Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
4262/13.5YYLSB.E1
Relator: MARIA DOMINGAS
Descritores: DIREITO REAL DE HABITAÇÃO PERIÓDICA
PRESCRIÇÃO
EXERCÍCIO DE DIREITO
Data do Acordão: 06/25/2020
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: I. Nos termos do art.º 22.º do DL 275/93, de 5 de Agosto, as prestações a que os titulares de DRHP se encontram obrigados são a contrapartida dos encargos de gestão, destinando-se ainda a compensar o proprietário do empreendimento turístico pelas despesas a que está sujeito.
II. Encontrando-se vinculadas pela lei a tal finalidade, não pode o titular obrigado invocar a excepção do não cumprimento para se eximir ao cumprimento de tais prestações no caso de lhe ter sido recusado o uso da unidade de alojamento, ainda que tal recusa seja ilícita, cabendo-lhe antes o direito a ser indemnizado pelos prejuízos sofridos.
(Sumário da Relatora)
Decisão Texto Integral: Proc. n.º 4262/13.5YYLSB.E1
Tribunal Judicial da comarca de Faro
Juízo de Execução de Loulé


I. Relatório
(…), executado nos autos principais, sendo exequente (…), Investimentos Turísticos, SA, veio deduzir embargos, nos quais alegou, em síntese que de nada é devedor, estando a ser-lhe exigido o pagamento de valor em dívida atinente ao ano de 1994, anterior à aquisição pelo embargante do direito real de habitação periódica de que é titular, tendo sido transmitente sua irmã, a quem a ora embargada havia dado quitação.
Mais alegou que dada a ilícita recusa da exequente em facultar-lhe o gozo das semanas correspondentes ao direito de que é titular no ano de 2007 deixou de pagar as prestações periódicas, ficando a unidade à disposição da exequente, que a pôde rentabilizar, compensando os montantes não pagos.
Invocou finalmente em sua defesa a excepção peremptória da prescrição das prestações vencidas há mais de 5 anos e respectivos juros, conforme resulta do disposto no art.º 310.º do CC, dispositivo legal que expressamente convocou.
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Notificada, a exequente/embargada contestou, articulado no qual reiterou a existência da dúvida, sustentando não ser aplicável ao caso a prescrição de curto prazo consagrada no art.º 310.º do CC.
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Dispensada a realização de audiência prévia, foi proferido despacho saneador tabelar, tendo os autos prosseguido para julgamento, com dispensa da identificação do objecto do litígio e enunciação dos temas da prova.
Teve lugar audiência final, no termo da qual foi proferida douta sentença que, na parcial procedência dos embargos, declarou prescritas as prestações periódicas devidas à exequente e relativas aos anos de 2006, 2007, 2008 e 2009, decretando o prosseguimento da execução em relação às prestações correspondentes aos anos de 2010, 2011 e 2012, acrescidas de juros de mora à taxa legal vencidos desde a data de vencimento de cada prestação.
Inconformado, apelou o embargante e, tendo desenvolvido nas alegações as razões da sua discordância com o decidido, formulou a final as seguintes conclusões:
1. O presente recurso de apelação é interposto da douta Sentença de fls..., proferida pelo Meritíssimo Juiz do Tribunal a quo, na parte em que, julgando os Embargos apenas parcialmente procedentes, determinou o prosseguimento da execução para pagamento da quantia correspondente às prestações periódicas peticionadas no requerimento executivo relativas aos anos de 2010, 2011 e 2012, acrescida de juros de mora, à taxa legal dos juros civis, vencidos desde a data de vencimento de cada prestação e condenou o Embargante em custas.
2. A Sentença na selecção da matéria de facto omite facto alegados, sobre os quais foi produzida prova, que o ora Recorrente reputa de relevantes e absolutamente imprescindíveis para a decisão da causa à luz das várias soluções de Direito plausíveis; alguns dos factos que dessa selecção constam não correspondem a uma enunciação fiel da prova produzida, designadamente a testemunhal e documental que a Sentença afirma relevar; andou mal, a Sentença, na interpretação e aplicação da lei aos factos.
3. O presente recurso de apelação tem, assim, por fundamento, a selecção e julgamento da matéria de facto, nos termos do art. 640.º, n.º 1 e com vista à alteração da decisão proferida, nessa parte, nos termos do art. 662º do CPC, e seguidamente, a interpretação e aplicação da lei aos factos dados por assentes.
4. Posto isto, é relevante a indagação dos factos que permitam fundamentar a não procedência dos Embargos no que aos anos de 2010, 2011 e 2012 diz respeito, pois que é disso que verdadeiramente se trata.
5. Quanto aos factos seleccionados no julgamento da matéria de facto, entende o ora Recorrente que a respectiva enunciação não é fiel e não reproduz integralmente a prova produzida, designadamente documental e testemunhal.
6. Os depoimentos e declarações que a seguir se identificam impunham uma diferente resposta à matéria de facto, e nalguns casos são esclarecedores de como foi produzida prova sobre factos que pura e simplesmente o Tribunal a quo negligenciou.
7. O ora Recorrente entende ser imprescindível o depoimento da testemunha Rosa Custódio, melhor identificada na acta com a referência, de 16.05.2018, a fls…. dos autos, cujo depoimento consta do suporte do sistema de gravação digital tomado nesse dia, entre as 14:49:39 horas e as 15:06:07 horas (*) e já que serviu para a fundamentação dos factos provados, e portanto foi valorada, então reputa de imprescindíveis as declarações de parte de (…), melhor identificada na acta de 16.05.2018, a fls…. dos autos, cujas declarações constam do suporte do sistema de gravação digital tomado nesse dia, entre as 14:31:26 horas e as 14:48:14 horas(*)
8. Há que precisar o que consta dos factos provados sob o número 18, aditando-se à matéria de facto provada um número que se sugere seja o 18A com a seguinte redacção:
«18A – Nessa circunstância, a Executada prontificou-se para efectuar um pagamento do valor correspondente à semana 38 e esse pagamento foi recusado pela Exequente.»
9. Diz a Executada que lhe foi transmitido pelo Senhor (…), funcionário do Hotel, que não poderia ficar para gozar as semanas 37 e 38, pois que apesar da 37 estar paga a 38 não estava paga e por isso se a deixasse entrar para gozar a semana 37 ela já não sairia antes do início da semana 38 (4:48 – 5:29); acrescentou que ainda se prontificou para pagar tudo e propôs, atenta a viagem que havia feito, proceder ao pagamento da semana 38, alegadamente em dívida, pagamento esse que foi recusado pelo Senhor (…), pois que o prazo para o pagamento já havia terminado (7:25 – 10:00); mais disse que supôs que o apartamento estivesse a ser utilizado, pois que de outra forma nenhuma razão haveria para mediante a sua disponibilidade para pagamento da semana 38, a não deixassem gozar as suas semanas, 37 e 38. (7:25 – 10:00).
10. Para que se esclareça o que consta do número 22 dos factos provados, têm de ser aditados à matéria de facto dois números, que se sugere sejam 21A e 21B com a seguinte redacção: «21A – Por carta datada de 4 de Setembro de 2007, a Exequente comunicou ao Executados, o seguinte “informamos que caso o referido montante não seja regularizado antes do início das vossas semanas o apartamento não será disponibilizado”» e «21B - Por carta datada de 11 de Setembro de 2007, a Exequente comunica aos Executados o seguinte: “caso o referido montante não seja regularizado antes do início das vossas semanas o apartamento 509 não poderá ser ocupado”».
11. Tal resulta de documentos juntos aos autos e esta precisão é da maior relevância pois que não corresponde à verdade o que consta da sentença quando afirma que «o Executado Embargante manteve o seu direito de fruição das unidades de alojamento.»
12. Como muito bem reconhece a Exequente nos seus documentos número 2 e 3 juntos com a Contestação, a Exequente impediu os Executados de fruírem as suas unidades de alojamento!
13. Por isso à matéria de facto provada, logo depois do facto dado como provado sob o número 23, seja aditado um número, que se sugere seja 23A, com a seguinte redacção: «23A – Desde 2007 e até 2016 era política da Exequente, de acordo com a sua estratégia comercial, nunca usar as semanas de titulares devedores.»
14. Isso resulta do depoimento da testemunha (…), que o afirma explicitando a opção da Exequente para que assim fosse e bem explicando que isso não significava que, havendo procura, não fossem disponibilizadas essas semanas. (2:43 – 5:00)
15. Foi a Exequente que proibiu a fruição das unidades aos Executados e ainda assim, com o argumento de que estaria em dívida uma qualquer prestação dos idos de 1994 e relativamente à qual os Executados eram portadores de quitação.
16. E fê-lo por carta e pessoalmente relativamente à Executada, não lhe aceitando sequer o pagamento que se propunha fazer em 2007 para a semana 38!
17. Daqui resulta, evidentemente, que os Executados não tinham o direito de fruição das unidades de alojamento, ao contrário do que na Sentença se afirma.
18. E se a Exequente impediu o exercício do direito dos Executados, não pode reclamar-lhes seja o que for!
19. E se houve ou não ocupação e as unidades não foram cedidas a terceiros é irrelevante: se não houve foi porque a Exequente ou não diligenciou para que assim fosse ou pura e simplesmente o não quis fazer, de acordo com a sua estratégia comercial, posto que já se havia oposto ao exercício dos direitos dos Executados.
20. E não pode a Exequente exigir ao Recorrente seja o que for, sob pena de incorrer em manifesto abuso de direito.
21. Deve, pois, ser a douta Sentença revogada nas partes indicadas e com a correcção à matéria de facto proposta e substituída por outra que julgue totalmente procedente, por provada, a pretensão deduzida pelos Recorrente, decretando-se a providência conforme requerido e condenado a Recorrida, por isso, nas custas.
22. Violou a Sentença, assim, e pelas razões acima expostas e ao decidir como decidiu, os artigos 342.º, n.º 1, 346.º, 813.º e 334.º do CC, o artigo 23.º do DL 275/93, de 5.08, na sua actual redacção, e o artigo 413.º do CPC.
Concluiu que na procedência do recurso fosse revogada a sentença proferida e substituída por outra que julgasse os embargos totalmente procedentes.
Ao que resulta dos autos não foram oferecidas contra-alegações.
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Assente que pelo teor das conclusões se fixa e delimita o objecto do recurso, são questões a decidir:
i. indagar se ocorreu erro no julgamento da matéria de facto;
ii. da obrigação de pagamento das prestações periódicas devidas ao proprietário;
iii. do abuso de direito.
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i. da impugnação da matéria de facto
O recorrente pretende o aditamento à matéria de facto assente de um ponto com a seguinte redacção:
“Nessa circunstância [à qual se reportam os antecedentes pontos 17. e 18.] a Executada prontificou-se para efectuar um pagamento do valor correspondente à semana 38 e esse pagamento foi recusado pela Exequente.»
Estaria assim em causa, segundo o apelante, um facto alegado, com relevo para a decisão e que teria resultado demonstrado pelas declarações de parte prestadas pela executada (…), que se revestiram de consistência e credibilidade, conforme aliás se reconhece na motivação da decisão impugnada.
A este respeito importa referir que o facto em causa não foi alegado nem consta qualquer referência ao mesmo, quer da reclamação na ocasião apresentada pela declarante, quer do relato subsequente que efectuou junto do Centro de Arbitragem de conflitos de consumo competente. Reconhece-se, é certo, que tal omissão não significa que o facto não tenha ocorrido, mas permite de algum modo fazer duvidar da sua memória tantos anos decorridos. Em todo o caso, porque se trata de facto não alegado e que nada de relevante acrescenta à factualidade já dada como assente nos pontos 16. a 18., indefere-se o pretendido aditamento.
O recorrente sustenta também a inclusão na factualidade dada como provada de um outro facto, propondo a seguinte redacção:
«Desde 2007 e até 2016 era política da Exequente, de acordo com a sua estratégia comercial, nunca usar as semanas de titulares devedores.», o qual teria resultado do testemunho prestado pela colaboradora da exequente/embargada (…), na passagem que identifica.
Sucede, porém, que tal facto não assume relevância para a decisão porquanto, tratando-se de uma mera faculdade que a lei passou a conferir ao proprietário do empreendimento, relevante seria se a tivesse exercido, uma vez que a utilização da fracção tem efeito extintivo da obrigação de pagamento pelo titular do direito da prestação periódica a que se encontra adstrito (cfr. n.º 4 do art.º 23.º do DL 275/93, de 5 de Agosto, na redacção introduzida pelo DL 180/99, de 22 de Maio). Não sendo o caso, o facto assume-se como irrelevante, o que justifica a sua não inclusão.
Pretende finalmente o impugnante que seja considerado o conteúdo das duas missivas que lhe foram enviadas pela recorrida, que identifica.
Considerando que as aludidas cartas foram juntas pela própria embargada, documentos que não foram impugnados, sempre poderiam tais documentos ser considerados por este Tribunal, nos termos das disposições conjugadas dos art.ºs 607.º, n.º 4 e 663.º, n.º 2, do CPC. Deste modo, reconhecendo que o respectivo conteúdo, embora instrumentalmente, contribui para a boa compressão da factualidade relevante, defere-se nesta parte a pretensão da impugnante e procede-se ao aditamento dos factos indicados.
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II. Fundamentação de Facto
Estabilizada, é a seguinte a factualidade a atender:
1- A Exequente (…) – Investimentos Turísticos, S.A. interpôs a acção executiva para pagamento de quantia certa, de que os presentes autos são apenso, contra o Executado (…), pedindo o pagamento coercivo da quantia de € 7.383,54, dando à execução as actas de assembleias gerais de titulares de Direitos Reais de Habitação Periódica que são dão aqui por reproduzidas na íntegra.
2- O empreendimento turístico denominado “(…)”, instalado no prédio descrito na Conservatória do Registo Predial de Loulé sob o n.º (…), encontra-se totalmente constituído em direitos reais de habitação periódica.
3- Os Executados (…) e (…) foram titulares de direito real de habitação periódica relativamente às fracções designadas pelas letras “EH” e “CU”, correspondentes às unidades de alojamento n.ºs 718 (T0) e 509 (T1), respectivamente, e no que respeita às semanas n.ºs 25, 37 e 38, com início ao Sábado e termo no Sábado da semana seguinte, no caso da unidade n.º 718, e com início ao Domingo e termo no Domingo da semana seguinte no caso da unidade n.º 509, entre 1994 e 2005, ano a partir do qual o Executado (…) passou a ser o único titular.
4- Nas assembleias de titulares de direitos reais de habitação periódica foram fixadas as seguintes prestações periódicas:
i) Unidade de alojamento n.º 718, semana 25:
- 2006 - € 170,00
- 2007 - € 18,00
- 2008 - € 335,51
- 2009 - € 335,51
- 2010 - € 230,84
- 2011 - € 191,75
- 2012 - € 208,34
ii) Unidade de alojamento n.º 509, Semana 37:
- 2006 - € 256,00
- 2007 - € 270,00
- 2008 - € 503,26
- 2009 - € 503,26
- 2010 - € 346,26
- 2011 - € 287,62
- 2012 - € 312,51
iii) Unidade de alojamento n.º 509, Semana 38:
- 2006 - € 256,00
- 2007 - € 270,00
- 2008 - € 98,37
- 2009 - € 503,26
- 2010 - € 346,26
- 2011 - € 287,62
- 2012 - € 312,51
5- Os Executados não pagaram as prestações periódicas correspondentes às referidas fracções desde 2008 até à presente data.
6- Apesar de terem sido interpelados para efectuar tais pagamentos.
7- Por escritura de 14.02.1994, os Executados adquiriram os supra referidos direitos de (…), irmã do Executado, começando a usufruir das fracções a partir dessa data.
8- Nessa data, (…) não informou os Executados que estivesse em dívida qualquer prestação periódica.
9- Antes de transmitir aos Executados os direitos sobre as fracções, (…) deslocou-se ao Algarve e pagou, pessoalmente e por cheque, as prestações periódicas em falta.
10- Nessa sequência, foi-lhe emitido recibo de pagamento.
11- No momento da aquisição, a exequente transmitiu aos Executados que não havia qualquer quantia em dívida.
12- Após a transmissão, (…) cancelou tal cheque antes de ser descontado, pelo que a Exequente não foi paga das prestações relativas ao ano de 1994.
13- A 01.07.1994 a Exequente informou os Executados que o pagamento das semanas 25 da fracção n.º 718 e 38 da fracção n.º 509, realizado anteriormente por (…), tinha sido anulado “na sequência de lamentável engano”, declarando que o recibo emitido (em 31.12.1993) por força desse pagamento “não tem razão de ser”.
14- Os Executados informaram a Exequente que, no seu entender, a responsabilidade era de (…), e não iriam pagar.
15- Nos anos posteriores, a Exequente continuou a facturar o ano de 1994 e os Executados continuaram a não pagar, sustentando que nenhuma explicação lhes havia sido dada pelo cancelamento do pagamento.
16- Apesar disso, ao longo dos anos, os Executados continuaram a usufruir das fracções e a pagar as prestações correspondentes a cada ano, desde 1995 até 2006.
16 a) - Por carta datada de 4 de Setembro de 2007 a exequente comunicou aos executados que se encontrava por regularizar o montante de € 264,36 referente à taxa de manutenção do ano de 2007, informando que caso o referido montante não fosse regularizado antes do início das semanas, o apartamento não seria disponibilizado, tudo conforme consta do documento cuja cópia consta de fls. 63, aqui se dando por reproduzido o seu teor.
16 b) – Por carta datada de 11 de Setembro, em resposta a missiva que lhes fora enviada pelos executados em 10 desse mesmo mês, a exequente comunicou ter afectado o pagamento efectuado “[a]o restante da taxa de manutenção de 1994 referente à semana 38 – apartamento 509 – e a taxa de manutenção de 1994 referente à semana 38 – apartamento 509”, reiterando que “Conforme anteriormente explicado nas nossas cartas de 22/05/2007 e 04/09/2007 (…) neste momento o valor em dívida é referente à taxa de manutenção de 2007, no montante de € 264,36 e caso o referido montante não seja regularizado antes do início das vossas semanas, o apartamento 509 não poderá ser ocupado”, conforme documento cuja cópia consta de fls. 63 v.º e 64, aqui se dando por reproduzido o seu teor.
17- Em 2007, após pagamento do período anual respectivo, e no momento em que a Executada se deslocou ao local para usufruir das semanas 37 e 38, foi-lhe negado o acesso ao imóvel pela Exequente.
18- A Exequente justificou que a semana 38 não estava paga, pois tinham imputado o pagamento dessa semana, realizado pelos Executados, à prestação em falta do ano de 1994.
19- A Executada tinha-se deslocado de propósito de Lisboa, percorrendo cerca de 300 km, para usufruir de tais semanas.
20- Os Executados apresentaram reclamação e queixa, nos termos dos documentos n.ºs 4 a 8 juntos aos embargos, que se dão por reproduzidos na íntegra.
21- Os Executados pagaram as prestações relativas aos anos 2006 e 2007, sendo que parte desse pagamento foi imputado ao pagamento da prestação de 1994.
22- Na sequência da conduta da Exequente os Executados deixaram de usufruir das fracções e de pagar as prestações periódicas devidas.
23- Desde 2016 a Exequente tem cedido a fruição da semana 25 da fracção 718, e as semanas 37 e 38 da fracção 509 a terceiros, em troca de pagamento.
24- A acção executiva foi interposta a 08.03.2013.
25- Em sede de partilha, na sequência de divórcio, o executado (…) adquiriu a quota-parte da Executada (…) da titularidade dos supra referidos direitos reais de habitação periódica.
Factos Não Provados
1- Desde 2008 até 2016 a Exequente cedeu a fruição da semana 25 da fracção 718, e as semanas 37 e 38 da fracção 509 a terceiros, em troca de pagamento.
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Fundamentação de Direito
Da obrigação de pagamento da prestação pelo titular do DRHP e do abuso de direito
Não está em causa que os executados eram titulares de um direito real de habitação periódica, o qual se encontra agora na titularidade exclusiva do embargante e ora recorrente.
A lei não define o que seja o DRHP mas retira-se do seu regime legal (cfr. art.º 21.º do vigente DL 275/93, de 5 de Agosto[1], diploma a que pertencerão as demais disposições legais que vierem a ser citadas sem menção da sua origem) que se trata inequivocamente de um direito real -o legislador assim o qualificou expressamente- podendo definir-se como “um direito real limitado de gozo sobre coisa alheia, que equivale na prática a um regime de propriedade fraccionada, não já por segmentos horizontais, mas por quotas-partes temporais”, sendo que “a faculdades essencial do titular desses direitos, caracterizadora do instituto, é a de habitar a unidade de alojamento durante o período de tempo anual estabelecido” (do acórdão do STJ de 9/7/2003, processo 04 B 0749 e, no mesmo sentido, acórdão deste TRE de 18/1/2007, processo 50/06-3, acessíveis em www.dgsi.pt; na Doutrina, Prof. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2.ª edição, pág. 443).
A respeito do conteúdo do direito em causa dispõe o citado art.º 21.º que o titular do direito real de habitação periódica tem as faculdades ali descritas, de que se destacam as de “Habitar a unidade de alojamento pelo período a que respeita o seu direito” (al. a) e “Usar as instalações e equipamentos de uso comum do empreendimento e beneficiar dos serviços prestados pelo titular do empreendimento”.
A lei faz recair sobre o proprietário (ou cessionário) do empreendimento os deveres de administração e conservação das unidades de alojamento objecto do direito real de habitação periódica, incluindo o equipamento e recheio, bem como das instalações e equipamento de uso comum (art.º 25.º, al. a), competindo-lhe ainda assegurar a conservação e limpeza das mesmas unidades, respectivos equipamentos e mobiliário, de modo a manter um padrão “compatível com a classificação do empreendimento” (art.º 26.º).
A título de compensação pelas despesas suportadas pelo proprietário “com os serviços de utilização e exploração turística a que as mesmas estão sujeitas, contribuições e impostos e quaisquer outras previstas no título de constituição e a remunerá-lo pela sua gestão”, o titular do direito encontra-se obrigado a pagar anualmente uma prestação (cfr. art.º 22.º).
Cabe esclarecer, a propósito desta prestação a cargo do titular do DRHP, que se caracteriza como uma obrigação real ou propter rem – obrigação de conteúdo positivo conexa com o conteúdo de certo direito real, imposta a quem seja titular desse direito[2] – “que participa de um regime análogo ao dos ónus reais, pois o proprietário goza de privilégio creditório imobiliário sobre o direito real de habitação periódica, para garantia do pagamento da prestação e juros moratórios (cfr. art.º 23.º, n.º 1)”[3].
Estando em causa uma obrigação real nos termos antecedentemente expostos, acompanha o direito transmitido, de modo que o novo titular passa a ser o sujeito passivo da mesma, ficando portanto vinculado ao pagamento da prestação, sentido com que deve ser interpretado o disposto no art.º 12.º, n.º 4. No entanto, e dada a sua natureza de prestação “de dare”, cremos que se trata de uma obrigação não ambulatória, ou seja, não se estende aos adquirentes a responsabilidade pelas dívidas vencidas, obrigações antes constituídas e que se autonomizam do estatuto do direito real transmitido, permanecendo na esfera jurídica dos transmitentes. Por outras palavras, o novo titular não é pessoalmente responsável pelas dívidas constituídas antes da transmissão, sem embargo do credor continuar a poder executar o seu crédito sobre a coisa onerada, ficando sujeito a que sobre ela se executem prestações vencidas enquanto o direito pertenceu ao seu antecessor (cfr. art.º 23.º, n.º 1).
No caso que nos ocupa revela a factualidade apurada que, tendo os executados adquirido o direito em Fevereiro de 1994, por transmissão da anterior titular, irmã do agora recorrente, foram então informados de que esta havia pago a prestação relativa ao ano de 1994, tendo a embargada emitido o pertinente recibo. Todavia, em Julho desse mesmo ano, contrariando tal prévia informação, a embargada comunicou que afinal o recibo fora emitido por lapso, tendo sido anulado, encontrando-se assim em dívida os montantes que discriminou, relativos às prestações referentes àquele ano, semanas 25 da fracção n.º 718 e 38 da fracção n.º 509. Os executados, conforme resulta ainda do acervo factual apurado, recusaram-se a pagar tais quantias, embora tenham procedido sempre ao pagamento das prestações relativas aos anos subsequentes, facultando-lhe a exequente o uso das fracções.
A obrigação de pagamento da prestação periódica pelo titular vence-se anualmente (art.º 22.º, n.º 1), dispondo à data (e dispõe ainda) o art.º 23.º do diploma a que nos vimos reportando que “Na falta de pagamento da prestação periódica até dois meses antes do início do período de exercício do correspondente direito, o proprietário das unidades de alojamento sujeitas ao regime do direito real de habitação periódica pode opor-se a esse exercício” (vide n.º 3).
Considerou-se na decisão recorrida, sem discordância das partes, que a obrigação se vencia 60 dias antes do início da semana correspondente, data a partir da qual a lei prevê que o proprietário se recuse legitimamente a facultar o gozo das unidades de alojamento. Não tendo os apelantes questionado tal asserção, impõe-se concluir que eram efectivamente eles os devedores das prestações relativas ao ano de 1994, e não a transmitente, ao invés do que sempre sustentaram -entendimento que a exequente, cabe referir, secundava, defendendo embora, mal em nosso entender, que a dívida se transmitira para os adquirentes.
De todo o modo, tendo os executados procedido à entrega de quantias para pagamento das prestações atinentes ao ano de 2007, estava vedado à exequente proceder à imputação do pagamento recebido à dívida do ano de 1994, tanto mais que bem sabia que aqueles se recusavam a reconhecer serem devedores de tal prestação (cfr. art.º 783.º, n.º 1, do Código Civil). Neste contexto, e apesar de se manter em dívida parte das prestações vencidas no ano de 1994, a exequente não podia invocar a falta de pagamento da prestação relativa ao ano de 2007 para fundamentar a sua oposição ao exercício do direito pelo titular, que o vinham exercendo há mais de uma década, procedendo ao pagamento das prestações respectivas, tratando-se finalmente de uma dívida há muito prescrita. Neste contexto, tal recusa foi ilícita.
Não obstante quanto vem de se concluir, afigura-se que nem por isso os executados ficaram legitimados a recusar o pagamento das prestações vencidas posteriormente, numa sorte de exercitação da excepção do não cumprimento. E assim ocorre porque, conforme se ponderou no acórdão do STJ de 6/3/2012 (proferido no processo 692/05.4TBGDL.E1.S1, acessível em www.dgsi.pt), sendo a “excepção do não cumprimento a faculdade que cada um dos contraentes tem de, nos contratos bilaterais com o mesmo prazo de cumprimento das respectivas prestações, recusar a sua enquanto o outro não efectuar a que lhe cabe (art.º 428.º do CC), não está demonstrado que a prestação anual aqui em causa “tenha por origem qualquer contrato bilateral, e muito menos que nele tenha sido assumida como contraprestação sinalagmática de prestação assumida pelo outro sujeito contratual (…).
Segundo o disposto no art.º 22.º do já citado DL 180/99 funcionam tais prestações como correspectivo dos encargos de gestão e como compensação do proprietário do empreendimento turístico pelas despesas a que está sujeito. Vinculadas a tais finalidades, essas prestações não podem configurar-se, portanto, como sendo meras contrapartidas simétricas do uso das unidades de alojamento”.
Deste modo, e sendo certo que aos executados foi ilicitamente recusado o uso das fracções objecto dos DRHP titulados pelo embargante, mantiveram-se ainda assim as obrigações da exequente administrar e conservar as unidades de alojamento objecto do direito real de habitação periódica, o seu equipamento e recheio, bem como as instalações e equipamento de uso comum (cfr. art.º 25.º, n.º 1), cabendo-lhe proceder para tanto à conservação e limpeza das unidades em termos compatíveis com a classificação do empreendimento (art.º 26.º) e efectuar as reparações indispensáveis ao exercício normal do direito (art.º 27.º), nada constando dos autos no sentido das mesmas não terem sido integralmente cumpridas.
Em suma, reconhecendo embora a ilicitude da recusa em facultar o uso da unidade, daí resultando violação do direito fundamental do titular do direito a habitar a unidade de alojamento durante o seu período de tempo anual, a consequência é a constituição da exequente, proprietária do empreendimento, no dever de indemnizar aquele pelos prejuízos sofridos, sem que, todavia, implique a liberação do pagamento das prestações anuais.
Insurgindo-se contra a afirmação feita na sentença recorrida no sentido de que o embargante manteve o seu direito de fruição das unidades de alojamento relativamente aos anos de 2010, 2011 e 2012, o que justificaria a improcedência dos embargos nesta parte, diz o recorrente que a verdade é que foi impedido de exercer tal direito, sendo portanto abusiva a actuação da apelada, concluindo que “permitir que a tese por esta sufragada vingue, significa defraudar por completo as legítimas expectativas de segurança jurídica e mais a boa-fé que se impõe nas relações jurídicas”.
Nos termos do que dispõe o art.º 334.º do CC, existe abuso de direito "quando o titular exceda manifestamente os limites impostos pela boa fé, pelos bons costumes ou pelo fim social ou económico desse direito".
O abuso de direito pressupõe que o direito seja exercido em termos clamorosamente injustos, exorbitando o seu titular o fim próprio do direito ou o contexto em que o mesmo deve ser exercido.
A este respeito provou-se nos autos apenas e só que “na sequência da conduta da Exequente [reportada ao ano de 2007] os Executados deixaram de usufruir das fracções e de pagar as prestações periódicas devidas” (cfr. ponto 27), desconhecendo-se, pois, se tentaram utilizar as fracções nos anos subsequentes e qual a conduta da exequente. Os factos apurados são, desta forma, insuficientes para sustentar que estamos perante um exercício abusivo do direito da exequente às prestações devidas, sem prejuízo, repete-se, do eventual direito dos executados a indemnização por eventuais prejuízos que hajam sofrido em consequência da descrita conduta por parte daquela.
Improcedendo os fundamentos do recurso, mantém-se a decisão recorrida.
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III. Decisão
Acordam os juízes da 2.ª secção cível do Tribunal da Relação de Évora em julgar improcedente o recurso, confirmando a sentença recorrida.
Custas a cargo do recorrente, sem prejuízo do benefício do apoio judiciário que lhe foi concedido.
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Sumário:
(…)
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Évora, 25 de Junho de 2020
Maria Domingas Alves Simões
Vítor Sequinho dos Santos
Mário Rodrigues da Silva
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[1] Com as alterações sucessivamente introduzidas pelos DL n.º 180/99, de 22/05; DL n.º 22/2002, de 31/01; DL n.º 76-A/2006, de 29/03; DL 116/2008, de 04/07; DL n.º 37/2011, de 10/03; e DL n.º 245/2015, de 20/10.
[2] Prof. Carvalho Fernandes, Lições de Direitos Reais, 2.ª edição, pág. 167, numa primeira formulação.
[3] Prof. Carvalho Fernandes, ob. cit., pág. 449.
Já o Prof. Oliveira Ascensão, que define os ónus reais como “direitos inerentes cujo conteúdo essencial é o poder de exigir a entrega, única ou repetida, de coisas ou dinheiro, a quem for titular de determinado direito real de gozo” defende que “O titular do direito de habitação periódica está sujeito a pagar ao proprietário uma prestação periódica que representa um ónus real” (“Direitos Reais”, págs. 503 e 479, respectivamente).