Acórdão do Tribunal da Relação de
Évora
Processo:
37/19.6T8CCH.E2
Relator: TOMÉ DE CARVALHO
Descritores: ACIDENTE DE VIAÇÃO
ALCOOLÉMIA
DIREITO DE REGRESSO DA SEGURADORA
Data do Acordão: 06/28/2023
Votação: UNANIMIDADE
Texto Integral: S
Sumário: 1 – Com a revisão do regime do seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, realizada pelo Decreto-Lei n.º 291/07, de 21/08, caducou a jurisprudência uniformizadora do Acórdão Uniformizador da Jurisprudência n.º 6/02.
2 – Na actualidade, o direito de regresso da seguradora contra o condutor que conduza sob o efeito do álcool, passou a dispensar a prova da existência do nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o acidente e passou a dispensar-se essa relação de causalidade à seguradora, bastando que se apure que na ocasião do embate o condutor apresentava taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida e que foi o responsável pelo acidente.
3 – Do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do DL n.º 291/2007, de 21/08, decorre uma presunção iuris tantum do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia e o acto de condução causador do acidente, incumbindo ao condutor segurado, quando demandado em acção de regresso, o ónus da sua ilisão.
(Sumário do Relator)
Decisão Texto Integral: Processo n.º 37/19.6T8CCH.E2
Tribunal Judicial da Comarca de Santarém – Juízo de Competência Genérica de Coruche – J1
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Acordam na secção cível do Tribunal da Relação de Évora:
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I – Relatório:
Na presente acção de condenação proposta por “Crédito Agrícola (…) – Companhia de Seguros de (…), S.A.” contra (…), a sociedade Autora veio interpor recurso da sentença proferida.
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A Autora pedia a condenação do Réu no pagamento da quantia global de € 19.161,27 (dezanove mil e cento e sessenta e um euros e vinte e sete cêntimos).
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A presente acção é fundamentada num acidente de viação ocorrido em 25/06/2016, na Estrada Nacional 114, em que foi interveniente o veículo de matrícula …-GP-…, que se encontrada registado a favor do Réu (…) e que foi indicado como o alegado condutor do veículo.
O referido condutor foi submetido ao teste de álcool no sangue e acusou uma taxa de alcoolemia de 0,93 g/l e a Autora pretende exercer o direito de regresso estribada na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do DL n.º 291/2007, de 11/08.
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Regularmente citado, o Réu contestou, alegando, em síntese, que não era o condutor do veículo e apresenta outra versão do acidente.
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Foi dispensada a realização de audiência prévia, procedeu-se à identificação do objecto do litígio e à enunciação dos temas de prova por despacho.
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Realizado o julgamento, o Tribunal da Relação de Évora decidiu anular a decisão proferida na Primeira Instância, por não constarem do processo todos os elementos que permitiam a integral avaliação da decisão proferida sobre a matéria de facto.
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Proferida de novo sentença, o Tribunal «a quo» decidiu julgar a acção totalmente improcedente, por não provada e, em consequência, absolveu o Réu (…) do pedido.
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A recorrente não se conformou com a referida decisão e o articulado de recurso apresentou as seguintes conclusões:
«1 – Vem o presente recurso impugnar a decisão proferida sobre a matéria de facto que, com base na mesma, a ação foi julgada improcedente, por não provada.
2 – Pelas razões e fundamentos que adiante melhor se explicitarão, e sem prejuízo da modificação da decisão sobre a matéria de facto que, no caso em apreço, se impõe, considera a recorrente que o Tribunal a quo fez errada aplicação e interpretação da lei e não atendeu sequer às normas legais aplicáveis à situação sub judice, motivo por que a douta sentença deve ser revogada.
3 – O presente recurso versará a impugnação da matéria de facto dada como provada, uma vez que se conclui que a mesma não tem suporte na prova constante dos autos, bem como da produzida em audiência de julgamento, pelo que urge ser alterada a decisão da matéria de facto, nos moldes infra expostos.
4 – São os seguintes os pontos da matéria de facto que foram incorretamente julgados:
No que respeita aos factos não provados:
b) O veículo de matrícula …-GP-…, aquando do referido em 2, 4 e 5 era conduzido pelo réu.
c) O condutor do veiculo de matrícula …-GP-… acusou uma TAS de 0,93 g/l, o que diminuiu a sua capacidade de concentração e visão, o que o levou a despistar-se e a provocar o embate.
5 – Ora, entende a ora recorrente que devem ser alteradas as respostas dadas aos factos acima indicados de não provado para provado.
Vejamos:
6 – Vejamos as declarações de (…), militar da GNR a exercer funções no Posto da GNR de Coruche, desde o ano de 2015. Aos costumes disse apenas conhecer o réu do exercício de funções e do acidente em causa nos autos, nada o impedindo de dizer a verdade. O seu depoimento ficou gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o depoimento consta do ficheiro áudio n.º 20221027101252, do dia 27/10/2022.
7 – Pensamos que em face do depoimento do GNR, da participação e dos documentos hospitalares, dúvidas não devem subsistir que aquando do embate era o réu o condutor do veículo de matrícula …-GP-….
8 – De facto, a testemunha (…), militar da GNR, sem qualquer interesse no desfecho da ação e que se deslocou ao local, referiu expressamente que tanto o aqui Réu como todos os passageiros do veículo de matrícula …-GP-… lhe tenham indicado o réu como sendo o condutor do veículo.
9 – Certo que referiu que estavam alterados com o facto de terem tido um primeiro acidente e aquando da fuga, tiveram outro acidente… mas apesar desse estado alterado, todos convergiam na concreta identificação do condutor, o aqui Réu.
10 – A própria testemunha refere expressamente que todos os intervenientes que lá estavam, disseram-me que era o senhor (…), e que confirmou isso mesmo com o aqui Réu que lhe disse que era o condutor.
11 – Mas esta testemunha vai mais longe no que a este aspeto diz: Recordo-me que na altura a grande preocupação do senhor é que estava-se a sentir culpado pelo estado dos amigos, estava preocupado com o estado dos amigos, que tinha feito asneira, que tinha feito asneira, ele estava assim um bocado alterado, estava enervado com isso.
12 – Inclusivamente, utilizou uma expressão usada pelo Réu, na altura: “eu provoquei o acidente e maltratei os meus colegas”. Disse não ter dúvidas nenhumas quando à identificação do condutor e ocupantes.
13 – Ou seja, foi absolutamente claro que aquando do sinistro, o condutor era o Réu, proprietário do veículo seguro.
14 – Aquando da assistência hospitalar, estes dados são confirmados – o aqui Réu (…) surge igualmente como sendo o condutor, tendo sido submetido ao teste do álcool nessa qualidade e em qualquer circunstância não alterou o seu depoimento, mormente, a recusa em fazer o teste do álcool porque era passageiro e não condutor.
15 – Certo que as testemunhas (…) e (…), amigos do réu e ocupantes da viatura no dia do embate foram unânimes em referir que era a testemunha (…) quem conduzia a viatura quando se deu o embate, tendo os mesmos sido coerentes quando referiram as posições que cada um e o réu ocupava na viatura. Mas estes depoimentos devem ser desconsiderados porque, obviamente, são interessados em vir agora “defender” o amigo, escusando-o à responsabilidade. Aliás, estes depoimentos não encontram eco em qualquer outro documento a não ser o pedido de aditamento, uns dias depois, exatamente para “salvar” o Réu de consequências legais, dado o teor de alcoolemia com que seguia.
16 – Este depoimento é, igualmente, conformado pelo agente da GNR, (…), que, da mesma forma, participou o acidente e identificou os condutores – O seu depoimento ficou gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o depoimento consta do ficheiro áudio n.º 20221103103222, do dia 03/11/2022.
17 – O médico que assistiu o aqui Réu – (…) – o seu depoimento ficou gravado através do sistema integrado de gravação digital, disponível na aplicação informática em uso neste Tribunal, consignando-se que o depoimento consta do ficheiro áudio n.º 20221103150415, do dia 03/11/2022.
18 – A testemunha referiu que a informação que recebeu da enfermeira que fez a triagem foi no sentido de ser o aqui réu o condutor do veículo e que a tomou por boa. Explicou que o Réu apresentava uma escala de consciência de Glasgow de 13, em 15 e que o seu estado era de consciente embora não orientado.
19 – Da conjugação destes elementos de prova, deve este Tribunal de recurso concluir, com a certeza necessária, que era o réu o condutor do veículo segurado pela autora – quer porque ele próprio o declarou no dia do acidente; quer os ocupantes o identificaram, na altura como condutor; quer porque lhe foi realizado teste de álcool na qualidade de condutor; quer porque (…) o mesmo consta dos documentos como condutor.
20 – Os únicos depoimentos que poem em causa estes factos são depoimentos testemunhais e que têm a ver com a amizade que os ocupantes tinham e têm com o Réu, sabendo das consequências que a verdade traria para o Réu. De facto, estes depoimentos são, por si só, insuficientes para abalar a demais e indicada prova.
21 – A testemunha (…) confirmou que se deslocou ao local, falou com os intervenientes, com os passageiros do veículo seguro e com o Réu que no local se identificou como condutor, e por via disso esta testemunha deslocou-se ao hospital de Santarém para a recolha de sangue para análise toxicológica de álcool / estupefacientes.
22 – Ou seja, esta testemunha em sede de audiência de julgamento não teve dúvidas em confirmar como sendo o condutor do veículo de matrícula …-GP-… o aqui Réu, (…), não obstante os amigos do aqui Réu e ocupantes do veículo seguro, em julgamento deporem em sentido contrário.
23 – Pela junção aos autos dos documentos enviados pelo Hospital Distrital de Santarém, EPE, nomeadamente os Relatórios Completos de Episódio de Urgência relativos a todos os assistidos, em virtude do acidente ocorrido em 25/06/2016, na Estrada Nacional 114, verifica-se que neles está claramente identificado como sendo condutor o aqui Réu (…).
24 – Mais nos Relatórios Completos de Episódio de Urgência relativos a todos os assistidos verifica-se que o (…) era ocupante e ia atrás no carro juntamente com a (…). E que seguia como pendura o (…).
25 – Perante o Auto de ocorrência – Participação de Acidente de Viação – elaborado pela Guarda Nacional Republicana do Posto Territorial de Coruche, pelo depoimento em julgamento da testemunha (…), Guarda que se deslocou ao local e dos documentos hospitalares agora juntos aos autos pelo Hospital Distrital de Santarém, EPE, nomeadamente os Relatórios Completos de Episódio de Urgência relativos a todos os assistidos, em virtude do acidente ocorrido em 25/06/2016, na Estrada Nacional 114, a aqui Autora entende não haver quaisquer dúvidas que o condutor do veículo de matrícula …-GP-…, aquando do acidente em discussão (…) nos autos era efetivamente o aqui Réu (…).
26 – Ora, cremos que a conjugação destes factos e da análise crítica da prova, impõe a revogação da decisão de facto atinente, devendo ser dada como assente a seguinte matéria de facto:
a) O veículo de matrícula …-GP-…, aquando do referido em 2, 4 e 5 era conduzido pelo réu.
c) O condutor do veículo de matrícula …-GP-… acusou uma TAS de 0,93 g/l, o que diminuiu a sua capacidade de concentração e visão, o que o levou a despistar-se e a provocar o embate.
27 – O acidente em causa nos presentes autos deveu-se por culpa única e exclusiva da Ré, que ao conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, entrou em despiste, invadiu a hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido contrário, aí se dando a colisão.
28 – A Autora tem direito de regresso sobre o Réu, relativamente a todas as quantias que teve de despender com o sinistro em causa nos presentes autos.
29 – Assim sendo, a Ré deve à Autora a quantia de € 19.161,27 a título de indemnizações pagas por virtude dos factos supra descritos.
30 – No artigo 27.º, n.º 1, alínea c), do Dec.-Lei n.º 291/2007, de 21.8, preceitua-se o seguinte:
«Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso:
(...)
c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos».
A lei presume, assim, juris et de jure que um condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l está sob a influência do álcool.
31 – As condições gerais do contrato de seguro aqui em apreço estipula o seguinte:
Cláusula 31.ª – Direito de Regresso do Segurador
Satisfeita a indemnização, o Segurador apenas tem direito de regresso:
c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma (…) taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos;
32 – Contratualmente, também assiste o direito de regresso da autora sobre as quantias pagas e supra referidas.
33 – Deste modo, não só pelo que vimos de referir, como também face a todo o exposto, ao decidir nos termos da douta Sentença em recurso, o Tribunal a quo violou o disposto nos artigos 342.º, n.º 1, 373.º a 376.º e 483.º e seguintes do Código Civil, sendo manifesto o erro na apreciação da prova.
Termos em que, deve a decisão recorrida ser revogada na medida acima assinalada, assim se fazendo inteira Justiça!!
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Houve lugar a resposta, tendo o apelado pugnado pela improcedência do recurso.
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Admitido o recurso, foram observados os vistos legais.
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II – Objecto do recurso:
É entendimento uniforme que é pelas conclusões das alegações de recurso que se define o seu objecto e se delimita o âmbito de intervenção do Tribunal ad quem (artigos 635.º, n.º 4 e 639.º, n.º 1, do Código de Processo Civil), sem prejuízo das questões cujo conhecimento oficioso se imponha (artigo 608.º, n.º 2, ex vi do artigo 663.º, n.º 2, do mesmo diploma).
Analisadas as alegações de recurso, o thema decidendum está circunscrito à apreciação de:
a) erro na apreciação da matéria de facto.
b) erro de direito, na dimensão da improcedência do direito de regresso.
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III – Da factualidade:
3.1 – Matéria de facto provada:
Com relevo para a justa decisão da causa resultaram provados os seguintes factos:
1. O veículo ligeiro de passageiros, marca Mercedes-Benz, Modelo Classe (…), com a matrícula …-GP-…, é propriedade de (…), que por contrato de seguro titulado pela apólice n.º (…) tinha transferida para a Autora a sua responsabilidade civil por danos causados a terceiros emergentes da sua circulação.
2. No dia 25 de Junho de 2016, cerca das 19:30 horas, o veículo do Réu circulava na EN 114, no sentido Coruche-Almeirim.
3. No mesmo dia e hora (…) conduzia o veículo …-…-HH na mesma EN, no sentido Almeirim-Coruche, seguindo na viatura como passageira (…).
4. O embate entre os veículos ocorreu ao Km 105,700, numa recta, com extensão superior a 200 metros, com duas hemi-faixas de rodagem, com largura total da via de 7 metros.
5. Ao desfazer uma curva à esquerda o condutor do veículo de matrícula …-GP-… perdeu o controlo do veículo, invadiu a hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito Almeirim-Coruche, capotou e foi embater no veículo de matrícula …-…-HH, que também capotou e se foi imobilizar na berma direita, atento o seu sentido de marcha.
6. Como consequência directa e necessária do referido embate, o veículo …-…-HH, sofreu danos materiais, designadamente nas partes frontal e traseira e lateral esquerda, que demandaram perda total.
7. Devido ao referido em 6 a Autora acordou com (…), proprietário do veículo HH, no pagamento da importância de 950,00 euros, a título de danos na viatura.
8. Como consequência do embate, resultaram lesões corporais várias para Lídia Vilela, que demandaram assistência hospitalar.
9. Tendo a (…) sido transportada, de urgência, de ambulância para o Hospital Distrital de Santarém EPE, onde foi assistida e onde fez vários exames radiográficos ao punho e antebraço esquerdos, tendo tido alta nesse dia.
10. Como sentia muitas dores, a (…), deslocou-se, no dia 27 de Junho de 2016, ao Espírito Santo – Évora – EPE, sito no Largo Sra. da Pobreza, Évora, onde foi assistida e onde fez vários exames radiográficos ao punho e antebraço esquerdos, onde se apurou ter existido fratura.
11. Tendo sido sujeita a uma intervenção cirúrgica, nessa unidade hospitalar, que consiste numa redução cruenta com aplicação de material de osteossíntese, com placa e parafusos.
12. (…) deslocou-se a várias consultas nessa unidade hospitalar.
13. Posteriormente, e por indicação médica, (…) foi submetida a tratamentos de fisioterapia, na Clínica Humana, tendo realizado 21 sessões, que realizou, e que a aqui autora se responsabilizou.
14. No dia 6 de Abril de 2017, a (…), obteve dos serviços clínicos da Autora[1], alta clínica.
15. Considerado o período de incapacidade, a IPP, o quantum doloris, o dano estético apurados, a aqui Autora chegou a acordo com a (…), no montante global de 17.000,00 euros de indemnização.
16. A Autora pagou ainda € 1.753,17 e € 153,93 aos hospitais, € 193,00 de despesas de fisioterapia e € 61,17 de despesas de farmácia.
17. O veículo de matrícula …-GP-…, aquando do referido em 2, 4 e 5 era conduzido pelo Réu[2].
18. O condutor do veículo de matrícula …-GP-… acusou uma TAS de 0,93 g/l, o que diminuiu a sua capacidade de concentração e visão, o que o levou a despistar-se e a provocar o embate[3].
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3.2 – Matéria de facto não provada:
Com interesse para a decisão da causa, não se provou que:
a) Eliminado[4].
b) O condutor do veículo de matrícula …-GP-… imprimia ao mesmo velocidade não inferior a 120 Km/h.
c) Eliminado[5].
d) O veículo de matrícula …-GP-…, aquando do referido em 2, 4 e 5 era conduzido por (…).
e) Ao descrever a curva à esquerda o condutor do veículo de matrícula …-GP-… embateu numa manilha que se encontrava desencaixada.
f) Na sequência do referido em e) o veículo de matrícula …-GP-… partiu o suporte da roda dianteira.
g) Foi o embate na manilha, acrescido do facto de existir areia no piso que fez com que o veículo de matrícula …-GP-… derrapasse, partisse a roda e entrasse em capotamento.
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IV – Fundamentação:
4.1 – Do erro de facto:
Só à Relação compete, em princípio, modificar a decisão sobre a matéria de facto, podendo alterar as respostas aos pontos da base instrutória, a partir da prova testemunhal extractada nos autos e dos demais elementos que sirvam de base à respectiva decisão, desde que dos mesmos constem todos os dados probatórios, necessários e suficientes, para o efeito, dentro do quadro normativo e através do exercício dos poderes conferidos pelo artigo 662.º do Código de Processo Civil.
Em face disso, a questão crucial é a de apurar se a decisão do Tribunal de primeira instância que deu como provados certos factos (e como não demonstrados outros) pode ser alterada nesta sede – ou, noutra formulação, é tarefa do Tribunal da Relação apurar se essa decisão fáctica está viciada em erro de avaliação ou foi produzida com algum meio de prova ilícito e, se assim for, actuar em conformidade com os poderes que lhe estão confiados.
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A discordância de facto assenta nas respostas aos pontos a) e c) dos factos não provados, propondo o recorrente que nas respostas em causa passe a constar que o veículo de matrícula …-GP-…, no momento do acidente era conduzido pelo Réu e que o condutor acusou uma TAS de 0,93 g/l e isso diminuiu a sua capacidade de concentração e visão, levando-o ao despiste e a provocar o embate.
A pretensão de alteração das respostas baseia-se, a título principal, nas declarações da testemunha (…), militar da GNR, que se deslocou ao local e tomou conta da ocorrência, no Auto de Participação de Acidente e nos documentos hospitalares juntos aos autos pelo Hospital Distrital de Santarém, EPE, mais especificadamente nos Relatórios Completos de Episódio de Urgência relativos a todos os assistidos.
Na realidade, a testemunha (…) referiu expressamente que tanto o Réu, como todos os passageiros do veículo de matrícula …-GP-…, lhe indicaram que o (…) era o condutor desta viatura. Ademais, na documentação hospitalar também é referenciado que o condutor era o Réu (…).
Em sentido contrário, apoiando o veredicto decisório do Tribunal, o recorrido faz apelo às prestações probatórias dos ocupantes do veículo para dar crédito à decisão de facto. Nesta interpretação, as testemunhas (…) e (…) afiançaram que, no momento do acidente, não era o Réu quem conduzia o veículo de matrícula …-GP-….
Esta tese encontra ainda apoio secundário no testemunho de (…), cujo veículo automóvel tinha sofrido danos provocados por um embate causado pelo Réu. Este, pouco tempo antes, após alegadamente ter tentado a fuga do local do sinistro, ainda assim iniciou conversações para chegar a um acordo de pagamento dos danos causados na actividade de condução. E, após esta conciliação, esta testemunha afirmou que o referido (…) entrou na viatura para o lugar do “pendura”, embora não tivesse conhecimento da forma como posteriormente se desenvolveu o segundo acidente.
Face a estas dissonâncias probatórias, após ter analisado todas as declarações emitidas a este propósito, na avaliação da situação a Meritíssima Juíza de Direito optou pela prevalência das regras do ónus da prova e decidiu que não tinha ficado demonstrado quem era o condutor do aludido automóvel.
A decisão da Primeira Instância deixou exarado que «face às discrepâncias verificadas, não foi possível ao Tribunal concluir, com a certeza necessária, que era o réu o condutor do veículo segurado pela autora, razão pela qual, e face às regras do ónus da prova, competindo à autora a prova sobre tal facto e não o logrando fazer, deu-se tal facto como não provado».
No que diz concerne ao facto não provado identificado na alínea c), a Meritíssima Juíza de Direito avança que «o mesmo teve de resultar como não provado face ao facto não provado em a), uma vez que o teste de alcoolemia apenas foi efectuado ao réu, e não tendo resultado como provado ser ele o condutor do veículo aquando do embate, o Tribunal teve de dar tal facto como não provado».
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O sistema judicial nacional combina o sistema da livre apreciação ou do íntimo convencimento com o sistema da prova positiva ou legal. Assim, a partir da prova pessoal obtida e da análise do teor dos documentos existentes nos autos ou doutra fonte probatória relevante, tomando em consideração a análise da motivação da respectiva decisão, importa aferir se os elementos de convicção probatória foram obtidos em conformidade com o princípio da convicção racional, consagrado pelo n.º 5 do artigo 607.º[6] do Código de Processo Civil.
A valoração da prova, nomeadamente a testemunhal, deve ser efectuada segundo um critério de probabilidade lógica, através da confirmação lógica da factualidade em apreciação a partir da análise e ponderação da prova disponibilizada[7].
Neste enquadramento jurídico-existencial, a credibilidade concreta de um meio individualizado de prova tem subjacente a aplicação de máximas de experiência comum que devem enformar a opção do julgador e cuja validade se objectiva e se afere em determinado contexto histórico e jurídico, à luz da sua compatibilidade lógica com o sentido comum e com critérios de normalidade social, os quais permitem (ou não) aceitar a certeza subjectiva da sua realidade[8].
Nesta dimensão, apartando-nos agora das situações de prova legal[9], no ordenamento jus-processual civil vigora o princípio da livre apreciação da prova, que admite o uso, pelas instâncias – in casu, pela primeira instância – de regras de experiência comum, as quais configuram um critério de julgamento, como meio de descoberta da verdade apenas subordinado à razão e à lógica e condicionado à sua motivação e objectivação externa.
Concatenando o disposto no artigo 396.º[10] do Código Civil e o princípio geral enunciado no n.º 5 do artigo 607.º do Código de Processo Civil, o depoimento testemunhal é um meio de prova sujeito à livre apreciação do julgador, o qual deverá avaliá-lo em conformidade com as impressões recolhidas da sua audição ou leitura e com a convicção que delas resultou no seu espírito, de acordo com as regras de experiência[11] [12].
Na sua lição, Manuel de Andrade destacou os perigos da prova testemunhal, elencando o perigo de infidelidade e de parcialidade que podem surgir associados a este meio probatório[13]. Também Alberto dos Reis assinala que «tudo se reconduz ao perigo de infidelidade: a fiabilidade resulta da sua extrema infidelidade. E a esta podem subjazer três causas distintas: – erro de percepção (a testemunha captou mal o facto); – defeito de retenção (a testemunha, por falta de memória, faz narração inexacta ou incompleta do que viu ou ouviu); – vício de parcialidade (a testemunha faz propositadamente depoimento falso ou reticente por paixão, interesse, suborno, etc.)»[14]. Este pensamento está igualmente presente em Francisco Ferreira de Almeida que refere o perigo de parcialidade da testemunha, «não só face a uma atávica ideia de servir mais os interesses da parte oferecente que os da descoberta da verdade material subjacente ao litígio, como também ao risco de “suborno directo e grosseiro e da consequente falsidade ou reticência do depoimento”. Daí que seja recomendável uma grande dose de prudência na sua apreciação e avaliação»[15]. Em função de tudo isto, Luís Filipe Sousa pugna pela valoração da prova segundo a probabilidade lógica, dizendo que «uma hipótese pode aceitar-se como verdadeira se não for refutada pelas provas disponíveis e estas a confirmarem, tornando-a mais provável que qualquer hipótese alternativa sobre os mesmos factos»[16].
Na sua obra de referência sobre a prova, de forma absolutamente sustentada, Michele Taruffo assevera que «a decisão final sobre os factos dotada do mais elevado de racionalidade é aquela que se baseia numa narração que seja, ao mesmo tempo, logicamente coerente, congruente com os factos que resultam provados e correspondente à previsão da norma legal que constitui a base da decisão in jure»[17].
Feito este alerta dogmático importa assim apurar se o fundamento cognoscitivo e se o grau de probabilidade expresso pelas regras e máximas de experiência usadas e se a escolha entre as diferentes hipóteses alternativas é logicamente coerente, congruente e suficiente para atingir o resultado expresso na decisão recorrida.
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Na esteira do que acima se sublinhou, a documentação hospitalar, o auto de notícia e as declarações do referido GNR apontavam claramente no sentido daquilo que estava alegado na petição inicial, sendo que, posteriormente, numa suposta inflexão do anteriormente comunicado à autoridade policial, aos bombeiros e aos serviços hospitalares, as testemunhas arroladas pela parte passiva tiveram uma prestação probatória negatória da causa de pedir apresentada pela agora recorrente.
Porém, para além do carácter rocambolesco de toda a história narrada, é certo que, quer no local do acidente, quer aquando da assistência hospitalar, o Réu é identificado e igualmente se apresenta como o condutor, disponibilizando-se a realizar o teste de pesquisa de álcool. Este exame foi realizado e o resultado do mesmo é revelador de um acto de condução sob o efeito do álcool. E isto numa aferição probatória marcada pelas regras da experiência e por critérios de normalidade social poderia ser suficiente para firmar uma conclusão em sentido contrário àquele que consta da decisão recorrida.
E, assim, ou existia um cenário de simulação ou de dissimulação probatória, que visava antes de mais evitar a condenação do condutor da prática de uma contra-ordenação de condução sob influência de álcool prevista e punida pelo artigo 81.º[18] do Código da Estrada e o subsequente exercício do direito de regresso por parte da sociedade Autora, com recurso a falsas declarações. Ou, alternativamente, teria ocorrido um cenário de nervosismo e de perturbação colectiva que levou a uma inicial errada percepção dos ocupantes do veículo sobre a pessoa do condutor e que, uma vez ultrapassada essa crise, as declarações posteriores retratavam de forma fidedigna o modo como se produziu o acidente em análise.
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Foi ouvida toda a prova e analisada a documentação presente nos autos.
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A testemunha (…), militar da GNR, manteve um registo probatório credível, coerente e desprendido, sendo que não tem qualquer interesse directo no resultado final da lide e a sua análise é objectiva.
Ao contrário, as testemunhas (…) e (…) mantiveram um registo proteccionista e sem qualquer explicação plausível para a mudança das declarações entre o que foi dito na noite no acidente e aquilo que foi transmitido em sede de julgamento. E a testemunha (…) pareceu influenciada pelo acordo mantido pelo Réu, quanto ao ressarcimento de danos que havia sofrido na mesma noite.
Da audição da testemunha (…) resulta que o militar da GNR indica que o Réu era a pessoa que assumia o lugar de condutor, alegando que tal lhe foi dito pelos Bombeiros, pelos ocupantes do veículo e pelo próprio Réu. Relativamente a este último é elucidativa a expressão: «eu provoquei o acidente e maltratei os meus colegas». E não existe algum motivo válido para discordar da veracidade deste testemunho.
Esta prestação probatória é confirmada pelo outro militar da GNR, (…), que também manteve um depoimento sereno, categórico e convincente.
Para além destes depoimentos, a documentação hospitalar junta aos autos pelo Hospital Distrital de Santarém, EPE, indica (nos Relatórios Completos de Episódio de Urgência) que o Réu (…) é apresentado como condutor do veículo, assinalando ainda que seguiam como ocupantes … (na posição de pendura), … e … (ambos no banco traseiro).
O médico que assistiu o aqui Réu (…) assumiu igualmente que a informação que recebeu da enfermeira que fez a triagem foi no sentido de ser o referido (…) o condutor do veículo e não existe qualquer indício que, ao nível do rastreio, haja ocorrido qualquer lapso na identificação do condutor ou que aqueles documentos de suporte tenham sido viciados.
E o mesmo se passa com as declarações dos bombeiros, uma vez que, não obstante o referido Réu (…) se encontrar fora do veículo no momento da prestação dos primeiros socorros e do transporte para o hospital, não havia qualquer razão razoável para que as informações que lhes foram prestadas no local do sinistro fossem consideradas como manipuladas.
Aliás, de outra forma não teria o mínimo sentido que o Réu fosse sujeito ao teste de controlo de álcool, quando o mesmo teria consciência que havia ingerido bebidas alcoólicas e se auto responsabilizou pela produção do acidente, inexistindo qualquer indicador que, ao fazê-lo, naquele momento, estivesse a incorrer em favorecimento pessoal.
A prova como demonstração efectiva (segundo a convicção do juiz) da realidade de um facto «não é certeza lógica mas tão-só um alto grau de probabilidade suficiente para as necessidades práticas da vida (certeza histórico-empírica)»[19].
A apreciação da prova deve ocorrer sob o signo da probabilidade lógica – de evidence and inference –, ou seja, segundo o grau de confirmação lógica que os enunciados de facto obtêm a partir das provas disponíveis.
Da interacção entre estes elementos de prova, resulta para nós que, sem qualquer hesitação ou dúvida, o Réu (…) era o condutor do veículo segurado pela Autora – quer porque ele próprio o declarou no dia do acidente, quer os ocupantes o identificaram como sendo o piloto da viatura. E a mudança de versão surge como uma mera tentativa, concertada com as outras testemunhas que seguiam na viatura, para o isentar da responsabilidade pela ocorrência do acidente.
Criou-se assim uma certeza inabalável de que os depoimentos que punham em causa os factos presentes na petição inicial correspondiam a prestações testemunhais falsas e objectivamente dirigidas a obter um determinado resultado. Em suma, a alteração daquilo que disseram numa primeira fase resulta de uma ulterior reflexão sobre os riscos e as consequências que poderiam advir para o condutor da viatura.
A conjugação entre a Participação de Acidente de Viação, os Relatórios Completos de Episódio de Urgência e o relato efectuado pela testemunha (…), embora todos sujeitos ao princípio da livre apreciação da prova, enquanto fontes probatórias principais, transportam para os autos a racionalidade devida e são logicamente coerentes com critérios de experiência e de normalidade social.
Impõe-se, por isso, decidir que, ao invés de se validar o recurso ao princípio da dúvida do ónus probatório, a versão inscrita nos pontos a) e c) dos factos não provados encerra a realidade processualmente admissível e, assim, aqueles factos passam a integrar o elenco da matéria de facto provada. A alteração será feita directamente no texto dos factos provados, a negrito, a fim de melhor ser percepcionada a alteração em causa.
E, nestes termos, com a alteração acima determinada, mostra-se assim perfeitamente consolidada a matéria de facto apurada e é com base na mesma que será realizada a operação de subsunção ao direito.
*
4.2 – Do erro de direito:
Menezes Cordeiro entende que o direito de regresso pode ser encarado como uma sanção civil de natureza reparadora, que tem como escopo primordial tornar indemne um contratante ou lesado, caso este vise obter o reembolso total ou parcial de uma obrigação que satisfez ou como meio de defesa dos condevedores numa relação jurídica de co-solidariedade passiva[20].
Sobre a natureza do direito de regresso, pronunciam-se, entre muitos outros, Vaz Serra[21], Antunes Varela[22], Almeida Costa[23], Menezes Leitão[24], Jorge Ribeiro de Faria[25], Brandão Proença[26], Filipe Albuquerque Matos[27] e Ana Afonso[28].
A direito de regresso – conquanto a relação entre seguradora e lesante em acidente de viação não se reconduza a uma perfeita relação de solidariedade passiva – refere-se expressamente o legislador no regime do seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel, para a hipótese de alcoolemia do condutor, na esteira do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do DL n.º 291/2007, de 21/08[29].
Albuquerque de Matos contesta a qualificação do direito como de regresso, uma vez que, por virtude da celebração do contrato do contrato de seguro obrigatório, o tomador de seguro transferiu a sua responsabilidade para a seguradora, não podendo por isso afirmar-se que seguradora e tomador de seguro estão adstritos à realização da mesma prestação[30].
Ainda que no plano teórico pareça mais ajustado o enquadramento da situação na categoria da sub-rogação, a realidade jurídica em discussão assume, assim, ex vi legis, a configuração denominativa de direito de regresso.
Neste particular, a alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do DL n.º 291/2007, de 21/8, prescreve que: «1 – Satisfeita a indemnização, a empresa de seguros apenas tem direito de regresso:
(…)
c) Contra o condutor, quando este tenha dado causa ao acidente e conduzir com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida, ou acusar consumo de estupefacientes ou outras drogas ou produtos tóxicos».
Este é o direito que o companhia de seguros pretende fazer valer nos autos e cuja procedência supõe a verificação cumulativa dos seguintes pressupostos:
- que o condutor haja dado causa ao acidente;
- que conduza com uma taxa de alcoolemia superior à legalmente admitida.
De acordo com o disposto no n.º 2 do artigo 81.º do Código da Estrada, considera-se sob a influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico.
A lei presume, assim, iuris et de iure, que um condutor que apresente uma TAS igual ou superior a 0,5 g/l está sob a influência do álcool.
É certo que a condução sob influência do álcool, por si só, não implica necessariamente a eclosão de acidentes e a prova da sua contribuição para o cometimento das infracções que os geram não é um facto de percepção directa ou evidente.
Com a revisão do regime do seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, realizada pelo DL n.º 291/07, de 21/08, caducou a jurisprudência uniformizadora do AcUJ n.º 6/02[31] que fazia depender o direito de regresso da seguradora contra o condutor que conduzisse sob o efeito do álcool, da prova da existência de um nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o acidente e passou a dispensar-se essa relação de causalidade, bastando que se apure que na ocasião do embate o condutor apresentava taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida, e que foi o responsável pelo acidente[32] [33].
Nesta ordem de ideias, do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do DL n.º 291/2007, de 21/08, decorre uma presunção iuris tantum do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia ou a evidência de consumo de substância psicotrópica e o acto de condução causador do acidente, incumbindo ao condutor segurado, quando demandado em acção de regresso, o ónus da sua ilisão, ainda que não se mostre exigível que a influência da alcoolemia ou do consumo de substância psicotrópicas seja a causa exclusiva da conduta causadora do acidente, devendo essa influência ser ponderada, para tais efeitos, à luz dos princípios da proporcionalidade e da adequação[34].
Todavia, ainda assim, para se verificar esse direito de regresso é necessário que se prove que esse consumo teve uma influência negativa na capacidade para o exercício da condução, a fim de excluir o reembolso quanto a situações em que a causa fundamental ou exclusiva da conduta causadora do acidente é imputável a outrem – seja ao próprio lesado, seja a terceiro – a caso de força maior ou fortuito ou a qualquer comportamento que exclua a culpa do tomador de seguro.
E lida a matéria de facto não subsistem dúvidas sobre essa responsabilidade na produção do acidente, como se constata a partir da leitura do facto provado n.º 6, que afirma que, ao desfazer uma curva à esquerda o condutor do veículo de matrícula …-GP-… perdeu o controlo do veículo, invadiu a hemi-faixa de rodagem destinada ao sentido de trânsito Almeirim-Coruche, capotou e foi embater no veículo de matrícula …-…-HH, que também capotou e se foi imobilizar na berma direita, atento o seu sentido de marcha. Adicionalmente, está precipitado no ponto 18 dos factos provados que, relativamente ao Réu, ao acusar uma TAS de 0,93 g/l, ficou diminuída a sua capacidade de concentração e visão, o que o levou a despistar-se e a provocar o embate.
Neste espectro lógico-jurídico, resulta assim a obrigação de proceder ao pagamento das verbas inscritas nos pontos 15[35] e 16[36] dos factos provados, no total de € 19.161,27 (dezanove mil, cento e sessenta e um euros e vinte e sete cêntimos), a título de direito de regresso, acrescida de juros legais vencidos e dos juros legais vincendos contados desde a interpelação até efectivo e integral pagamento, revogando-se assim a sentença recorrida.
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V – Sumário: (…)
1 – Com a revisão do regime do seguro obrigatório de responsabilidade automóvel, realizada pelo Decreto-Lei n.º 291/07, de 21/08, caducou a jurisprudência uniformizadora do Acórdão Uniformizador da Jurisprudência n.º 6/02.
2 – Na actualidade, o direito de regresso da seguradora contra o condutor que conduza sob o efeito do álcool, passou a dispensar a prova da existência do nexo de causalidade entre esse facto ilícito e o acidente e passou a dispensar-se essa relação de causalidade à seguradora, bastando que se apure que na ocasião do embate o condutor apresentava taxa de alcoolemia superior à legalmente permitida e que foi o responsável pelo acidente.
3 – Do disposto na alínea c) do n.º 1 do artigo 27.º do DL n.º 291/2007, de 21/08, decorre uma presunção iuris tantum do nexo de causalidade entre o estado de alcoolemia e o acto de condução causador do acidente, incumbindo ao condutor segurado, quando demandado em acção de regresso, o ónus da sua ilisão.
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VI – Decisão:
Nestes termos e pelo exposto, tendo em atenção o quadro legal aplicável e o enquadramento fáctico envolvente, decide-se revogar a decisão proferida na Primeira Instância, ficando o Réu (…) condenado a pagar à “Crédito Agrícola (…) – Companhia de Seguros de (…), S.A.” a quantia de € 19.161,27 (dezanove mil, cento e sessenta e um euros e vinte e sete cêntimos), a título de direito de regresso, acrescida de juros legais vencidos e dos juros legais vincendos contados desde a interpelação até efectivo e integral pagamento.
Custas a cargo do Réu, atento o disposto no artigo 527.º do Código de Processo Civil.
Notifique.
*
Comunique ao Ministério Público para efeitos de avaliação da instauração de processo criminal contra as testemunhas (…), (…) e (…) por prática de crime de falsidade de testemunho, perícia, interpretação ou tradução, previsto e punido pelo n.º 3 do artigo 360.º do Código Penal.
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Processei e revi.
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Évora, 28/06/2023

José Manuel Costa Galo Tomé de Carvalho

José Manuel Lopes Barata

Cristina Maria Xavier Machado Dá Mesquita


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[1] Por manifesto lapso de escrita a resposta continha a referência «da Ré», que foi corrigido ao abrigo do disposto nos artigos 613.º e 614.º do Código de Processo Civil.
[2] Facto alterado nos termos decorrentes da operação de reavaliação da matéria de facto realizada no ponto 4.1 do presente acórdão, que correspondia à versão incluída na alínea a) da factualidade não provada.
[3] Facto alterado nos termos decorrentes da operação de reavaliação da matéria de facto realizada no ponto 4.1 do presente acórdão, que correspondia à versão incluída na alínea c) da factualidade não provada.
[4] Facto alterado nos termos decorrentes da operação de reavaliação da matéria de facto realizada no ponto 4.1 do presente acórdão e que passou a integrar o elenco dos factos provados (16).
[5] Facto alterado nos termos decorrentes da operação de reavaliação da matéria de facto realizada no ponto 4.1 do presente acórdão e que passou a integrar o elenco dos factos provados (17).
[6] Artigo 607.º (Sentença):
1 - Encerrada a audiência final, o processo é concluso ao juiz, para ser proferida sentença no prazo de 30 dias; se não se julgar suficientemente esclarecido, o juiz pode ordenar a reabertura da audiência, ouvindo as pessoas que entender e ordenando as demais diligências necessárias.
2 - A sentença começa por identificar as partes e o objeto do litígio, enunciando, de seguida, as questões que ao tribunal cumpre solucionar.
3 - Seguem-se os fundamentos, devendo o juiz discriminar os factos que considera provados e indicar, interpretar e aplicar as normas jurídicas correspondentes, concluindo pela decisão final.
4 - Na fundamentação da sentença, o juiz declara quais os factos que julga provados e quais os que julga não provados, analisando criticamente as provas, indicando as ilações tiradas dos factos instrumentais e especificando os demais fundamentos que foram decisivos para a sua convicção; o juiz toma ainda em consideração os factos que estão admitidos por acordo, provados por documentos ou por confissão reduzida a escrito, compatibilizando toda a matéria de facto adquirida e extraindo dos factos apurados as presunções impostas pela lei ou por regras de experiência.
5 - O juiz aprecia livremente as provas segundo a sua prudente convicção acerca de cada facto; a livre apreciação não abrange os factos para cuja prova a lei exija formalidade especial, nem aqueles que só possam ser provados por documentos ou que estejam plenamente provados, quer por documentos, quer por acordo ou confissão das partes.
6 - No final da sentença, deve o juiz condenar os responsáveis pelas custas processuais, indicando a proporção da respetiva responsabilidade.
[7] Antunes Varela, Miguel Varela e Sampaio e Nora, Manual de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1985, págs. 435-436.
[8] Sobre esta matéria ver, em sentido próximo, o Acórdão da Relação de Lisboa de 19/05/2016, in www.dgsi.pt, que realça que «a prova dos factos assenta na certeza subjectiva da sua realidade, ou seja, no elevado grau de probabilidade de verificação daquele, suficiente para as necessidades práticas da vida, distinguindo-se da verosimilhança que assenta na simples probabilidade da sua verificação».
[9] De harmonia com o princípio da prova livre, que se contrapõe ao princípio da prova legal, as provas são valoradas livremente, sem qualquer grau de hierarquização, apenas cedendo este princípio perante situações de prova legal, nomeadamente nos casos de prova por confissão, por documentos autênticos, documentos particulares e por presunções legais.
[10] Artigo 396.º (Força probatória):
A força probatória dos depoimentos das testemunhas é apreciada livremente pelo tribunal.
[11] Miguel Teixeira de Sousa, A livre apreciação da prova em processo Civil, Scientia Iuridica, tomo XXXIII (1984), pág. 115 e seguintes.
[12] Acórdão da Relação de Lisboa de 16/06/2016, in www.dgsi.pt.
[13] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, Coimbra Editora, Coimbra, 1956, pág. 256.
[14] José Alberto dos Reis, Código de Processo Civil anotado, vol. IV, Coimbra Editora, Coimbra, 1980, pág. 361.
[15] Francisco Manuel Lucas Ferreira de Almeida, Direito Processual Civil, Vol. II, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2019, pág. 383.
[16] Luís Filipe Pires de Sousa, Prova Testemunhal. Noções de Psicologia do Testemunho, 2ª edição, Almedina, Coimbra, 2020, pág. 415.
[17] Michele Taruffo, La Prueba de Los Hechos, Editorial Trotta, Madrid, 2002, pág. 426.
[18] Artigo 81.º (Condução sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas):
1 - É proibido conduzir sob influência de álcool ou de substâncias psicotrópicas.
2 - Considera-se sob influência de álcool o condutor que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,5 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico.
3 - Considera-se sob influência de álcool o condutor em regime probatório e o condutor de veículo de socorro ou de serviço urgente, de transporte coletivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxi, de TVDE, de automóvel pesado de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas que apresente uma taxa de álcool no sangue igual ou superior a 0,2 g/l ou que, após exame realizado nos termos previstos no presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico.
4 - A conversão dos valores do teor de álcool no ar expirado (TAE) em teor de álcool no sangue (TAS) é baseada no princípio de que 1 mg de álcool por litro de ar expirado é equivalente a 2,3 g de álcool por litro de sangue.
5 - Considera-se sob influência de substâncias psicotrópicas o condutor que, após exame realizado nos termos do presente Código e legislação complementar, seja como tal considerado em relatório médico ou pericial.
6 - Quem infringir o disposto no n.º 1 é sancionado com coima de:
a) (euro) 250 a (euro) 1250, se a taxa de álcool no sangue for igual ou superior a 0,5 g/l e inferior a 0,8 g/l;
b) (euro) 500 a (euro) 2500, se a taxa for igual ou superior a 0,8 g/l e inferior a 1,2 g/l ou, sendo impossível a quantificação daquela taxa, o condutor for considerado influenciado pelo álcool em relatório médico ou ainda se conduzir sob influência de substâncias psicotrópicas.
7 - Os limites de 0,5 g/l e 0,8 g/l referidos no número anterior são reduzidos para 0,2 g/l e 0,5 g/l, respetivamente, para os condutores em regime probatório, condutores de veículos de socorro ou de serviço urgente, de transportes coletivo de crianças e jovens até aos 16 anos, de táxis, de TVDE, de automóveis pesados de passageiros ou de mercadorias ou de transporte de mercadorias perigosas.
[19] Manuel de Andrade, Noções Elementares de Processo Civil, 1979, Coimbra, pág. 191.
[20] A. Menezes Cordeiro, Direito das Obrigações, 1986, vol. II, págs. 244-246.
[21] Vaz Serra, Pluralidade de devedores ou credores, BMJ, n.º 69, 1957.
[22] Antunes Varela, Das Obrigações em Geral, Almedina, Coimbra, pág. 638.
[23] Almeida Costa, Direito das Obrigações, 5ª ed., Almedina, Coimbra, pág. 538.
[24] Luís Manuel Menezes Leitão, Direito das Obrigações, vol. I, Almedina, Coimbra.
[25] Jorge Ribeiro de Faria, Direito das Obrigações, vol. II, Almedina, Coimbra, 2001.
[26] José Carlos Brandão Proença, Lições de cumprimento e não cumprimento das obrigações, Universidade Católica Editora, Porto, 2017.
[27] Filipe Albuquerque Matos, O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel – Alguns aspectos do seu regime jurídico, BFDUC, 2002, págs. 329-364.
[28] Ana Afonso, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, págs. 449-451.
[29] Ana Afonso, Comentário ao Código Civil – Direito das Obrigações – Das Obrigações em Geral, Universidade Católica Editora, Lisboa, 2018, pág. 451.
[30] Filipe Albuquerque Matos, O contrato de seguro obrigatório de responsabilidade civil automóvel – Alguns aspectos do seu regime jurídico, BFDUC, 2002, págs. 348 e seguintes.
[31] O acórdão de uniformização de jurisprudência tinha o seguinte conteúdo decisório: «a alínea c) do artigo 19.º do DL n.º 522/85, de 31-12, exige para a procedência do direito de regresso contra o condutor por ter agido sob influência do álcool o ónus da prova pela seguradora do nexo de causalidade adequada entre a condução sob o efeito do álcool e o acidente».
[32] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 10/12/2020, pesquisável em www.dgsi.pt.
[33] A jurisprudência do Supremo Tribunal de Justiça estabilizou no entendimento de que se prescinde da demonstração do nexo de causalidade entre a alcoolemia e o acidente, tal como resulta da análise dos acórdãos 28/11/13, de 21/01/14, 07/05/14, 09/10/14, 14/07/16, 07/02/17 e de 06/04/17.
[34] Acórdão do Supremo Tribunal de Justiça de 25/03/2021, divulgado em www.dgsi.pt.
[35] (15) Considerado o período de incapacidade, a IPP, o Quantum Doloris, o Dano estético apurados, o aqui autora chegou a acordo com a Lídia Vilela, no montante global de 17.000,00 euros de indemnização.
[36] (16) A Autora pagou ainda € 1.753,17 e € 153,93 aos hospitais, € 193,00 de despesas de fisioterapia e € 61,17 de despesas de farmácia.