção.

9) Ao dirigir-se aos aludidos militares da Guarda Nacional Republicana da forma como o fez, ciente que os mesmos se encontravam no exercício das suas funções, J. sabia que tais expressões eram idóneas a atingi-los na sua estima e consideração, bem como na sua dignidade profissional, e, mesmo assim, quis actuar da forma descrita.

10) Em todas as ocasiões indicadas em 3) a 7), J. agiu de forma livre, deliberada e consciente, sabendo que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei.

11) J. não tem antecedentes criminais.

12) J. exerce a profissão de pedreiro e aufere uma remuneração mensal no valor de € 520,00 (quinhentos e vinte euros).

13) J. vive com o pai em casa própria do segundo.

14) J. contribui para as despesas do agregado familiar com o valor mensal de cerca de €100,00 (cem euros).

15) J. tem o 6.º ano de escolaridade.

16) J. não se encontra habilitado com licença de condução.

2.º FACTOS NÃO PROVADOS

Nenhuns outros factos se provaram com interesse para a boa decisão da causa, designadamente e no essencial, que:

I) J. quis conduzir o referido velocípede na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas e sob a sua influência, sabendo que esta sua conduta era proibida e punida por lei.

II) J. quis atingir CL com dois murros no peito, sabendo que dessa forma lhe causava dores nos locais atingidos.

3.º MOTIVAÇÃO DE FACTO
O Tribunal formou a sua convicção com base na análise crítica do conjunto da prova produzida em audiência de julgamento, designadamente as declarações do arguido, os depoimentos das testemunhas, os elementos documentais e o exame pericial produzidos e examinados em audiência.

O critério de valoração da prova é o da livre apreciação, segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, de acordo com o disposto no artigo 127.º do Código de Processo Penal.

A factualidade provada em 1) a 7) alicerçou-se nos depoimentos das testemunhas CL e de JC, militares da Guarda Nacional Republicana que acompanharam e presenciaram toda a execução dos factos imputados ao arguido e que depuseram de forma honesta, sincera, espontânea e verosímil, confirmando na íntegra todos factos descritos no libelo acusatório. Aliás, estas testemunhas não só tiveram intervenção directa nos factos descritos, como seguiram acompanharam o arguido durante todo o percurso que efectuou desde que surgiu a conduzir o velocípede sem as mãos no volante até o momento em que foi detido e conduzido ao posto territorial da Guarda Nacional Republicana.

Mais se ponderou o teor do auto de notícia de fls. 3 e do talão com o resultado da pesquisa de teor de álcool no sangue de fls. 15, cuja autenticidade e veracidade do conteúdo não foram fundadamente postas em causa. Este documento e o exame pericial atestam de forma cabal e inequívoca o circunstancialismo temporal em que ocorreram os factos e a taxa de álcool no sangue apresentada pelo arguido no circunstancialismo descrito pelas testemunhas.

Por fim, cumpre salientar que o próprio arguido confirmou, no essencial, a factualidade que foi dada como provada, referindo somente não ter memória precisa da verificação de qualquer efectiva agressão verbal ou física os militares da Guarda Nacional Republica, mas apenas da existência de uma ostensiva manifestação de animosidade da sua parte em relação aos militares - esquecimento que, aliás, não surpreende, se considerarmos o estado de alcoolemia em que o arguido se encontrava, que lhe determinou uma taxa de álcool no sangue de 2,70 g/l. Neste contexto, impõe-se referir que, não só se afigura plausível que o arguido, atento o estado em que se encontrava, não tenha memória precisa de todo o desenrolar dos acontecimentos - não sendo, portanto, as declarações inseguras do arguido susceptíveis de abalar a convicção do Tribunal no sentido apontado uma vez que o relato das testemunhas CL e de JC se mostra absolutamente sincero, homogéneo, circunstanciado e congruente, merecendo, por isso, total credibilidade.

Os factos subjectivos provados em 8) a 10) porque insusceptíveis de prova directa, dada a sua natureza, extraem-se dos factos objectivos provados, que, tendo em conta as regras da experiência comum e com base em presunção natural, permitem de forma segura inferir tal factualidade.

A ausência de antecedentes criminais, factualidade provada em 11), resulta do teor do Certificado de Registo Criminal do arguido junto a fls. 90.

A factualidade provada em 12) a 16), respeitante à situação pessoal e à motivação do arguido, alicerçou-se nas suas declarações, que merecem credibilidade face à notória espontaneidade que demonstrou ao responder a todas as perguntas.

Considerou se como não provada a restante factualidade elencada no libelo acusatório uma vez que não foi feita prova concludente sobre a mesma.

Com efeito, os factos não provados em I) alicerçaram-se nas declarações francas, convictas e credíveis do arguido, que admitiu conduzir o velocípede naquele circunstancialismo de tempo e lugar, referindo, porém, que estava convencido que podia ingerir livremente bebidas alcoólicas, desconhecendo a proibição legal. Aliás, o arguido afirmou de forma muito espontânea, convincente e categórica que sempre esteve convicto que a condução de velocípedes o deixava “à vontade” para poder, querendo, tomar bebidas alcoólicas.

Mais se considerou o depoimento do militar da Guarda Nacional Republicana que o fiscalizou, JC, que confirmou tais declarações, afirmando que, na ocasião, o arguido manifestou ostensiva e naturalmente a sua surpresa perante a necessidade de se submeter ao teste de alcoolemia e alegou convictamente que pensava não haver essa necessidade uma vez que conduzia um veículo sem motor.

Sucede que, a par da total genuinidade e sinceridade das declarações do arguido, a circunstância do mesmo somente ter o 6.º ano de escolaridade e não se encontrar sequer habilitado com licença de condução (ou seja, não tendo conhecimento específico sobre o Código da Estrada) revela uma manifesta plausibilidade do invocado desconhecimento da norma incriminatória.

Portanto, no caso sub judice, verifica-se efectivamente uma convicção negativa do Tribunal uma vez que a conjugação da prova supra elencada não demonstra de forma cabal esta factualidade.

Ora, o princípio da presunção de inocência é um princípio fundamental num Estado de Direito democrático, cuja função é, sobretudo (mas não só), a de reger a valoração da prova pela autoridade judiciária, ou seja, o processo de formação da convicção com base nos meios de prova.

Como bem faz notar Cristina Líbano Monteiro, in “Perigosidade de Inimputáveis e In Dubio Pro Reo”, Boletim da Faculdade de Direito da Universidade de Coimba, 1997, pág. 53, o princípio da livre apreciação da prova, entendido como esforço para alcançar a verdade material, encontra no “in dubio pro reo” o seu limite normativo e “livre convicção e dúvida que impede a sua formação são face e contra-face de uma mesma intenção: a de imprimir à prova a marca de razoabilidade ou da racionalidade objectiva”.

O princípio do “in dubio pro reo” não é mais que uma regra de decisão: produzida a prova e efectuada a sua valoração, quando o resultado do processo probatório seja uma dúvida, uma dúvida razoável e insuperável sobre a realidade dos factos, ou seja, subsistindo no espírito do julgador uma dúvida positiva e invencível sobre a verificação, ou não, de determinado facto, o juiz deve decidir a favor do arguido, dando como não provado o facto que lhe é desfavorável.

Um non liquet sobre um facto da acusação recai materialmente sobre o Ministério Público, enquanto titular da acção penal, pois que sobre o arguido não impende qualquer dever de colaboração na descoberta da verdade.

Assim, um primeiro aspecto cumpre realçar: o in dubio pro reo só vale para dúvidas insanáveis sobre a verificação ou não de factos (objectivos ou subjectivos) relevantes, quer para a determinação da responsabilidade do arguido, quer para a graduação da sua culpa.

O segundo aspecto a assinalar é o de que não é qualquer dúvida que há-de levar o tribunal a decidir “pro reo”. Tem de ser uma dúvida razoável, que impeça a convicção do tribunal.

Não é razoável, porque meramente subjectiva, a dúvida que brota como efeito de uma consciência indefinidamente hesitante ou exasperadamente escrupulosa, ou até de um deficiente estudo do material probatório.

No caso vertente, logrou-se apurar com toda a segurança a existência de um circunstancialismo muito suspeito e indiciador da prática dos factos ilícitos em apreço, mas não demonstrar com a segurança exigida para uma condenação em processo penal a efectiva intenção do arguido de exercer a condução em estado de embriaguez. Ademais, nem sequer se provou que o arguido tivesse qualquer dever de conhecer a norma incriminadora uma vez que, não sendo encartado, nem sequer conhecia ou tinha o dever de conhecer o Código da Estrada.

Nestas circunstâncias concluir que o arguido agiu de forma dolosa ou sequer negligente, no que concerne ao crime de condução de veículo em estado de embriaguez – com base apenas “ignorantia legis neminem excusat” (o desconhecimento da lei não aproveita a ninguém) – seria cair no arbítrio, no subjectivismo, em suma, não respeitar o aludido princípio da livre apreciação da prova a que o tribunal se encontra vinculado.

Nesta conformidade, tendo em atenção, como se disse, o princípio do in dubio pro reo, o Tribunal não pode deixar de dar como não provada esta factualidade.

Por fim, os factos não provados em II) alicerçaram-se nas declarações do arguido, que negou esta factualidade, concatenadas com o depoimento das testemunhas CL e JC, que afirmaram categoricamente que o arguido se limitou a resistir à detenção e, neste contexto, perpetrou ofensas ligeiras no militar da Guarda Nacional Republicana, que nem sequer lhe provocaram quaisquer lesões.

B) – FUNDAMENTAÇÃO DE DIREITO
QUESTÕES A DECIDIR

As questões jurídicas que importa conhecer, atento o objecto do processo, delimitado pelo teor da acusação, e o princípio da vinculação temática do Tribunal, são as seguintes:

- Primeira, aquilatar se J. deve ser jurídico-penalmente responsabilizado pela prática, em autoria material, na forma consumada e em concurso efectivo, de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal; de um crime de ofensa à integridade física, previsto e punido pelo artigo 143.º, n.º 1, do Código Penal; de um crime de resistência e coacção sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal; e de dois crimes de injúria, na forma agravada, previstos e punidos pelos artigos 181.º, n.º 1, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal; e

- Segunda, caso se conclua pela sua responsabilidade jurídico-penal, apurar a espécie e medida das penas a aplicar-lhe.

1.º ENQUADRAMENTO JURÍDICO-PENAL DOS FACTOS
Vejamos então as normas fundamentais e os dados doutrinários e jurisprudenciais essenciais para o enquadramento jurídico do caso.

1. O arguido vem, desde logo, acusado da prática de um crime de condução em estado de embriaguez previsto no artigo 292.º, n.º 1 do Código Penal, que dispõe que “quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l é punido”.

Neste tipo legal de crime, o bem jurídico protegido é a segurança da circulação rodoviária, se bem que indirectamente se protejam outros bens jurídicos que se prendem com a segurança das pessoas face ao trânsito de veículos, como a vida ou a integridade física.

Exige-se, no tipo legal de crime objectivo, que o agente do crime conduza o mesmo com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l.

Sujeito activo deste crime pode ser todo aquele que conduza um veículo nas condições acima descritas.

Ao nível do tipo de ilícito subjectivo, o crime de condução de veículo em estado de embriaguez tanto poderá ter lugar a título doloso, ou seja, com conhecimento e vontade de realização do tipo legal de crime, que exprima uma atitude pessoal contrária ou indiferente ao dever-ser jurídico-penal, como negligente, face à assunção de uma atitude descuidada ou leviana em face das exigências jurídico-penais nos termos do artigo 15.º do mesmo diploma legal.

No caso sub judice resultou provado que o arguido, no dia 9 de Setembro de 2015 conduziu um velocípede na Rua 25 de Abril, em Glória do Ribatejo, com uma taxa de álcool no sangue de 2,70 g/l.

Há, deste modo, que concluir que o arguido, com a sua conduta, preencheu os elementos objectivos do crime de condução de veículo em estado de embriaguez, de que vem acusado. Na verdade, este conduziu um veículo sem motor na via pública, com uma taxa de álcool no sangue superior a 1,20 g/l.

No que concerne aos elementos subjectivos do mesmo tipo de ilícito criminal, verifica-se uma ausência de conhecimento sobre a relação de contrariedade entre a conduta do arguido e o comando emergente da norma jurídica, porque o agente ignorava a existência da norma que incriminasse a condução de veículo sem motor em estado de embriaguez, actuando, por conseguinte, sem o conhecimento de que fazia algo que a lei proíbe. Este enquadramento conduz, nesta parte, à absolvição do arguido uma vez que, como vimos, não resultou igualmente demonstrada uma actuação negligente do arguido.

(…)
Cumpre agora apreciar e decidir o presente recurso

II. Fundamentação

1. Delimitação do objeto do recurso.
É pacífico o entendimento de que o âmbito do recurso se define pelas conclusões que o recorrente extrai da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso.

1.1.Tal como referido, o MP apenas vem recorrer da decisão do tribunal coletivo que absolveu o arguido da prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido pelo artigo 292.º, n.º 1, do Código Penal. Começa por impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto que se descreve no ponto I dos factos não provados, tal como foi considerado pelo tribunal a quo. que é do seguinte teor:

Entende o MP recorrente que deveria ter sido dado como provado aquela factualidade, ou seja, que “J. quis conduzir o referido velocípede na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas e sob a sua influência, sabendo que esta sua conduta era proibida e punida por lei”, do decorre, como diz, encontrarem-se preenchidos todos os elementos constitutivos do crime de condução de veículo em estado de embriaguez.

E mesmo que assim não fosse, continua o recorrente, sempre a alegada falta de consciência da ilicitude seria censurável porquanto revelaria uma qualidade desvaliosa e jurídico-penalmente relevante da personalidade do agente, levando à condenação do arguido, pelo que mesmo a improceder a impugnação em matéria de facto sempre terá que apreciar-se e decidir-se esta questão de direito.

Conclui o MP recorrente que, inexistindo qualquer causa de exclusão da ilicitude ou da culpa, deve o arguido ser condenado pela prática de um crime de condução de veículo em estado de embriaguez, previsto e punido no artigo 292.º do Código Penal, na pena de 60 (sessenta) dias de multa, à taxa diária de € 6,00, e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 11 (onze) meses.

1.2. Apesar da sua formulação unitária, o segmento da decisão ora impugnado - que o tribunal recorrido incluiu na factualidade não provada – reporta-se a duas realidades distintas.

A primeira corresponde aos elementos subjetivos do tipo de ilícito (dolo do tipo-de ilícito), e é do seguinte teor:

- Não provado que o arguido J. quis conduzir o referido velocípede na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas e sob a sua influência;

A segunda realidade ali incluída respeita ao desconhecimento do tipo penal e à consciência da ilicitude – “ O arguido sabia que esta sua conduta [conduzir o referido velocípede na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas e sob a sua influência) era proibida e punida por lei” – e encerra uma afirmação de facto, enquanto acontecimento histórico, de natureza psicológica, probatoriamente demonstrável, determinante em matéria de erro sobre a punibilidade.

Afirmação factual que tem por objeto o conhecimento da norma legal de proibição no casos previstos no art. 16º nº1 ou, diretamente, a punibilidade da conduta, não enquanto resultado da perceção de uma concreta norma legal proibitiva, mas enquanto produto de um juízo valorativo que, em regra, se pressupõe indiciado pelo conhecimento dos elementos objetivos e subjetivos do tipo-de-ilícito, ao qual se refere o art. 17º do C. Penal, mas que pode encontrar-se ausente em concreto.

É nesta dimensão factual mais ampla – abrangendo, pois, o desconhecimento da norma proibitiva e a falta de consciência da ilicitude, independente desse desconhecimento - que a parte final do ponto I da factualidade não provada subsistirá como objeto da impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, como veremos adiante.

1.3. Em todo o caso, apesar de o acórdão recorrido e o voto de vencido não mencionarem em passo algum os artigos 16º e 17º, do C. Penal, a relação entre estes e o regime neles estabelecido é essencial à decisão a proferir, pelo que importa proceder à qualificação do desconhecimento da norma proibitiva pelo arguido como eventual erro - relevante - sobre proibições cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para que o agente tome consciência da ilicitude do facto (artigo 16º nº1 do C. Penal) ou, antes, como erro sobre a ilicitude a que se reporta o art. 17º do C. Penal, de modo a extrairmos daí as devidas consequências jurídicas e decidir se o MP recorrente tem razão ao pretender a condenação do arguido, tanto por razões de facto como de direito.

1.4. No caso de procedência do recurso quanto à pretendida condenação do arguido, haverá que proceder-se, então, à qualificação jurídica dos factos e à consequente determinação das sanções a aplicar.

1.5. Antes de mais, porém, há que apreciar oficiosamente a verificação do vício de erro notório na apreciação da prova (art. 410º nº2 c) do CPP) relativamente a parte do ponto I da factualidade não provada, pois apesar de a impugnação em matéria de facto abranger esta factualidade, afigura-se-nos que o vício apontado resulta do texto da decisão recorrida, como melhor veremos.

2. Decidindo.
2.1. Com efeito, impõe-se começar por decidir oficiosamente da verificação de erro notório na apreciação da prova - art. 410º nº2 c) do CPP - relativamente a parte da factualidade do ponto I da factualidade não provada que, como vimos, é do seguinte teor:

- «J. quis conduzir o referido velocípede na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas e sob a sua influência, sabendo que esta sua conduta era proibida e punida por lei».

Ora, resulta claro dos termos da apreciação crítica da prova que os meios de prova invocados pelo tribunal a quo para fundar dúvida insanável e, consequentemente, a aplicação do princípio in dubio pro reo, apenas respeitam ao segundo segmento acima individualizado - o arguido sabia que esta sua conduta era proibida e punida por lei -, sem que o texto do acórdão recorrido enuncie ou reflita qualquer razão lógica ou de diferente natureza para que aquela mesma dúvida abranja o primeiro segmento em que se desdobra o ponto I da factualidade não provada, ou seja, «O arguido J. quis conduzir o referido velocípede na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas e sob a sua influência».

Com efeito, refere-se na apreciação crítica da prova que os factos não provados em I) alicerçaram-se nas declarações francas, convictas e credíveis do arguido, que admitiu conduzir o velocípede naquele circunstancialismo de tempo e lugar, referindo, porém, que estava convencido que podia ingerir livremente bebidas alcoólicas, desconhecendo a proibição legal, (…) que sempre esteve convicto que a condução de velocípedes o deixava “à vontade” para poder, querendo, tomar bebidas alcoólicas.

O tribunal recorrido considerou ainda o depoimento do militar da Guarda Nacional Republicana que o fiscalizou, JC, que afirmou ter o arguido manifestado ostensiva e naturalmente a sua surpresa perante a necessidade de se submeter ao teste de alcoolemia e alegou convictamente que pensava não haver essa necessidade uma vez que conduzia um veículo sem motor.

É, pois, manifesto que o estado de ignorância alegado pelo arguido e considerado pelo tribunal recorrido respeita somente à proibição e punição da condução de velocípede sem motor em estado de embriaguez e à consequente obrigação de se sujeitar ao teste de alcoolemia, e não à ingestão intencional de bebidas alcoólicas ou à condução intencional em estado de embriaguez, que o arguido não nega em passo algum. Pelo contrário, pode deduzir-se logicamente das declarações do arguido que o mesmo ingeriu bebidas alcoólicas e dispôs-se a conduzir o velocípede sob influência do álcool, por estar convencido que tal condução não era proibida.

Deve-se, pois, a erro manifesto e grosseiro na apreciação da prova a afirmação do tribunal recorrido de que não [se logrou] demonstrar com a segurança exigida para uma condenação em processo penal a efetiva intenção do arguido de exercer a condução em estado de embriaguez e a decisão correspondente de incluir no ponto I da factualidade não provada que – “O arguido J. quis conduzir o referido velocípede na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas e sob a sua influência”.

Assim, tendo em conta o disposto nos artigos 410º nº2 c) e 431º, do CPP, decide-se modificar a decisão proferida sobre a matéria de facto, por erro manifesto na apreciação da prova, alterando-se a redação do ponto I da factualidade não provada e passando parte do seu conteúdo a integrar a factualidade provada, com o nº 10º-A, nos seguintes termos:

- «Factos provados
10º-A - J. quis conduzir o velocípede na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas e sob a sua influência, como referido em 1) e 2) dos factos provados.»

“Factos não provados: I O Arguido, J., sabia que a condução de velocípede na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas e sob a sua influência, era proibida e punida por lei.».

2.2. Uma vez que o tribunal a quo considerou este último segmento no ponto I dos factos não provados, tomando-o como realidade factual probatoriamente demonstrável, a questão que subsiste enquanto objeto da impugnação em matéria de facto (art. 412º nº3 CPP) é a de saber se o tribunal a quo incorreu em error in judicando ao invocar dúvida séria e insanável para julgar não provado que o arguido J. sabia que ao conduzir velocípede na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas e sob a sua influência, era proibida e punida por lei, pois o tribunal a quo invocou a existência de dúvida insanável para considerar não provado aquele facto ao abrigo do princípio in dubio pro reo.

Porém, perspetivando-se o conhecimento da ilicitude como materialidade que acresce ao conhecimento dos elementos objetivos do tipo de ilícito, a falta de consciência da punibilidade que lhe corresponde como realidade negativa, tanto pode ser juridicamente qualificada como erro sobre as proibições, nos termos do art. 16º, ou erro sobre a ilicitude de que trata o art. 17º, ambos do C. Penal, correspondendo-lhe regimes jurídicos diferentes, incluindo consequências jurídicas igualmente diversas, de que pode resultar mesmo a irrelevância do erro em ambas as hipóteses, como melhor veremos.

2.3. Em todo o caso, dado que o tribunal a quo julgou não provado que o arguido sabia ser proibida e punida por lei a sua conduta e que esta decisão foi impugnada pelo MP nos termos do art. 412º nº 3 CPP, há, antes de mais, que decidir a impugnação, pois se esta proceder e dever considerar-se provada aquela factualidade, ficará sem substrato factual qualquer das hipóteses de erro sobre a punibilidade da sua conduta, impondo-se então, se assim for, a condenação do arguido.

Retomamos, pois, a apreciação e decisão da impugnação em matéria de facto.

Como vimos em 2.2., a questão de facto que constitui o objeto da impugnação em matéria de facto (art. 412º nº3 CPP), é a de saber se o tribunal a quo incorreu em error in judiciando ao invocar dúvida séria e insanável para julgar não provado que o arguido J. sabia que ao conduzir velocípede sem motor na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas e sob a sua influência, era proibida e punida por lei, pois o tribunal a quo invocou a existência de dúvida insanável para considerar não provado aquele facto ao abrigo do princípio in dubio pro reo.

Posto isto, lembremos que, como é sabido, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto visa demonstrar que as provas indicadas pelo recorrente impõem decisão diversa da recorrida (cfr art, 412º nºs 3, 4 e 6, do CPP), pelo que no caso presente a procedência da impugnação em matéria de facto depende de se entender com o MP recorrente que da conjugação das regras da experiência com a reapreciação das declarações do arguido e da testemunha JC, militar da GNR, (pois não há outros meios de prova que o tribunal de recurso pudesse reapreciar nos termos do nº6 do art. 412º CPP), resulta impor-se a conclusão probatória de que o arguido sabia ser proibida a condução de velocípede em estado de embriaguez, pelo que não podia o tribunal a quo invocar dúvida séria ou razoável e insanável relativamente ao conhecimento daquele facto pelo arguido.

Ora, conforme se diz claramente na apreciação crítica da prova, a dúvida que levou o tribunal a quo a julgar não provado o facto ora em apreciação resulta das declarações francas, convictas e credíveis do arguido, que afirmou estar convencido que podia ingerir livremente bebidas alcoólicas, desconhecendo a proibição legal, conjugadas com o depoimento do militar da GNR que fiscalizou o arguido, JC, que confirmou aquelas declarações, afirmando que, na ocasião, o arguido manifestou ostensiva e naturalmente a sua surpresa perante a necessidade de se submeter ao teste de alcoolemia e alegou convictamente que pensava não haver essa necessidade uma vez que conduzia um veículo sem motor. Ainda na explicação do tribunal recorrido, contribuíram para a manifesta plausibilidade do invocado desconhecimento da norma incriminatória, a circunstância de o arguido somente ter o 6.º ano de escolaridade e não se encontrar sequer habilitado com licença de condução (ou seja, não te[r] conhecimento específico sobre o Código da Estrada).

Por outro lado, do confronto da decisão impugnada com as passagens da apreciação crítica da prova ora transcritas, não decorre que o tribunal recorrido atribuiu valor probatório pleno às declarações prestadas pelo arguido em audiência, contrariamente ao que afirma o MP recorrente, mas antes que o tribunal a quo apreciou e valorou livremente as declarações do arguido, reconhecendo-lhes fidedignidade e plausibilidade suficiente para criar dúvida séria e insanável relativamente à prova do facto desfavorável ao arguido que lhe imputara a acusação, ou seja, que “O arguido sabia ser proibida a sua conduta”, o que equivale, como explicitámos antes, à afirmação de que o arguido “sabia ser proibida a condução de velocípede em estado de embriaguez”.

Assim sendo e tendo ainda em conta que no plano probatório a dúvida do tribunal a quo não é contrariada mas antes corroborada, em alguma medida, pelo testemunho de JC que depôs sobre o comportamento e as palavras proferidas pelo arguido ao ser fiscalizado, pelo grau de escolaridade do arguido e a circunstância de não possuir habilitação para a condução de veículos nos termos do código da estrada, uma vez que este diploma não o exige aos condutores de velocípede, não se vislumbra que o tribunal a quo tenha violado norma de direito probatório, regra técnica, científica da experiência comum, ou qualquer outra, ao invocar ter ficado em dúvida sobre o facto ora em causa, julgando-o não provado ao abrigo do princípio in dubio pro reo.

Improcede, pois, a impugnação da decisão proferida sobre a matéria de facto, mantendo-se entre os factos não provados que “I) O Arguido, J, sabia que a condução de velocípede na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas e sob a sua influência, era proibida e punida por lei.».

2.4. Posto isto, há que proceder ao enquadramento ou qualificação jurídica do erro sobre a punibilidade, para poder decidir-se então da relevância e eventuais consequências jurídico-penais dele decorrentes.

Vejamos então.
2.4.1. O C. Penal de 1886, assentando na dicotomia erro de facto, erro de direito, dispunha no art. 29º que a ignorância da lei penal não exime de responsabilidade criminal (§1º).

Diferentemente, o C. Penal de 1982, inspirado na doutrina de F. Dias exposta em “O problema da Consciência da Ilicitude em Direito Penal, 1969”, assenta o tratamento da problemática do erro que envolva a consciência da ilicitude, na distinção entre o erro sobre as circunstâncias do facto e sobre proibições, de que trata o art. 16º, e o Erro sobre ilicitude, a que se reporta o art.17º.

No que aqui importa diretamente, dispõe o nº1 do art. 16º que o erro sobre proibições cujo conhecimento seja razoavelmente indispensável para que o agente possa tomar consciência da ilicitude do facto, exclui o dolo, sem prejuízo da punibilidade da negligência nos termos gerais (nº3 do art. 16º), enquanto o art. 17º estabelece que age sem culpa quem atuar sem consciência da ilicitude por motivo de erro não censurável (nº1), sendo punido pela moldura legal do crime doloso, que pode ser especialmente atenuada, o agente cujo erro lhe for censurável.

De acordo com a doutrina de F. Dias, vertida no C.Penal de 1982 como referido, na situação a que se refere o artigo 16º nº1 do C. Penal estamos ainda – tal como no caso de erro sobre elementos do tipo e sobre pressupostos de facto de causa de justificação ou de exclusão da culpa – perante uma falta de conhecimento que deve ser imputada a uma falta de informação ou esclarecimentos e que, por isso, quando censurável conforma o específico tipo de censura próprio da negligência. No segundo caso (art. 17º) estamos perante uma deficiência da própria consciência ético-jurídica do agente, que não lhe permite apreender corretamente os valores jurídico-penais e que por isso, quando censurável, conforma o específico tipo de censura do dolo (cfr, por todos, F. Dias, Pressupostos da Punição e causas que excluem a ilicitude e a culpa in CEJ-Jornadas de Direito Criminal, 193 pp 72 e 73).

Nas palavras esclarecedoras de José António Veloso[1], “A distinção entre as hipóteses dos artigos 17º e 16º nº1, segunda parte, não é uma distinção na espécie do erro – o erro é em ambas as hipóteses …um erro-ignorância sobre a punibilidade, mas uma distinção no objeto do erro, isto é, nas incriminações a que respeita (negrito nosso):

a) O art. 17º refere-se aos crimes cuja punibilidade se pode presumir conhecida e não é desculpável que não seja conhecida de todos os cidadãos normalmente socializados. Daí o regime mais severo. Estes crimes são chamados “crimes naturais”, “crimes em si” ou “mala in se”. Todos os crimes previstos no Código Penal são “mala in se”.

b) A 2ª parte do nº 1 do art. 16º refere-se aos crimes cuja punibilidade se não pode presumir conhecida de todos os cidadãos, nem é sempre indesculpável que o não seja. Daí o regime mais benevolente de equiparação ao erro sobre o facto. Estes crimes são os chamados “crimes artificiais”, crimes de criação meramente estatal, “crimes meramente proibidos” ou mala prohibita

São tipos legais que se referem a condutas de pouca relevância axiológica, como sucede em muitos casos do chamado direito penal secundário, mas também em casos de novas incriminações, enquanto for aceitável o desconhecimento das novas normas.

Como diz F. Dias “Importa determinar em primeiro lugar … se, no caso concreto, já o simples conhecimento do tipo objetivo pelo agente ….era suficiente para uma correta orientação daquele para o desvalor do ilícito. Se se concluir que não e que, no caso, era ainda para tanto necessário o conhecimento da proibição (v.g. porque é fraca a coloração ética da conduta em causa; porque são razões de pura oportunidade ou de estratégia social que baseiam a proibição; ou porque nos deparamos com uma hipótese de neocriminalização que ainda não ganhou a devida ressonância ético-social), estamos perante um erro sobre a proibição relevante.” – cfr ob. e loc. cit. (negrito, nosso).

Na síntese de Teresa P. Beleza e Frederico Costa Pinto, O Regime Legal do Erro e as Normas Penais em Branco (Ubi lex distinguit …), p. 56, “… no sistema penal português a questão da ignorância da proibição pode ter duas soluções distintas, consoante se trate de um erro de conhecimento sobre proibições novas que incriminam condutas axiologicamente neutras (art. 16º nº1 in fine) ou seja, diversamente, um erro de valoração sobre proibições já vigentes no tecido social e que valoram condutas axiologicamente relevantes.”.

Na jurisprudência podem ver-se, por todos, os acórdãos do TRP de 25.06.2014 (270/12.1PAVFR.P1), relator, P. Vaz Patto, que julgou a situação em causa abrangida pela previsão do art. 16º do C. Penal, e o Ac RG de 8.09.2014 (235/13.6GAMLG.G1), relatora, Isabel Cerqueira, num caso abrangido pela previsão do art. 17º do C.Penal.

2.4.2. Ora, da apontada distinção e dos pressupostos de cada um dos tipos de erro, resulta que o desconhecimento, a mera ignorância, no plano factual, de proibição penalmente tutelada, releva como erro sobre as proibições a que se reporta a parte final do nº1 do artigo 16º, se concluirmos estar perante certos tipos de crime, certo tipo de conduta típica, relativamente à qual deva considerar-se ser necessário o conhecimento da proibição concreta para uma correta orientação do agente para o desvalor do ilícito. Ou seja, perante incriminação relativamente à qual possa dizer-se, no plano jurídico-penal, que o conhecimento da proibição pelo agente é determinante para a consciência da ilicitude, o que sucede relativamente às condutas ilícitas de escassa ou inexistente relevância axiológica, como sucede em muitos casos do chamado direito penal secundário, ou perante uma incriminação nova relativamente à qual é ainda aceitável o desconhecimento das novas normas, pois, repita-se, só nestas hipóteses o erro sobre as proibições pode ser relevante nos termos da segunda parte do art. 16º nº1 ou nº3, levando à exclusão do dolo e consequente absolvição ou à punição da negligência se a lei a incrimina.

A apreciação a fazer nesta sede assenta, pois, em considerações de natureza jurídico penal ligadas ao tipo de ilícito em causa, pelo que no plano prático-jurídico deve acompanhar a individualização do facto relativo ao desconhecimento da proibição (vg “o arguido não sabia ser proibida e punida por lei a sua conduta”) e consequente decisão sobre o mesmo facto.

Com efeito, só se concluirmos tratar-se de algum dos chamados crimes artificiais, do direito penal secundário, ou hipótese de neocriminalização, entre outras, o eventual desconhecimento da proibição e punição da conduta pode implicar a exclusão da imputação a título doloso nos termos do art. 16º nº1,2ª parte, do C. Penal.

Não se tratando de conduta axiologicamente neutra prevista em norma do chamado direito penal secundário ou em novo preceito penal, cuja incriminação não se encontre suficientemente assimilada pela generalidade dos destinatários, mostra-se afastado o regime previsto no art. 16º do C. Penal, pelo que a afirmação de que o agente não sabia ser proibida e punida por lei a sua conduta apenas pode constituir erro de valoração sobre condutas axiologicamente relevantes que, não sendo censurável, possa excluir o juízo de culpa ou, sendo-o, possa fundamentar punição especialmente atenuada, tudo nos termos do art. 17º C. Penal. Não se verificando nenhuma destas hipóteses, será o erro irrelevante para efeitos da culpa, ainda que possa ser tido em conta na determinação concreta da pena, face ao disposto genericamente no art. 71º do C. Penal.

2.4.3. Assim sendo, uma vez que o tribunal a quo não apreciou jurídico- penalmente a incriminação para efeitos de decisão sobre a relevância do erro que considerou verificado ao julgar não provado que o arguido sabia ser proibida e punida por lei a sua conduta, impõe-se fazê-lo, ou seja, impõe-se apreciar e decidir se estamos perante norma do chamado direito penal secundário, incriminadora de conduta de pouca relevância axiológica e/ou perante nova incriminação que não ganhou ainda a devida ressonância ético-social, pois só se assim for poderá dizer-se que o conhecimento da proibição legal de conduzir velocípede em estado de embriaguez é razoavelmente indispensável para que o arguido tomasse consciência da ilicitude do facto, nos termos e para efeitos do estabelecido no art. 16º.

2.4.4. Ora, no caso presente está em causa o crime de condução de veículo em estado de embriaguez ou sob a influência de estupefacientes ou substâncias psicotrópicas previsto e punível pelo artigo 292.º do C. Penal, cujo número um tem a seguinte redação:

«1 - Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, em via pública ou equiparada, com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,2 g/l, é punido com pena de prisão até 1 ano ou com pena de multa até 120 dias, se pena mais grave lhe não couber por força de outra disposição legal.».

Este tipo penal encontra-se previsto no Código Penal desde a reforma operada pelo Dec. Lei 48/95 de 15 de março, que incorporou no C. Penal disposição de teor idêntico à que se encontrava prevista no art. 2º Dec.-lei 124/90 de 14 de abril que no seu artigo 2.º nº1 viera criar um novo ilícito de carácter penal, considerando crime a condução com uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 1,20 g/l.

Por sua vez, o Dec. Lei 14/90 revogara as disposições da Lei 3/82 de 29 de março que tinha vindo punir pela primeira vez entre nós a condução de veículos sob a influência do álcool, abrangendo já no seu artigo primeiro a condução de veículos com e sem motor, em via pública ou equiparada.

Significa isto, sem mais detalhes, que para além de se encontrar sedimentado o conhecimento da proibição de conduzir sob efeito do álcool pela generalidade dos cidadãos, é igualmente estável a perceção de que tal proibição não incide apenas sobre certas categorias de veículos, nomeadamente com motor. A punição da condução sob efeito do álcool sempre abrangeu a condução de veículos com ou sem motor, sendo certo que a conduta típica assim caraterizada constitui crime desde a entrada em vigor do Dec.-lei 124/90 e as normas incriminatórias sempre mencionaram expressamente veículos com ou sem motor, quer no tempo em que tais normas constavam de legislação extraordinária (Lei 3/82 e Dec.lei 124/90), quer desde que, com a reforma de 1995, aquela conduta passou a encontrar-se prevista no art. 292º do C. Penal.

Estamos pois em face de norma incriminadora do chamado direito penal clássico, que consta do Código Penal desde 1995, cuja ressonância ético social é manifesta, por se tratar de incriminação que desde sempre constitui reação ao aumento da sinistralidade rodoviária provocada pela condução sob efeito do álcool, atuando como medidas dissuasora daquele comportamento, sem distinguir entre a condução de veículos com e sem motor e mencionando mesmo estas duas categorias de veículos nas normas incriminadoras.

Não carece, assim, de maior fundamentação a conclusão de que a falta de conhecimento de que a norma penal prevê igualmente a condução de veículo sem motor, onde manifestamente se inclui o velocípede, não constitui erro sobre as proibições, nos termos do art. 16º nº1 do C.Penal, dado que o conhecimento da proibição e punição concreta não pode reputar-se razoavelmente indispensável para que o arguido tomasse consciência da ilicitude do facto, como vimos.

Diga-se ainda que a verificar-se erro sobre as proibições, nos termos da parte final do nº1 do art. 16º, o tribunal recorrido teria deixado de apreciar devidamente a conduta do arguido face à ressalva da punibilidade da negligência nos termos gerais constante do nº3 do art. 16º do C. Penal e à incriminação da condução em estado de embriaguez por negligência, prevista no art. 292º nº1 do C.Penal (cfr art. 379º nº 1 c) do CPP), pois limitou-se a afirmar apoditicamente que “Este enquadramento conduz, nesta parte, à absolvição do arguido uma vez que, como vimos, não resultou igualmente demonstrada um atuação negligente do arguido” (fls 136 dos autos), decidindo sem mais pela absolvição.

2.4.5. Afastada a hipótese de erro sobre as proibições a que se reporta o art. 16º nº1 do C. Penal, por nos encontrarmos perante crime mala in se, do direito penal clássico, verifica-se, assim, hipótese de Erro sobre a ilicitude por falta de prova do conhecimento da proibição e punição da conduta do arguido ao conduzir velocípede em estado de embriaguez, nos termos do art. 17º C Penal, falta de conhecimento este que, como vimos, não é imputada a uma falta de informação ou de esclarecimento, mas antes a erro de valoração.

Ou seja, estamos perante incriminação em que o simples conhecimento do tipo objetivo pelos arguidos em todas as circunstâncias relevantes, de facto e de direito, é suficiente para uma correta orientação para o desvalor do ilícito, resulta da factualidade provada e não provada que o arguido terá agido sem consciência da ilicitude ao conduzir o velocípede em estado de embriaguez, o que apenas pode imputar-se a deficiência da própria consciência ético-jurídica do agente, que não lhe permitiu apreender corretamente os valores jurídico-penais e que por isso, quando censurável, conforma o específico tipo de censura do dolo - cfr F. Dias, ob. cit. p. 73.

O que então poderá eventualmente censurar-se ao agente é não uma falta de cuidado, traduzida, por ex., na omissão do dever de se informar e de se esclarecer sobre a proibição legal, isto é, a censura típica da negligência, mas uma falta de consonância da sua consciência ética com os critérios de valor da ordem jurídica.

2.5.1. Porém, de acordo com a previsão do art. 17º nº1, só a falta de consciência da ilicitude não censurável exclui a culpa.

Rebatendo entendimento que concluísse não existir uma falta de consciência do ilícito não censurável, diz F. Dias, que o erro não censurável (art. 17º) depende de poder considerar-se que o erro ou engano da consciência ética que está na sua base não se funda, no caso, numa atitude desvaliosa e juridicamente censurável do agente, documentada no facto e que o fundamenta, mas antes na historicidade do existir humano: uma facticidade que está fora do âmbito de atuação do ser-livre, que antes o limita e não pode por isso ser, enquanto tal, imputada ao agente cmo culpa. (Cfr Direito penal, cit, pp 628 a 630. Discorrendo sobre o critério da não censurabilidade e seus limites, afirma o mesmo autor que este encontrar-se-á na “retitude” da consciência errónea, de acordo com o qual a falta de consciência da ilicitude será não censurável sempre que (mas só quando) o engano ou erro da consciência ética, que se exprime no facto, não se fundamenta em uma atitude interna desvaliosa face aos valores jurídico-penais, pela qual o agente deve responder. (F. Dias ob. cit. p. 635).

Concretizando os requisitos dos quais depende a verificação no agente de uma consciência jurídica recta, refere F.Dias que, antes de mais, uma falta de consciência do ilícito não censurável só pode em princípio verificar-se em situações em que a questão da ilicitude concreta (seja quando se considera a valoração em si mesma, seja quando ela se conexiona com a complexidade ou novidade da situação) se revele discutível e controvertida, pois só nestes casos se pode afirmar que o agente manifestou no facto uma atitude geral de fidelidade a exigências do direito, a que deve juntar-se ser propósito do agente corresponder a um ponto de vista de valor juridicamente relevante o fundamento da falta de consciência da ilicitude – ob. cit pp 637-9.

Ora, não só a punição da condução de velocípede em estado de embriaguez não é questão discutível e controvertida, como resultou provado que o arguido sabia e queria conduzir veículo na via pública em estado de embriaguez (incindindo o erro apenas sobre a punibilidade da condução de velocípede naquele estado), sendo certo que é do conhecimento comum que a condução em estado de embriaguez põe em causa a segurança rodoviária e os bens jurídicos individuais a ela associados, maxime a vida e a integridade física, crescentemente colocados em perigo pelo consumo de bebidas alcoólicas acompanhadas do exercício da condução, quer atingindo terceiros, quer os próprios condutores. Por outro lado, a generalidade dos cidadãos não ignora que esta proibição está intrinsecamente relacionada com a diminuição (que pode ser drástica), da aptidão para conduzir em segurança, independentemente do tipo de veículo conduzido e que tal ilícito tem natureza penal quando a taxa de álcool no sangue atinge valores determinados, bem inferiores à taxa verificada no caso presente (2,70 g/l).

Assim, encontramo-nos mesmo nos antípodas de uma atitude geral de fidelidade a exigências do direito, que pudesse fundar a não censurabilidade da falta de consciência da ilicitude.

Tão pouco a circunstância de não ser necessária licença para conduzir velocípedes torna menos censurável o erro do arguido, pois o caráter perigoso do exercício da condução em geral e, em particular, da condução em estado de embriaguez, são claramente suficientes para que o condutor de velocípede tenha consciência da ilicitude respetiva, ao mesmo tempo que fazem impender sobre ele o dever de conhecer as regras essenciais à condução na via pública independentemente da obrigatoriedade de licença de condução.

Assim sendo, o erro sobre a ilicitude não implica a exclusão da culpa no caso presente, dado o disposto no art. 17º nº1 do C. Penal, pelo que se impõe a condenação do arguido, contrariamente ao decidido pelo tribunal recorrido.

Por outro lado, face aos aspetos agora enfatizadas e ainda à gravidade da conduta concretamente levada a cabo pelo arguido, com destaque para o grau de alcoolemia verificado (2,70 gr/l) e a circunstância de conduzir sem as mãos no guiador, violando o disposto no art. 90º nº1 do C. Estrada e aumentando de forma sensível o perigo de lesão dos bens jurídicos protegidos, do próprio ou de terceiros, que se aproximam de uma atitude de hostilidade ao direito, afasta-se igualmente a atenuação especial da pena que o art. 17º nº2 do C. Penal admite.

2.5. Assim, face ao descrito nos pontos 1, 2 e 10º-A (ora aditado), da factualidade provada, mostram-se preenchidos os elementos objetivos e subjetivos do tipo de ilícito doloso de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo artigo 292º e 69º nº1, do C. Penal, que lhe vinha imputado, pelo que deve o arguido ser condenado de acordo com esta mesma imputação, apesar de ter resultado não provado que O Arguido, J, sabia que a condução de velocípede na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas e sob a sua influência, era proibida e punida por lei.». (vd supra em 2.1. e 2.3. a redação modificada do ponto I da factualidade não provada].

Com efeito, a falta de consciência da ilicitude - que respeita ao dolo do tipo-de-culpa ou culpa dolosa, na conceção bipartida do crime que distingue entre tipo- de-ilícito e tipo-de-culpa, seguida entre nós por F. Dias e Taipa de Carvalho, e não ao dolo do tipo-de-ilícito sob qualquer das modalidades a que se reporta o art. 14º do C.Penal - é irrelevante no caso presente, face ao disposto no art. 17º, tal como víramos sê-lo face ao regime acolhido no art. 16º.

Deste modo, a falta de prova de que o arguido sabia que a condução de velocípede na via pública após ter ingerido bebidas alcoólicas e sob a sua influência, era proibida e punida por lei, não obsta à sua condenação de acordo com a imputação a título de dolo (e não de negligência) que é feita na acusação, uma vez que não nos encontramos perante erro relevante sobre as proibições, que excluísse o dolo nos termos do art. 16º nº1, nem perante Erro não censurável sobre a ilicitude que excluísse a culpa, nos termos do art. 17º[2], sendo certo que não há igualmente lugar a especial atenuação da pena, como vimos.

Por último, importa deixar claro que face à invocação do princípio in dubio pro reo analisámos toda a questão como se a falta de prova daquele facto equivalesse juridicamente à prova do facto contrário no caso presente (já que logicamente não pode estabelecer-se tal equiparação, como é sabido), por ser essa a versão do facto mais favorável ao arguido.

Concluímos, pois, como referido, que o arguido deve ser condenado pela autoria do crime doloso de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo artigo 292º e 69º nº1, do C. Penal, que lhe vinha imputado, procedendo, assim, o recurso interposto pelo MP contra o acórdão absolutório.

2.6. Deste modo e tendo ainda em conta que de acordo com a jurisprudência fixada no AFJ 4/2016, em julgamento de recurso interposto de decisão absolutória da 1.ª instância, se a relação concluir pela condenação do arguido deve proceder à determinação da espécie e medida da pena, e que o acórdão recorrido apurou factualidade suficiente para o efeito, conforme é pressuposto daquele AFJ, há que proceder agora à determinação da sanção.

2.6.1. Nos termos do art. 292º do C. Penal, “Quem, pelo menos por negligência, conduzir veículo, com ou sem motor, … é punido com pena de prisão até um ano ou com pena de multa até 120 dias…”.

Por outro lado, o art. 70º do C. Penal expressa a preferência legal pela pena não privativa da liberdade, sempre que o tipo legal a preveja, sendo certo que não se verificam circunstâncias no caso presente que justifiquem a preterição dessa mesma preferência, tal como exposto pelo tribunal recorrido a propósito da pena de multa principal que decidiu aplicar pela prática dos crimes de injúria na forma agravada p. e p. pelos arts 181º nº1, 184º e 132º nº2 al. l), do C. Penal.

A moldura abstrata da pena de multa pelo crime previsto no art. 292º tem o seu mínimo em 10 dias (art. 47º C.Penal) e o seu máximo em 120 dias, como aludido. Contra o arguido pesam sobretudo o caráter doloso da conduta, a gravidade do ilícito, traduzida sobretudo na taxa de álcool no sangue com que conduzia (2,70 g/l), que se mostra fortemente inibidora das capacidades exigidas pela condução em via pública, nomeadamente em relação a veículos de duas rodas, e as fortes necessidades de prevenção geral positiva exigidas pela repetição de condutas desta natureza. A favor do arguido milita a falta de consciência da ilicitude, ainda que em pequena medida dados todos os aspetos realçados que apontam para a clara censura da mesma, e a ausência de antecedentes criminais, pouco relevando a situação pessoal ou económica.

Ponderando estas circunstâncias, considera-se adequada a pena principal de 75 dias de multa, à razão diária de 6,00€, pelas razões expendidas pelo tribunal a quo relativamente à condenação pelos referidos crimes de injúria qualificada.

No que concerne à pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor, a sua aplicabilidade a condutor de veículo sem motor resulta da alteração introduzida no art. 69º do C. Penal pela Lei 77/2001 de 13 de julho, que passou a prever a sua aplicabilidade a quem for condenado por crime previsto nos artigos 291.º ou 292.º, o que se mantém, contrariamente à versão originária introduzida pelo Dec.-lei 48/95 de 15 de março que apenas previa a aplicação daquela pena acessória a quem cometesse crime no exercício da condução de veículo motorizado.

Por outro lado, vimos entendendo que a pena acessória é aplicável mesmo a que não tenha título de condução, tanto nos casos em que a lei o exige, quer nas situações, como a presente, em que o condutor não carece de título de condução, pois a lei continua a não distinguir.

Prevendo o art. 69º a proibição de conduzir entre 1 mês e um ano, afigura-se-nos adequado fixar em 4 meses o período de proibição, atendendo, sobretudo, a que a pena respeita apenas a veículos com motor e, não havendo notícia de que o arguido é titular de habilitação para conduzir veículos daquela natureza, a eventual habilitação futura terá lugar após formação legalmente imposta que, crê-se, pode influenciar a atitude do arguido face aos deveres impostos pela condição de condutor, particularmente tratando-se de veículos com motor.

Vai, pois, o arguido condenado na pena principal de 75 dias de multa à razão de 6,00€ e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 meses, pela prática de um crime doloso de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo art. 292º nº1 do C. Penal.

2.6.2. Na reformulação do cúmulo jurídico que antes englobou duas penas de principais multa aplicadas pela prática dos dois crimes de injúria referidos, considera-se agora a pena principal de 75 dias de multa ora aplicada, pelo que tendo em conta o conjunto dos factos, maxime o contexto comum em que todos eles ocorreram, e a personalidade do arguido tal como esta resulta da conduta assumida perante os militares da GNR ao ser fiscalizado e demais factualidade apurada, fixa-se em 150 dias a pena principal de multa aplicada em cúmulo jurídico, a que acresce a pena de 180 dias de multa (de substituição) que substituiu a pena de 6 meses de prisão que lhe foi aplicada pela prática de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal.

III. Dispositivo
Nesta conformidade, acordam os Juízes na 2ª subsecção Criminal do Tribunal da Relação de Évora, em conceder provimento ao recurso interposto pelo MP e, em consequência, decidem:

- Revogar a decisão absolutória do tribunal a quo e, em consequência:

- Condenar o arguido, J, pela prática de um crime doloso de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo art. 292º nº1 do C. Penal, na pena principal de 75 dias de multa à razão de 6,00€ e na pena acessória de proibição de conduzir veículos com motor pelo período de 4 meses, pela prática de um crime doloso de condução de veículo em estado de embriaguez p. e p. pelo art. 292º nº1 do C. Penal.

- Reformular o cúmulo jurídico - que engloba agora a pena principal de 75 dias e multa ora aplicada e as duas penas principais de 60 dias multa aplicadas pelo tribunal a quo pela prática de dois crimes de injúria, na forma agravada, previsto e punido pelos artigos 181.º, n.º 1, 184.º e 132.º, n.º 2, alínea l), do Código Penal, todas à taxa diária de €6,00 (seis euros) – , condenando arguido na pena única de 150 dias de multa principal à taxa de 6,00 € por dia, a que acresce em acumulação material a pena de 180 dias de multa de substituição, à razão de €6,00 (seis euros) diários, pela autoria de um crime de resistência e coação sobre funcionário, previsto e punido pelo artigo 347.º, n.º 1, do Código Penal.

Sem custas.

Évora, 13 de julho de 2017

(Processado em computador. Revisto pelo relator.)

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(António João Latas)

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(Carlos Jorge Berguete )
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[1] Erro em Direito penal, 2ª ed.,1999 p. 23.

[2] Conforme diz F. Dias, em síntese, “ Uma das espécies de erro exclui o dolo, ficando ressalva a punibilidade da diligência nos termos gerais [art. 16º]. A outra espécie de erro exclui a culpa se não for censurável [art. 17º] – merecendo por isso aqui, do ponto de vista dogmático, o designativo de causa de exclusão da culpa (infra 23º Cap.) – enquanto se for censurável deixa persistir a punição a título de dolo, se bem que possa que a pena possa eventualmente ser especialmente atenuada.”- Direito Penal I, 2ª ed. p. 542.