Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | CONCEIÇÃO FERREIRA | ||
Descritores: | PRIVAÇÃO DE USO DE VEÍCULO INDEMNIZAÇÃO | ||
Data do Acordão: | 11/19/2020 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | A privação do uso de uma coisa, inibindo o proprietário ou detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constitui, em termos naturalísticos, uma perda, cuja constatação não é escamoteável. | ||
Decisão Texto Integral: | Apelação n.º 5251/18.9T8STB.E1 (2ª Secção Cível) ACORDAM OS JUÍZES DA SECÇÃO CÍVEL DO TRIBUNAL DA RELAÇÃO DE ÉVORA (…) Unipessoal, Lda. intentou ação declarativa de condenação, contra Seguradoras Unidas, SA, que corre termos no Tribunal Judicial da Comarca de Setúbal - Juízo Central Cível de Setúbal – Juiz 1, alegando em síntese: - Celebrou com a ré dois contratos de seguro do ramo automóvel na modalidade de danos próprios, referente a veículo articulado e reboque, cobrindo as apólices de seguro o risco de incêndio, raio ou explosão; - No dia 19/06/2017 o trator e reboque sofreram um sinistro de incêndio enquanto circulavam pela EN (…), tendo participado o sinistro junto da Seguradora, ora ré, que efetuou peritagem aos veículos e indicou valores a indemnizar, embora tenha considerado as vistorias a titulo condicional, e após averiguação informou de que não assumia o sinistro por não ter resultado provada a ocorrência do sinistro nos moldes participados, sem que, no entanto, tenha prestado qualquer outra explicação nem tenha apresentado o relatório de averiguação, que lhe foi solicitado, alegando tratar-se de documentação interna da Companhia de Seguros; - Por parte da Seguradora houve um incumprimento das obrigações assumidas nos contratos de seguro quanto à regularização do sinistro não assumindo o pagamento da indemnização devida pelo sinistro e não esclarecendo devidamente das razões para tal, retirando, assim, a possibilidade da autora manter a atividade, pois o veiculo e reboque segurados eram a única fonte de produção, continuando até a pagar as mensalidades do contrato de leasing sem ter qualquer fonte de rendimento dada a paralisação da viatura. Concluindo peticiona a condenação da ré: a) A pagar-lhe a verba de € 32.686,17 (reboque em € 8.277,90 e trator em € 24.408,27), relativo à cobertura do sinistro; b) A pagar-lhe a verba de € 25.340,92, referente aos dias de paralisação dos veículos até à presente data, bem como os dias seguintes até ao pagamento do sinistro por parte da R.; c) A pagar-lhe os juros de mora e demais despesas com o cumprimento dos contratos de leasing, a determinar em execução de sentença; d) Às referidas verbas, deverão ser acrescidas dos respetivos juros de mora à taxa legal até ao seu efetivo pagamento; e) A pagar-lhe, em caso de incumprimento após trânsito em julgado, de uma sanção pecuniária compulsória no valor mínimo de € 100,00 por cada dia de atraso até efetivo e integral pagamento, nos termos do artigo 829º-A, nº 1 e 2, do Código Civil. Citada, a ré veio contestar alegando, em síntese: - Após a participação do sinistro pela autora efetuou averiguação e constatou divergência e contradição entre as declarações do motorista apresentadas à companhia e as declarações junto da entidade policial, o que conjugadamente com outras realidades investigadas pela companhia de seguros lhe permitiram concluir que o acidente não ocorreu de forma súbita, inevitável e imprevista, não tendo ocorrido da forma como foi participada à seguradora, não se encontrando a mesma constituída na obrigação de indemnizar; - Como resulta das condições particulares da Apólice não foi contratualizada qualquer cobertura de privação do uso ou automóvel de substituição. Conclui pela improcedência da ação e respetiva absolvição do pedido. Corrida a tramitação processual, veio a ser proferida sentença cujo dispositivo reza: “Por tudo o exposto: A) Julga-se a ação parcialmente procedente e, consequentemente, condena-se a R. Seguradoras Unidas, SA a pagar à A. (…), Unipessoal, Lda. a quantia de € 32.686,17, acrescida de juros calculados à taxa legal de 4% desde a citação até integral pagamento, B) Absolve-se a R. do demais peticionado. C) Custas a cargo da A e da R. (…) Companhia de Seguros, SA na proporção do decaimento.” + Por não se conformar com a sentença, veio a autora interpor recurso terminando, nas respetivas alegações, por formular as seguintes conclusões (diga-se de conclusões têm pouco, atendendo a que são o decalque parcial do que anteriormente já havia sido alegado), que se transcrevem:“1. O presente recurso irá abordar: a) A falta de motivos por parte da R. (Recorrida), quanto à não aceitação da responsabilidade emergente do sinistro; b) A recusa da R. em colaborar com a A. na regularização do sinistro; c) Os motivos fúteis e sem qualquer nexo causal invocados pela R., para a exclusão da cobertura de incêndio, consignada na apólice; d) O protelamento reiterado e desusado das respostas da A. à R., para não pagar os danos emergentes do sinistro; e) Tudo se traduzindo na violação de um dever acessório da prestação, que não resultando do contrato de seguro, resulta do princípio da boa-fé, consubstanciado na violação de um dever de diligência e lealdade; e f ) Os danos causados à A. em consequência do comportamento da R.. 2. Com interesse para o presente recurso, ficaram provados os seguintes factos: “21- Mais tarde, a A. recebeu uma carta da R., datada de 30.08.17, onde informa que “não ficou provada a ocorrência do sinistro nos moldes participados.”, não assumindo desta forma o sinistro. 22- (…) contactou a R. sobre a carta referida em 21), mas não obteve qualquer resposta concreta, limitando-se a informá-lo que o sinistro não estava a coberto da apólice. 23- Face ao sucedido, a A. recorreu ao seu mandatário forense, o qual encetou diligências junto da R., mas esta limitou-se a indicar clausulado da apólice e a reafirmar por missiva de 22.11.2017 que «durante a instrução a que procedemos constatamos que o sinistro participado não ocorreu conforme as circunstâncias descritas na participação efetuada pela constituinte de V.Exa.». 24- A fim de suprir tal circunstância, a A., por intermédio do seu mandatário, solicitou à R., por mail de 24.04.18: “Queiram-me enviar o relatório de averiguação do sinistro, conforme dispõe: Artigo 36.º do DL 291/07, de 21/08 Diligência e prontidão da empresa de seguros 1 - Sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro, a empresa de seguros deve: d) Disponibilizar os relatórios das peritagens no prazo dos quatro dias úteis após a conclusão destas, bem como dos relatórios de averiguação indispensáveis à sua compreensão”; 25- A resposta da R. foi a seguinte: “Acusamos a receção da correspondência eletrónica de V. Exa datada de 24/04/2018, cujo teor mereceu a nossa melhor atenção. Em resposta cumpre-nos informar que mantemos a posição anteriormente transmitida, uma vez que na análise aos elementos que integram o nosso processo, nomeadamente a averiguação efetuada, se constatou a existência de um conjunto de irregularidades que nos levam a concluir que o sinistro não terá ocorrido de uma forma aleatória, súbita e/ou imprevista. Mais informamos que o relatório de averiguação, tratando-se de documentação interna desta Companhia, não poderá ser disponibilizado extra-judicialmente”; 28- A A. antes do sinistro estava a laborar, e com a falta daqueles veículos, a A. deixou de produzir; 29- Mas o sócio-gerente da A., na qualidade de fiador, continua a pagar as prestações dos contratos de leasings referidos em 3) 30- O sócio-gerente (…), sua companheira (…) e seu filho (…) viviam dos frutos da laboração da Autora. 31- Desde Janeiro de 2016 até à data do acidente, a A. declarou rendimentos da exploração dos referidos veículos no valor de € 41.467,12 (conforme declarações de IRC do ano de 2016 e 2017), 32- A A. teve uma média mensal de rendimentos na ordem de € 2.303,72.” 3. O acidente ocorreu em 19.06.17, tendo a R. informado a A. em 30.08.17, que não aceitava a responsabilidade emergente do sinistro, tendo-se passado 49 dias úteis, à revelia do preceituado nos artigos 36.º e 86.º do DL 291/07, de 21/08. 4. A R. veio, ainda mais, a atrasar o processo de decisão, pois, como era sua obrigação contratual, deveria motivar minimamente a sua não assunção de responsabilidade, mas limitou-se a dizer que “não ficou provada a ocorrência do sinistro nos moldes participados.”, conforme artº 21 dos factos provados. 5. A R. não respeitou o princípio de que os contratos devem ser pontualmente cumpridos (Artigo 406.º do Cód. Civil), nem o princípio da reciprocidade entre os contraentes, consagrada na boa-fé contratual; 6. A A. contactou a R. sobre a sua tomada de posição: “não ficou provada a ocorrência do sinistro nos moldes participados”, mas “não obteve qualquer resposta concreta, limitando-se a informá-lo que o sinistro não estava a coberto da apólice”, conforme artigo 22 dos factos provados. 7. A R. “limitou-se a indicar clausulado da apólice e a reafirmar por missiva de 22.11.2017 que «durante a instrução a que procedemos constatamos que o sinistro participado não ocorreu conforme as circunstâncias descritas na participação efetuada pela constituinte de V. Exa.”, conforme artigo 23 dos factos provados. 8. Foi pedido à R. o relatório de averiguação de modo a o A. poder perceber a razão da R. para a não assunção do sinistro e, assim, tomar uma posição, mas a R., à revelia da Lei (Artigo 36.º do DL 291/07, de 21/08), recusou fornecer tal documento. 9. Pasme-se que na resposta, a R. fez menção do relatório de averiguação, para não aceitar a cobertura do sinistro: “mantemos a posição anteriormente transmitida, uma vez que na análise aos elementos que integram o nosso processo, nomeadamente a averiguação efetuada, se constatou a existência de um conjunto de irregularidades que nos levam a concluir que o sinistro não terá ocorrido de uma forma aleatória, súbita e/ou imprevista”, conforme artº 25 dos factos provados. 10. Esta resposta da R. foi dada em 14.06.18, conforme mail sob o documento nº 20 da p. i., ou seja, já tinha passado um ano (acidente em 19.06.17) e a A. sem uma resposta concreta, com a qual pudesse repensar da continuação ou não continuação da sua reclamação do sinistro. 11. A R. não colaborou com a A., sua segurada; porque, a informação que alegava ter vedou-a à A., não a mostrando e foi protelando no tempo uma resposta motivada, ao invocar simples palavreado conclusivo. 12. Ora tais factos são demonstrativos de uma manifesta má-fé contratual na regularização do sinistro. 13. Queria vencer a A. pelo cansaço, mas a A. não tinha outra solução que não fosse lutar, uma vez que estava em causa a sobrevivência de uma família, cujo pai (sócio-gerente da A.) era fiador do empréstimo que a A. tinha contraído junto da Financeira e tinha que pagar os respetivos encargos, conforme art.ºs 29 e 30 dos factos provados. 14. Com efeito, a A. desde Janeiro de 2016 até à data do acidente, declarou rendimentos da exploração dos referidos veículos no valor de € 41.467,12, tendo uma média mensal de rendimentos no valor de € 2.303,72, conforme artºs 31 e 32 dos factos provados. 15. A A. deixou de laborar, dado que não possuía os únicos meios de produção que antes do acidente detinha – os veículos –, para poder exercer a sua actividade, conforme artº 28 dos factos provados. 16. Tais factos são imputáveis à R., devido ao seu comportamento, anteriormente explanado. 17. Mais, só posteriormente – com a contestação – é que a R. veio alegar, em concreto, os factos que sempre negou prestar à A., contudo, tais factos, além de não se terem provado, nunca seriam a causa adequada à ocorrência do incêndio. 18. É verdade que a A. e a R. não contrataram na apólice sub-judice a cobertura da privação de uso dos veículos seguros, todavia, houve por par te da R. um manifesto e propositado incumprimento do contrato, sem qualquer justificação. 19. A R. limitou-se a responder à A. com uma reiterada negação sobre a cobertura do sinistro, nunca fundamentando em concreto a sua posição, protelando no tempo infundadas respostas, sempre à espera que a A. desistisse. 20. Tal atitude traduziu-se numa violação injustificada do contrato por parte da R., e é esse facto a causa dos danos da R.. 21. Ora, este inexplicável atraso no andamento do processo no pagamento da indemnização à A., traduziu-se na violação de um dever acessório da prestação, que não resultando do contrato de seguro, resulta do princípio da boa-fé, consubstanciado na violação de um dever de diligência e lealdade. 22. E a R. incorreu em responsabilidade contratual, estando, por esta via, obrigada a indemnizar o dano que resultou para a contraparte, a A.. 23. A R. tinha o dever, ex bona fide, de minorar os danos ou de evitar a sua propagação (artigo 762.º, n.º 2, do Código Civil). 24. Efetivamente, a R. estava obrigada a solucionar a questão tão depressa quanto possível e com a diligência devida. No caso em apreço, existem normas específicas que impunham à R. especial diligência e prontidão na regularização do sinistro nos termos dos artigos 31.º e seguintes da Lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto. 25. Também a boa-fé e os princípios gerais de conduta de mercado, consignados no Dec.-Lei n.º 94-B/98, de 17 de Abril, obrigavam a R. a garantir uma gestão célere e eficiente do processo de sinistro, agindo com a possível prontidão e diligência nas averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos, mas nada disto aconteceu. 26. Nesta senda, temos o douto acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 8/09/2009 (disponível na Colectânea de Jurisprudência do STJ, T. III, pág. 38) que, “numa compreensão globalizante da situação jurídica creditícia, apontam-se, ao lado dos deveres de prestação – tanto deveres principais de prestação, como deveres secundários –, os deveres laterais (…), além de direitos potestativos, sujeições, ónus jurídicos, expectativas, etc. Todos os referidos elementos se coligam em atenção a uma identidade de fim e constituem o conteúdo de uma relação de carácter unitário e funcional: a relação complexa em sentido amplo ou, nos contratos, relação contratual”. 27. Ou seja, na relação contratual existem “deveres laterais ou simples deveres de conduta”, conforme Carneiro da Frada (Teoria da Confiança e Responsabilidade Civil, pág. 443). Também Menezes Cordeiro (Da Boa Fé, I, pág. 604), em que tais deveres são merecedores da tutela do Direito. No mesmo sentido Pinto Monteiro (Erro e Vinculação Negocial, págs. 44 e 45) adverte que “estes deveres acessórios, distintos dos deveres principais de prestação, são, no entanto, essenciais ao correto processamento da relação obrigacional em que a prestação se integra”; e Antunes Varela (Das Obrigações em Geral, 8. ª Edição, Vol. I, pág. 129) adverte para o facto de a violação destes deveres poder dar azo não só à resolução do contrato, mas também obrigar à indemnização dos danos causados à outra parte. 28. Com efeito, o incêndio ocorreu em 19.06.17, seguindo-se, no interessa para a questão sub judice, o expediente trocado pelas partes sobre a responsabilidade do sinistro: - Carta datada de 30.08.17 remetida à A. pela R. dando conta que «não ficou provada a ocorrência do sinistro nos moldes participados» (documento constante de fls. 30); - Carta datada de 11.10.17 remetida à R., pela A. (documento constante de fls. 31); - Emails trocados entre mandatário da A. e a seguradora sobre o sinistro em causa (documento constante de fls. 32), datados de 07.11.17 e14.11.17; - Carta datada de 22.11.17 remetida pela R. ao mandatário da A. dando conta que constatou a seguradora no âmbito das diligências efetuadas que o sinistro não ocorreu conforme participado (documento constante de fls. 32 v.º e 33); -Missiva datada de 04.12.17 remetida pelo mandatário da A. pedindo informação sobre as razões para não aceitação do pagamento da indemnização pelo sinistro participado (documento constante de fls. 33 v.º); - Missiva datada de 08.03.18 remetida pelo mandatário da A. insistindo pela resposta à missiva anterior (documento constante de fls. 34); - Missiva datada de 24.04.18 remetida pelo mandatário da A. pedindo informação e o envio de relatório de averiguação do sinistro (documento constante de fls. 35); e - Missiva de resposta por parte da R. a manter posição anteriormente comunicada (documento constante de fls. 36 v.º) e negando a entrega do relatório de averiguação do sinistro de 14.06.18. 29. Provou-se que a R. informou sempre que, face aos elementos probatórios obtidos no decorrer da averiguação realizada, entendia não ser da sua responsabilidade a regularização do sinistro e recusou disponibilizar extrajudicialmente o relatório de averiguações por se tratar de documentação interna da companhia. 30. Mais, resultou demonstrado que a R. nunca esclareceu a A. sobre os factos que a levaram a concluir pelo declínio da sua responsabilidade na regularização do sinistro, nem nunca lhe disponibilizou o relatório de averiguação do sinistro. 31. A avaliar pelo relatório que apresentou, a averiguação instrutória (a fls…) não revestiu para a seguradora complexidade alguma, sendo certo que não foi sequer efetuada qualquer peritagem técnica ao veículo. 32. Já foi observado que a regra no seguro obrigatório é de decisão da assunção ou não assunção da responsabilidade no prazo de 30 dias úteis a contar do primeiro contacto do segurador com o tomador do seguro, segurado ou terceiro lesado, após o acidente. Entretanto, a seguradora deve diligenciar pela rápida realização das perícias (Art.º 36.º, n.º 1, do DL 291/07, de 21/08), prazo que não foi cumprido, conforme se alegou anteriormente. 33. Por outro lado, a R. não deu qualquer explicação à A., nem antes, nem depois do envio daquela missiva, sobre as circunstâncias de facto que estiveram na origem da sua decisão. E não o fez mesmo após várias insistências feitas pela A. durante um período considerável (cerca de 10 meses). 34. De igual modo, a R. recusou-se a fornecer à A. os resultados obtidos nas averiguações por si feitas, assim impedindo a A. de procurar defender-se ou rebater, ou até aceitar, as opiniões aí expressas, o que constitui clara violação do disposto no Artº 36.º, n.º 1, alínea d), do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de Agosto. 35. Para além do exposto, conforme se destaca no Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 27/11/2018 (disponível em www.dgsi.pt): “II - O seguro de danos celebrado entre as partes, previsto nos arts. 123.º e ss. do Regime Jurídico do Contrato de Seguro – RGCS, aprovado pelo DL n.º 72/2008, de 16-04, não cobria o valor de privação de uso (artigo 130.º, n.º 3, do mesmo diploma legal). III - Contudo, ainda que o risco de privação do uso do veículo não se encontre adicionalmente coberto pelo contrato de seguro, pode tal ocorrência ser objeto de indemnização, em razão da violação culposa, por parte da seguradora, de deveres acessórios de conduta, com a boa-fé conexionados na execução do contrato. VI - Na formação e execução do contrato de seguro, a observância do princípio da boa-fé, genericamente determinada no n.º 2 do artigo 762.º do CC, é elevada a supremo patamar, de uberrimae fidei. VII – A seguradora Ré, ao proferir decisão infundada de recusa da realização da prestação, nos termos transmitidos à A., sem que, através da prévia investigação, que a lei com autonomia lhe faculta (RGCS, art. 102º, nº 1, 2ª parte), tenha para tanto procurado adequadamente habilitar-se, procedeu com violação dos deveres de boa-fé e de atuação com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado. VIII - Deve, além disso, concluir-se, relativamente ao exercício do direito de recusa da realização da prestação, em vista dos limites impostos pela boa-fé e pelo fim social e económico de tal direito, pelo seu ilegítimo exercício (art. 334º do CC). IX - Violação e ilegítimo exercício, esses, consequentemente geradores do dever de indemnizar a A. pelos danos causados.” 36. Também, Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 23/11/2017 (disponível em www.dgsi.pt): “I - No âmbito de contrato de seguro por danos próprios, a seguradora que, na sequência de processo de averiguações relativamente ao sinistro participado e respetivas consequências, se recusa sem qualquer explicação pagar ao sinistrado a quantia que lhe é devida, incorre em responsabilidade contratual respondendo pelos danos que decorrem dessa recusa de pagamento designadamente a privação de uso do veículo. II - A seguradora não pode eximir-se em tais circunstâncias ao pagamento da prestação visto que o segurado tem um interesse digno de proteção legal relativamente ao risco coberto (artigo 43.º/1 do RJCS) que consiste em ver satisfeita pelo segurador a prestação convencionada "em caso de ocorrência do evento aleatório previsto no contrato" contrapartida da obrigação de pagamento do prémio (artigo 1.º do RJCS), estando obrigado o segurador a satisfazer a prestação contratual a quem for devida nos termos do artigo 102.º/1 do RJCS, disposições que se conjugam com o princípio da boa fé no cumprimento da obrigação que consta do artigo 762.º/2 do Código Civil. III - A lei impõe, assim, ao segurador uma obrigação de liquidação atempada da indemnização, não lhe confere o direito a uma injustificada e inexplicável recusa de pagamento da indemnização devida que se traduziria num manifesto e intolerável abuso do direito que a lei confere à seguradora de proceder a averiguações tendo em vista apurar o sinistro e suas consequências (artigo 334.º do Código Civil).” 37. A mencionada atuação da R. claramente aponta para uma quebra do equilíbrio contratual, com violação pela seguradora do princípio da boa-fé no cumprimento de deveres acessórios de colaboração intersubjetiva, que se manifestam na necessidade de tomar em consideração os interesses justificados da contraparte e de adotar o comportamento que se espera de um parceiro negocial honesto e leal, como seja no cumprimento de deveres de informação e de pagamento atempado da indemnização. 38. De resto, considerando as conclusões constantes do relatório de averiguações juntas aos autos e os fundamentos aí expendidos, conclui-se ter a R. procedido com violação dos deveres de boa-fé e de atuação com diligência e consideração pelos interesses da segurada ao proferir decisão manifestamente infundada de recusa da realização da prestação que lhe era devida, sem que para tanto, através de prévia investigação e peritagem que a lei com autonomia lhe faculta, tenha procurado adequadamente habilitar-se. 39. Devendo, assim, além do que antes ficou dito, concluir-se ainda, relativamente ao exercício do direito de recusa da realização da prestação, em vista dos limites da boa fé, pelo seu ilegítimo exercício (artigo 334.º do Cód. Civil), este, consequentemente, originador do dever de indemnizar a A. pelos danos causados. 40. Tal situação de facto acarretou efetivamente um dano concomitante: o não pagamento de uma indemnização que a A. integraria, no devido tempo, no preço de aquisição e arranjo de veículos automóveis. 41. De referir que está em causa a substituição de um veículo (o trator, totalmente perdido) por outro e a reparação de outro (a galera), pela qual a A. poderia ter sido ressarcida em momento anterior a Agosto de 2017, aproximando-se assim, o mais breve possível da situação em que se encontraria se não tivesse ocorrido o dano. 42. Na verdade, por causa da conduta esquiva da R., a A. deixou de receber até à data da introdução da presente lide, em 06.07.18, a verba de € 25.340,92 (2.303,72x11 meses). 43. Sucede que o pedido formulado pela A. foi: “A pagar a verba de 25.340,92 €, referente aos dias de privação de uso dos veículos até à presente data, bem como os dias seguintes até ao pagamento do sinistro por parte da R.”. 44. Destarte, está por pagar, desde aquela data (06.07.18), até ao momento, a verba de € 73.719,04, o que totaliza a verba de € 99.059,96. 45. Pelo exposto e salientando os factos dados como provados, a A. tem toda a razão em ver-se ressarcida. Veja-se: “31- Desde Janeiro de 2016 até à data do acidente, a A. declarou rendimentos da exploração dos referidos veículos no valor de € 41.467,12 (conforme declarações de IRC dos anos de 2016 e 2017), 32- A A. teve uma média mensal de rendimentos na ordem de € 2.303,72.” 30- O sócio-gerente (…), sua companheira (…) e seu filho (…) viviam dos frutos da laboração da A.” 46. Reafirma-se que é esta privação do uso que importa ressarcir nos autos, existindo claro nexo causal entre a apontada conduta ilícita da R. e o dano invocado pela A., nos termos estabelecidos pelo artigo 563.º do Código Civil. 47. Saliente-se que “Não cobrindo o contrato o risco de privação de uso do veículo, não há uma violação do princípio indemnizatório (constante do Art º 128º do RJCS), nem uma sobreposição de indemnizações – desta indemnização com os juros incidentes sobre a obrigação pecuniária principal – uma vez que do que se trata aqui é de indemnizar, com fundamento na violação dos deveres acessórios de conduta, a não satisfação do interesse do credor” – cfr. Acórdão do Tribunal da Relação de Coimbra de 28/05/2019, disponível em www.dgsi.pt. 48. É, pois, indemnizável, em tal hipótese, o chamado dano de privação de uso, além de que tal privação constitui uma ofensa ao direito de propriedade na medida em que o seu dono fica privado do uso que lhe dava. 49. A privação do uso de um veículo é, em s i mesma, um dano indemnizável, desde logo por impedir o proprietário (ou, eventualmente, o titular de outro direito, diferente do direito de propriedade, mas que confira a sua utilização) de exercer os poderes correspondentes ao seu direito. 50. Neste sentido, vejam-se os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 16.03.2011 e de 08.05.2013, ambos disponíveis em www.dgsi.pt, citando-se, no segundo, outra jurisprudência, nomeadamente os acórdãos do mesmo Tribunal de 05/07/2007 e de 10/09/2009, também publicados na referida base de dados (ainda no mesmo sentido, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 7.2.2008, Colectânea de Jurisprudência do S.TJ, pág. 90, citando Direito das Obrigações do Prof. Menezes Leitão, vol. I, pág. 317, Cadernos de Direito Privado, anotação do Prof. Júlio Gomes, nº 3, pág. 62 e Temas, do Desembargador Abrantes Geraldes, vol. 1, pág. 90 e 91. E ainda acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 29.11.2005, Colectânea de Jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça, XIII, III, pág. 151, onde se contém abundante jurisprudência no sentido sustentado. 51. Por fim, e por tudo o que foi expendido, a douta Decisão está ferida de nulidade, tendo em conta que os seus fundamentos estão em oposição com a decisão, bem como não houve pronúncia sobre questões que dever ia apreciar. 52. Deste modo, foram, assim, violados, por erro interpretativo e aplicação dos artigos 1.º, 43.º, n.º 1 e 102.º, n.º 1, 2ª parte, 128.º do Decreto-Lei n.º 72/2008, de 16 de Abril, Decreto-Lei n.º 94-B/98, de 17 de Abril, artigos 31.º, 36.º, 86.º do Decreto-lei n.º 291/07, de 21/08, artigos 334.º, 406.º, 563.º, 762.º, n.º 2, do Código Civil e artigo 615.º, n.º 1, alíneas c) e d), do Código de Processo Civil.” A ré veio contra-alegar e, bem ainda, interpor recurso subordinado, tendo finalizado por apresentar as seguintes conclusões: “a) Deve ser negado provimento ao recurso interposto pela ora recorrente (…), Unipessoal, Lda., confirmando-se a douta sentença recorrida, com as legais consequências. b) E, por outro lado, no que ao recurso subordinado apresentado, deve ser dado como provado que o incêndio participado não teve origem em facto súbito, fortuito, aleatório e imprevisto, mas que foi intencionalmente provocado. c) Com o intuito deliberado de daí extrair benefícios financeiros através do contrato de seguro celebrado com a recorrente.” A autora veio contra-alegar relativamente ao recurso subordinado apresentado pela ré defendendo a sua improcedência, e requerendo a condenação da ré por litigância de má fé atendendo ao que esta afirma nas conclusões b) e c). Cumpre apreciar e decidir O objeto do recurso é delimitado pelas suas conclusões, não podendo o tribunal superior conhecer de questões que aí não constem, sem prejuízo daquelas cujo conhecimento é oficioso. As questões suscitadas e a apreciar são: Relativamente ao recurso da autora 1ª - Saber se a sentença padece de nulidade; 2ª - Saber se lhe assiste o direito à indemnização pela privação do uso do veículo, dano não coberto pelo contrato de seguro. Relativamente ao recurso da ré 1ª - Saber se o incêndio foi intencionalmente provocado, com intuito deliberado de através do contrato de seguro se obter benefícios financeiros. Caberá, ainda apreciar em face do que foi pedido nas contra-alegações ao recurso subordinado, se a ré litiga de má fé. Na 1ª instância foram dados como provados os seguintes factos: 1- A A. celebrou, em 04.11.16, com a R. dois contratos de seguro do ramo automóvel, na modalidade de danos próprios: a Apólice (…), referente ao veículo articulado de matrícula (…); e a Apólice (…), referente ao reboque atrelável de matrícula L-(…). 2- As referidas apólices cobriam na modalidade de danos próprios, designadamente os riscos de incêndio, raio ou explosão, os mencionados veículos (trator e reboque) e de acordo com a Ata Adicional n.º-1, a Ré através da sua marca “(…)” celebrou com a A. um contrato de seguro com início em 04/10/2016 respeitante ao veículo articulado de aluguer com a matrícula (…) que, com um capital de € 25.000,00 e uma franquia por conta da segurada no valor de € 500,00 titulado pela apólice n.º (…) e um contrato de seguro respeitante ao atrelado com a matrícula L-(…); 3- Os veículos segurados foram objeto de contratos de locação financeira mobiliária; 4- Por força dos contratos de leasing referidos em 3) a A. ficou obrigada a celebrar os contratos de seguro, na qualidade de tomadora; 5- Em caso de sinistro a R. ficou obrigada a pagar à A. a respetiva indemnização, segundo o que consta das apólices juntas; 6- No dia 19.06.17, pelas 7,30 horas, na EN (…), ao Km 12,500, no sentido de (…)-(…), ocorreu um sinistro em que foram intervenientes os veículos trator e reboque identificados em 1); 7- Nos momentos que precederam o sinistro, o trator com o reboque era conduzido por (…), sócio gerente da A., o qual tinha iniciado a marcha na localidade da Quinta do (…), na sede da A., cerca de 30 minutos antes do acidente. 8- Quando o veículo (trator e reboque) circulava na EN (…), no sentido (…)-(…), depois de ter passado a rotunda que também dá acesso ao (…) e à (…), após a descida da “(…)”, o motor deixou de funcionar, ficando aceso o painel de instrumentos. 9- O condutor, desviou-se para a berma da estrada do lado direito, atento o sentido de marcha do veículo, momentos em que a viatura começou a deitar fumo e a cheirar a queimado. 10- Quando o veículo se imobilizou, já estava a arder na parte da frente, com chamas à vista. 11- Em sentido contrário circulava um veículo, cujo condutor (bombeiro), parou e ligou para os Bombeiros Voluntários de Sesimbra, os quais apareceram mais tarde. 12- Do acidente resultou a destruição total do trator (…) e a destruição parcial do reboque (L-…). 13- Após a ocorrência, a A. participou o sinistro à R. e posteriormente obteve o auto policial da ocorrência; 14- Da participação consta que, o sinistro foi descrito da seguinte forma: «Circulava sentido (…) N … quando a viatura apagou deixando de funcionar ficando aceso o painel de instrumento, a qual imobilizou na berma da estrada a arder na zona frontal em alta densidade. Fui auxiliado pelo bombeiro que passava no local. Mas não foi possível controlar as chamas, vindo a mesma a ficar queimada na totalidade e o reboque parcial”. 15- A R. após a peritagem aos veículos, considerou as vistorias a título condicional, e comunicou à A. por cartas de 07.07.207 e 25.08.2017, como danos avaliados: os danos do reboque em € 8.277,90 deduzidos da franquia de € 500,00; e os danos do trator em € 24.408,27 já deduzida da franquia sendo a estimativa de reparação de € 46.117,62 e considerando ser situação de perda total; 16- Depois do sinistro, a A. na pessoa do seu sócio-gerente e condutor do veículo (…) foi auscultada por um perito da R. para proceder às averiguações do acidente. 17- Do auto de ocorrência elaborado pelas autoridades policiais, consta que o proprietário/condutor, (…), sobre a origem do incêndio indicou que “o mesmo teria iniciado a marcha na localidade da Quinta do (…) a pouco mais de 30 minutos e ao fazer alguns quilómetros na Estrada Nacional …, mais propriamente na descida da “…”, o mesmo verificou um fumo branco a sair do motor e um cheiro a queimado, suspeitando o mesmo de um sobreaquecimento, já na subida uns metros mais à frente começou a arder”. 18- Em sede de averiguações pela R., o Sr. (…) referiu que “Este sinistro ocorreu no dia 19-06-17, às 7:00, quando tinha percorrido + ou - 5 ou 6 kms. (tinha saído da Quinta do …) seguia em direção à oficina do meu mecânico (auto …, situada em …, Sesimbra), pois tinha desmontado o turbo do carro e a oficina calibra, pois a viatura não puxava bem. Quando chegava próximo do local onde ocorreu o sinistro o motor desligou-se tendo ficado todas as luzes do tabelier ligadas, tendo nessa altura encostado na berma utilizando apenas o travão manual pois o travão de pé deixou de funcionar. E quando saia do interior do veículo vi fogo a sair da zona da caixa de fusíveis, que situa em frente ao banco do pendura, A partir daí um senhor que se identificou como sendo bombeiro e do qual desconhecia a identificação ali passava no momento e ligou para o 112 e tentou ele próprio controlar as chamas, mas sem sucesso, tendo o veículo ardido antes de chegada dos bombeiros e da GNR ao local”; 19- Indagado sobre porque circulava com o reboque e o atrelado o condutor do veículo respondeu que não o deixava estacionado na rua porque tinha medo que lhe fosse furtado, circulando sempre com o atrelado; 20- Junto do averiguador o representante legal da A. respondeu ter os créditos todos regularizados; 21- Mais tarde, a A. recebeu uma carta da R., datada de 30.08.17, onde informa que “não ficou provada a ocorrência do sinistro nos moldes participados”, não assumindo desta forma o sinistro. 22- (…) contactou a R. sobre a carta referida em 21), mas não obteve qualquer resposta concreta, limitando-se a informá-lo que o sinistro não estava a coberto da apólice. 23- Face ao sucedido, a A. recorreu ao seu mandatário forense, o qual encetou diligências junto da R., mas esta limitou-se a indicar clausulado da apólice e a reafirmar por missiva de 22.11.2017 que «durante a instrução a que procedemos constatamos que o sinistro participado não ocorreu conforme as circunstâncias descritas na participação efetuada pela constituinte de V. Exa.». 24- A fim de suprir tal circunstância, a A., por intermédio do seu mandatário, solicitou à R., por mail de 24.04.18: “Queiram-me enviar o relatório de averiguação do sinistro, conforme dispõe: Artigo 36.º do DL 291/07, de 21/08, Diligência e prontidão da empresa de seguros 1 - Sempre que lhe seja comunicada pelo tomador do seguro, pelo segurado ou pelo terceiro lesado a ocorrência de um sinistro automóvel coberto por um contrato de seguro, a empresa de seguros deve: d) Disponibilizar os relatórios das peritagens no prazo dos quatro dias úteis após a conclusão destas, bem como dos relatórios de averiguação indispensáveis à sua compreensão”; 25- A resposta da R. foi a seguinte: “Acusamos a receção da correspondência eletrónica de V. Exa. datada de 24/04/2018, cujo teor mereceu a nossa melhor atenção. Em resposta cumpre-nos informar que mantemos a posição anteriormente transmitida, uma vez que na análise aos elementos que integram o nosso processo, nomeadamente a averiguação efetuada, se constatou a existência de um conjunto de irregularidades que nos levam a concluir que o sinistro não terá ocorrido de uma forma aleatória, súbita e/ou imprevista. Mais informamos que o relatório de averiguação, tratando-se de documentação interna desta Companhia, não poderá ser disponibilizado extrajudicialmente.” 26- Os veículos seguros, na data do sinistro, tinham sido aprovados na inspeção técnica periódica; 27- A A. tinha colocado cerca de três meses antes do acidente, quatro pneus no trator (…); 28- A A. antes do sinistro estava a laborar, e com a falta daqueles veículos, a A. deixou de produzir; 29- Mas o sócio-gerente da A., na qualidade de fiador, continua a pagar as prestações dos contratos de leasings referidos em 3). 30- O sócio-gerente (…), sua companheira (…) e seu filho (…) viviam dos frutos da laboração da Autora. 31- Desde Janeiro de 2016 até à data do acidente, a A. declarou rendimentos da exploração dos referidos veículos no valor de € 41.467,12 (conforme declarações de IRC dos anos de 2016 e 2017). 32- A A. teve uma média mensal de rendimentos na ordem de € 2.303,72. 33- Das «Condições particulares» da Apólice do Ramo automóvel nº (…) resulta a contratação por A. e R. das coberturas de «Responsabilidade Civil obrigatória; responsabilidade Civil facultativa; Choque, colisão e capotamento; Incêndio, Raio ou Explosão; Furto ou Roubo; Quebra isolada de vidros; fenómenos da natureza; Atos de Vandalismo; Assistência em viagem pesados VIP; Responsabilidade Civil Obrigatória-Danos Materiais; Responsabilidade Civil Obrigatória-Danos Corporais.» Não resultou provado que: - Logo no dia seguinte – 20/07/2017 – o Sr. (…) deu logo a conhecer que ia iniciar uma nova atividade profissional num talho e até com nova gerência conforme publicação efetuada no “Facebook”. Conhecendo da 1ª questão do recurso da autora. A recorrente invoca a nulidade da decisão sob censura nos termos das alíneas c) e d) do nº 1 do artº 615º do CPC, sustentando existir oposição entre os fundamentos e a decisão, bem como não haver pronúncia sobre questões que se deviam apreciar. A alínea c) deste normativo comina a sentença de nula “quando os fundamentos estejam em oposição com a decisão”. Haverá que dizer que a referida nulidade apenas se verifica quando a decisão padece de erro lógico na conclusão do raciocínio jurídico do julgador, isto é, quando a argumentação desenvolvida ao longo da sentença apontava claramente num determinado sentido e, não obstante, a decisão foi no sentido oposto. Os fundamentos a que esta nulidade se refere são os fundamentos aduzidos pelo Juiz para neles basear a decisão, constituindo o respetivo antecedente lógico, aqui não se incluem os fundamentos que a recorrente entende existir para (no seu entendimento) se dever ter decidido de modo diverso, pois tal situação apenas podia consubstanciar erro de julgamento e não nulidade da sentença. No caso em apreço, o Mº Juiz “a quo” invocou na sentença recorrida, quer os factos, quer as razões de direito, para decidir de acordo com a matéria como decidiu. Deste modo, forçoso é concluir não estar a sentença em causa inquinada da nulidade invocada. Se a decisão em referência está certa ou não, é questão de mérito, que não de nulidade da mesma (cfr. Ac. STJ de 30/05/87, BMJ 387º, 456). Pelo que, a sentença objeto do presente recurso não enferma da referida nulidade que a recorrente lhe imputa. Nestes termos, resulta claro, que não se verifica, no caso em apreço, a nulidade prevista no artº 615º, nº 1, al. c), do CPC. A recorrente invocou, também, a nulidade da sentença recorrida nos termos da alínea d) do preceito legal citado. A alínea d) deste normativo comina a sentença de nula “quando o Juiz deixe de pronunciar-se sobre questões que devesse apreciar ou conheça de questões de que não podia tomar conhecimento”. Devendo o Juiz conhecer de todas as questões que lhe são submetidas, isto é, de todos os pedidos deduzidos, todas as causas de pedir e exceções invocadas e todas as exceções de que oficiosamente lhe cabe conhecer (artº 608º, nº 2, do CPC), o não conhecimento do pedido, causa de pedir ou exceção cujo conhecimento não esteja prejudicado pelo anterior conhecimento de outra questão constitui nulidade, já não a constituindo a omissão de considerar linhas de fundamentação jurídica, diferentes da sentença, que as partes hajam invocado (cfr. Lebre de Freitas, Montalvão Machado, Rui Pinto in CPC Anotado, vol. 2º, 2001, 670). Assim, e não obstante as razões invocadas nas conclusões do recurso justificarem no entender da recorrente, uma decisão diferente, o certo é que a sentença recorrida não deixou de apreciar as questões que lhe foram colocadas. É certo que a recorrente discorda do enquadramento jurídico que foi tomado pelo tribunal recorrido. Todavia, é entendimento na jurisprudência dos nossos tribunais superiores que a nulidade por omissão de pronuncia há-de incidir apenas sobre “questões” que tenham sido submetidas à apreciação do tribunal, com elas não se confundido as considerações, argumentos, motivos, razões ou juízos de valor produzidos pelas partes (cfr. entre outros, o Ac. STJ de 18/09/2003; Proc. 03B1855/ITIJ/Net). Acresce ainda que é jurisprudência pacífica que o tribunal aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção, sendo inatacável em sede de nulidade a regra da livre apreciação e ponderação das provas obtidas. Por outro lado, não há omissão de pronúncia quando a matéria, tida por omissa, ficou implícita ou tacitamente decidida no julgamento da matéria com ela relacionada (Ac. STJ de 19/12/2001, Agr. Nº 2233/01- 1ª, Sumários, nº 56). No caso em apreço, o Julgador “a quo” invocou na sentença recorrida os factos e as razões de direito para decidir de acordo com a maneira como decidiu. Isto não implica que não possa existir eventual erro de julgamento e que a decisão em causa seja a correta e a adequada ao caso em apreço, mas nunca a nulidade de sentença invocada pela recorrente. Assim sendo, é manifesto que a decisão recorrida não padece da nulidade prevista na referida alínea d) do nº 1 do artº 615º do CPC, pelo que o presente recurso improcede. Em consequência, improcede na totalidade a primeira questão suscitada pela recorrente no recurso ora em análise. Conhecendo do recurso da ré. Da análise que fazemos do recurso apresentado pela ré, até pela reprodução que faz dos diversos depoimentos testemunhais, para concluir do modo como concluiu, pretende impugnar o julgado de facto relativamente ao modo como terá ocorrido o sinistro, pondo em causa que o incêndio tivesse origem em facto súbito fortuito e imprevisto. Como resulta do artº 662º, nº 1, do CPC, a decisão do tribunal de 1ª instância sobre matéria de facto pode ser alterada pela Relação se os factos tidos como assentes e a prova produzida impuserem decisão diversa. Desta norma resulta que a modificação da decisão de facto constitui um dever da Relação a ser exercido sempre que a reapreciação dos meios de prova determine um resultado diverso daquele que foi declarado na 1ª instância. Porém, para a recorrente poder obter a alteração da matéria de facto, terá que observar os ónus impostos pelo artº 640º do mesmo Código, o qual estabelece que: 1. Quando seja impugnada a decisão sobre a matéria de facto, deve o recorrente obrigatoriamente especificar, sob pena de rejeição: a) Os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados; b) Os concretos meios probatórios, constantes do processo ou de registo ou gravação nele realizada, que impunham decisão sobre os pontos da matéria de facto impugnados diversa da recorrida; c) A decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas. 2. No caso previsto na alínea b) do número anterior, observa-se o seguinte: a) Quando os meios probatórios invocados como fundamento no erro na apreciação das provas que tenham sido gravados, incumbe ao recorrente, sob pena de imediata rejeição do recurso na respetiva parte, indicar com exatidão as passagens da gravação em que se funda o recurso, sem prejuízo de poder proceder à transcrição dos excertos que considere relevantes. Como claramente dele resulta, este artigo impõe, sempre que o recurso envolva a impugnação da decisão sobre a matéria de facto, a verificação, sob pena de rejeição, das seguintes regras: a) Em quaisquer circunstâncias, o recorrente deve indicar sempre os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, com enunciação na motivação do recurso e síntese nas conclusões; b) Quando a impugnação se fundar em meios de prova constantes do processo ou que nele tenham sido registados, o recorrente deve especificar aqueles que, em seu entender, determinam uma decisão diversa quanto a cada um dos factos; c) Relativamente a pontos da decisão da matéria de facto cuja impugnação se funde, no todo ou em parte, em provas gravadas, para além da especificação obrigatória dos meios de prova em que o recorrente se baseia, cumpre ao recorrente indicar com exatidão as passagens da gravação relevantes e proceder, se assim o entender, à transcrição dos excertos que considere oportunos; d) O recorrente deixará expressa a decisão que, no seu entender, deve ser proferida sobre as questões de facto impugnadas, como corolário da motivação apresentada, tendo em conta a apreciação crítica dos meios de prova produzidos, exigência nova que vem na linha do reforço do ónus de alegação, por forma a obviar à interposição de recursos de pendor genérico ou inconsequente, também sob pena de rejeição total ou parcial da impugnação da decisão da matéria de facto. A inobservância de algum destes ónus tem como consequência a rejeição imediata do recurso, não sendo admissível despacho de convite ao aperfeiçoamento, como resulta do confronto com o art.º 639.º do mesmo Código que apenas prevê tal despacho relativamente aos recursos da matéria de direito. Assim, “a rejeição total ou parcial de recurso respeitante à impugnação da decisão da matéria de facto deve verificar-se em alguma das seguintes situações: a) Falta de conclusões sobre a impugnação da decisão da matéria de facto; b) Falta de especificação nas conclusões dos concretos pontos de facto que o recorrente considera incorretamente julgados; c) Falta de especificação dos concretos meios probatórios constantes do processo ou nele registado (v.g. documentos, relatórios periciais, registo escrito, etc.); d) Falta de indicação exata das passagens da gravação em que o recorrente se funda; e) Falta de posição expressa sobre o resultado pretendido relativamente a cada segmento da impugnação; f) Apresentação de conclusões deficientes, obscuras ou complexas, a tal ponto que a sua análise não permita concluir que se encontram preenchidos os requisitos mínimos que traduzem os elementos referidos. Importa observar ainda que as referidas exigências devem ser apreciadas à luz de um critério de rigor. Trata-se, afinal, de uma decorrência do princípio da autorresponsabilidade das partes, impedindo que a impugnação da decisão da matéria de facto se transforme numa mera manifestação de inconsequente inconformismo” (Abrantes Geraldes, Recursos no Novo Código de Processo Civil, 2013, págs. 126 a 129). No caso em apreço, e quanto ao cumprimento dos ditos ónus, temos para nós como seguro que a apelante não deu, na forma exigível, e acima exposta, cumprimento aos mesmos, limitando-se, quanto aos depoimentos gravados que invoca em abono da sua impugnação da decisão de facto a transcrever os depoimentos das testemunhas, sem indicar quer nas alegações quer nas conclusões os concretos pontos de facto que considera incorretamente julgados, bem como a decisão que no seu entender deveria ser proferida pelo Tribunal referentes aos concretos factos alvo de impugnação. Assim sendo, em conformidade com o disposto no art. 640º do CPC, impõe-se a imediata rejeição, do recurso, no que toca à impugnação da matéria de facto, o que se decide, pois não há lugar, em tal hipótese, a despacho de convite ao aperfeiçoamento no sentido de lograr suprir a inobservância do ónus em causa. Vide, neste sentido, inter alia, A. Abrantes Geraldes, op. cit., pág. 134, Amâncio Ferreira, “Manual de Recursos em Processo Civil”, 8ª edição, pág. 170; Lopes do Rego, “Comentários ao Código de Processo Civil”, 1999, pág. 466 e J. Lebre de Freitas, “Código de Processo Civil Anotado”, vol. III, 2ª edição, pág. 62, o mesmo é dizer que nenhuma alteração se introduzirá nos factos dados como provados. Assim, em face da imutabilidade da matéria de facto, o recurso da ré terá que improceder, já que dos factos constantes nos autos não resulta ter o incêndio sido intencionalmente provocado, sendo esta a sustentação para a posição por si assumida. Nestes termos, improcede o recurso da ré, mantendo-se, assim, inalterada a matéria de facto. Conhecendo da 2ª questão do recurso da autora A autora reclamou, pela presente ação judicial, além de outras indemnizações, o pagamento da indemnização pela privação do uso dos veículos (trator e reboque), alicerçando-se nos contratos de seguro facultativo, por danos próprios celebrado com a ré Seguradora. A sentença, após ter reconhecido a controvérsia jurisprudencial sobre a questão do dano resultante da privação de uso do veículo acabou por considerar que “o contrato de seguro assume natureza de seguro de danos (próprios). Neste tipo de seguro, dada a sua concreta configuração (cfr. art. 130º da LCS), a responsabilidade da seguradora deriva do próprio contrato, encontrando-se esta obrigada, face ao tomador do seguro, nos precisos termos convencionados quanto ao âmbito de cobertura do mesmo, não sendo, nessa medida, devida indemnização por danos que não estejam contratualmente cobertos.” Efetivamente, como resulta do artº 130º, nº 3, do RJCS, o segurador, apesar de se tratar de um dano emergente, só responde pela privação do uso da coisa segura se a cobertura de tal risco estiver convencionada no contrato de seguro. No entanto, este entendimento, vem sendo colocado em crise em diversas decisões dos nossos tribunais superiores, pois, começa a firmar-se o entendimento, da seguradora ter que suportar os danos decorrentes do atraso injustificado na realização da prestação convencionada. Tem-se sustentado, em termos essenciais, que, tendo a empresa de seguros o dever de “atuar de forma diligente, equitativa e transparente no seu relacionamento com os tomadores de seguros, segurados, beneficiários e terceiros lesados” (cfr. artº 153º, nº 1, da Lei 147/2015, de 9/9), os deveres de averiguação, confirmação e resolução dum sinistro, em prazo razoável, configuram verdadeiros deveres legais acessórios de conduta, pelo que, quando tal não ocorre, ou seja, quando a indemnização devida não é paga em prazo razoável, são violados tais deveres legais acessórios de conduta, obrigando tal violação à indemnização pelos danos que assim hajam sido causados ao segurado. Neste sentido vejam-se os Acórdãos do STJ, que já se pronunciaram sobre questão idêntica: Assim, no Ac. do STJ de 23/11/2017, proc. nº 4076/15.8T8BRG.G1.S2, sustentou-se: “A lei impõe, assim, ao segurador uma obrigação de liquidação atempada da indemnização, não lhe confere o direito a uma injustificada e inexplicável recusa de pagamento da indemnização devida que se traduziria num manifesto e intolerável abuso do direito que a lei confere à seguradora de proceder a averiguações tendo em vista apurar o sinistro e suas consequências.” “Muito particularmente no âmbito de um contrato de seguro, a boa fé supõe que o segurado conte com o cumprimento do contrato, pois é isso que se espera de uma contraparte séria, honesta e leal, não se afigurando admissível que uma seguradora se recuse inexplicavelmente a pagar ao segurado as quantias que lhe são devidas.” “A ré incorre, assim, em responsabilidade pela não liquidação dos danos cobertos pelo contrato de seguro por violação de uma obrigação que dimana das aludidas regras do RJCS conjugadas com o disposto no artigo 762.º/2 do Código Civil que tutelam os interesses tanto de terceiros como do próprio segurado.” “Não estamos, pois, perante a ressarcibilidade de um dano que resulta da mora, mas da violação de deveres legais que a seguradora não observou, não podendo falar-se aqui de sobreposição de indemnizações.” No Ac. do STJ de 23/11/2017, proc. nº 2884/11.8TBBCL.G1, considerou--se: “No âmbito de um seguro de responsabilidade civil automóvel ainda que sem cobertura facultativa e mesmo na ausência de cláusula nesse sentido, pode a seguradora ser responsabilizada pelo “dano da privação do uso” se não proceder de harmonia com o princípio da boa-fé.” “A responsabilização da seguradora baseia-se na responsabilidade contratual da seguradora pela inobservância dos deveres acessórios do contrato”. No Ac. STJ de 14/12/2016, proc. nº 2604/13.2TBBCL.G1.S1 observou-se: “Em suma, a seguradora, para além da obrigação de pagamento da indemnização dos danos provocados pelo sinistro coberto pelo seguro, nas condições contratadas, se demora injustificadamente na resolução do caso, resultando dessa mora danos para o segurado, responde por esse inadimplemento. Esta solução não conflitua com as disposições consagradas no regime do contrato de seguro, porque não impõe à seguradora a cobertura de riscos além do que foi segurado, antes a responsabiliza pela reparação de um dano que decorre não do sinistro mas da inobservância da obrigação contratual de pagar pontual e atempadamente”. “Quando a possível razoabilidade ou até legitimidade da recusa vem a revelar-se insubsistente, porque não demonstrado o seu fundamento, o atraso no pagamento da indemnização queda sem explicação ou justificação. A não ser assim, bastaria a mera suspeita e apresentação de queixa-crime, ainda que infundada, contra o segurado para obviar ao pagamento tempestivo da indemnização em casos semelhantes.” “Esta indemnização tem por fonte a violação culposa de deveres laterais e secundários do contrato de seguro, os quais, uma vez demonstrados, merecem tutela jurídica e vão além do estrito cumprimento da obrigação de pagamento da indemnização pelos danos resultantes do sinistro coberto pelo seguro nas condições contratadas.” No Ac. do STJ de 27/11/2018, proc. nº 78/13.7PVPRT.P2.S1, defendeu-se: “O seguro de danos celebrado entre as partes (…) não cobria o valor de privação de uso. Contudo, ainda que o risco de privação do uso do veículo não se encontre adicionalmente coberto pelo contrato de seguro, pode tal ocorrência ser objeto de indemnização, em razão da violação culposa, por parte da seguradora, de deveres acessórios de conduta, com a boa-fé conexionados na execução do contrato.” “A seguradora Ré, ao proferir decisão infundada de recusa da realização da prestação, nos termos transmitidos à Autora, sem que, através da prévia investigação, que a lei com autonomia lhe faculta (RGCS, art. 102º, nº 1, 2ª parte), tenha para tanto procurado adequadamente habilitar-se, procedeu com violação dos deveres de boa-fé e de atuação com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado. “Violação e ilegítimo exercício, esses, consequentemente geradores do dever de indemnizar a Autora pelos danos causados.” “A atuação procedimental da Ré, em vista da realização da prestação a que ficara vinculada, estava sujeita a exigentes critérios, em termos de diligência e de boa-fé. Exigia-se-lhe, designadamente, que, com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado, procedesse à confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências (…)”. No Ac. do TRG de 09/03/2017, proc. nº 4076/15.8T8BRG.G1, também se considerou: “Os deveres de averiguação, confirmação e resolução do sinistro, em prazo razoável, configuram deveres acessórios de conduta, não abrangidos pelo contrato de seguro, nem a título principal nem em moldes secundários. No âmbito de um contrato de seguro facultativo, os deveres de informação e de celeridade assumem especial importância no caso de perda total do veículo uma vez que a entrega do capital permitirá, ao tomador/beneficiário do seguro, a compra de um outro veículo substitutivo. Não obstante a cobertura do risco da privação de uso não se encontrar especialmente contemplada no contrato de seguro, assiste ao tomador o direito de ser indemnizado no caso de perda total do veículo em resultado de acidente de viação, por ter ficado sem o poder utilizar, na sua vida diária, para as suas deslocações profissionais e nas viagens de lazer. A indemnização pelo dano patrimonial da privação do uso do veículo tem a sua fonte na responsabilidade contratual, por violação dos deveres acessórios de conduta por parte da seguradora.” Também o Ac. TRC de 28/05/2019, proc. nº 1442/18.0T8CBR.C1, considerou: “Estão as seguradoras obrigadas a deveres de averiguação, confirmação e resolução dum sinistro, em prazo razoável, deveres estes que configuram verdadeiros deveres acessórios de conduta, pelo que, quando a indemnização devida não é paga no prazo previsto no contrato (ou, caso este não exista, em prazo razoável), são violados tais deveres acessórios de conduta – que impõem à seguradora o dever de tomar todas as providências necessárias para que a obrigação a seu cargo satisfaça o interesse do segurado/beneficiário na prestação – obrigando tal violação à indemnização pelos danos que assim hajam sido causados ao segurado/beneficiário.” “Não cobrindo o contrato o risco de privação de uso do veículo, não há uma violação do princípio indemnizatório (constante do art. 128.º do RJCS), nem uma sobreposição de indemnizações – desta indemnização com os juros incidentes sobre a obrigação pecuniária principal – uma vez que do que se trata aqui é de indemnizar, com fundamento na violação dos deveres acessórios de conduta, a não satisfação do interesse do credor.” “É pois indemnizável, em tal hipótese, com fundamento na violação dos deveres acessórios de conduta, o chamado dano de privação de uso.” Voltando ao caso dos autos. De acordo com o princípio da boa-fé (cfr. artº 762º, nº 2, do CC) e com os princípios gerais de conduta de mercado, consignados no Decreto-Lei nº 94-B/98, de 17/04, as empresas de seguros devem garantir a gestão célere e eficiente dos processos de sinistro, procedendo com a adequada prontidão e diligência às averiguações e peritagens necessárias ao reconhecimento do sinistro e à avaliação dos danos. Os deveres de averiguação, confirmação e resolução do sinistro, em prazo razoável, configuram deveres acessórios de conduta, não abrangidos pelo contrato de seguro, nem a título principal nem em moldes secundários. Deveres acessórios de conduta que “estão hoje genericamente consagrados na vastíssima área das obrigações, através do princípio geral proclamado no art. 762.º do C. Civil, segundo o qual, no cumprimento da obrigação, assim como no exercício do direito correspondente, devem as partes proceder de boa-fé (…)”; deveres estes cuja violação não dá lugar a uma ação de cumprimento (art. 817.º), mas tão só à obrigação de indemnizar os danos causados à outra parte (Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, vol. I, 125). No caso dos presentes autos, o seguro de danos (arts 123º e ss. do RJCS – Dec. Lei 72/de 2008, de 16/4), celebrado pela autora com a ré, cobria o risco de incêndio, raio ou explosão, dos mencionados veículos (trator e reboque), mas, não cobria a privação do uso (artº 130º, nº 3). A prestação de valor, tratada como prestação pecuniária (nº 3 do artº 102º do RJCS), a que a ré estava contratualmente obrigada, em consequência do incêndio, deveria ter sido realizada 30 dias «após a confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências» (artº 102º, nº 1 e 104º). No caso, em apreço, considerando a matéria fixada não foi determinada a data até à qual, nos termos prescritos no artº 104º do RJCS (a conjugar com os artºs 406º, nº 1, 1ª parte e 762º, nº 1, do CC), o segurador deveria ter realizado a prestação pecuniária a que estava vinculado, com juros de mora devidos desde essa data, presumindo-se a culpa daquele (artºs 804º, 805º, nº 2, a) e 799º, nº 1, do CC); nem a pretendida indemnização por privação do uso do veículo pode radicar no imputado retardamento da realização da prestação, tendo a responsabilidade que ao segurador pudesse ser exigida pelo verificado incumprimento. A questão terá de ser avaliada na perspetiva da violação, por parte da ré, dos deveres acessórios do contrato, e, aqui com a aplicação de critérios mais exigentes, em termos de diligência e de boa-fé. Dotadas de estatuto próprio – Lei 147/2015, de 9/9 – particularmente relevantes, bem como o mercado de risco em que intervêm, no funcionamento do sistema financeiro, as empresas de seguros «devem atuar de forma diligente, equitativa e transparente no seu relacionamento com os tomadores de seguros, segurados, beneficiários e terceiros lesados» (artº 53º, nº 1). Ora, no caso em apreço a atuação procedimental da ré, em vista da realização da prestação a que ficara vinculada, estava sujeita a exigentes critérios, em termos de diligência e de boa-fé. Exigia-se-lhe, designadamente, que, com diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado, procedesse à confirmação da ocorrência do sinistro e das suas causas, circunstâncias e consequências, não havendo na situação que adicionalmente cuidar da prévia quantificação das consequências do sinistro (artigo 102º, nºs 1 e 2, do RJCS) e tendo decidido pela recusa da prestação, habilitada que deveria estar pelos resultados da investigação que conduzira, que esclarecesse junto da autora, as razões que fundamentavam a decisão, concretamente indicando os motivos pelos quais tinha a participação, igualmente apresentada à entidade policial, por falsa, ou o sinistro por dolosamente causado (artº 46º do RJCS). Não foi isso, claramente, o que no caso se verificou. Provadas as circunstâncias que mais imediatamente antecederam a ocorrência do incêndio, desconhecidas da autora, esta participou o sinistro à ré. A ré impugnou a decisão sobre os factos provados, no tocante ao sinistro de incêndio, invocando que o mesmo não teve origem em facto súbito, fortuito, aleatório e imprevisto, mas que foi intencionalmente provocado com o intuito deliberado de daí extrair benefícios financeiros através do contrato de seguro celebrado, não tendo feito prova do por si alegado. Do quadro factual provado (nomeadamente dos nºs 6, 13, 15, 21, 22, 23, 24,25), resulta que a ré não atuou em conformidade com os ditames da boa-fé. Flui dos factos provados que existe culpa da ré seguradora – artº 483º CC – ao atrasar a indemnização, a qual atenta a forma como o sinistro ocorreu, nunca poderia justificar de forma exclusivamente afirmativa, as suas reticências em proceder ao pagamento cuja omissão esteve na origem dos danos causados à autora. Perante o contrato de seguro a que se alude nos pontos 1 e 2 dos factos provados, concluímos que os “deveres acessórios” do contrato não foram cumpridos pela ré seguradora. A esta cabia não apenas cumprir a essência do contrato, como de igual forma lhe era exigido que não protelasse injustificadamente o ressarcimento esforçando-se por evitar ao lesado as privações provocadas pelo seu atraso e os reflexos que teve na sobrevivência da autora, bem como daqueles que dependiam dos rendimentos auferidos na atividade desenvolvida, pois como resultou provado (factos 28 e 30), o sócio gerente, sua companheira e seu filho viviam dos frutos da laboração da autora, que por falta dos veículos segurados deixou de produzir. Por conseguinte, não obstante a cobertura da privação de uso não se encontrar especialmente contemplada no contrato, assiste à autora, neste caso concreto, o direito de ser indemnizada por ter suportado esse relevante prejuízo, decorrente da sua paralisação, em consequência de a ré não ter cumprido os deveres acessórios de informação e de adequada prontidão, como lhe competia, aliada ao facto de se recusar a ressarcir a autora do valor dos danos avaliados. Em suma, conclui-se que, no caso em apreciação, a indemnização pelo dano patrimonial da privação do uso do veículo tem a sua fonte na responsabilidade contratual, por violação dos deveres acessórios de conduta. Estabelecida a obrigação de indemnizar, analisemos em que montante é indemnizável o peticionado dano de privação de uso. Efetivamente, a privação do uso de uma coisa, inibindo o proprietário ou detentor de exercer sobre a mesma os inerentes poderes, constitui, em termos naturalísticos, uma perda, cuja constatação não é escamoteável. No caso em apreço resultou provado (factos 28, 29, 30, 31, 32), que a autora deixou de laborar, por facto que não pode deixar de ser imputável à ré, atendendo a que não cumpriu os deveres diligência, probidade, lealdade, consideração e respeito pelos interesses do segurado, o que impediu a autora de auferir rendimentos que se cifravam numa média mensal de € 2.303,72, por não ter possibilidade, sem o pagamento da indemnização que lhe era devida, de adquirir outro veículo que lhe permitisse a continuação da sua atividade. Assim, entendemos dever a ré ser condenada a pagar uma indemnização pelo prejuízo que causou no rendimento da autora, pelo facto de ter deixado de laborar por falta de ressarcimento atempado dos danos sofridos pelo veículo, por alegado incêndio intencional que não demonstrou, quer em tribunal, quer perante o sinistrado ao não lhe fornecer os elementos periciais que a lei prevê que sejam atempadamente fornecidos, apesar das insistências desta. No entanto, não dispomos neste momento de elementos suficientes para fixar o quantitativo da indemnização, atendendo a que embora se tenha provado que a autora auferia rendimentos numa média mensal de € 2.303,72, não está demonstrado que este valor fosse líquido e, sendo ilíquido, há que considerar, também o valor de todos os custos e despesas relacionados com a atividade desenvolvida, que não foram despendidos pela autora em virtude da paralisação. Só perante resultados líquidos da respetiva atividade é que se terá um ponto de referência para atribuir com a possível exatidão uma indemnização que se tenha por adequada aos efetivos prejuízos sofridos pela autora, desde a data em que parou a laboração até ao momento em que se verá ressarcida pelos danos do trator e reboque (montante de € 32.686,17 acrescido de juros de mora). Assim, haverá que por força do disposto no artº 609º, n.º 2, do CPC, relegar para liquidação em execução de sentença a fixação do montante indemnizatório do dano sofrido pela autora. Nestes termos, merece parcial procedência o recurso, sendo de revogar a sentença recorrida na parte em que absolveu a ré do demais peticionado. Conhecendo da questão da litigância de má fé Diz a autora que não têm qualquer cabimento as conclusões que a ré formula no seu recurso, pois não assentam nos “factos dados como provados nem naqueles que deseja dar por provados” litigando de má fé, atendendo a que o seu comportamento é uma tentativa de influir no Juízo do Tribunal. Nos termos do disposto no nº 2 do artº 542º do CPC, diz-se litigante de má-fé, quem, com dolo ou negligência grave: a) Tiver deduzido pretensão ou oposição cuja falta de fundamento não devia ignorar; b) Tiver alterado a verdade dos factos ou omitido factos relevantes para a decisão da causa; c) Tiver praticado omissão grave do dever de cooperação; d) Tiver feito do processo ou dos meios processuais um uso manifestamente reprovável, com o fim de conseguir um objetivo ilegal, impedir a descoberta da verdade, entorpecer a ação da justiça ou protelar, sem fundamento sério, o trânsito em julgado da decisão. Em face do conteúdo deste normativo, não podemos acolher a posição da autora. No caso dos autos, verifica-se que a ré exerceu o direito de recurso, que a lei lhe concede, retirando as conclusões recursivas que entendeu estarem subjacentes à prova produzida e à realidade dos factos que pretendia ver reconhecida pelo tribunal. Não é pelo tribunal não ter reconhecido essa realidade factual, mas sim outra, que a atuação da ré se terá de ter por abusiva e de má fé. A litigância de má fé não se basta com dedução de pretensão que não obteve vencimento, ou afirmação de factos não verificados ou verificados de forma distinta, exige-se, ainda que a parte tenha agido com dolo ou negligência grave, sabendo da falta de fundamento da sua pretensão, o que não é o caso, atendendo a que a ré sempre defendeu, perante as averiguações que fez, que o sinistro teria sido intencionalmente provocado, sendo essa a sua versão defendida na 1ª instância (onde não foi, pela autora, invocada a litigância de má fé), bem como é a versão que é defendida perante este tribunal superior, pelo que não pode concluir-se que o seu comportamento visa de forma astuciosa, extravasando o regrado uso dos meios processuais, influir no juízo que este tribunal superior venha a formar. A ré, a nosso ver, limitou-se a exercer o seu direito de recurso no âmbito do que a lei lhe concede, não se apresentando as alegações, bem como as conclusões, como atuação censurável, não contendo, também, o respetivo conteúdo algo tendente a influir o juízo do tribunal fora do que é lícito à luz da lei. Deste modo, não se verifica a alegada má fé na atuação da ré. + DECISÃO Pelo exposto, decide-se: 1 - Julgar improcedente o recurso subordinado da ré; 2 - Julgar parcialmente procedente o recurso da autora e, em consequência, revogar a sentença recorrida na parte que absolveu a ré do demais peticionado, condenando-se a ré para além do que já consta na alínea A) da parte decisória da sentença recorrida, a pagar à autora a quantia que se vier a liquidar em sede de execução de sentença, tendo em conta o supra explicitado, devida pelos danos próprios resultantes do sinistro. Custas de parte pela ré, relativamente ao recurso por si interposto. Custas de parte por autora e ré, relativamente ao recurso por aquela interposto, fixando-se a percentagem em 3/4 para esta e 1/4 para aquela. Évora, 19 de novembro de 2020 Maria da Conceição Ferreira Rui Manuel Duarte Amorim Machado e Moura Maria Eduarda de Mira Branquinho Canas Mendes |