Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | FLORBELA MOREIRA LANÇA | ||
Descritores: | MINISTÉRIO PÚBLICO INQUÉRITO CRIMINAL RESPONSABILIDADE CIVIL EXTRACONTRATUAL RESPONSABILIDADE CIVIL DO ESTADO ACTOS DE INSTRUÇÃO ERRO CENSURÁVEL | ||
Data do Acordão: | 05/07/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | i) embora o Ministério Público não exerça a função jurisdicional propriamente dita o Estado é responsável por factos causadores de danos derivados do exercício da função do Ministério Público. ii) para efeitos do regime previsto no art.º 13.º da responsabilidade civil extracontratual do Estado, entendido à luz do art.º 22.º da Constituição, que é o seu fundamento, o erro judiciário reconduz-se ao erro cometido pelo juiz ou pelo Ministério Público. iii) a LRCEE prevê a existência de três tipos de responsabilidade da função jurisdicional: por violação do direito a uma decisão em prazo razoável (art.º 12.º); por prolação de sentença condenatória injusta e privação injustificada da liberdade (art.º 13.º/1, 1.ª parte); por prolação de decisão inconstitucional, ilegal ou em erro grosseiro sobre a apreciação dos factos (art.º 13.º/1, 2.ª PARTE). iv) o art.º 14.º/1 dá azo a uma quarta categoria de responsabilidade dos magistrados do Ministério Público (que não é, em bom rigor, função jurisdicional stricto sensu): por danos provocados por atos jurídicos e materiais, integrados no contexto de investigação criminal. v) A culpa do serviço, tendo como pressuposto a culpa é uma ficção a que se recorre nas hipóteses em que não é possível identificar o autor material do facto lesivo. vi) as atuações alegada e supostamente danosas são atribuíveis a magistrado(s) concreto(s) do MP e é nitidamente possível atribuí-las a título de autoria aos mesmos, mas não se alegam factos que sejam impossíveis de atribuir a um sujeito concreto e, menos ainda, danos que não sejam imputáveis ao comportamentos concretos de alguém ou, sequer, a condutas identificáveis. viii) o mesmo se diga quanto ao juiz de instrução criminal, que declarou a prescrição do procedimento criminal. ix) a pessoa coletiva responde pelos danos produzidos quando, havendo uma atuação danosa ilícita, ela não possa ser imputável aos titulares de órgãos, funcionários ou agentes, ou porque não foi possível individualizar o responsável, ou porque a responsabilidade se dilui na atividade operativa do serviço considerado no seu conjunto. x) a facticidade alegada não é reconduzível a um deficiente funcionamento de quaisquer serviços de Justiça, sendo que a consideração da culpa de serviço não pode ser desligada dos concretos termos em que se veicula a alegação. | ||
Decisão Texto Integral: | ACORDAM NA 1.ª SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA I.Relatório M… intentou a presente acção contra o Estado Português, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, pedindo a condenação do R. no pagamento de uma indemnização no valor de € 500.000,00. Para tanto alegou, em síntese, que foi vítima de um acidente de viação em 07.01.2010 que lhe causou lesões que a deixaram tetraplégica, causado por despiste da viatura conduzida por M M…, apesar de, no relatório intercalar elaborado pela GNR, constar que era a A. que conduzia o veículo. Em 06.02.2010, a A. apresentou queixa-crime nos serviços do MP da comarca de Almeirim. A A. requereu em 26.03.2010 exames hematológicos dos vestígios de sangue existentes no veículo, em especial no lugar do condutor, o que não foi possível, por o veículo ter sido destruído para sucata. O Inquérito veio a ser encerrado, abstendo-se o Ministério Público de acusar em 21.10.2013, com fundamento na dúvida insanável sobre a identidade da pessoa que conduzia o veículo. Inconformada com o despacho de arquivamento, a A. interpôs reclamação hierárquica em 15.12.2013, que foi indeferida em 26.09.2014, por se entender estarem esgotadas as diligências probatórias pertinentes. Em 09.02.2015, a A. requereu a reabertura do Inquérito, com base na alteração do depoimento da testemunha J…, que circulava no veículo, que foi indeferido por despacho do Ministério Público de 18.02.2015, reiterado em 04.03.2015. Não se conformando, a A. apresentou nova reclamação hierárquica em 07.03.2015, na sequência da qual foi reaberto o Inquérito e reinquirida a testemunha J…. Por despacho de 15.05.2015, o Ministério Público manteve o despacho de arquivamento. A A. requereu em 27.05.2015 a abertura da instrução, com a reinquirição de testemunhas. Por despacho de 06.10.2015, o juiz de instrução declarou aberta a instrução e agendou a reinquirição das testemunhas para 10.02.2016, tendo a MM… sido constituída arguida em 14.11.2015. Em requerimento de 12.02.2016, a A. solicitou ao juiz de instrução a realização de perícia médico-legal das lesões sofridas pelas vítimas, destinada a apurar quem era a condutora do veículo no momento do acidente e solicitou também um relatório científico sobre a dinâmica do acidente, em ordem a esclarecer a probabilidade de ser a A. ou a MM… a condutora do veículo. Porém, o juiz de instrução, em 10.03.2016, proferiu despacho suscitando a questão da eventual prescrição do crime imputado à arguida, a que a A. se pronunciou dizendo não estar verificada a prescrição. Por despacho de 05.04.2016, o juiz de instrução declarou prescrito o procedimento criminal contra MM… e determinou o arquivamento dos autos. A A. interpôs recurso em 11.04.2016 para o Tribunal da Relação de Évora, tendo sido proferido acórdão que negou provimento ao recurso e manteve o despacho recorrido. Com esta decisão, a A. viu gorada a sua pretensão através do processo crime, o que só aconteceu porque o processo judicial demorou mais de cinco anos para constituir como arguida MM…, que veio a determinar a extinção do procedimento criminal por prescrição. A demora judicial resultou do erro estratégico da investigação no inquérito sobre a pessoa que conduzia o veículo, ao não acautelar que o veículo não fosse destruído e pudesse ser objecto de perícia aos vestígios hematológicos do seu interior e de perícia relativa à dinâmica do acidente, que levariam à constituição de MM… como arguida muito antes do período de cinco anos. A A. estima os prejuízos causados em € 500.000,00, que corresponderão à indemnização pela angústia, sofrimento físico e moral por ter ficado tetraplégica e incapaz de se sustentar. O R., Estado Português, apresentou contestação, defendendo-se por excepção, invocando a incompetência material do tribunal, por não ser competente o Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, e por impugnação, por não se encontrarem reunidos os requisitos da responsabilidade civil extracontratual do Estado, por mau funcionamento do serviço de justiça. A A. veio responder à excepção, concluindo pela competência do tribunal. Realizou-se a audiência prévia, como consta da respectiva acta (fls. 344-346), na qual o Il. Mandatário da A. prestou os esclarecimentos solicitados. Foi proferida decisão pelo Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, que se declarou materialmente incompetente para o conhecimento da causa, tendo tal decisão transitado em julgado, renunciando a A. ao recurso. Remetidos os autos ao tribunal judicial competente, foi realizada audiência prévia. Saneados os autos, foi definido o objecto do litígio e proferido despacho dando às partes oportunidade para se pronunciarem quanto à desnecessidade da realização de julgamento, por estarem os autos dotados de todos os elementos para apreciação do mérito da causa. Apenas a A se pronunciou, mantendo o já alegado na petição inicial. Foi, então, proferida sentença que, julgando a acção improcedente, absolveu o réu, Estado Português, do pedido contra si formulado. A A. não se conformando com a sentença prolatada dela interpôs recurso, apresentando alegações e formulando as seguintes conclusões: “I. A sentença recorrida absolveu do pedido, por motivo de se não ter provado erro de ofício que responsabilizasse os magistrados adstritos à direcção do Inquérito criminal e despacho da Instrução, por prática de ofensas à integridade física grave por negligência, que vitimaram M…. II. Contudo, a causa de pedir mobilizada pela recorrente não foi a de uma “faute personnelle”, mas a de uma clara e indiscutível “faute de service”. III. Trata-se de uma modalidade de responsabilidade administrativa, cunhada na doutrina francesa, que se consolida no erro manifesto e prejudicial de um concreto mau funcionamento de uma entidade do Estado-aparelho. IV. Assim, para consagração da causa de pedir invocada pela recorrente bastar-lhe-ia e basta-lhe demonstrar que no “Serviço de Justiça”, vinculado à investigação criminal (por onde correu a discussão do caso), não foi cumprida a “leges artis”. V. Ora, do ponto de vista da criminalística, os materiais dos autos indicam não ter sido levada a cabo de imediato a apreensão do veículo sinistrado, vistoria, recolha de vestígios hematográficos (fotografados no tecto interior da viatura) e subsequente exame (grupo sanguíneo; ADN). VI. Não obstante estas diligências terem sido requeridas em tempo pela recorrente (mas sem despacho). VII. Levariam, em conexão de umas com as outras, à descoberta do posicionamento dos passageiros no automóvel despistado e, por isso, ao desfazer da ambiguidade acerca de quem conduzia o veículo. VIII. E tendo resultado do despiste as graves lesões físicas, psíquicas, patrimoniais e não patrimoniais, sofridas pela recorrente (tetraplégica e jovem mãe de dois infantes), a duração do feito, radicada na insegurança com que prosseguiram as averiguações, levou, por fim, à prescrição do procedimento criminal. IX. Deste modo, a recorrente viu frustrado o direito à tutela jurisdicional efectiva, no índice do arbitramento de uma justa indemnização dos prejuízos que sofreu, por via daquelas lesões que lhe ocorreram, causadas durante o acidente de viação dado. X. Ao não ter enfrentado a matéria dos autos na modalidade de pensamento jurídico-normativo que tem vindo a ser referida, a Mma. Juiza a quo infringiu os art.ºs 20.º/4/5 e 22.º da CRP, e art.ºs 1.º, 7.º/3 e 12.º da Lei n.º 67/2007, de 31/12, actualizada pela Lei n.º 31/2008, de 17/07. XI. E cometeu erro de julgamento da matéria assente, ao afastar, por inúteis à boa decisão da causa, os factos sobrantes alegados de 11 a 36, inclusive, da petição inicial, documentados no Proc. 53/10.3TAALR (Comarca de Santarém, Santarém- Inst. Central – Sec. Inst. Criminal-J2). XII. Por conseguinte, a sentença recorrida deve ser reformada, no sentido de estar assente a causa de pedir, devendo prosseguir a lide em Audiência de Discussão e Julgamento para debate e apuramento dos factos respeitantes à relevância, permanência e avaliação dos severos danos físicos e morais sofridos pela recorrente, durante e por causa do acidente de viação sub judice. Vossas Excelências, com douto suprimento, farão, contudo, Justiça!” O apelado respondeu às alegações, pugnando pela confirmação da sentença apelada. II. Objecto do Recurso Sendo o objecto do recurso definido pelas conclusões das alegações, impõe-se conhecer das questões colocadas pela recorrente e as que forem de conhecimento oficioso, sem prejuízo daquelas cuja decisão fique prejudicada pela solução dada a outras (art.º 608.º, n.º 2, 609.º, 635.º, n.º 4, 639.º e 663.º, n.º 2 do CPC). São, pois, questões a decidir: - Insuficiência na fixação da matéria de facto; - Causa de pedir na presente acção; - (verificando-se a invocação de faute de (du) service como causa de pedir) Apreciação dos factos fixados à luz do conceito de “culpa de serviço” enquanto fundamento da responsabilidade civil extracontratual do apelado. III. Fundamentação 1.De Facto Na sentença recorrida foram julgados provados os seguintes factos: 1. No dia 07/01/2010 ocorreu um acidente de viação de que foi vítima a A, factos pelos quais foi aberto o Inquérito com o Procº nº 53/10.3TAALR, a que corresponde a participação de acidente de viação 03/10, de 07/01/2010, do Posto Territorial de Almeirim, do Comando Territorial de Santarém da GNR. (artº 1 da petição inicial) 2. Pelas 02:15 desse dia, o veículo ligeiro de passageiros de matrícula 10-08-LM, pertença de MM…, despistou-se ao Km 2,400, Tapada de Almeirim, EN 368, no sentido de marcha Almeirim/Santarém, vindo a embater num talude da valeta da via e capotou. (artº 2 da petição inicial) 3. A A. seguia no interior do veículo e, como consequência do despiste referido, contraiu lesões resultantes de traumatismo de natureza contundente (politraumatizada traumatismo vertebro medular com plegia dos membros inferiores e ausência de sensibilidade deles), lesões que lhe determinaram um período de doença de 317 dias, com afectação da capacidade de trabalho geral. (artº 3 da petição inicial) 4. Do evento resultou para a A. um quadro neuromotor de tetraplegia com nível neurológico por C6 (nível sensitivo por D2 e nível motor por C6): tónus grau 3 nos membros inferiores e de grau 4 nos flexores dos dedos de ambas as mãos, apresentando espasticidade marcada. (artº 4 da petição inicial) 5. E na face superior do ombro, duas cicatrizes acastanhadas de formato irregular, a maior com 5 x l cm e a menor com 3 x 1 cm. (artº 5 da petição inicial) 6. Também cicatriz nacarada linear com 12 cm de cumprimento e na face anterior cervical, à direita da linha média, cicatriz nacarada obliqua para baixo e para a esquerda, com 4 cm de cumprimento. (artº 6 da petição inicial) 7. A A. ficou inválida, por efeito das lesões contraídas no despiste e capotamento do automóvel, acima descritos. (artº 7 da petição inicial) 8. Por requerimento remetido por fax em 08.02.2010, subscrito pelo seu mandatário, a A. comunicou ao Ministério Público de Almeirim a ocorrência do acidente, declarando pretender procedimento criminal contra o autor das ofensas corporais, sem identificar o visado, constando no ponto 2. que “seguia no lugar da frente, ao lado da condutora, quando o veículo capotou na estrada” e no ponto 8. “Correu, dada a circunstância da vítima e queixosa ter ficado inconsciente, que era ela a condutora do veículo, mas (…) não era assim (...) na verdade, seguia no lugar direito da frente do automóvel", conforme fls. 62 a 64 destes autos e requerimento de fls. 2 a 4, do Procº 53/10.3TAALR. (artºs 14 e 15 da petição inicial) 9. Por requerimento remetido ao Ministério Público de Almeirim, com nota de urgente, por fax, pelo seu mandatário em 26.03.2010, conforme cópia de fls. 32 a 33 destes autos e de fls. 23 e 33 do Procº 53/10.3TAALR, a A. requereu a junção aos autos de fotografias com vista a auxiliar a investigação em curso, acrescentando: “Informa que o veículo acidentado se encontra na Sucatas … – Comércio, Rua do …, Carregueira, na iminência de ser triturado, sendo certo que é relevante para a investigação e, sobretudo para a descoberta de uma verdade conclusiva, proceder-se a análises hematológicas, nomeadamente, quanto aos vestígios de sangue ali existentes, para se aferir quem era o condutor no momento em que ocorreu o acidente: existe pelo menos uma mancha de sangue visível no tejadilho interior do veículo, na parte de trás do mesmo, que importa analisar, para se saber a quem pertence.” (artºs 23 e 26 da petição inicial) 10. No relatório intercalar elaborado pelo Núcleo de Investigação de Crimes em Acidentes de Viação, do Destacamento de Trânsito de Santarém, datado de 14.11.2011, junto a fls. 157 a 162 destes autos e a fls. 362 a 367, do Procº 53/10.3TAALR, consta no artº 26º que "Das declarações dos ocupantes inquiridos, existiu uma discussão entre a proprietária do veículo (MM…) e a condutora (M…) no momento que antecedeu o acidente de viação. Inclusive existiu contacto entre as duas (a MM… colocou-se entre os dois bancos da frente e terá pegado no braço da M… para esta parar o carro, mas isso não aconteceu), declarações de J…." (artº 17 da petição inicial) 11. No mesmo relatório consta no artº 34º que “Resultam assim fortes indícios que a condutora do veículo ligeiro de passageiros, …-LM, à data dos factos que originaram o presente inquérito, é, de facto, a sra. M…, ora denunciante.” (artº 16 da petição inicial) 12. Por despacho do Ministério Público de Almeirim, datado de 21.10.2013, de fls. 171 a 197 destes autos e a fls. 717 a 743, do Procº 53/10.3TAALR, foi determinado o arquivamento dos autos, por não ter sido possível obter indícios suficientes da identidade do autor da prática dos crimes de ofensa à integridade física por negligência em apreço nos autos, ao abrigo do disposto no artº 277º, nº 2, do Código do Processo Penal. (artº 20º da petição inicial) 13. Esta conclusão teve por base, entre outros meios de prova, na inquirição das testemunhas presenciais e nos elementos da GNR que investigaram o acidente. (artº 21 da petição inicial) 14. No despacho do Ministério Público que determinou o arquivamento dos autos (fls. 62 a 64 destes autos), ao abrigo do artº 277º, nº 2, do Código do Processo Penal, consta, na parte final: "A identidade do condutor do veículo ligeiro de passageiros, com a matrícula … LM, no momento em que este se despistou, permanece, pois, apenas e só na consciência de cada uma das pessoas que nele circulavam no dia 7 de Janeiro de 2010, cerca das 2h15m, na Estrada Nacional nº 368, ao Km 2,400, na Tapada, no sentido Almeirim/Santarém, causando lesões físicas (e psicológicas) em cada uma delas.” 15. O veículo ligeiro de passageiros de matrícula …LM não foi examinado por ter sido desmantelado em data anterior a 10.08.2011 (cfr. relatório do NICAV, de 10.08.2011, fls. 181, do Procº 53/10.3TAALR) – (artº 25 da petição inicial) 16. Consta no artº 7º do relatório intercalar da GNR o seguinte: “Como ponto de partida este NICAV tentou proceder à localização do veículo acidentado, no sentido de este poder eventualmente ser examinado (existindo informação de se encontrar no Centro de Abate de Veículos em Fim de Vida - Sucatas …, sito na Carregueira) cfr. relatório de diligência externo de fls. 181, diligência que se revelou impossível, uma vez que este já tinha sido desmantelado (destruído), v. fls. 200.” (artº 27 da petição inicial) 17. M… foi constituída arguida em 24.05.2012. (cfr. fls. 163 e 164 destes autos) 18. Por requerimento junto ao processo em 16.12.2013, subscrito pelo seu mandatário, a A. requereu intervenção hierárquica, reiterando o prosseguimento das diligências de investigação para que se confirme ser a MM… quem conduzia ou, na dúvida, prosseguir o inquérito contra esta, que deverá ser acusada de ter perturbado a condução do veículo e ter dado causa ao acidente (cfr. requerimento de fls. 198 a 202 destes autos e de fls. 757 a 761 do Procº 53/10.3TAALR) – (artºs. 28, 29, 30, 31, 32, 33, 34 e 35 da petição inicial) 19. Por requerimento junto ao processo em 18.12.2013, subscrito pelo seu mandatário, a A. requereu a sua constituição como assistente. (cfr. requerimento de fls. 227 destes autos e de fls. 763 do Procº 53/10.3TAALR) 20. Por despacho de 19.12.2013, a aqui A. foi notificada para juntar cópia da decisão da segurança social relativa à concessão de apoio judiciário. (cfr. fls. 203 destes autos) 21. A A. requereu protecção jurídica em 30.12.2013. (cfr. cópia do requerimento de fls. 779 a 783 do Procº 53/10.3TAALR) 22. A protecção jurídica foi-lhe concedida por decisão junta ao processo em 09.07.2013. (cfr. cópia da decisão do ISS de fls. 790 a 792 do Procº 53/10.3TAALR) 23. Por despacho de 22.09.2014, o Ministério Público de Almeirim determinou a remessa dos autos ao Procurador da República para apreciação da intervenção hierárquica (cfr. de fls. 793 do Procº 53/10.3TAALR) 24. O Procurador da República proferiu despacho em 26.09.2014 indeferindo a reclamação apresentada e mantendo o despacho de arquivamento, porque não foram recolhidos indícios suficientes que permitam imputar, seja a M…, seja a MM…, a prática do crime de ofensa à integridade física por negligência e por se afigurarem esgotadas as diligências probatórias que se revelam pertinentes ao cabal esclarecimento dos factos, não se determina que seja deduzida acusação nem que a investigação prossiga. (cfr. fls. 204 a 208 destes autos e fls. 795 a 797 do Procº 53/10.3TAALR) - (artº 36 da petição inicial) 25. Em 10.02.2015, a A. requereu a reabertura do Inquérito, informando o MP do propósito de a testemunha J…, ocupante do automóvel no momento do acidente, pretender fazer um depoimento diferente daquele que produziu na primeira inquirição e de modo a que a verdade do caso viesse ao de cima. (cfr. requerimento de fls. 211 destes autos e de fls. 808 do Procº 53/10.3TAALR) - (artº 37 da petição inicial) 26. A Digna Procuradora-Adjunta do MP de Almeirim, por despacho de 18.02.2015, indeferiu o requerido, constando do despacho: "Tendo presente que o artº 279º do Código do Processo Penal dispõe só poder ser reaberto o inquérito de surgirem novos elementos de prova que ponham em crise o despacho de arquivamento, não se vislumbra qual o efeito útil de uma nova audição de J…, na qualidade de testemunha." (cfr. fls. 212 destes autos e fls. 810 do Procº 53/10.3TAALR) - (artº 38 da petição inicial) 27. Em 02.03.2015, a A. veio insistir na reabertura do inquérito, alegando que “é que pretende a testemunha em causa (J…) depor de forma divergente do que fez no dia 03.11.2011, quanto à questão de quem conduzia o veículo no momento do acidente." (cfr. fls. 213 destes autos e fls. 812 do Procº 53/10.3TAALR) - (artº 39 da petição inicial) 28. Por despacho datado de 04.03.2015, a mesma Digna Procuradora-Adjunta do Ministério Público voltou a indeferir a reabertura do inquérito: “Mantem-se o despacho proferido a fls. 810 (em 12.02.2015), com os fundamentos ali vertidos.” (cfr. fls. 214 destes autos e fls. 812 A do Procº 53/10.3TAALR) - (artº 41 da petição inicial) 29. A A., em 09.03.2015, apresentou, de novo, reclamação hierárquica junto do Digno Procurador Distrital de Santarém, e alegou: (i) do sinistro resultou ter ficado a requerente, jovem mãe de dois filhos, tetraplégica e incapaz de tomar conta de si e da prol; (ii) indicou testemunha que tem intenção de modificar o depoimento que prestou no inquérito, para se isentar de responsabilidades e que, por isso mesmo, se constitui numa prova nova que alterará todo o juízo de facto, foco do encerramento da causa; é pois, um depoimento que deve ser aceite para prudente enfrentamento do caso, inscrito pela negativa, na dolorosa tetraplegia da requerente. (cfr. fls. 215 e 216 destes autos e fls. 814 a 816 do Procº 53/10.3TAALR) - (artº 42 da petição inicial) 30. Em 25/03/2015, a Digna Procuradora da República, Coordenadora do DIAP de Santarém, determinou a reabertura do Inquérito, nos termos do artº 279º do Código do Processo Penal, para reinquirição da testemunha J…. (cfr. fls. 218 e 219 destes autos e fls. 822 do Procº 53/10.3TAALR) - (artº 43 da petição inicial) 31. Reaberto o Inquérito, foi inquirida a testemunha J…, que declarou que, no dia do acidente, quem ia a conduzir o veículo era a MM…, tendo sido esta quem o conduziu sempre, e no lugar do passageiro ia a M…, a depoente e o Jo… iam atrás. (…). Só agora resolveu prestar este depoimento porque na altura em que prestou o depoimento pela primeira vez foi muito pressionada, recusando-se a dizer em que termos e por quem. (cfr. fls. 220 a 222 destes autos e fls. 829 do Procº 53/10.3TAALR) - (artsº 44 e 45 da petição inicial) 32. A Digna Procuradora-Adjunta da Comarca de Almeirim, por despacho de 15.05.2015, manteve na íntegra o arquivamento: "Os dois depoimentos prestados por J… são intrinsecamente contraditórios entre si e, como tal, destituídos de qualquer credibilidade.” (cfr. fls. 224 a 226 destes autos e fls. 833 e 834 do Procº 53/10.3TAALR) - (artº 46 da petição inicial) 33. Por requerimento entrado a 27.05.2015, a A. requereu a abertura da instrução contra M M…, imputando-lhe as consequências do acidente e insistindo na realização de diligências complementares de prova. (cfr. fls. 228 a 232 destes autos e fls. 851 a 855 do Procº 53/10.3TAALR) - (artºs 47, 48 e 49 da petição inicial) 34. Por despacho da senhora procuradora adjunta datado de 03.06.2015, foram os autos remetidos à distribuição. (cfr. fls. 233 destes autos e fls. 859 do Procº 53/10.3TAALR) 35. Por despacho de 06.10.2015, foi a A. admitida a intervir nos autos na qualidade de assistente, declarada aberta a instrução e a A. notificada para esclarecer de forma correcta quais as pessoas que deseja ver reinquiridas e/ou acareadas (identificando-as cabalmente, com nome e morada ou por referência a folhas dos autos onde estivessem identificadas), bem como a esclarecer os motivos pelos quais as reinquirições eram essenciais para a finalidade da Instrução e os factos que desejava ver provados. (cfr. fls. 234 destes autos e fls. 863 do Procº 53/10.3TAALR) - (artº 50 da petição inicial) 36. Em 23/10/2015, a A. respondeu ao despacho liminar. (cfr. fls. 235 a 243 destes autos e fls. 864 a 877 do Procº 53/10.3TAALR) - (artº 51 da petição inicial) 37. Por despacho datado de 27.10.2015, foi deferida a inquirição das testemunhas indicadas e da assistente e determinada a constituição como arguida de MM… (cfr. fls. 244 destes autos e fls. 887-A do Procº 53/10.3TAALR) 38. MM… foi constituída arguida em 14.11.2015 (cfr. fls. 251 destes autos e fls. 894 e 895 do Procº 53/10.3TAALR) 39. Por despacho datado de 11.01.2016 foi designada data (10.02.2016) para reinquirição das testemunhas, bem como da assistente. (cfr. fls. 254 destes autos e fls. 897 do Procº 53/10.3TAALR) – (artº 55 da petição inicial) 40. Em 10.02.2016 foram inquiridas sete testemunhas e a assistente. (cfr. fls. 258 a 261 destes autos e fls. 933 a 940 do Procº 53/10.3TAALR) – (artº 56 da petição inicial) 41. Por requerimento remetido ao Mmº Juiz de Instrução, a 12.02.2016, a A., alegando "(…) a circunstância, em si mesmo perturbadora, de o automóvel sinistrado ter sido destruído antes de um exame pericial, logo requerido, mas demorado no Inquérito, até à impossibilidade de vir a ter lugar, impõem que o juízo sobre quem era a condutora do veículo seja deduzido a partir da configuração das lesões sofridas e documentadas nos autos, através dos papéis hospitalares, nas duas pacientes, uma, proprietária, MM…, outra, simples amiga desta, assistente M… (…)", requereu a consulta de um painel de médicos legistas do IML sobre os quesitos correspondentes à dúvida enunciada. (cfr. fls. 946 a 948 do Procº 53/10.3TAALR) – (artº 57 da petição inicial) 42. No mesmo requerimento, a A. solicitou que fosse requisitado “(…) ao Instituto Superior Técnico da Universidade de Lisboa um relatório científico sobre a dinâmica do acidente, perante as narrativas das testemunhas, participação do acidente de viação, relatório fotográfico e relatórios da GNR (intercalar e final), demais materiais que se encontrem nos autos, nomeadamente outras fotografias, em ordem a esclarecer qual a probabilidade percentual de ser MM… ou M… condutora do veículo problematizando todo um modelo explicativo do sinistro e das posições das vítimas no terreno, após o despiste.” (…). (cfr. fls. 946 a 948 do Procº 53/10.3TAALR) – (artº 58 da petição inicial) 43. Pelo Mmo. Juiz de Instrução, foi proferido o seguinte despacho datado de 10.03.2016: “Melhor compulsados os autos suscita-se a questão de saber se o procedimento criminal pelo crime imputado à arguida estará eventualmente prescrito. De facto, à arguida MM… é imputada a prática do crime de ofensa à integridade física grave por negligência, nos termos previstos pelo artigo 148º, nº 3, do Código Penal, e punido com pena de prisão até dois anos. (…) Os factos terão ocorrido em 07.01.2010 e a constituição da arguida (MM…) nessa qualidade ocorreu já em 14.11.2015.” (cfr. fls. 268 destes autos e fls. 964 do Procº 53/10.3TAALR) – (artº 59 da petição inicial) 44. A A., a 11.03.2016, respondeu: (…) “o concreto resultado da ofensa corporal grave é um facto não compreendido no tipo de crime, mas relevante para efeitos de indemnização conexa, pelo que a prescrição corre apenas a partir do dia em que aquele resultado se verificar, i.e., do dia em que houver, ou se já houve, um acto médico-legal, com a consignação do estado de invalidez incontornável da sinistrada. Nestes termos, não passaram os cinco anos sobre a data da constituição da arguida e, por conseguinte, não se verifica a prescrição do procedimento criminal. Acaso não colha este ponto de vista, aliás, o da maior justiça para a resolução do caso, a assistente não poderá deixar de interpor acção de responsabilidade contra o Estado, por mau funcionamento do serviço de justiça, porquanto o atraso na constituição de arguida só pode ser imputado a um ponto de vista de viés sobre a produção do acidente e, nesta medida, ao consequente atraso judicial.” (cfr. fls. 269 destes autos e fls. 970 do Procº 53/10.3TAALR) – (artºs 60 e 61 da petição inicial) 45. Por despacho de 05.04.2016, o Mmo. Juiz de Instrução declarou extinto por prescrição o procedimento criminal contra a arguida MM… e, em consequência, determinou o arquivamento dos autos. (cfr. fls. 270 destes autos e fls. 984 do Procº 53/10.3TAALR) – (artº 62 da petição inicial) 46. Em 11/04/2016, a A. interpôs recurso para o Tribunal da Relação de Évora. (cfr. fls. 273 a 279 destes autos e fls. 992 a 995 do Procº 53/10.3TAALR) – (artº 63, 64 e 65 da petição inicial) 47. Foi proferido acórdão em 21.02.2017, pelo Tribunal da Relação de Évora, foi negado provimento ao recurso e mantido o despacho recorrido. (cfr. fls. 291 a 302 destes autos e fls. 1040 a 1051 do Procº 53/10.3TAALR) – (artº 68 da petição inicial). 2. De Direito 1.ª questão solvenda Sustenta primeiramente a apelante que o saneador-sentença apelado está eivado de erro de julgamento, na medida em que teve por inúteis os demais factos alegados na petição inicial. Mais argumenta a concomitante necessidade de prosseguimento dos termos da causa para apreciação das lesões por si sofridas. Há, desde já, a notar que, notificada do despacho que considerou estarem reunidos todos os elementos requeridos para apreciação do mérito da causa, a apelante não se insurgiu contra tal entendimento, limitando-se a iterar o que alegara na petição inicial. Em todo o caso, há a observar o seguinte. Como é sabido, o despacho saneador destina-se a conhecer imediatamente o mérito da causa sempre que o estado da causa o permita (cfr. al. b) do n.º 1 do art.º 595.º do CPC). Deve-se entender que essa condição se verifica sempre que os factos essenciais da causa estiverem já plenamente provados (seja por acordo das partes, confissão ou por documentos) e for indiferente, à luz de qualquer solução jurídica plausível para a resolução do litígio, a fixação dos factos que remanescem por demonstrar. No caso vertente, há, desde logo, a notar que a apelante não aponta concretamente os “factos sobrantes alegados nos artigos 11.º a 36.º” da petição inicial que, na sua óptica, foram indevidamente excluídos da selecção dos factos provados. Por seu turno, procedendo ao cotejo entre as alegações contidas nos art.ºs. 11.ª a 36.º da petição inicial e os factos fixados no elenco factual, constata-se que este último reflecte integralmente a factualidade relevante que ali se alega. É o que se surpreende, por exemplo, no confronto entre o que consta nos art.ºs. 11.º a 13.º, 17.º a 19.º, 23.º a 27.º e 28.º a 36.º da petição inicial e o que resulta, respectivamente, dos pontos n.º 8, 9, 16 e 18 do elenco factual. Importa aqui não olvidar que a tarefa de selecção da matéria de facto compreende, as mais das vezes, a necessária depuração de alegações de pendor conclusivo, juízos valorativos e opiniões pessoais. E é exactamente o resultado dessa tarefa que permitiu excluir as demais que se acham vertidas naqueles artigos da petição inicial. Por outro lado, o cotejo entre os factos provados constantes dos pontos n.º 3 a 7 do elenco factual e o que se alega (precisamente) nos artigos 3.º a 7.º da petição inicial permite concluir que foram inteiramente fixadas as sequelas físicas sofridas pela A. na sequência dos factos. Remanesce por fixar, é certo, a facticidade atinente ao alegado padecimento moral infligido à apelante na sequência dessas lesões (art.º 77.º da petição inicial). Mas, como se exporá adiante, o apuramento desses factos revela-se, em face das diferentes soluções plausíveis, indiferente para a apreciação do mérito da causa. Daí que não se surpreenda qualquer insuficiência da matéria factual na fixação dos factos que justifique que se determine a sua ampliação (cfr. al. c) do n.º 2 do art.º 662.º do CPC) nos termos implicitamente preconizados pela apelante. 2.ª e 3.ª questões solvendas Sustenta igualmente a apelante que a causa de pedir na presente acção é a faute de service e não a faute personnelle e que se incorreu em erro de julgamento, ao deixar por apreciar a facticidade provada à luz do enquadramento fáctico-jurídico que teve por prevalente na sua petição inicial, concretamente o conceito de culpa de serviço, a faute de service a que se refere, ou funcionamento anormal do serviço, na expressão portuguesa levada pelo legislador ao n.º 3 do art.º 7.º da Lai n.º 67/2007, de 31 de Dezembro. Alega, assim, a recorrente que “a causa de pedir mobilizada pela recorrente não foi a de uma “faute personnelle”, mas a de uma clara e indiscutível “faute de service””, tratando-se “de uma modalidade de responsabilidade administrativa, cunhada na doutrina francesa, que se consolida no erro manifesto e prejudicial de um concreto mau funcionamento de uma entidade do Estado-aparelho. Assim, para consagração da causa de pedir invocada pela recorrente bastar-lhe-ia e basta-lhe demonstrar que no “Serviço de Justiça”, vinculado à investigação criminal (por onde correu a discussão do caso), não foi cumprida a “leges artis””, devendo prosseguir a lide em Audiência de Discussão e Julgamento para debate e apuramento dos factos respeitantes à relevância, permanência e avaliação dos severos danos físicos e morais sofridos pela recorrente, durante e por causa do acidente de viação sub judice.”. Antes de mais, importa referir que resulta dos autos que a presente acção foi instaurada, enquanto “acção administrativa com vista à indemnização extracontratual por “faute de service” jurisdicional”, com fundamento nos art.ºs “1.º/1/2, 2.º, 12.º e 13.º da Lei 67/2007, de 31/12”, no Tribunal Administrativo e Fiscal de Leiria, que se declarou incompetente em razão da matéria, com os seguintes fundamentos: “(…) analisada atentamente a causa de pedir alegada e que sustenta a presente acção judicial, a mesma reconduz-se e tem a sua génese nos danos inerentes à “perda de chance” de ressarcimento por parte da Autora em relação aos danos causados pelo acidente sofrido, alegadamente causado por MM…, sendo certo que segundo as alegações da Autora, tais danos radicam no erro e deficiente investigação criminal, como resulta expressamente do artigo 71.º da petição inicial, segundo o qual (…). Ou seja, não se trata verdadeiramente de um atraso na duração do inquérito criminal e instrução, o que a Autora alega é que existiu um erro na investigação criminal e uma deficiente recolha e, em especial, errada valoração das provas, o qual determinou que só mais tarde viesse a ser constituída a arguida MM…, uma vez que a própria Autora também já tinha sido constituída arguida durante o inquérito criminal (logo em 24.05.2012), e antes do seu arquivamento. Destarte, o que está em causa na presente acção, tal como configurada pela Autora na sua petição inicial, em termos de causa de pedir e quanto à alegação do nexo de causalidade dos danos, é, antes sim, o erro de investigação, recolha e valoração da prova durante o inquérito cerimonial (e não o atraso na sua duração), o que foi causa na constituição tardia de determinada pessoa como arguida, a qual, na sua perspectiva, “seria a arguida considerada a “certa/verdadeira condutora do carro acidentado (MM…), sendo certo que, após a sua constituição como arguida, foi, posteriormente, julgado prescrito o procedimento criminal contra esta última arguida, decisão que foi confirmada em sede de recurso pelo Tribunal da Relação de Évora. Assim sendo, a questão principal que constitui a verdadeira causa de pedir é, pois, a existência, ou não, do alegado erro na investigação e no inquérito criminal, como causa dos danos, porquanto, como alega de forma cristalina a Autora no artigo 71.º da sua petição inicial, só existiu demora na constituição de determinada arguida (pois inicialmente fora constituída alegadamente a pessoa “errada”, aqui Autora, tendo posteriormente o inquérito sido arquivado), devido ao “erro estratégico da investigação em inquérito sobre a quem deveria ser imputada a condução rodoviária desastrosa”, alegando que decorriam já do inquérito elementos suficientes para uma presunção judicial que permitiria concluir que a condutora do veículo e causadora do acidente teria sido MM…, que deveria ter sido desde logo constituída arguida, em vez de o ter sido a Autora e do subsequente arquivamento. Logo, foi o alegado erro na investigação e inquérito criminal, face à alegada deficiente recolha e valoração de provas que causou a demora na constituição da “arguida certa” (na sequência da inversão do depoimento da testemunha J… quanto á verdadeira condutora), em vez da constituição da arguida “errada” e do arquivamento do inquérito, o facto decisivo que, na perspectiva da Autora, determinou a preclusão da possibilidade de a Autora vir a ser ressarcida e indemnizada pelos danos sofridos e causados pelo acidente infortúnio, que a deixou tetraplégica. Ora, em face do supra exposto, conclui-se que a causa de pedir é o erro na investigação e inquérito criminal e respectivas decisões/omissões sobre a recolha e valoração da prova, facto que consubstancia a qualificação jurídica de eventual erro judiciário durante o inquérito criminal, não estando, pois, em causa o atraso na justiça, mas sim o próprio inquérito criminal, que decorreu os seus termos no âmbito do processo-crime n.º 53/10.3TAALR, sendo certo que, só em determinado momento, se verificou a constituição da arguida MM…, a quem a Autora imputa a responsabilidade pelo acidente que a deixou tetraplégica. Importa, pois, ter presente que o inquérito criminal teve várias vicissitudes, as quais são amplamente alegadas e descritas pela Autora na sua petição inicial, sendo que o que a Autora pretende que seja avaliado é o erro na investigação e inquérito criminal, sem o qual não teria, na sua perspectiva, existido qualquer demora, porquanto seria, “in illo tempore”, logo após a abertura do inquérito e antes da prescrição, constituída a arguida alegadamente “certa”, que terá sido a condutora durante o acidente. Ora sendo a verdadeira e a nuclear causa de pedir o erro na investigação e inquérito criminal conduzido pelo Ministério Público – juridicamente subsumível ao conceito de erro judiciário, como veremos -, e não o atraso na justiça, conclui-se pois que é precisamente esta a causa de pedir essencial/principal e não a causa prejudicial, razão pela qual não se verifica qualquer causa prejudicial passível de determinar a suspensão da instância (…). Isto porque o erro na investigação criminal é, pelo contrário, a verdadeira causa principal e a causa de pedir nuclear da presente acção administrativa, sendo este o nexo de causalidade ao qual a Autora imputa os danos sofridos, relacionados com a “perda de chance”, isto é, com a impossibilidade de poder ser ressarcida pela condutora do veículo MM…, cujo acidente terá causado os danos sofridos, incluindo o seu estado de tetraplegia. A própria Autora afirma cristalinamente que a demora radica no erro de investigação (art.º 71.º da p.i.), do qual deriva aparentemente o atraso, mas o que é alegado pela Autora como nexo causal dos danos é o erro na investigação e no inquérito criminal, e não o atraso. (…) Acresce salientar que a Autora não alega que houve atraso na tramitação do inquérito criminal, logo não existe aqui qualquer autonomia acerca do atraso relativamente ao erro na investigação e inquérito criminal. Em bom rigor, a Autora não imputa a ilicitude ao atraso na tramitação, nem no incumprimento dos prazos processuais do inquérito criminal, nem daí extrai o dano na sua esfera jurídica. Com efeito, a Autora não alega que a omissão/morosidade da observância dos prazos processuais ou do dever de celeridade tenha sido o facto ilícito que causou o dano. Pelo contrário, a Autora alega o erro na investigação e no inquérito criminal como facto ilícito, que terá conduzido, como dano directo, à consequente verificação da prescrição do procedimento criminal, devido ao atraso/demora na constituição desta arguida alegadamente “certa”, daí emergindo o dano decorrente da impossibilidade de ser indemnizada pela condutora MM… (e respectiva seguradora) pelos danos causados pelo acidente à Autora, que a deixou inválida. Ou seja, o atraso no cumprimento dos prazos do inquérito criminal se não assume como causa de pedir, nem tem autonomia, sendo que, sem o alegado erro de investigação e no inquérito criminal, não se teria sequer verificado a prescrição. Isto porque foi só depois de reaberto o inquérito que se constitui como arguida MM…, sendo certo que em 2012 o MP tinha constituído outra arguida, a pessoa da ora Autora. Em conclusão, o alegado erro na investigação e inquérito criminal, deficiente recolha e valoração das provas, cujo “dominus” pertence ao Ministério Público, precede logicamente e consome o demais, incluindo o alegado atraso (que é apenas causa meramente aparente/consequente), que mais não é do que a alegada constituição da arguida X em vez da arguida Y, e da inerente prescrição do procedimento criminal. Assim sendo, dir-se-á que o facto ilícito alegado pela Autora na sua petição inicial não reside na omissão do dever de celeridade e do dever de cumprimento dos prazos processuais do inquérito criminal, enquanto “faut du service” ou falhas na administração da justiça por violação do direito a uma decisão em prazo razoável, mas reside, antes sim, no alegado erro da investigação criminal, recolha, apreciação e valoração das provas, sem o qual o inquérito não teria demorado o tempo para que fosse constituída a arguida MM… (em vez de ter sido Autora), e subjacente ao decurso do prazo de prescrição do procedimento criminal quanto á mesma. Por esta razão, (…), não existem duas causas de pedir, mas apenas e tão só o alegado erro na investigação e no inquérito criminal, não há que chamar à colação o regime processual da suspensão da instância por acusa prejudicial (…), porquanto o alegado erro judiciário durante o inquérito criminal assume, sim, a natureza de causa de pedir nuclear é, outrossim, a questão principal nos autos, não se tratando, pois, de qualquer questão prejudicial. Deste modo é inequívoco que a Autora fundamenta a presente acção em erro judiciário relativamente a actos praticados e omissões de investigação e valoração da prova no âmbito do inquérito criminal, que correu termos junto da Comarca de Santarém (…), o qual não integra a jurisdição administrativa, mas sim a jurisdição dos tribunais judiciais, i.e, perante outra ordem de jurisdição. (…). [A] errada apreciação e valoração da prova e dos factos, deficiente investigação ou a errada interpretação e aplicação do direito no âmbito do inquérito criminal relevam já no plano do erro judiciário, ainda que praticados por magistrados do Ministério Público, responsável pela direcção do inquérito criminal, por estarem em causa actos materialmente judiciais e não actos materialmente administrativos dos serviços judiciários. (….) De regresso aos autos, dúvidas não restam acerca da incompetência material deste Tribunal para conhecer da pretensão da Autora, porquanto “in casu”, os danos decorrentes da prescrição do procedimento criminal (atenta a tardia constituição de determinada pessoa como arguida) decorrem, segundo as suas alegações, do erro na investigação e no inquérito criminal, incluindo a deficiente recolha e valoração da prova por parte do Ministério Público, constituindo actuações, omissões e ocorrências jurisdicionais relativas a tribunais não integrados na jurisdição administrativa e fiscal. Conclui-se, pois, estar em causa a responsabilidade civil por eventual erro judiciário relativo ao inquérito criminal, no exercício da acção penal, encontrando-se a apreciação da presente acção excluída do âmbito da jurisdição administrativa e fiscal, de acordo com o previsto no art.º 4.º, n.º 3, al. c) e n.º 4 al.- a), ambos do ETAF. Cabe, assim, aos tribunais judiciais o conhecimento de acções em que, como apresente, se pretende efectivar a responsabilidade civil emergente de erro judiciário alegadamente cometido no âmbito da apreciação de actos relativos ao inquérito criminal, no exercício da acção penal (cfr. art.º 40.º, n.º 1 da Lei da Organização do Sistema Judiciário e artigo 64.º do CPC, segundo o qual (…)). E, concluindo: “Com os fundamentos supra expostos, tudo visto e ponderado, julgo verificada a excepção dilatória insuprível de incompetência material, pelo que declaro a incompetência absoluta deste Tribunal Administrativo em razão da matéria para o conhecimento da causa e, consequência, absolvo da instância o Réu Estado. (…)”. Este despacho transitou pacificamente em julgado, tanto mais que a A. renunciou à interposição do recurso e requereu a remessa dos autos para o tribunal judicial competente, pelo que não podemos deixar de notar a alegação da A., ora, em sede de recurso, de que a causa de pedir da acção por si interposta é a “faute de service” e não a “faute personnelle”. Enquadremos juridicamente a questão. Deparamo-nos com uma acção em que se pretende efectivar a responsabilidade civil extracontratual do Estado por actos emergentes da função jurisdicional. Actualmente, a CRP reconhece a responsabilidade civil administrativa do Estado, no seu art.º 22.º[1], inserido no Título I da Parte I da CRP (Direitos e Deveres Fundamentais), revelando, assim, a importância que a responsabilidade das entidades públicas tem, nos dias de hoje, na ordem jurídica interna, ao ponto de merecer consagração constitucional. No âmbito do art.º 22.º da CRP, a interpretação do elemento teleológico deste normativo constitucional indicia a existência de responsabilidade do Estado e das demais entidades públicas em consequência de faltas anónimas e faltas colectivas dos seus órgãos, funcionários ou agentes, encaradas como uma má organização que desencadeia um funcionamento anormal do serviço público[2]. “O artigo 22.º constitui também fundamento constitucional quanto à responsabilidade do Estado por facto de função jurisdicional. A Constituição prescreve, expressis verbis, a indemnização no caso de privação inconstitucional ou ilegal da liberdade (mesmo quando decretada por um juiz) e nos casos de condenação injusta, como, por exemplo, nas hipóteses de erro judiciário (artigos 27º-5º e 29º-6). Mas, para além destes casos, deve valer o princípio geral da responsabilidade do Estado por facto da função jurisdicional sempre que das ações ou omissões ilícitas praticada por titulares de órgãos jurisdicionais do Estado, seus funcionários ou agentes, resultem violações de direitos, liberdades e garantias ou lesões de posições jurídico-subjectivas (ex: prisão preventiva ilícita, prescrição do procedimento, não prolação de uma decisão jurisdicional num prazo razoável)”[3]. “Apesar de não lhe fazer uma referência expressa, entende-se que ao art.º 22.º da CRP, ao estabelecer um princípio geral de responsabilidade patrimonial do estado por factos ilícitos e culposos, abrange também a responsabilidade civil por facto da função jurisdicional. Um corolário desse princípio é, desde logo, a expressa previsão de um dever de indemnizar relativamente a “provação de liberdade contra o disposto na Constituição e na lei” (art.º 27.º, n.º 5 da CRP) e à condenação penal, injusta (art.º 29.º, n.º 6 da CRP). Estes preceitos constitucionais referem-se a situações de erro judiciário, que resultem de prisão preventiva ilegal ou injustificada, bem como a condenação penal que, através do competente processo de revisão, venha a concluir-se ter sido proferida indevidamente. Por sua vez, o art.º 22.º da CRP, ao consagrar um princípio geral de responsabilidade por acções ou omissões ilícitas de titulares de órgãos do Estado, funcionários ou agentes de que resultem violações de direitos, liberdades e garantias, vem dar cobertura não só a outras formas de responsabilidade por acto jurisdicional, incluindo o erro judiciário cível, como também à responsabilidade pelo funcionamento da administração da justiça, quando os danos possam ser imputáveis a magistrados judiciais (quando provenham de actos não jurisdicionais), a outros órgãos da justiça (magistrados do Ministério Público), a funcionários de justiça ou ao serviço judicial considerado globalmente.”[4]. “[N]outro plano, justamente porque a referência à solidariedade não deve fazer esquecer a intenção fundamental do artigo 22º da Constituição, a teleologia do preceito vale igualmente para as faltas anónimas e para as faltas coletivas, em que, designadamente em consequência de vícios de organização, ocorreu um funcionamento anormal do serviço público. É certo que, numa perspetiva estritamente literal, o artigo 22º, ao associar a responsabilidade do Estado e das demais entidades públicas à responsabilidade dos titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, está estruturado segundo o modelo de imputação individualístico clássico. Em rigor, porém, numa interpretação teleologicamente comprometida, o sentido da disposição constitucional protege igualmente os particulares que sejam lesados por ações ou omissões dos serviços públicos que não cumpram os padrões exigíveis (cfr., no plano da concretização legal desta hipótese, artigo 7º, nºs 3 e 4, do Regime da Responsabilidade Civil Extracontratual do Estado e demais Entidades Públicas, aprovado pela Lei nº67/2007.”[5] O regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas consta actualmente do regime anexo à Lei n.º 67/2007, de 31 de Dezembro (alterada pela Lei n.º 31/2008, de 17 de Julho), doravante designado por RRCEE, importando, pois, face às questões suscitadas pela recorrente, fazer uma breve análise sobre este regime. A responsabilidade civil por danos decorrentes do exercício da função jurisdicional está especialmente inserida no capítulo III, que abrange os artigos 12.º a 14.º, desse anexo. A função jurisdicional reconduz-se, em sentido lato, e para o que ao caso importa, à administração que é protagonizada pelos magistrados judiciais e pelos magistrados do MP. (cfr. art.º 14.º do RRCEE) “Embora o Ministério Público não exerça a função jurisdicional propriamente dita e o artigo nada expresse sobre os pressupostos da responsabilidade civil do Estado deixa implícita a sua responsabilidade por factos causadores de danos derivados do exercício da função do Ministério Público.”[6] O art.º 12.º, sob a epígrafe “Regime Geral”, reporta-se à responsabilidade civil do Estado, nomeadamente, por violação do direito a uma decisão em prazo razoável, referindo-se à salvaguarda do regime especial dos art.ºs 13.º e 14.º. Por sua vez, a segunda parte do n.º 1 do artigo 13.º contempla os danos decorrentes de decisões jurisdicionais manifestamente inconstitucionais ou ilegais ou injustificadas por erro grosseiro na apreciação dos respectivos pressupostos de facto. Para efeitos do regime previsto no art.º 13.º do RRCEE – o qual tem de ser entendido à luz do art.º 22.º da CRP, por ser o seu fundamento – o erro judiciário reconduz-se ao erro cometido pelo juiz e pelo Magistrado do Ministério Público, aquele que decide os termos da causa, define a solução jurídica para o caso concreto ou que, em cada momento, assume a direcção do processo.[7] No artigo 14.º está prevista a regra da não responsabilização dos magistrados judiciais e do Ministério Público, bem como a respectiva excepção, e a decisão de exercício do direito de regresso. Subsidiariamente é aplicável o regime da responsabilidade por factos ilícitos cometidos no exercício da função administrativa, o qual emerge dos art.ºs 7.º a 11.º daquele regime. “A LRCEE prevê a existência de três tipos de responsabilidade da função jurisdicional: por violação do direito a uma decisão em prazo razoável (art.º 12.º); por prolação de sentença condenatória injusta e privação injustificada da liberdade (art.º 13.º/1, 1.ª parte); por prolação de decisão inconstitucional, ilegal ou em erro grosseiro sobre a apreciação dos factos (art.º 13.º/1, 2.ª PARTE). O art.º 14.º/1 dá azo a uma quarta categoria de responsabilidade dos magistrados do Ministério Público (que não é, em bom rigor, função jurisdicional stricto sensu): por danos provocados por actos jurídicos e materiais, integrados no contexto de investigação criminal”.[8] Ora, é indubitável que o Estado deve ser responsabilizado, reunidos os necessários pressupostos, pelo ressarcimento de danos ocorridos no âmbito da administração da justiça que advenham do funcionamento anormal do serviço (n.º 3 e n.º 4 do art.º 7.º ex vi art.º 12.º, ambos do aludido regime)[9], que consagra a chamada culpa do (ou de) serviço ou culpa anónima, assente na teoria de origem francesa da “faute du(e) service” . Como deriva do n.º 3 do art.º 7.º (prevê a responsabilidade do Estado ainda que os danos não tenham resultado do comportamento concreto de um titular de órgão, funcionário ou agente determinado, ou não seja possível provar a autoria pessoal da acção ou omissão, mas devam ser atribuídos a um funcionamento anormal do serviço), o seu campo de actuação tem em vista a subsistência de dificuldades de prova e/ou de identificação de agente culpado concreto, constituindo-se este regime como uma modalidade de ilicitude e não propriamente como uma modalidade de imputação subjectiva da conduta[10]. A culpa do serviço, ou faute du service na terminologia original, tendo como pressuposto a culpa, a culpa do serviço é, “uma ficção a que se recorre nas hipóteses em que não é possível identificar o autor material do facto lesivo”[11]. Deste conceito, resulta, para a correcta definição de culpa do serviço, que a culpa do serviço não se traduz, necessariamente, numa falha do serviço público. Pode apenas e tão só significar que o serviço público vai assumir a falha de um funcionário, ou conjunto de funcionários, que não é possível identificar. Também Charles Eisenmann[12] entende que a faute du service é uma manifestação organicista falseadora da realidade, uma ficção criada para suprir a dificuldade de provar a faute de service dos agentes. “As situações de faute du service que podem originar danos não susceptíveis de serem imputados ao comportamento de um qualquer agente administrativo passaram a estar reguladas pela LRCEE. A regulação desta matéria implica a densificação do conceito de faute du service, pelo que tentaremos recuperar o vasto tratamento dogmático que é dado a esta matéria pela doutrina francesa. Esta distingue, no âmbito da responsabilidade da administração, entre as chamadas faute du service (du fonctionnaire, personnelle) e faute de service.(Yves Gaudemet - Droit Administratif, 19 édition, Paris: LGDJ, 2010, p. 155). (…) O Conselho de Estado francês logrou influenciar o conceito de faute du service, através da densificação orientada por um conjunto de acórdãos nas matérias correspondentes à destrinça entre funcionamento anormal do serviço (faute du service) e falha pessoal do funcionário [(faute de service ou faute personnelle) — Ac. ANGUET (1911)]; a destrinça entre responsabilidade conjunta e responsabilidade solidária (direito de regresso) [Ac. LEMONIER (1918)]; a natureza do conceito de funcionamento anormal do serviço sem necessidade de actuação concreta de funcionários ou agentes [Ac. WALTER (1943)]; o dano causado pelo funcionário no exercício de funções profissionais mas não por causa do seu exercício [Ac. DELVILLE (1951) e Ac. LARUELLE (1951)]; a responsabilidade da administração por insuficiência de meios [Ac. S. ANDRÉ DOS ALPES (1961)]; e, a definição da graduação do grau de culpa (leve e grave) para a imputação da responsabilidade civil ao funcionário ou agente [Ac. LAFONT (1967)]. Em Portugal, o conceito de faute du service foi desenvolvido pela jurisprudência portuguesa antes ainda da entrada em vigor da LRCEE. (…) [A] produção dos danos revela, em qualquer das circunstâncias, um funcionamento anormal do serviço, ou porque a lesão resulta de falhas imputáveis ao serviço globalmente considerado, ou porque foi um dos seus funcionários ou agentes que incorreu na violação de regras técnicas ou de um dever geral de cuidado. Na primeira situação, estamos perante um caso de culpa do serviço, que é a culpa anónima e colectiva de uma administração desorganizada no seu conjunto, de tal forma que é difícil descobrir os seus verdadeiros autores; ou, na segunda situação perante um caso de culpa de serviço (Trata-se da noção de faut personelle avançada por ANDRÉS DE LAUBADÉRE— Traité de Droit Administratif, 11ème édition, Paris, Tome I, LGDJ, 1990, p. 770), provocada por um agente nitidamente individualizado (A culpa de serviço imputada a um funcionário que revele o seu lado humano com todas as suas falhas, paixões e imprudências. YVES GAUDEMET— Droit Administratif, cit., p.156). Alguma doutrina francesa afirmava que tendo em conta que tanto num caso como noutro, a pessoa dos agentes é totalmente alheia ao debate jurídico da responsabilidade, esta distinção perderia relevância (No nosso entendimento, não é necessário estabelecer a distinção entre as duas figuras na medida em que, em ambos os casos, a pessoa do agente administrativo fica totalmente alheia ao debate jurídico, ou seja, não responde pelos danos causados. No mesmo sentido, JEAN RIVERO (trad. de Droit Administratif por Rogério Ehrhardt Soares) Coimbra: Livraria Almedina, 1981, p. 320). Todavia, o regime da LRCEE consagra, como vimos, a responsabilidade pelo funcionamento anormal do serviço e esta não suprime a responsabilidade individual em caso de dolo ou culpa grave do titular do órgão, agente ou funcionário (V. art. 8.º, n.º 1, da Lei 67/2007, de 31 de Dezembro). Deste modo, salvo melhor opinião, não é indiferente o grau de culpa do serviço para a LRCEE. Se a culpa for anónima a responsabilidade do Estado é exclusiva, se a culpa for identificável a um titular a responsabilidade do Estado já pode ser solidária. (…) A teoria da responsabilidade civil administrativa do Estado não pode ser compreendida sem apelo da figura — há muito conhecida entre nós — da faute du service, seja por culpa anónima ou colectiva. No quadro de uma administração pública moderna, através da qual cada funcionário se encontra inserido numa hierarquia de poder com competências delegadas e subdelegadas, é natural que cada um assuma obrigações de conduta perante outros, numa relação hierárquica complexa, em que o sujeito responsável fica sujeito, em permanência, a um poder de apreciação e valoração das suas condutas, segundo mecanismos institucionais que variam consoante a natureza do serviço. As situações de falha no serviço podem originar danos não susceptíveis de serem imputados a um comportamento de um qualquer agente administrativo, antes são consequência do mau funcionamento generalizado dos serviços administrativos, designadamente atrasos de resposta do serviço administrativo e omissões do dever de agir anónimos e não susceptíveis de serem individualizados. O conceito de faute du service veio importado da jurisprudência francesa do Conselho de Estado. No que se refere à responsabilidade civil da administração, uma das principais alterações introduzidas pela LRCEE foi a consagração legal da responsabilidade objectiva da administração pelo funcionamento anormal dos seus serviços, a qual há já muito tempo vinha sendo reclamada pela nossa doutrina.”[13] Feito este brevíssimo excurso, revertamos ao caso sujeito. Ora, na espécie, a apelante atribui as circunstâncias fundantes da invocada culpa do serviço na actuação de concreto(s) magistrado(s) do Ministério Público. Com efeito, é de acordo com o que resulta do alegado nos art.ºs. 18.º, 20.º, 23.º, 36.º, 38.º, 41.º, 46.º e mesmo nas conclusões V e VI é a esse(s) magistrado(s) que se imputa a falta de realização de diligências que a apelante tinha como necessárias para identificar a condutora do veículo em que seguia (mormente, a realização dos ditos exames aos vestígios hemáticos) e/ou a errada valoração dos indícios colhidos que desembocaram no retardamento da constituição de M M… como arguida e na sequente conclusão pela prescrição pelo procedimento criminal. E essa alegação mostra-se em consonância com a constatação de que ao MP incumbe a direcção funcional do inquérito (n.º 1 do art.º 263.º do CPP), o que compreende, designadamente, a efectivação de perícias (al. b) do n.º 2 do art.º 270.º do mesmo diploma) ou, pelo menos, a delegação nos órgãos de polícia criminal (n.º 3 e 4 do mesmo preceito). Na verdade, o inquérito é a fase preliminar do processo e é da competência do Ministério Público (art.ºs 53.º, n.º 2, alínea b), 263.º, n.º 1 e 267.º, todos do Cod. Proc. Penal), compreendendo o conjunto de diligências que visam investigar a existência de um crime, determinar os seus agentes e respectiva responsabilidade, bem como descobrir e recolher provas, tudo em ordem à decisão sobre a acusação (art.º 262.º n.º 1 do mesmo diploma legal). Sempre que haja notícia de um crime inicia-se um inquérito com o objectivo de apurar se foi efectivamente praticado um crime, fase que termina com um despacho, ou de arquivamento, ou de acusação (art.º 276.º, n.º 1, do Cód. Proc. Penal). A competência para dirigir o inquérito pertence ao Ministério Público (cfr. arts. 219.º da CRP e 262.º do Cod. Proc. Penal) e a intervenção do Juiz, nesta fase, é pontual e excepcional. Temos assim que as actuações alegada e supostamente danosas são atribuíveis a magistrado(s) concreto(s) do MP e é nitidamente possível atribui-las a título de autoria aos mesmos. Paralelamente, não se alegaram, no mesmo passo, factos que sejam impossíveis de atribuir a um sujeito concreto e, menos ainda, danos que não sejam imputáveis ao comportamentos concretos de alguém ou, sequer, a condutas identificáveis[14]. O mesmo se diga mutatis mutandis quanto ao juiz de instrução criminal, que declarou a prescrição do procedimento criminal, cuja decisão, aliás, foi confirmada por este Tribunal da Relação da Évora. Com efeito, nos termos em que vem configurada a causa de pedir, não estamos perante a faute de service que a apelante assevera. “Pela primeira vez no direito positivo, o art.º 7.º, n.º 3 contempla a chamada culpa do serviço, abarcando as duas modalidades: a culpa colectiva, atribuível a um deficiente funcionamento do serviço, e a culpa anónima, resultante de um concreto comportamento de um agente cuja autoria não seja possível determinar. A culpa colectiva abrange os casos em que os danos não possam ser directamente imputados a um comportamento concreto de um titular de órgão, funcionário ou agente, mas resultem de uma actuação global que envolva uma responsabilidade dispersa por diversos sectores ou intervenientes. A culpa anónima engloba as situações em que o dano é imputável à acção de um determinado titular de órgão, funcionário ou agente, mas não é possível apurar a autoria pessoal do facto lesivo. A produção dos danos revela, em qualquer dessas circunstâncias, um funcionamento anormal do serviço, ou porque a lesão resulta de falhas imputáveis ao serviço globalmente considerado, ou porque foi um dos seus funcionários ou agentes que incorreu na violação de regras técnicas ou de um dever geral de cuidado, apesar de não ter sido possível identificar o responsável. O sentido útil do presente n.º 3 é o de esclarecer que existe ainda uma responsabilidade exclusiva do Estado e das demais pessoas colectivas públicas quando se verifique uma situação de funcionamento anormal do serviço, na modalidade de culpa anónima ou culpa colectiva; isto é, a pessoa colectiva responde pelos danos produzidos quando, havendo uma actuação danosa ilícita, ela não possa ser imputável aos titulares de órgãos, funcionários ou agentes, ou porque não foi possível individualizar o responsável, ou porque a responsabilidade se dilui na actividade operativa do serviço considerado no seu conjunto. (…) Estando em causa o funcionamento anormal do serviço – e, portanto, uma actuação lesiva insusceptível de ser imputada a uma magistrado ou funcionário determinado, o que sobretudo releva é a circunstância de se não ter atingido o padrão de diligência funcional média no exercício da actividade, que deverá aferir-se por um standar de actuação e rendimento normalmente exigível. O deficientemente funcionamento da justiça há-de, por conseguinte, caracterizar-se por um facto ou uma série de factos que revelem a inaptidão do serviço para o cumprimento da sua missão”.[15] Assim, afigura-se-nos evidente que a modalidade de ilicitude a que vimos aludindo não cobra aplicação no caso vertente, não sendo a facticidade alegada reconduzível a um deficiente funcionamento de quaisquer serviços de Justiça. E esta conclusão alcança-se malgrado as invocações da teoria da “faute de service”, as quais, contudo, surgem desacompanhadas de qualquer ligação ao respectivo assento legal. Ademais, ao contrário do que a apelante sustenta, a consideração da culpa de serviço não pode ser desligada dos concretos termos em que se veicula a alegação. Por isso, mesmo que se perspectivasse o caso no ângulo que a A., em sede de apelação, parece agora privilegiar, não se alcançaria solução diversa. E, nessa medida, sempre se tornaria evidente a desnecessidade de prosseguimento dos termos da causa para a apreciação dos falados danos não patrimoniais. Destarte, mostra-se prejudicada a apreciação da 3.ª questão (n.º 2 do art.º 608.º do CPC). Contudo, sempre se dirá que, porventura por a presente acção ter sido proposta na jurisdição administrativa, a alegação fáctica contida na petição inicial reporta-se à indevida delonga na constituição de MM… como arguida, o que alegadamente ocasionou a perda do direito de a responsabilizar criminalmente pelo evento que espoletou os prejuízos sofridos pela apelante. É o que se colhe do exaustivo relato das diligências processuais e decisões tomadas no âmbito do processo n.º 53/10.3TAALR (no qual se apreciaram esses factos), o qual culmina, justamente, com as alegações vertidas nos art.ºs. 69.º, 70.º e 73.º da petição inicial que sintetizam o que se veio de expor, sustentando a apelante que essa delonga assentou na imprevidência revelada pelo facto de o veículo acidentado não ter sido logo apreendido, examinado e nele colhidos vestígios hemáticos antes daquele ter sido destruído e num erro valorativo de factos e circunstâncias e (cfr. art.ºs 71.º, 72.º e 82.º da petição inicial). Ora, como vimos, não se pode perfilhar o entendimento de que a culpa do serviço, era a causa de pedir (nem tão-pouco o núcleo essencial da causa petendi) formulada na petição inicial mas antes o(s) motivo(s) – a que acima fizemos menção - que espoletou(aram) a delonga que a apelante reputa como prejudicial. Nesse contexto, percebe-se que o despacho apelado tenha apreciado a questão solvenda nos termos em que o fez, ou seja, à luz do n.º 1 do art.º 13.º do RRCEE. Com efeito, tanto a própria alegação da apelante como o alcance limitado (como sublinha o recorrido) da competência dos tribunais em razão da matéria (como deflui da conjugação da al. a) do n.º 4 do art.º 4.º do ETAF e do art.º 64.º do CPC, a apreciação das acções de responsabilidade por erro judiciário cometido por tribunais judiciais inserem-se na jurisdição destes), propiciavam e determinavam essa apreciação. Daí que nada haja a censurar à sentença recorrida, que assumiu a causa de pedir nos termos constante da fundamentação do despacho proferido no TAF de Leiria, que declarou a incompetência absoluta daquele para os termos da presente demanda. Não se vislumbra, outrossim, em que medida o entendimento vindo de professar contenda com o direito a uma tutela jurisdicional efectiva (art.º 20.º da CRP), já que foi o modo como a A. estruturou a sua alegação que conduziu a esse desfecho. Do exposto, e considerando que na minuta recursória a recorrente alega discordar do entendimento do tribunal a quo quanto à causa de pedir – que vimos já não lhe assistir razão – dirigindo a censura à sentença recorrida neste conspecto, não formulando qualquer censura ou dissentimento quanto ao mérito da sentença se a causa de pedir fosse – como é - a considerada pelo tribunal a quo, resulta inexoravelmente a improcedência da apelação e, consequentemente, a subsistência da decisão apelada, não se mostrando violadas as disposições legais ali invocadas ou quaisquer outras. As custas serão suportadas, porque vencida, pela apelante, sem prejuízo do apoio judiciário de que beneficia. IV. Dispositivo Pelo exposto, acorda-se neste Tribunal da Relação em negar provimento ao recurso, mantendo-se a decisão recorrida. Custas pela apelante, sem prejuízo do apoio judiciário que lhe foi concedido. Registe. Notifique. Évora, 7 de Maio de 2020 Florbela Moreira Lança (Relatora) Ana Margarida Leite Cristina Dá Mesquita _________________________________________________ [1] “O Estado e as demais entidades públicas são civilmente responsáveis, em forma solidária com os titulares dos seus órgãos, funcionários ou agentes, por ações ou omissões praticadas no exercício das suas funções e por causa desse exercício, de que resulte violação dos direitos, liberdades e garantias ou prejuízo para outrem”. [2] Jorge Miranda, Rui Medeiros, Constituição da República Portuguesa – anotada, anotação VIII ao art.º 22º, I, Coimbra, 2005 [3] Gomes Canotilho e Vital Moreira, Constituição da República Portuguesa Anotada – artigos 1º a 107, pp. 430-431 [4] Carlos Fernandes Cadilha, Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, pp. 192 [5] Jorge Miranda e Rui Medeiros, Constituição Portuguesa Anotada, I, 2.ª ed., pp.483-484 [6] Salvador da Costa, Responsabilidade civil por danos derivados do exercício da função jurisdicional, pp. 14, Texto da comunicação apresentada no Colóquio “Carreira dos Juízes – Perspectivas de futuro”, organizado pelo Fórum Permanente Justiça Independente, no dia 23 de Janeiro de 2009, em Lisboa, acessível em http://www.inverbis.pt/2007-2011/images/stories/pdf/salvadorcosta_respcivil_funcaojurisdicional.pdf. [7] Assim, Ana Celeste Carvalho, Da Responsabilidade Civil por erro judiciário, 2012, pp. 35-36 e 42 [8] Carla Amado Gomes,Três textos sobre o Novo regime da responsabilidade Civil Extracontratual do estado e demais Entidades Publicas, 2008, pp. 105 [9] Neste sentido, vide, entre outros, o Ac. do STJ de 05.05.2018, proferido no proc. n.º 5405/07.3T8ALM.L1.S1 e acessível em www.dgsi.pt) [10] Assim AROSO DE ALMEIDA, Comentário ao Regime da responsabilidade civil extracontratual do Estado e demais entidades públicas, 2013, pp. 249 a 254 [11] Margarida Cortez, Responsabilidade Civil da Administração por Actos Administrativos Ilegais e Concurso de Omissão Culposa do Lesado (Trabalhos preparatórios da reforma), pp. 93 [12] Sur le degré d’originalité du regime de la responsabilité extracontractuelle des personnes (collectivités) publiques, La semaine Juridique, 1949, I, 751, pp.7. e Cours de Droit Administratif, II, Paris, LGDJ, 1983, pp. 834. [13] Tiago Viana Barra, op. cit. ppp. 174-175, 191-193 [14] Sobre as distintas hipóteses contempladas no n.º 3 do art.º 7.º, vide AROSO de ALMEIDA, op. cit., pp. 253. [15] Carlos Fernandes Cadilha, op. cit. pp. 132-133 e 198 |