Acórdão do Tribunal da Relação de Évora | |||
Processo: |
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Relator: | ANA BACELAR | ||
Descritores: | SEGURO OBRIGATÓRIO AUTOMÓVEL PROPRIETÁRIO DO VEÍCULO RESPONSABILIDADE PESSOAL | ||
Data do Acordão: | 04/27/2021 | ||
Votação: | UNANIMIDADE | ||
Texto Integral: | S | ||
Sumário: | 1 - A obrigatoriedade de seguro de responsabilidade civil automóvel existe em função da propriedade ou detenção de veículo cuja circulação é suscetível de provocar danos a terceiros, independentemente da utilização destinada ao mesmo. 2 - Do incumprimento da obrigação de celebrar seguro de responsabilidade civil automóvel não decorre, sem mais, para o proprietário do veículo, responsabilidade pessoal pelos danos decorrentes da sua circulação. | ||
Decisão Texto Integral: | Acordam, em conferência, na 2.ª Subsecção Criminal do Tribunal da Relação do Évora I. RELATÓRIO No processo comum n.º 21/16.1GBMRA do Juízo de Competência Genérica de (...) da Comarca de Beja, o Ministério Público acusou (…), pela prática, em autoria material, sob a forma consumada e em concurso real, - de um crime de condução de veículo a motor sem habilitação legal, previsto e punível pelo artigo 3.º, n.º 1, do Decreto-Lei n.º 2/98, de 3 de janeiro, e - de um crime de ofensa à integridade física negligente, previsto e punível pelo artigo 148.º, n.ºs 1 e 3, com referência ao artigo 144.º, alíneas b) e c), e 69.º, n.º 1, alínea b), todos do Código Penal. «A Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, E.P.E., deduziu pedido de indemnização civil (fls. 211 a 226), peticionando a condenação solidária do arguido, do Fundo de Garantia Automóvel e de (...) no pagamento da quantia de € 1 888,49, acrescida de juros de mora á taxa legal, desde a notificação até integral pagamento, alegando ter sido prestada assistência a (...), pelos ferimentos apresentados em consequência de agressões levadas a cabo pelo arguido, nos termos descritos na acusação deduzida pelo Ministério Público, assim como responsabilizando o Fundo de Garantia Automóvel e (...), efetivo proprietário do veículo que era desprovido de qualquer seguro.» - transcrição da sentença. «(...), devidamente identificado nos autos e neles constituída Assistente «deduziu pedido de indemnização civil (fls. 229 a 240 verso) peticionando a condenação solidária do arguido, (...), do Fundo de Garantia Automóvel e de (...) no pagamento da quantia global de 80 262,94 €, acrescida de juros de mora à taxa legal, desde a notificação até integral pagamento, a título de danos não patrimoniais, de perda de rendimento, de despesas suportadas e de dano biológico.» - transcrição da sentença. O Demandado Fundo de Garantia Automóvel apresentou a sua contestação (cf. fls. 226 e 267) aos pedidos de indemnização civil, excecionando a sua legitimidade para a presente ação e impugnando os valores peticionados. O Demandado (...) apresentou a sua contestação (cf. fls. 379 e 381) aos pedidos de indemnização civil, alegando, sucintamente, o seu total desconhecimento de que o motociclo sua propriedade tenha sido levado da herdade, e se o foi, aquele não deu autorização nesse sentido uma vez que o veículo não se destinava à via pública.» - transcrição da sentença. O Arguido não apresentou contestação escrita. Realizado o julgamento, perante Tribunal Singular, por sentença proferida e depositada a 8 de outubro de 2020 foi, entre o mais, decidido: «Da parte criminal Nestes termos, e pelo exposto, julga-se a acusação procedente e por provada, nos termos demonstrados e, em consequência, decide-se: a) Condenar o arguido (...), pela prática de um crime de condução de veículo a motor sem a necessária habilitação legal previsto e punido pelo artigo 3.º, n. º 1, do Decreto-Lei n. º 2/98, de 3 de janeiro, na pena de 60 (sessenta) dias de multa à taxa diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta cêntimos). b) Condenar o arguido (...), pela prática de um crime de ofensa à integridade física negligente p. e p. pelo artigo 148.º, n.ºs 1 e 3, do Código Penal, com referência ao artigo 144º, alíneas b) e c) também do Código Penal, e pelo artigo 69.º, n.º 1, al. b), do Código Penal, na pena de 120 (cento e vinte) dias de multa à taxa diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta cêntimos). c) Condenar o arguido (...), em cúmulo jurídico nos termos do artigo 77.º, n.º 1 e 2 do Código Penal, na pena única de 150 (cento e cinquenta) dias de multa à taxa diária de 5,50€ (cinco euros e cinquenta cêntimos), que perfez a quantia de 825,00€ (oitocentos e vinte cinco euros). d) Condenar o arguido em 3 (três) U.C. de taxa de justiça, sendo este responsável pelo pagamento das custas do processo e no pagamento dos honorários do seu Ilustre Defensor nomeado sem prejuízo da existência de apoio judiciário, nos termos das disposições conjugadas dos artigos 513. °, 514.º e 374. °, n.º 4, do C. P. Penal e artigo 8°, n.º 9, e Tabela III, do Regulamento das Custas Processuais. Da parte civil Nestes termos, e pelo exposto, decide-se: a) Absolver o Demandado (...) da instância por verificação da exceção de ineptidão da petição inicial. b) Julgar-se o pedido de indemnização civil deduzido pelo Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, E.P.E, procedente por provado e, em consequência, condena-se solidariamente o arguido, (...) e o Fundo de Garantia Automóvel a pagar-lhe, a quantia de 1.888, 77€ (mil oitocentos e oitenta e oito euros e setenta e sete cêntimos), acrescida de juros de mora, à taxa legal calculados desde a notificação até integral pagamento. c) Julgar-se o pedido de indemnização civil deduzido pela Assistente, parcialmente procedente e, em consequência, condena-se solidariamente os Demandados arguido, (...) e o Fundo de Garantia Automóvel a pagar-lhe, a quantia global de 45.179, 77€ (quarenta e cinco mil cento e setenta e nove euros e setenta e sete euros), acrescida de juros de mora, à taxa legal calculados desde a notificação até integral pagamento., que se divide: i. Quantia de 20.000,00€ (vinte mil euros) atribuída a título de danos não patrimoniais. ii. Quantia de 179.77€ (cento e setenta e nove euros e setenta e sete cêntimos) a título de despesas medicamentosas. iii. Quantia de 25.000,00€ (vinte cinco mil euros) a título de dano biológico. d) Absolve-se os Demandos do restante peticionado. e) Custas conforme o decaimento das partes.» Inconformado com tal decisão, (...) dela interpôs recurso, extraindo da respetiva motivação as seguintes conclusões [transcrição]: «I – Considerando o ora Recorrente pessoalmente responsável pelos danos e, consequentemente condenando-o solidariamente no pagamento dos Pedidos de Indemnização Civil, o Tribunal a quo procedeu a uma errada interpretação e aplicação, consequentemente violando, o disposto nos artigos 4.º, 6.º e 15.º, n.º 2 do decreto-Lei 291/2007, assim como da Diretiva 72/166/CEE, de 24/04/1972. II – O veículo em questão não se encontrava matriculado uma vez que o mesmo se destinava apenas, a circular no interior da propriedade, pelo que não impende sobre o recorrente a obrigação de contratar seguro. III – Quando o veículo seja posto a circular sem o conhecimento ou autorização do proprietário, como é o caso dos autos, o proprietário não tem a sua direção efetiva, não sendo por isso responsável pelas consequências do acidente. IV – Por outro lado, ainda que o veículo em questão estivesse segurado, conforme entendimento do Tribunal a quo, e a responsabilidade pelos danos causados fosse suportada pela Seguradora, a constituição da obrigação de reparar os danos decorre diretamente da lei, nomeadamente do n.º 2 do art. 15.º do decreto-Lei 291/2007, de 21 de agosto e não por via da transferência da propriedade da responsabilidade primária que se tenha constituído na esfera do tomador do seguro ou do proprietário do veículo. V – Considera-se, ainda, no referido acórdão, que “Não pode ser responsabilizado pelos danos emergentes da circulação da sua viatura o proprietário que, embora não beneficiando de seguro, não tinha na altura do acidente, a direção efetiva dessa viatura, a qual foi posta a circular sem o seu conhecimento e contra a sua vontade por desconhecidos que a furtaram no interior da garagem onde estava recolhida”. Ac. de 02/03/2004, 03ª3499, em www.dgsi.pt. VI – O Supremo Tribunal de Justiça no Processo 770/12.3 TBSXL.L1.S1, solicitou ao Tribunal de Justiça da União Europeia a resolução do reenvio prejudicial inquirindo o seguinte: “Em face do art. 3.º da Diretiva do Conselho 72/166/CEE, de 24-4-72 (em vigor na data do acidente), a obrigatoriedade de contratação de seguro de responsabilidade civil automóvel abarca mesmo as situações em que o veículo estava fora de circulação, designadamente quando, por opção do proprietário, se encontrava imobilizado num quintal particular, fora da via pública?” Ou “Independentemente da responsabilidade que viesse a ser assumida pelo Fundo de garantia Automóvel, nessas circunstâncias não recaía sobre o proprietário do veículo a obrigação de segurar?” Aplicando e interpretando o Acórdão do Tribunal de Justiça da União Europeia, considera o Supremo Tribunal de Justiça que “(…) em casos de apropriação ilegítima do veículo não é possível assacar ao proprietário (ainda que incumpridor da obrigação de seguro) qualquer responsabilidade pelo ressarcimento dos danos causados a terceiros, considerando que, por aquela via, deixou de ter a direção efetiva do veículo, nos termos e para os efeitos do art. 503.º, n.º 1, do CC.” VII – Neste sentido, e porque existiu uma apropriação ilegítima do veículo, mesmo que se considere que o proprietário não cumpriu com a obrigação de contratar um seguro, não pode o mesmo ser responsabilizado pelos danos causados a terceiros, na medida em que a constituição de obrigação de reparar os danos, pela seguradora, não decorre da transferência de responsabilidade primária que se tenha constituído na esfera do tomador do seguro ou do proprietário, mas sim do n.º 2 do art. 15.º do Decreto-Lei 291/2007. VIII – Face ao exposto, fez o Tribunal a quo uma errada interpretação e aplicação das referidas normas. Pelo exposto, e pelo que Vossas Excelências, Venerandos Desembargadores entendem por bem suprir, deve ser dado provimento ao presente recurso e, em consequência, ser revogada a douta sentença recorrida, absolvendo-se o recorrente (...) do pedido. Assim se julgando, se fará a boa e costumada JUSTIÇA!» O recurso foi admitido. Na resposta que, sem conclusões, apresentou ao recurso interposto, a Assistente conclui pela sua improcedência. O Ministério Público, junto do Tribunal recorrido, deu a conhecer que não respondia ao recurso interposto, por nele estar em causa, apenas, matéria civil. û Enviados os autos a este Tribunal da Relação, o Senhor Procurador Geral Adjunto apôs visto.Efetuado o exame preliminar, determinou-se que o recurso fosse julgado em conferência. Colhidos os vistos legais e tendo o processo ido à conferência, cumpre apreciar e decidir. II. FUNDAMENTAÇÃO De acordo com o disposto no artigo 412.º do Código de Processo Penal e com a jurisprudência fixada pelo Acórdão do Plenário da Secção Criminal do Supremo Tribunal de Justiça n.º 7/95, de 19 de outubro de 1995[[1]], o objeto do recurso define-se pelas conclusões que o recorrente extraiu da respetiva motivação, sem prejuízo das questões de conhecimento oficioso. As possibilidades de conhecimento oficioso, por parte deste Tribunal da Relação, decorrem da necessidade de indagação da verificação de algum dos vícios da decisão recorrida, previstos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal, ou de alguma das causas de nulidade dessa decisão, consagradas no n.º 1 do artigo 379.º do mesmo diploma legal.[[2]] Posto isto, e vistas as conclusões do recurso, a esta Instância é colocada, tão-só, a questão de saber se o proprietário de veículo com motor que não tem seguro pode ser responsabilizado, em processo-crime, pelos danos decorrentes da sua utilização não autorizada. û Na sentença recorrida foram considerados como provados os seguintes factos [transcrição]:«Da Acusação Pública «1) No dia 26.03.2016, cerca 07:45, o arguido (...) encontrava-se no local denominado (…), onde decorria um arraial da Páscoa e onde havia acampado com outras pessoas. 2) No local encontrava-se um quadriciclo de passageiros (vulgo “moto 4”), com o número de quadro (…). 3) Em seguida, o arguido colocou o referido quadriciclo a trabalhar e circulou com o mesmo nas vias públicas que se desenvolvem naquele local, circulando por caminhos de terra batida que eram utilizados pelos demais condutores que frequentavam aquele local e pelos peões. 4) Durante esse percurso (…) circulava como passageiro. 5) Após, o arguido dirigiu de novo o quadriciclo para próximo do local onde estavam acampados e imobilizou o quadriciclo próximo daquele local, onde se encontram outras pessoas que ali estavam acampadas, incluindo a ofendida (...) . 6) O arguido conduzia aquele quadriciclo sem que fosse titular de carta de condução, ou titular de outro documento com força legal equivalente, que o habilitasse a conduzir aquele tipo de veículo a motor. 7) O arguido sabia que não estava habilitado a conduzir qualquer veículo com motor na via pública. 8) O arguido sabia que a condução do quadriciclo na via pública dependia da prévia obtenção de título de condução. 9) Não obstante conhecer tais factos, quis conduzir aquele veículo nas circunstâncias supra descritas. 10) O arguido acuou de forma livre, voluntária e consciente, bem sabendo que a sua conduta era proibida e punida por lei. 11) O arguido permaneceu no lugar de condutor e manteve o quadriciclo ligado e com o motor a trabalhar, ao passo que (...) se manteve no lugar de passageiro. 12) O quadriciclo encontrava-se em bom estado de funcionamento. 13) O piso encontrava-se seco e limpo, embora em terra batida. 14) A ofendida (...) encontrava-se a cerca de 5 metros da frente do quadriciclo a falar com (…). 15) Nessa altura, cerca das 07H55, o arguido distraiu-se e colocou a mão no acelerador, o que fez com que o quadriciclo retomasse de imediato a marcha para a frente, circulando desgovernado. 16) Nessa sequência, o arguido não conseguiu travar, acabando o quadrículo por circular e embater com violência na perna esquerda da ofendida (...). 17) Como consequência direta, imediata e necessária do impacto da frente do quadriciclo na sua perna esquerda, sofreu (...) uma fratura exposta da tíbia e perónio, com necessidade de submissão a cirurgia e encavilhamento. 18) As lesões supra referidas e sofridas pela ofendida determinaram 635 dias de doença, com afetação da capacidade de trabalho geral em 82 dias e com afetação da capacidade de trabalho profissional em 82 dias. 19) Como consequência direta, imediata e necessária da conduta do arguido a ofendida ficou com cicatrizes operatórias visíveis no membro inferior esquerdo, na face anterior do joelho, com cerca de 2 cm; cicatriz, com caraterísticas cirúrgicas que evoluiu para quelóide, no 1/3 inferior da face interna da perna, com cerca de 5,5 cm; rotação externa do pé esquerdo. 20) Como consequência direta, imediata e necessária da conduta do arguido a ofendida ficou com uma permanente rigidez na flexão do pé esquerdo e dor na região distal da perna esquerda, em especial nos casos em que haja necessidade de permanecer durante períodos mais longos em pé. 21) Na data dos factos a ofendida tinha como profissão empregada de loja e balconista, necessitando de estar em pé durante o horário de serviço. 22) Tais consequências permanentes afetaram a capacidade de trabalho da ofendida, impedindo-a de exercer a profissão de empregada de loja, bem como provocaram doença particularmente dolorosa e permanente, provocando desconforto e dor de forma diária na ofendida. 23) No local do embate existiam boas condições de visibilidade naquele local, era de dia e na altura do acidente fazia bom tempo. 24) O acidente e as consequências dele resultante, para a vítima, ficaram a dever-se à conduta do arguido, que autuou sem os cuidados e precauções que eram exigidos a qualquer condutor e pessoa prudente. 25) Na verdade, o arguido ao colocar de forma descuidada e brusca a mão no acelerador perdeu o controlo do quadriciclo, não tendo cuidado de evitar contactar com o manipulo acelerador, enquanto o motor estava a trabalhar. 26) Para além disso, ao ter imobilizado o veículo não cuidou de desligar o motor, de travar de forma permanente o quadriciclo e sair em seguida do lugar e condutor após retirar a chave. 27) O arguido sabia que não podia acionar o acelerador enquanto o quadriciclo tinha o motor a trabalhar, que o contacto descuidado e brusco com o acelerador nessas condições poderia iniciar uma movimentação brusca e descontrolada do quadriciclo, sendo que podia ter atuado nesses termos e assim evitar o embate. 28) O arguido sabia que devia ter desligado o motor do quadriciclo, travar de forma permanente o quadriciclo e sair em seguida do lugar e condutor após retirar a chave, o que não fez, podendo fazê-lo e assim evitar aquele embate. 29) Acresce que o arguido sabia que não estava habituado a conduzir aquele quadriciclo e que não tinha carta de condução, sendo detentor de menores conhecimentos do modo de funcionamento do quadriciclo e que estava obrigado a especiais deveres de cuidado. 30) O arguido tinha a obrigação e a capacidade individual de evitar o embate, que não representou. 31) Com a sua conduta descuidada o arguido colocou em risco os demais utentes daquela via de trânsito e em concreto causando as lesões da integridade física da ofendida. 32) O arguido agiu de forma livre, imprevidente e sem o cuidado a que, segundo as circunstâncias, estava obrigado e de que era capaz, não tendo sequer representado a possibilidade de causar lesões na ofendida (...). 33) O arguido sabia que as suas condutas eram proibidas e punidas por lei. Mais se provou, 34) O arguido não tem antecedentes criminais. 35) O arguido encontra-se desempregado, embora realize alguns “biscates” na área da construção civil, auferindo mensalmente uma média entre 150,00€ e 400,00€. 36) O arguido vive com a sua mãe, que está desempregada e aufere a quantia de 250,00€ a título de subsídio de desemprego. 37) O arguido tem como despesas fixas mensais, cerca de 50,00€ a 100.00€ que entrega à sua progenitora para ajudar nas despesas domésticas. 38) O arguido tem como habilitações literárias o 6.º ano. 39) O arguido demonstrou arrependimento. Do Pedido de indemnização civil do Hospital 40) A Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, E.P.E, prestou assistência médica à assistente no dia 26/03/2016, no serviço de urgência, na sequência dos factos previstos em 16) e 17), no valor de 1.888,49€, conforme fatura n.º 16004614 emitida a 31/07/2016. Do Pedido de indemnização civil da Assistente. 41) O demandado (…) tinha a disponibilidade do quadriciclo identificado em 2). 42) A demandante foi, de imediato, após embate em 16) transportada para o Hospital de Beja, onde foi submetida a vários exames complementares de diagnóstico, nomeadamente a RX do joelho – duas incidências -, RX da perna – duas incidências -, RX tornozelo – duas incidências -, RX bacia (URG), RX da mão – duas incidências, RX do tórax, uma incidência, RX abdómen simples em pé (URG), todos com resultados positivos. 43) Em seguida foi remetida para o serviço de ortopedia, onde foi submetida a cirurgia, 44) A assistente manteve-se internada no Hospital de Beja até ao dia 6 de abril de 2016, dia em que teve alta para o domicílio. 45) Na intervenção cirúrgica foi submetida a redução cruenta e osteossíntese com cavilha T2 da tíbia, com bloqueio proximal e dois cabo de dall-miles distais e imobilização com TGP; 46) Foi seguida na consulta externa de ortopedia, no mesmo hospital de Beja; 47) Fez 20 (vinte) sessões de fisioterapia; 48) Deambulou em cadeira de rodas durante 3 (três) meses e posteriormente com canadianas durante 2 (dois) meses; 49) Foi novamente operada, mas no Hospital da Misericórdia de Évora, no dia 21-12-2017, para dinamização da cavilha, onde esteve internada até dia 8 de janeiro de 2018; 50) Foi novamente submetida a exames complementares de diagnóstico, no dia 31 de outubro de 2018. 51) Foi submetida a nova intervenção cirúrgica para remoção da cavilha T2 da tíbia esquerda sob raquianestesia, no dia 26.03.2019, com alta no próprio dia. 52) Consta do Relatório de avaliação do dano corporal do dia 26.06.2018, e posterior clarificação do dia 07.08.2015 que as sequelas apresentadas pela assistente são «Membro inferior esquerdo: cicatrizes operatórias e ligeira rigidez na flexão do pé», mais acrescenta em “B. EXAME OBJACTIVO”: que aquela se apresenta «uma marcha normal, sem apoio nem claudicação», assim como que do «Do evento resultaram para a examinada as consequências permanentes descritas no relatório (…) podem (…) “afetar-lhe, a capacidade de trabalho” e “provocar-lhe doença dolorosa e permanente”». 53) O aludido relatório fixa a 21.12.2017 a data da cura das lesões sofridas pela assistente. 54) Do Relatório de Avaliação de Dano Corporal Acidentes em Direito Civil de 6.11.2018, foi atribuído: a. Data da consolidação do dano pós-traumático a 12.09.2016. b. Incapacidade Temporária Absoluta Geral entre 26-03-2016 a 06-04-2016 e de 21-12-2017 a 23-12-2017; c. Incapacidade Temporária Profissional Total de 26-03-2016 a 12-09-2016; d. Incapacidade Temporária Parcial Geral entre 07-04-2016 e 12-09-2016 e de 24-12-2017 a 08-01-2018; e. Quantum doloris de nível 4; f. De Incapacidade Permanente Geral 5 pontos; g. De Dano Estético 4 pontos (escala de 1 a 7); h. De Prejuízo de Afirmação Pessoal 3 pontos (escala de 1 a 5); i. Relativamente ao código MC0640, da Tabela Nacional de Incapacidades, quanto à flexão dorsal, foram-lhe atribuídos 4 pontos, numa escala de 1 a 5. j. Não resultaram danos permanentes de “Dano Futuro”, “Rebate Profissional” e “Prejuízo sexual”. 55) Do referido relatório o estado atual à data, da assistente, consistia «Limitação da flexão dorsal da tíbio társica esquerda a 5º; Cicatrizes operatórias: Uma vertical e infra patelar com 5cm, Duas cicatrizes distando cerca de 3 cm da anterior, também verticais, Uma cicatriz operatória com cerca de 8cm de comprimento no 1/3 da parte distal da parte interna da perna de convexidade posterior, Cicatriz situada na parte posterior da anteriormente descrita, de contornos irregulares, arredondadas, sensível ao toque, com cerca de 3cm de diâmetro, provocada pela exposição da fratura.». 56) À data do acidente a assistente tinha 20 anos de idade. 57) Frequentava a Escola Profissional, em (…), no curso de restauração. 58) Por causa do acidente, atento o tempo de internamento e o tempo em que andou de cadeira de rodas, a demandada apenas conseguiu fazer estágio em (...), na APPACDM (Associação Portuguesa de Pais e Amigos Deficientes Mentais) de (...), que lhe garantia transporte até à Associação. 59) A assistente viu-se condicionada em qualquer outro tipo de atividade/emprego, porque, por causa das dores, não conseguia ficar muito tempo de pé. 60) Com a escolaridade que possuía, a única atividade/emprego que conseguia era a de balconista/empregada de balcão, o que a obrigava a ficar muito tempo de pé. 61) Dores que ainda hoje sofre, principalmente nas mudanças de estação e quando, por motivos profissionais, tem que estar algum tempo seguido de pé, ou tem que fazer algum esforço. 62) Pelo menos durante o período em que andou de cadeira de rodas, a requerente teve que ter auxílio de terceiros para fazer a sua higiene diária. 63) Assim como teve que ter auxílio de terceira pessoa para poder continuar a frequentar a escola, para poder deslocar-se à fisioterapia, às consultas de ortopedia. 64) Era uma pessoa alegre, autónoma, fazendo todas as atividades domésticas, que deixou de conseguir fazer por causa das lesões que sofreu. 65) Durante o tempo de recuperação deixou de poder executar sozinha as tarefas mais básicas do seu dia-a-dia, nomeadamente a de poder tomar banho sem a ajuda de terceiros; 66) A assistente continua a sofrer dores na perna. 67) Tem que usar meias de descanso; 68) Tem uma tristeza que a invadiu na sequência do acidente e que ainda hoje a acompanha; 69) A assistente despendeu em medicamentos, consulta da especialidade, exames complementares de diagnóstico, o montante de 179,77€. 70) A Incapacidade Permanente Geral de 5 pontos terá repercussões na sua capacidade de ganho, atento o facto de não poder ficar muito tempo em pé, de não poder fazer esforços, das dores que sente, por causa do acidente relatado supra. Da Contestação do demandado (...) 71) O Demandado (...) era, na data dos fatos, proprietário de um quadriciclo de marca Yahama, modelo (…), de cor (…), vulgo moto quatro com o número de quadro (…). 72) No entanto, tal veículo, foi adquirido pelo Demandado única e exclusivamente para circular dentro da sua propriedade rural. 73) O mesmo destinava-se apenas a ser utilizado pelos trabalhadores/residentes na herdade e apenas para se deslocar no interior da mesma. 74) O Demandado, à data, dos fatos era proprietário da Herdade denominada (…). 75) Nessa propriedade existem casas de habitação e casas de apoio agrícola. 76) Encontravam-se a residir, na referida propriedade, alguns trabalhadores. 77) Estes sim, tinham autorização para utilizar os equipamentos agrícolas aí existentes e apenas no interior da herdade. 78) O veículo aqui em questão não se encontrava matriculado e, por isso não tinha seguro de responsabilidade civil, porque o mesmo não se destinava a ser utilizado na via pública. 79) O veículo em questão foi utilizado sem a autorização e/ou conhecimento do demandado. 80) O Demandado desconhece como e quando o veículo saiu da sua propriedade. 81) Assim como não autorizou que o mesmo fosse utilizado quer pelo Demandado (…), quer pelo Arguido (…).» Relativamente a factos não provados, consta da sentença que [transcrição]: «Discutida a causa, e com relevância para a decisão final, ficaram por provar os seguintes factos: a) A assistente foi limitada e condicionada no seu futuro na restauração, já que se viu impedida de ir estagiar para o Algarve, onde já anteriormente tinha realizado outro estágio, acabando por não seguir os estudos nessa área e, nessa medida, condicionando todo o seu futuro. b) A assistente foi obrigada a desistir de seguir os estudos na área da restauração, com perspetiva de emprego na área que tinha escolhido para o seu futuro; c) A assistente claudica sempre que faz/tem que fazer esforçosos ou tem que estar muito tempo em pé; d) A assistente não consegue, sequer, ajoelhar-se, para além de ter que tomar medicação e massajar as cicatrizes com pomada, para o alívio das dores; e) Porque não conseguiu seguir a formação na área da restauração, e atenta a sua condição física que a impedia de estar muito tempo em pé, e consequentemente conseguir um trabalho compatível, a demandante apenas conseguiu começar a trabalhar em março de 2017, na Fábrica de alimentos (…), em (...). f) A demandante terminou a formação na Escola Profissional em meados de agosto de 2016. g) Desde essa altura e até 05 de março de 2017, a requerente não conseguiu arranjar trabalho, porque os únicos empregos que em (...) conseguia a obrigavam a estar muito tempo em pé. O que não conseguia, por causa das dores. h) Tendo que ter recorrido à ajuda de familiares para fazer face às suas despesas, já que não conseguia trabalho compatível com a sua condição física, pelo que, e a título de perda de rendimento, contabilizada pelo salário mínimo nacional, e desde, pelo menos, meados de Agosto de 2016 a 05 de Março de 2017, a demandante deixou de auferir a quantia 5.082,17€ (cinco mil e oitenta sete euros e dezassete cêntimos), correspondente a (530,00€ x 4,5 meses – de meados de Agosto a Dezembro, acrescida de 5/12 de subsídio de férias e de Natal + 557,00€ x2 ( Janeiro e Fevereiro de 2017) + proporcionais de subsídio de férias e de Natal). * Os demais factos alegados pelas partes, porque conclusivos ou instrumentais, mas não essenciais para sustentar as suas posições processuais, revelam-se inúteis e irrelevantes para a decisão de fundo da causa.» A convicção do Tribunal recorrido, quanto à matéria de facto, encontra-se fundamentada nos seguintes termos [transcrição]: «Nos termos do artigo 127º do Código de Processo Penal a prova é apreciada segundo as regras da experiência e a livre convicção do julgador, salvo quando a lei dispuser diferentemente. Assim, pese embora o disposto no artigo 127º do Código de Processo Penal a liberdade do julgador aí consagrada mais não é do que a liberdade para a objetividade, para a descoberta da verdade histórica (vide Germano Marques da Silva, Curso de Processo Penal Vol. II, pp.126 a 127). Com efeito, em processo penal não existe um verdadeiro ónus probatório em sentido formal, vigora o princípio da aquisição da prova articulado com os princípios da investigação e da verdade material e da presunção de inocência do arguido, os quais impõem que o tribunal construa os suportes da sua decisão por apelo aos meios de prova validamente produzidos e independentemente de quem os ofereceu, investigue e esclareça oficiosamente os factos em busca da verdade material e em caso de dúvida intransponível decida a favor do arguido. Refira-se que conforme resulta do artigo 374º nº2 do Código de Processo Penal o juiz não está processualmente obrigado a elencar todos os factos alegados mas apenas aqueles que têm interesse para a caracterização do crime e suas circunstâncias juridicamente relevantes e que são indispensáveis para a escolha da pena e determinação da medida concreta da mesma e em caso de pedido de indemnização civil os factos integradores da mesma. Em suma, o juiz tem de elencar os factos que fundamentam a sua decisão. De igual modo e conforme decorre de tal preceito o juiz não está processualmente vinculado a efetuar uma enumeração mecânica de todos os meios de prova constantes dos autos ou indicados pelos sujeitos processuais, mas apenas a selecionar e a examinar criticamente os que serviram para fundamentar a sua convicção positiva ou negativa, ou seja, aqueles que serviram de base à seleção da matéria de facto provada e não provada. Tal matéria é a que constitui objeto de prova e é juridicamente relevante para a existência ou inexistência do crime, a punibilidade ou não punibilidade do arguido e a determinação da medida da pena aplicável (vide neste sentido, entre outros, Ac. do STJ de 30.6.1999, BMJ nº488, p. 272 e Ac. da Relação de Évora de 16.3.2004 proferido no âmbito do processo nº1160/03.1). Não se olvide que o juiz está adstrito às regras processuais que regem a admissibilidade, relevo e produção dos meios de prova sendo que apenas os meios de prova que obedecem a tais regras podem ser validamente utilizados para suportar a sua decisão. Esclareça-se, também, que as provas documentais incorporadas nos autos podem ser valoradas pelo tribunal para formação da sua convicção ainda que formalmente não tenham sido debatidas ou examinados em audiência, porquanto tais provas estão acessíveis aos sujeitos processuais a quem está assegurado o exercício do contraditório se assim o entenderem (vide neste sentido Ac. do Tribunal da Relação do Porto de 9 de Janeiro de 2013 proferido no processo 220/08.0GBETR.P1 e Ac. do Tribunal da Relação de Coimbra de 26 de Outubro de 2011 e proferido no processo 390/08.7TATMR.C1 ambos acessíveis em www.dgsi.pt). A motivação da decisão de facto não pode, pois, constituir um substituto do princípio da oralidade e da imediação e transformar-se numa espécie de documentação da audiência antes se impondo a “explicitação do processo de formação da convicção do tribunal” – Acórdão da Relação de Coimbra n.º 680/98 de 02 de Dezembro, por forma a permitir uma compreensão “do porquê da decisão e do processo lógico-mental que serviu de suporte ao respetivo conteúdo decisório” - Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça n.º 406/99 3AS de 12 de Maio, ambos disponíveis in www.dgsi.pt. * É à luz de tais princípios que se formou a convicção deste Tribunal e, consequentemente, se procedeu à seleção da matéria de facto positiva relevante, quanto à acusação pública, contestações e pedidos de indemnização cível dos autos, tudo assente na ponderação do conjunto da prova existente no processo, analisada à luz das regras de experiência comum, nomeadamente, na conjugação do auto de notícia de fls. 1 a 4, informação de fls. 5 a 8, fotogramas de fls 15 e 16, cópias de fls. 17 a 18, participação de acidente de viação de fls. 20 a 22 e documento complementar de fls. 23, elementos clínicos de fls. 49 e 51 verso, 96 a 103, 112 e 113, relatórios periciais (fls. 82 a 84, 133 a 136, 145 e 146), documentos juntos pela assistente e pela Unidade de Saúde, das declarações do arguido, declarações da assistente, nas declarações de parte dos demandados (…), e dos depoimentos das testemunhas (…), madrinha da assistente, (…), amiga da assistente há cerca de 6 anos, (…), irmã mais nova da assistente e de (…), amiga da assistente há cerca de 5/6 anos, criticamente apreciados e conjugados com as conclusões que derivam da aplicação de regras da lógica ao caso concreto. Em tal seleção, atendeu-se, ainda, e mais concretamente: - Factos provados 1) a 16) e 35) a 39): às declarações prestadas pelo arguido que de modo sincero e honesto confessou integralmente e sem reservas os factos, manifestou sério arrependimento relativo à sua prática e esclareceu as suas circunstâncias de vida e habilitações literárias. - Factos provados 17 a 22, indiciando-se da confissão integral do Arguido, resultam documentalmente provados via elementos clínicos de fls. 49 a 51 vs, 96 a 103, 112 e 113 e relatórios periciais (fls. 82 a 84, 133 a 136, 145 e 146). - Facto provado 34): ao teor do Certificado de Registo Criminal de fls. 404. No que concerne ao facto provado 40), deriva da assistência médica prestada à assistente pela Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, E.P.E resulta do episódio de urgência a fls. 49 a 51 verso, assim como do depoimento da Assistente que confirmou ter recorrido aos serviços do Hospital José Joaquim Fernandes, logo após o incidente com o arguido. Uma vez que ocorreu uma confissão integral e sem reservas por parte do arguido, a referida prova foi tida em consideração apenas para comprovar os factos estabelecidos no pedido de indemnização civil formulado pela assistente. Assim, No que respeita aos factos provados 42) a 56) e 69), foi tido em consideração a prova pericial e documental presente nos autos, mormente, o boletim de urgência n.º 16028685 de 26 de Março de 2016, referente à assistente, em especial quanto às incidências verificadas após o acidente de viação e a sua consequente transferência para internamento em ortopedia (cf. fls. 51 e 51 verso), seguindo-se uma primeira cirurgia no próprio dia, usufruindo de alta a 06.04.2016, um segunda cirurgia que ocorreu dia 21.12.2017 e consequente alta a 08.01.2018 e uma terceira cirurgia a 25.09.2019, tendo alta no mesmo dia, todas essas informações estabelecidas nos relatórios periciais constante dos autos (em especial fls. 134 nos pontos A e B), assim como os documentos juntos pela assistente no seu pedido de indemnização civil , no qual é documentada a sua cirurgia mais recente do dia 25.09.2019 (fls. 237 verso e 238). Sem deixar de salientar que toda a prova documental retratada, teve como corroboração as declarações da assistente e de algumas testemunhas, sendo que a primeira explicitou calma e pausadamente todas as cirurgias a que foi submetida, assim como as segundas descreveram toda a ajuda e sofrimento que aquela padeceu durante estes três anos de recuperação e cirurgias, e que infra melhor se explanará. No que concerne ao facto 69, foi tida em consideração das faturas constantes de fls. 239, 239 verso, 240 e 240 verso, que consubstanciam o valor global de 179,77€ despendido em consulta de ortopedia, entrada e avaliação no Hospital da Misericórdia de Évora e faturas farmacêuticas. Apesar de toda a documentação junta pela assistente ter sido impugnada pelo Fundo de Garantia Automóvel, em especial a assinatura do perito da avaliação civil junta, a verdade é que nenhum incidente de falsidade foi suscitado, nem tão pouco foi produzida prova capaz de colocar em causa a veracidade quer da aludida avaliação, quer dos restantes documentos, inexistindo qualquer motivo para colocar em causa a sua autenticidade e valor probatório dos mesmos, convencendo-se o tribunal da veracidade do conteúdo dos mesmos. O facto provado 56), derivou da pesquisa de fls. 156 dos autos. Os factos provados 57) a 68) derivam das declarações de parte da assistente e das testemunhas por si arroladas. A assistente, de modo sofrido e revivendo o sucedido, confirmou a maior e decisiva parte do pedido civil, nomeadamente, descreveu minuciosamente tudo aquilo que ocorreu após o embate de que padeceu, percorrendo toda a sua surpresa, choque e dores de que padeceu desde o momento em que foi atropelada, seguindo-se um caminho penoso de recuperação à qual a sujeitou a três cirurgias e sequelas que se traduzem em não lograr ficar muito tempo de pé, assim como cicatrizes que irrompem desde o seu joelho esquerdo até à canela, que o Tribunal teve oportunidade de avaliar in loco durante a audiência de julgamento, constatando que as mesmas apesar de “curadas” ocupam uma parte significativa do membro inferior esquerdo da assistente, tendo a mesma que usar umas meias próprias de descanso, evitando o possível inchaço da sua perna ao longo do dia (uso dessas meias também foi constatado por este Tribunal e, inclusive confirmado pela irmã da assistente). Mais acrescentou, a assistente, bastante chorosa a um certo ponto das suas declarações o que se reputa de normal, atentas às circunstâncias em que o acidente se sucedeu e a sua tenra idade de 20 anos, estando numa festa a se divertir quando, sem qualquer previsão se viu abarroada por uma moto quatro tendo os seus ossos perfurado a sua pele para o exterior, perdendo imediatamente os sentidos. Na altura referiu, igualmente, que frequentava a Escola Profissional, em (...), no curso de Restauração, sendo que quando sucedeu o incidente se seguiu a fase do estágio quando ainda se encontrava em recuperação, e como estava de cadeira de rodas só poderia frequentar um estágio que lhe providenciasse um transporte adequado à sua condição, na altura, de cadeira de rodas, só o tendo conseguido na Associação Portuguesa de Pais e Amigos Deficientes Mentais, em (...). Sustentou que não regressou à sua atividade de balconista, pois não aguentava muito tempo em pé, assim como sente dores nas mudanças de estação ou quando realiza excesso de esforços. Além disso, quando andava de cadeira de rodas, necessitou do apoio de terceiros para realizar a sua higiene diária, deslocar-se à escola e consultas médicas. Situação essa corroborada pela sua irmã (…) que vivia consigo na altura dos factos, e que de uma maneira emotiva, mas não desprovida de sinceridade a cada palavra, referiu que com a situação da irmã teve que a ajudar a tomar banho e cuidar da casa que as duas partilhavam, assim como a madrinha da assistente (…) confirmou tal situação de vivência, e de uma maneira credível afirmou que a assistente demorou cerca de dois anos a recuperar, mas apenas quando estava de cadeira de rodas é que lhe fornecia uma maior assistência, em especial nas lides domésticas e a confecionar refeições. Já a sua amiga (…), de maneira direta e credível disse que levava e ia buscar a assistente à escola, e por seu lado, a testemunha (…) foi bastante natural e firme, ao referir que na altura em que a assistente se encontrava de cadeira de rodas, aquela ajudava-a a tomar banho, «pegando no colo como um bébé» e dando injeções prescritas pelos médicos quando necessário. Todas as aludidas testemunhas foram unânimes em explicitar a necessidade de ajuda e a retratar o sofrimento que a assistente passou durante a sua recuperação, confirmando que aquela, em virtude do acontecimento, deixou de ser tão ativa, sendo a própria assistente a retratar que sempre que passa num passeio e ouve uma mota, é logo invadida por um grande medo e, igualmente, tristeza de não voltar a realizar algumas atividades de que tanto gostava. No que toca aos factos provados 41) e 71) a 81), os mesmos derivaram das declarações do arguido, assim como as declarações de parte dos demandados (…). O arguido, sustentou que a mota pertenceria ao seu amigo (...) que o deixou «dar uma volta» no recinto da festa de Páscoa onde ocorreram os factos, desconhecendo, no entanto, quem era o verdadeiro proprietário da moto-quatro. Tal foi oportunamente esclarecido nas declarações de parte do demandado (...), que se uma maneira clara, espontânea e reveladora de pesar sobre o sucedido, referiu que a moto-quatro pertencia ao patrão dos seus pais, (…), que colocava à disposição o aludido motociclo, apenas para circular no interior da herdade onde trabalhavam. Todavia, mesmo sabendo que não podia circular com o veículo no exterior da herdade, o demando admitiu que mesmo assim o fez, e sem autorização do proprietário. Ora, apesar do demandado (…) prestar as suas declarações referindo que era sabido que na sua herdade que a moto quatro era para circular apenas no seu interior, não foi muito seguro acerca de quando deu essa ordem direta ao demandado (…), situação essa que demonstrou pouco relevante já que no âmbito das suas declarações, este último foi perentório a afirmar que tinha pleno conhecimento da proibição, e mesmo assim o fez, sem autorização do proprietário que não soube do sucedido. Os Factos não Provados, foram assim considerados, porque: Alíneas a) e b), não resulta dos autos qualquer demonstração do relatado, em especial a alínea a) que é conclusiva, não concretizando de que forma o futuro da assistente ficou irremediavelmente afetado, o que de modo algum pode ser aceite, em especial, tendo em consideração a sua jovem idade e a possibilidade de se dedicar a um sem numero de ramos de atividades adequados às suas capacidades físicas e dependentes somente de eventual formação profissional e escolar, que a Ofendida, sendo jovem, e desejando outras carreiras que não a de balconista, está plenamente a tempo de as obter enriquecendo, assim, o seu curriculum. Alínea c) – resulta do relatório pericial de fls. 133, expressamente, que a assistente não claudica, não resultando de nenhum relatório médico existente nos autos, que a mesma de tal padeça, tendo em consideração as sequelas que lá vêm retratadas. Alínea d) – o contrário ficou demonstrado em sede de audiência de julgamento, tendo sido a própria assistente a referir que o seu joelho se colocado no chão fica dormente, assim como que os cremes que utiliza nas suas cicatrizes visam melhorar a sua aparência, não se relacionado com dores, e não resulta de qualquer perícia que as cicatrizes estejam, atualmente, a provocar qualquer tipo de dor. Por outro lado, não resulta dos autos qualquer medicação que a assistente tenha obrigatoriamente que tomar, senão apenas uma medicação prescrita a fls. 238 verso, que pela data foi receitada após a alta da assistente na sua última operação, que referem expressamente “SOS se dor”, desde logo se entende que se trata de uma medicação para dores durante a recuperação, e não, necessariamente, algo que a assistente tenha que tomar diariamente e de forma indispensável. Alíneas e), g) e h) – não foi comprovado nos autos que tipo de ofertas de emprego possam ter surgido à assistente e que a mesma as não pode aceitar em virtude das suas dificuldades em ficar muito tempo em pé. Alínea f) – não foi junta qualquer prova documental que atestasse a veracidade deste facto.» û Conhecendo.(i) Dos vícios prevenidos no n.º 2 do artigo 410.º do Código de Processo Penal Restringida a cognição deste Tribunal da Relação à matéria de direito, importa desde já referir que do exame da sentença recorrida – do respetivo texto, por si só ou conjugado com as regras da experiência comum e sem recurso a quaisquer elementos externos ou exteriores ao mesmo – não se deteta a existência de qualquer um dos vícios referidos no artigo 410.º, nº 2, do Código de Processo Penal. Efetivamente, não ocorre qualquer falha na avaliação da prova feita pelo Tribunal “a quo”, sendo o texto da decisão em crise revelador de coerência e de respeito pelas regras da experiência comum e da prova produzida. E do texto da decisão recorrida decorre, ainda, que os factos nele considerados como provados constituem suporte bastante para a decisão a que se chegou e que nele não se deteta incompatibilidade entre os factos provados e os não provados ou entre a fundamentação e a decisão. Também não se verifica a inobservância de requisito cominado sob pena de nulidade que não deva considerar-se sanada – artigo 410.º, nº 3, do Código de Processo Penal. E porque assim é, considera-se definitivamente fixada a decisão proferida pela 1ª Instância sobre a matéria de facto. (ii) Da responsabilização do proprietário de veículo com motor que não tem seguro pelos danos decorrentes da sua utilização Temos como adquirido que a instituição da obrigatoriedade do seguro de responsabilidade civil automóvel assenta na necessidade de, perante a consciencialização da incompleta ou deficiente capacidade do responsável pelo ressarcimento, socializar o risco da ocorrência de danos graves que é associado ao desempenho de atividades potencialmente perigosas ou portadoras de risco para terceiros. O contrato seguro de responsabilidade civil automóvel garante ao segurado o pagamento da indemnização devida em função do sinistro ocorrido e, simultaneamente, acautela o respetivo património, assumindo a feição de contrato a favor do terceiro lesado. Interessa-nos o prescrito no Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, que aprova o regime do sistema do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel e transpõe parcialmente para a ordem jurídica interna a Diretiva n.º 2005/14/CE, do Parlamento Europeu e do Conselho, de 11 de maio, que altera as Diretivas n.ºs 72/166/CEE, 84/5/CEE, 88/357/CEE e 90/232/CEE, do Conselho, e a Diretiva n.º 2000/26/CE, relativas ao seguro de responsabilidade civil resultante da circulação de veículos automóveis. Diploma este que foi emendado pela Declaração de Retificação n.º 96/2007, de 19 de outubro de 2007, e alterado pelo Decreto-Lei n.º 153/2008, de 6 de agosto. «Esta nova regulamentação (…) representa uma evolução da dogmática do seguro de responsabilidade civil e (…) é demonstrativa que o objetivo primeiro é a “proteção das vítimas dos acidentes causados por veículos” (…). Assim se dá coerência ao objetivo do seguro de responsabilidade civil que é garantir o ressarcimento dos danos sofridos pelas vítimas, e impedir que sejam confrontadas com situações de insolvabilidade do lesante ficando desprotegidas e sem possibilidade de verem reconstruída a sua situação anterior ao evento. (…) Fica, em consequência, indiscutível que o legislador quis precipuamente defender/proteger os interesses e os direitos dos lesados em acidentes de viação, sendo estes caracterizados como eventos consequentes da “má” condução automóvel ou dos riscos próprios da circulação de veículos, quer nas vias públicas quer nas abertas à livre circulação, independentemente da respetiva afetação ou domínio. O conceito de “acidente de viação” tem de ser bosquejado e perspetivado a partir da vítima, ou seja da pessoa que sofre danos (patrimoniais ou morais) com nexo causal entre esses e o evento. Todo o percurso até ao evento lesivo – e ressalvando situações de concorrência de nexos de imputação subjetiva, que apenas se irão refletir no percentuar do “quantum” indemnizatório, ou na medida da pena, se o facto também constituir crime – irreleva para a vítima “apanhada” de modo inesperado por um veículo em circulação.»[[3]] O que vem de se dizer, e também foi dito na sentença recorrida, não permite concluir, como aí se fez, que o incumprimento da obrigação legal de segurar acarreta, sem mais, a responsabilidade do proprietário do veículo causador de danos. Senão vejamos. A responsabilidade civil extracontratual do proprietário do veículo pode emergir de uma atuação culposa ou de regras que impliquem responsabilidade objetiva ou pelo risco – artigos 483.º e 503.º, n.º 1, ambos do Código Civil. Não havendo motivo para assacar ao proprietário de veículo automóvel a responsabilidade subjetiva ou culposa pelo acidente causador de danos a terceiros, a simples circunstância de alguém ser proprietário de um veículo automóvel não o coloca na posição inarredável de responsável pelos danos decorrentes da sua circulação. Tal responsabilidade depende da verificação de situação que evidencie a direção efetiva do veículo, nos termos do n.º 1 do artigo 503.º do Código Civil, ainda que corra através de comissário a condução do veículo causador de danos.[[4]] E quando o veículo seja posto a circular sem o conhecimento ou autorização do proprietário, este não tem – ou deixou de ter – a sua direção efetiva, não sendo, por isso, responsável pelas consequências de acidente que seja provocado, nem a título de culpa nem de risco. Existindo contrato de seguro obrigatório, em tais circunstâncias, a responsabilidade pelos danos causados a terceiros continua a ser suportada pela Seguradora com quem tenha sido celebrado contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil – a obrigação de reparar danos decorre diretamente da lei [artigo 15.º, n.º 3, do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto] e não por via da transferência da responsabilidade primária que se tenha constituído na esfera do tomador do seguro ou do proprietário do veículo. Concluiu-se – e bem – na sentença recorrida não ser possível imputar ao ora Recorrente (...) qualquer atuação culposa, nem responsabilizá-lo pelo risco inerente à circulação do veículo causador dos prejuízos também em causa neste processo. Aqui chegados, importa deixar clarificado que não obstante este veículo – quadriciclo de passageiros, de marca Yahama, modelo (…), com o número de quadro (…) – se destinar exclusivamente a ser utilizado pelos trabalhadores/residentes na Herdade e no interior desta, sobre o seu proprietário impendia a obrigação de o segurar. Contra esta asserção não concorre a circunstância de o veículo, na ocasião do acidente, estar a ser usado sem o consentimento do seu proprietário. Por ser o que decorre do disposto nos artigos 4.º e 6.º, n.º 1 do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto. E por ser o que concretiza, como já se referiu, a proteção das vítimas de acidentes de viação, assegurando, da forma mais abrangente possível, o ressarcimento dos danos por elas suportados. Porque a proteção das vítimas de acidentes de viação é o propósito fundamental do legislador, entendemos que a obrigatoriedade de seguro de responsabilidade civil automóvel existe em função da propriedade ou detenção de veículo cuja circulação é suscetível de provocar danos a terceiros, independentemente da utilização destinada ao mesmo. E este é, também, o sentido regular da jurisprudência – cfr. entre muitos outros, os acórdãos do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de maio de 2014, proferido no processo n.º 1032/08.6TBMTA.L1.S1, de 7 de fevereiro de 2017 e de 8 de novembro de 2018, proferidos no processo n.º 770/12.3TBSLX.L1.S1, e de 6 de junho de 2019, proferido no processo n.º 519/14.6TBEVR.E1.S1, todos acessíveis em www.dgsi.pt Acresce que só semelhante obrigatoriedade de celebração de seguro de responsabilidade civil automóvel justifica a intervenção do Fundo de Garantia Automóvel nestes autos. O que ocorre ao abrigo do disposto no n.º 1 do artigo 45.º do Decreto-Lei n.º 291/2007, de 21 de agosto – incumprimento da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel. Ou seja, o Fundo de Garantia Automóvel substitui as seguradoras quando o obrigado a segurar não beneficia de seguro. Ora, aqui chegados, podemos concluir, sem esforço interpretativo do que se dispõe no n.º 1 do artigo 47.º e na alínea b) do n.º 1 do artigo 48.º do Decreto-lei n.º 291/2007, de 21 de agosto, que compete ao Fundo de Garantia Automóvel assegurar a reparação dos prejuízos causados por responsável incumpridor da obrigação de seguro de responsabilidade civil automóvel, satisfazendo as indemnizações decorrentes de acidente rodoviário ocorrido em Portugal. E quando, em tais circunstâncias, o Fundo de Garantia Automóvel tenha procedido ao pagamento da indemnização a terceiro lesado, a posição em que fica, em conformidade com o disposto no artigo 593.º do Código Civil, tem os precisos limites dos direitos que foram satisfeitos, de modo que o pedido de reembolso apenas pode ser dirigido contra quem tenha a qualidade de responsável civil pelos danos ao abrigo da multiplicidade de regras da responsabilidade civil extracontratual. A jurisprudência revela-se dissonante quanto à responsabilidade civil do proprietário de veículo causador de acidente e de prejuízos a terceiros que não tem seguro e foi utilizado sem o consentimento e contra a vontade do seu proprietário. Mas este não é caminho a percorrer, porque a questão não nos foi colocada. Para o que nos importa, concluímos que do incumprimento da obrigação de celebrar seguro de responsabilidade civil automóvel não decorre, sem mais, para o proprietário do veículo, responsabilidade pessoal pelos danos decorrentes da sua circulação. Pelo que a decisão recorrida não se pode manter. E o recurso procede. III. DECISÃO Em face do exposto e concluindo, decide-se conceder provimento ao recurso e, em consequência, não manter a condenação de (...), absolvendo-o de pagamento das indemnizações formuladas pela Assistente (...) e pela Unidade Local de Saúde do Baixo Alentejo, E.P.E. Sem tributação. û Évora, 2021 abril 27(certificando-se que o acórdão foi elaborado pela relatora e revisto, integralmente, pelos seus signatários) ______________________________________________ (Ana Luísa Teixeira Neves Bacelar Cruz) ______________________________________________ (Renato Amorim Damas Barroso) __________________________________________________ [1] ] Publicado no Diário da República de 28 de dezembro de 1995, na 1ª Série A. [2] ] Neste sentido, que constitui jurisprudência dominante, podem consultar-se, entre outros, o Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça, de 12 de setembro de 2007, proferido no processo n.º 07P2583, acessível em www.dgsi.pt [que se indica pela exposição da evolução legislativa, doutrinária e jurisprudencial nesta matéria]. [3] ] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 12 de junho de 2017, proferido no processo n.º 8/07.5TBSTB.S1 e acessível em www.dgsi.pt [4] ] Acórdão do Pleno das Secções Cíveis do Supremo Tribunal de Justiça, de 30 de abril de 1996, publicado no Diário da República I Série, de 24 de junho de 1996. |